sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

"A educação exige os maiores cuidados, porque influi sobre toda a vida". (Sêneca)


                                            Educação em foco
                           Considerações sobre ser professor

Costumo dizer que sou um apaixonado do exercício do magistério; sou um professor comprometido com uma Educação libertária. E sorri-me a crença em que, talvez, tenha eu nascido para a prática pedagógica. Se é verdade que certas aptidões e talentos possam já estar previstos em nossa constituição genética, é muito provável que a minha aptidão para o magistério estivesse em mim latente. É o que sinto, sinceramente, e o confesso aqui.
O que me estimula a escrever este texto é mais do que a necessidade de dar um testemunho de minha paixão pelo magistério, é também a vontade de trazer à consciência de meus leitores a inegável importância da Educação na construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Sou romântico, sim, também neste domínio. Claro é, porém, que evito deslumbrar-me com idealizações, com utopias. E experimento frustrações, frequentemente. Não escapamos a elas, como professores, sempre que nos comprometemos a ir além; sempre que não nos conformamos às condições educacionais muito pouco favoráveis a um ensino crítico e libertário. Só não se frustram aqueles que nada desejam, que nada pretendem, além de receber, ao final do mês, seu ganha-pão.
A Educação é lugar de conflitos; é o espaço onde as desigualdades sociais, as diferenças de classe, as ideologias, as crenças e visões de mundo diversas repercutem. Mas é também o espaço onde tudo isso deve ser trabalhado; digo, discutido e questionado. A Educação é (ou deve ser), numa sociedade democrática, um espaço de resistência. Formar para a resistência, desenvolver a consciência crítica, promover a reflexão, o questionamento – são todas atividades que competem aos profissionais da Educação.
A que resistência me refiro? Resistência ao status quo, resistência ao senso-comum, aos lugares-comuns, às ideologias prestigiosas e que, supostamente, prescrevem “verdades”, aos preconceitos de toda sorte (inclusive ao preconceito linguístico, completamente ignorado, quer pelos membros das classes dominadas, quer pelos membros das classes dominantes, quer também por grande parte de nossas autoridades políticas).
Enquanto me ocupava da leitura do livro Nada na língua é por Acaso – por uma pedagogia da variação linguística (2007), do renomado (socio)linguista Marcos Bagno – um livro que, por sinal, muito bem escrito e de fácil compreensão – chamou-me a atenção o seguinte trecho, que é a expressão de uma das etapas que, segundo o autor, configuram o trabalho de reeducação sociolinguística que cabe ao professor de português desenvolver na escola (e eu acrescentaria também na universidade):

“Conscientizar o alunado de que a língua é usada como elemento de promoção social e também de repressão e discriminação – comparar o preconceito linguístico com as outras formas de preconceito que vigoram na sociedade; desconstruir o preconceito linguístico com argumentos bem fundados e alertar alunos e alunas contra suas próprias práticas de discriminação por meio da linguagem”
(p. 84)
(grifo no original)

Em seus livros (que prezam sempre pela clareza e pela fundamentação teórica, sem deixarem de ser didáticos e acessíveis à leitura), Bagno insiste incansavelmente na necessidade de combate ao preconceito linguístico, ignorado em nossa sociedade. Ele existe! Mas passa ao largo dos debates sobre temas sociais e políticos na mídia e escapa à consciência da grande maioria dos indivíduos de nossa sociedade. É claro que isso não é um fato específico da sociedade brasileira; o preconceito em relação aos usos da língua é comum  senão a todas, certamente à maioria das sociedades civilizadas.
E como esse preconceito se manifesta? Se manifesta nas ocasiões em que discriminamos a fala dos outros, a censuramos, a ridicularizamos, a rotulamos de “errada”, de “estropiada”, etc.. E mais – e isso sequer é percebido: a discriminação do modo de falar do outro é também discriminação do próprio indivíduo. Ora, quando usamos a língua trazemos à tona também nossa origem sócio-cultural, ou seja, à classe social a que pertencemos, nosso grau de escolarização e de participação na cultura letrada. O que falamos revela muito sobre de onde viemos, onde fomos educados, sobre nossos valores, nossa identidade; em suma, sobre quem somos. Disso se segue que, ao censurar uma forma como probrema (que, aliás, é muito estigmatizada; talvez, o leitor tenha-se rido ao lê-la) produzida por uma empregada doméstica, estamos demarcando-lhe as fronteiras sócio-culturais que dela nos separam. Estamos dizendo, tacitamente: “vejo logo que você vem de uma classe social menos favorecida à qual eu não pertenço (e rejeito)”. Os usos da língua, é preciso dizer, revelam a estratificação social. Numa sociedade como a brasileira, fortemente estratificada, usar a língua é, muitas vezes, uma forma de reforçar essa estratificação social. E fazemos isso frequentemente, sem que, muitas vezes, percebamos.
Não vou, contudo, me alongar neste assunto. Volto ao que me interessa propriamente aqui: a Educação. Evidentemente, falar em Educação é falar de um espaço de múltiplos discursos, portanto, de um espaço onde as práticas institucionais (e não poderia ser diferente) são práticas de linguagem. Discursos são arenas de conflitos; é o lugar privilegiado da ideologia. São práticas sociais ou modos de ação social e formas de representação; nesse tocante, devemos entendê-los tanto como espaços sociointeracionais moldados pelas estruturais sociais, quanto espaços constitutivos dessas estruturas. Assim também o discurso serve para a reprodução e  para a mudança dessas estruturas.
A Educação não é imune aos jogos de poder fundamentados nos discursos e por eles viabilizados ; ela não está salva das ideologias dominantes, das desigualdades de classe, realidades estas que repercutem em seus espaços institucionais (veja-se a escola). E o professor, como agente social, pedagógico e político, precisa atuar no sentido de mediar a relação entre as diferentes formas de representação social e de conhecimento. Ele não escapa ao senso-comum, evidentemente; mas não pode limitar-se a reproduzi-lo, deve ultrapassá-lo, deve estimular seus alunos a questioná-lo. Daí sempre a necessidade do debate, da leitura reflexiva, orientada, mas também das releituras (que não consistem em ler de novo, mais em ler sob outras perspectivas, à luz de novos conhecimentos alcançados). Questionar as leituras institucionalizadas, consagradas por uma tradição intelectual elitizada; afinal, os textos ( incluindo as obras literárias) são abertos a muitas interpretações (não a todas, certamente, mas a muitas) – constitui tarefa de todo professor (não só do de português e Literatura).
Uma Educação para a resistência começa num trabalho orientado pelo princípio de que a linguagem é um instrumento não só de expressão, mas também de reprodução e consolidação do poder. Não obstante, é também um espaço em que os poderes podem e devem ser questionados.
Não só fala quem manda; mas também fala quem ousa resistir e questionar! E você, ousa falar?


quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

"Um debate é uma troca de conhecimentos. Uma discussão é uma troca de ignorâncias". (Robert Quillen)

                     




                                               Incomodações
                              Para a necessidade de um debate equilibrado
                                                      entre religiosos e ateus  
                                                      

Perdoem-me se os primeiros enunciados deste texto destilarão doses ácidas de altivez; se com eles pretendo eu olhar de meu mirante espiritual as rasas pegadas deixadas pelo espírito de pessoas que trafegam virtualmente nas redes de relacionamentos on-line, como Orkut e Twitter, e que são incapazes de sustentar um debate circunscrito às exigências da razão, desferindo mutuamente uma série de acusações, ofensas e despautérios. Perdoem-me, pois que aqueles que me acompanham há muito e me conhecem sabem que não sou presunçoso. E, por mais desinteressantes sejam, para mim, muitas das comunidades nos espaços de relacionamentos virtuais, participo de algumas delas (decerto, das que me atraem pela temática que propõem). No entanto, apesar de parecerem-me, a princípio, interessantes, não deixam de me frustrar pela quantidade de postagens repletas de lugares-comuns, visões rasas e pouco fundamentadas e, principalmente, repletas de ataques pessoais.      
Em outro texto, tratei da falta de reconhecimento de uma ética discursiva, que deve reger debates que se propõem ao tratamento de questões de alguma relevância social, política e cultural. Alguns participantes, simplesmente, ignoram-na. Receio que esteja eu sendo demasiado acurado no modo como desenvolvo aqui meus pensamentos; dou passos lentos como quem deseja atacar de surpresa. Busco certa discrição verbal na consideração dessa empobrecida realidade intelectual dos ciberespaços. Uma amiga querida minha, contudo, abandonou finezas, ao dizer-me, com razão, que a maioria dos que se envolvem naqueles debates são muito ignorantes. Talvez, nem sejam tanto, mas são, em alguma medida, “despreocupados”.
Tenho, pois, participado (na verdade, voltei a participar) de comunidades ateístas no Orkut e no Facebook. Neste, as comunidades me agradam mais. Não percebi, entre os participantes, ataques pessoais, ainda que, vez por outra, se topem mais comentários de indignação ou de defesa da causa ateísta do que comentários que abram caminhos para alguma reflexão válida. Sucede diferente nas comunidades ateístas das quais participo  no orkut (pelo menos a minha foto está entre as dos participantes, já que, a rigor, dou pouca contribuição). Nelas, observa-se um festival de acusações (especialmente, na comunidade Debates de Religião x Ateísmo, cuja denominação já nos permite entrever as condições favoráveis ao teor relativamente agressivo dos discursos). Excogitei de apresentar alguns trechos aqui, mas conclui que me demandaria muito tempo. Fica o convite para quem quiser atestar por si mesmo.
É bom ponderar que nem todos os comentários têm aquele teor; alguns incluem alusões filosóficas, trazem à cena algumas sombras de perspectivas teóricas interessantes. Mas outros tantos passam ao largo do tema proposto; outros, ainda, chegam a tangenciá-lo, mas tão logo dele se afastam. Veja-se um exemplo disso:

 A diz: ou guris de 14 anos, que estão começando a carreira de ateus de modinha.

B diz: ateu de modinha,senhora,saiba que vivo numa comunidade catolica muito conservadora,e que sofro muito preconceito.Seguir uma modinha não seria sensato na minha posição.

O tema do fórum é expresso com a denominação criativa “Religião=ignorância?.  Mas notem que A foge ao tema, ao sugerir que o ateísmo é uma moda crescente na sociedade pós-moderna. E B imediatamente replica, se defendendo. Parece que, agora, estamos diante de um outro tema “ateísmo é modismo?”. Não raro, dentro do macro-debate, estimulado pelo tópico principal, há outros debates que se particularizam em torno de temas com os quais se comprometem dois ou mais enunciadores. Em geral, observa-se não haver uma continuidade de raciocínios, talvez porque os participantes não se dêem ao trabalho de ler as contribuições uns dos outros, a menos que tenham interesse em completá-las ou refutá-las.
Note-se abaixo um claro exemplo de agressão verbal, que não serve senão para infertilizar qualquer debate:


A diz: mesmo teístas terem feito mais pela ciencia,apenas os ateus compreendem a existencia claramente."
Ta explicado. Que merda cara, no meu tempo, nós só falavamos sobre "ateismo", na universidade e mesmo assim, eram discussões tratando de filosofia. Não tinha nenhum poser idiota metido a etendido de ciência, pagando de "sagaz" no círculo... só marxistas... (Hahaha).


B: vi que voce é o que chamamos de "porca capitalista" (quem critica o marxismo por influencia do capitalismo selvagem)
poser idiota é voce que vem aqui só pra me xingar


As partes em negrito foram por mim grifadas com o objetivo, evidentemente, de salientar a incapacidade de os participantes levarem adiante um debate equilibrado e apenas alimentado por argumentos válidos, ou seja, orientado para a manifestação de posicionamentos claros e coerentes e não impregnados de sentimento agressivo. Salvo este caso particular, em que um dos enunciadores é uma jovem adolescente, não me surpreenderia se, em casos análogos, os enunciadores, equiparando-se em gênero e idade, pudessem, estando face-a-face, desferir, um no outro, pontapés e socos. Vale lembrar a lição de Freud sobre a grande dose de agressividade que carrega a natureza humana. E, quando a causa está impregnada de um sentido visceral, como, por exemplo, a de religiosos que se esforçam por defender suas crenças e a de ateus não menos dedicados a defender seus argumentos contrários, dá para se ter uma noção da suscetibilidade humana à agressão.
Tenho insistindo em dizer que religião se discute sim e que o desejável, numa sociedade que se acredita democrática, é favorecer oportunidades de discussão séria neste terreno. Não obstante, não posso aceitar o fato de encontrarmos aqui e ali uma forte disposição para ataques pessoais de ambas as partes – teístas e ateus. Os partidários dos dois grupos tendem a se comportar linguisticamente de modo agressivo, desferindo mutuamente ofensas e acusações.
Sou tentado a sugerir que só a ignorância de ambas as partes pode explicar isso. É possível que haja muitos que buscam em livros conhecimentos suficientes para validar seus argumentos; mas outros tantos ou não são leitores assíduos ou verdadeiramente interessados em aperfeiçoar sua argumentação, ou, se lêem, o fazem ignorando as vantagens dessa atividade, ou seja, lêem, mas se limitam a vomitar conhecimentos fragmentados ou cristalizados e a encarar o debate como uma arena em que pessoas devem duelar e afirmar-se continuamente como portadoras de verdades incontestes. 

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

"O debate acelera a inteligência" (Patrick Schneider)


                              Debatendo sem se debater

Um novo ano começou e eu ignorei as promessas e os planos. Basta-me a vida e a possibilidade de levá-la adiante. Já, há algum tempo, só me comprometo comigo mesmo, com o meu modo de me dar à vida. Esperança é palavra caduca em meu vocabulário. Esperar demais de algumas pessoas leva-nos, muitas vezes, à frustração. O conselho de Epíteto parece-me válido: a ordem das coisas, frequentemente, não pode ser mudada; mas podemos mudar nossas opiniões ou interpretações. Diante de uma circunstância adversa ou perturbadora, devemos ponderar, perguntando-nos se temos ou não influência sobre ela. São nossas visões sobre as coisas que nos inquietam ou nos perturbam. A serenidade, a mansidão e a busca por nos fazer incólumes a sofrimentos evitáveis são a meta do estoicismo. A felicidade depende do modo como nos posicionamos diante das adversidades. Segundo Epíteto, devemos buscar, nessas ocasiões, manifestar calma, serenidade e ser determinados.
A este espírito de prudência estóico quero acrescentar o espírito de ousadia nietzschiano. Á página 46, em Ecce Homo, escreve o filósofo alemão:

“A minha prática de guerra pode ser resumida em quatro proposições. Primeira: eu ataco somente as coisas vitoriosas; ou espero até tal se tornarem. Segunda: ataco somente as coisas para as quais não poderia encontrar companheiros onde estou só, onde sou o único a comprometer-me. Nunca articulei um passo que não me comprometesse; isto é (segundo o meu modo de ver), em que não me fosse dado agir corretamente. Terceira: não ataco nunca as pessoas; sirvo-me delas como duma possante lente de aumento com que se pudesse tornar visível algum mal comum mas oculto, difícil de ser pesquisado.(...) Quarta: eu ataco somente as coisas das quais se exclui qualquer antipatia pessoal, para as quais me falta todo e qualquer sedimento de esperanças tristes. Pelo contrário, atacar é, para mim, um sinal de benevolência, sendo às vezes até de reconhecimento. Para mim é uma honra proporcionar algo; uma distinção, quando uno o meu nome ao de uma coisa ou de uma pessoa: pró ou contra a mesma, tem o mesmo valor para mim. Se guerreio o Cristianismo, tenho pleno direito a isso, porque desse lado nunca me infligiram desgraças ou obstáculos; os cristãos mais convictos sempre me foram sobremodo benévolos. Eu mesmo, inimigo do Cristianismo de rigueur, estou bem longe de ter ódio aos seus prosélitos, sendo, como é, uma fatalidade de milhares de anos”.

O compromisso com a crítica à tradição e a ruptura com ela fazia parte da agenda nietzschiana. E, quase sempre, sinto-me impregnado desse espírito revolucionário, ainda que consciente de minha pequenez e impotência para modificar um dado estado-de-coisas estabelecido por um poder imediato ou secular. Não dou asas ao deslumbramento nem animo ideias utópicas; e, por vezes, fico de permeio com a renúncia e a persistência. Tendo a esta última como o filho tende ao colho da mãe e a ave tende ao ninho. Os meus pensamentos me acolhem, ainda que eles se enfraqueçam diante dos valores mais rígidos e das ideologias mais vigorosas e penetrantes, que ainda vicejam.
Se todas as produções de meu espírito, todos os escritos que trouxe a lume pudessem ser significativamente sumariados numa só palavra, eu escolheria a palavra engajamento. Engajar-se é comprometer-se; é participar ativamente de uma causa, é fazer ecoar nossa voz num dado domínio da dialética social (que inclui, evidentemente, esferas de saber e poder).
A internet, com suas redes de relacionamentos virtuais, decerto, favoreceu para que indivíduos interessados em engajar-se possam externar suas posições sobre temas de relevância social. Mas não estou admitindo que os espaços on-line destinados a debates sejam todos vantajosos e interessantes. Neles, se acha toda sorte de gente; os que mais me desagradam são os pseudointelectuais arrogantes, que ignoram a ética argumentativa, que deve prevalecer nas esferas de debates que se pretendam sérios. Dessa ignorância se segue uma sorte de sarcasmos, ofensas e baixezas linguísticas. A postura de Nietzsche, que não atacava, como nos confessa, as pessoas, mas tão só suas obras, não se faz sentir entre aqueles intelectualóides.
Não alardearei o mérito da humildade, mas desfraldarei a bandeira da decência intelectual. O desenvolvimento da intelectualidade não é possível sem a solidariedade ou mutualidade de intelectos. O intelectual é, para além do acúmulo de titulações, antes de tudo um agricultor do intelecto, alguém que aprecia demorar-se no cultivo de seus pensamentos e se deter a longas pesquisas. Ler é para ele atividade indispensável. Sucede, contudo, que, naquelas ocasiões, alguns dos participantes são incapazes de sustentar um debate sério e equilibrado; são carecidos de rigor racional e tornam-se, com frequência, suscetíveis às emoções mais pífias, ainda que ostentem em seus atos linguísticos certo ar de onipotência.
Por vezes, animo-me a dar-lhes a devida resposta, sem que ela se embarace em despeito ou jactância. E nunca perco de conta a quase certeza de que eu estou lindando com pessoas que se supõem capazes de participar de debates intelectualmente relevantes, mas que são estúpidas ou ignorantes sobre a necessidade de manter uma conduta em consonância com o simples bom senso: o saber se produz em conjunto. Filósofos e cientistas, por exemplo, não se julgam donos da verdade ou do saber; ao contrário, reconhecem continuamente sua ignorância, mas não desistem de buscar a verdade e de produzir conhecimento.
Não espero que o leitor depreenda destas palavras sentimento de indignação pessoal. Sou indiferente àqueles que se comportam presunçosamente, quando se julgam capazes de emitir opiniões peremptórias. Mas não sou indiferente à insistência em que qualquer debate que demande rigor racional, orientação argumentativa sólida deve ser realizado na base do pressuposto da ignorância; deve ser desenvolvido por indivíduos dispostos a aprender uns com os outros. Apenas os estúpidos tendem a rejeitar esse princípio inatacável.  

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

A leitura é uma fonte inesgotável de prazer mas por incrível que pareça, a quase totalidade, não sente esta sede" (Carlos Drummond de Andrade)

             

              Quando a leitura entra em cena

É lugar-comum afirmar que ler é um meio eficiente para a aquisição de conhecimentos. Os textos são responsáveis por tornar o conhecimento socio-cognitivamente existente. Insisto neste ponto: o conhecimento como fato social só existe pela sua constituição linguística em textos. Os textos são formas de cognição social. Segundo Koch, em Introdução à Linguística Textual (2004),


“Os textos são condição de possibilidade de se tornar o conhecimento explícito, de segmentá-lo, diferenciá-lo, pormenorizá-lo, de inseri-lo em novos contextos, permitir sua reativação, de testá-lo, avaliá-lo, corrigi-lo, reestruturá-lo, tirar novas conclusões a partir daquilo que já é compartilhado e de representar linguisticamente, de forma nova, novas relações situacionais e sociais”.
(p. 173)

Convém enfatizar a mudança de perspectiva que se opera na relação entre texto (ou leitura) e conhecimento. Os textos não são apenas meios de aquisição de conhecimentos; mas permitem constituí-los e estruturá-los dando-lhes um formato socialmente relevante. Koch (p. 172) ainda nos ensina que “todo o conhecimento declarativo de nossa sociedade é (com exclusão daquele que se traduz em números ou fórmulas) primariamente linguístico, ou melhor, conhecimento textualmente fundado”. Não se segue daí que só podemos conhecer na base de textos. Russel nos ensinara sobre a forma de conhecimento que decorre da experiência sensível, denominada por ele de conhecimento por familiaridade.
Mas minha preocupação aqui é mostrar que, desde o advento da escrita alfabética, há uns 3.000 a.C. , entre os sumérios (posteriormente desenvolvida pelos gregos), o conhecimento pôde ser registrado, organizado e conservado para ser estendido às gerações posteriores. Não suponho, contudo, que ele tenha sido, com a escrita, democratizado; longe disso: a escrita é uma das formas de legitimar o poder e de impedir a um grande número de indivíduos o acesso ao conhecimento. E o conhecimento é um instrumento a serviço dos segmentos que detém o poder político, social e econômico.
As palavras de  Lyotard – A condição pós-moderna (2009) - esclarecem-nos sobre a relação entre conhecimento e poder:

“Sabe-se que o saber tornou-se nos últimos decênios a principal força de produção, que já modificou sensivelmente a composição das populações ativas nos países desenvolvidos e constitui o principal ponto de estrangulamento para os países em vias de desenvolvimento. (...) Sob a forma de mercadoria informacional indispensável ao poderio produtivo, o saber já é e será um desafio maior, talvez o mais importante, na competição mundial pelo poder”
(p. 5)

No tocante às condições em que se acha o saber, o autor nos mostra que ele é, nas sociedades de consumo da era (pós-)moderna, uma mercadoria, inserida ao lado das outras nas esferas de consumo; além disso, o conhecimento tornou-se também um importante instrumento a serviço da reprodução do poder, em escala mundial.
Não pretendo, no entanto, pormenorizar a questão do status do conhecimento na sociedade pós-moderna. Quero apenas insistir, mais uma vez, que a posse de conhecimento é indispensável à maior participação social, política e cultural. E lembro, embora não possa me deter neste tema aqui, que a participação política não se cinge ao exercício do voto, mas envolve o engajamento de indivíduos em organizações, grupos e se caracteriza também pela capacidade de eles tomarem decisões e responderem criticamente ao status quo. A própria contribuição de cada um de nós para a conscientização de outros indivíduos da importância de defender a liberdade de pensamento, de lutar pela igualdade de condições, de combater toda forma de preconceito e intolerância, etc. já é uma forma de participação política. Costumo lembrar aos meus alunos que ensinar é assumir um compromisso político e, portanto, é participar politicamente da construção de uma sociedade mais justa. Na Educação, todos nós, professores, sabemos não escapar aos ideais.
Até aqui, podemos arrolar as seguintes conclusões:

a) estamos de acordo em que o conhecimento tem importância social;
b) estamos de acordo em que a leitura é o principal caminho para adquiri-lo.

No entanto, também devemos estar de acordo quanto ao fato de que não conseguiremos estimular jovens e adultos a ler mais pela via argumentativa que ressalta a importância sócio-política e cultural dessa prática. Não estou interessado aqui  em apresentar propostas para o incentivo à leitura. Quero apenas insistir em que ela não é uma atividade lúdica, muito embora possa causar prazer. E é sobre o prazer que a leitura pode provocar em nós que repousa meu interesse.
Não foi exatamente durante o período em que me graduava que comecei a experimentar prazer na leitura. Provavelmente, porque as leituras que nós, então estudantes, devíamos fazer dos textos que nos eram dados pelos professores visava sempre a alguma avaliação (trabalhos ou provas). Parece-me que toda leitura orientada para uma avaliação pedagógica é uma atividade pouco prazerosa. O prazer sucumbe ao propósito de, pela leitura, lograrmos êxito no exame a cuja realização ela se destina. A finalidade da leitura, seja na escola, seja na universidade, é a realização de atividades. Lê-se porque se tem de fazer testes, exercícios de avaliação de aprendizagem (incluindo seminários, redações...), provas e testes.
 Outro fator que obstaculiza o prazer diz respeito a interesses pessoais por um ou outro tema. Sabemos, como leitores, que há temas que nos interessam e outros que não nos interessam. Na escola, especialmente, temos de ler textos que não nos agradam.  Os que não apreciam as aulas de biologia precisam ler a matéria de biologia no livro didático (não estou pressupondo que os alunos leiam, realmente; em geral, o professor passa-lhes um questionário e eles se baseiam nele para realizar a prova). De qualquer forma, eles precisam ler os capítulos em que se acham  as respostas das questões propostas.
Quero dizer que a leitura não é uma atividade restrita às aulas de português. Os alunos são expostos à leitura, nas aulas escolares, durante todo o tempo em que delas participam. A escola é o espaço para a leitura, por excelência.
Há um discurso pedagógico, talvez influenciado pelas posições de Paulo Freire, que insiste em que o trabalho de leitura deva ser orientado de tal modo, a abranger o universo sócio-cultural em que vive o aluno. Este seria incentivado a ler mediante a leitura que ele possa fazer do próprio mundo; em outras palavras, ele leria textos que toquem às suas experiências de mundo, textos que representem aspectos do mundo que lhe são acessíveis por suas experiências sociais imediatas. Esse é um caminho que tem-se mostrado profícuo, mas é necessário ultrapassá-lo, já que não conseguiremos, se apenas nos limitarmos a segui-lo, alargar-lhe a consciência de mundo. Por exemplo, o professor que trabalhe com letras de funk com uma turma de jovens da periferia, numa escola pública, elaborando sobre elas atividades de interpretação, deve saber que está contribuindo para uma tomada de consciência deles da realidade social em que vivem (caso a letra da canção retrate aspectos importantes dessa realidade); no entanto, deve reconhecer também que ainda estará reforçando a limitação deles a essa realidade (conserva-se a exclusão). Eles precisam ter acesso a outros modelos de mundo, textualizados; a outras visões de mundo, a outras formas de compreensão da realidade. Uma maior participação cultural, aqui, significa, principalmente, conhecer outras produções culturais que não só a dos membros que pertencem à sua realidade social.
Mas voltemos ao prazer na leitura. Esse prazer é o prazer do desvelar. Desvelar que nos incute o deslumbramento. Ler é “retirar o véu”. Véu da ignorância. O deslumbramento é o encanto, o maravilhamento que experimentamos quando conhecemos, ou seja, quando tornamos presente à consciência algo que ignorávamos. É o que sinto quando meu espírito se embrenha nas páginas de livros, quando ele trafega pelas amplidões que lhe abrem as palavras.
Só pode haver prazer em ler, se o sujeito leitor é capaz de reconhecer o valor do saber ou do conhecer como um imperativo da condição humana. Ler por qualquer obrigação castra o prazer. Da mesma forma, ler sem reconhecer a importância do conhecimento dificilmente será uma atividade que provoque deslumbramento.
Ler porque é necessário conhecer. E conhecer pode sim causar prazer. Um prazer intelectual, que nos engrandece, que nos contenta, que nos torna mais atuante, a despeito das tendências conformistas.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

"A solidão desola-me; a companhia oprime-me" (Fernando Pessoa)

                    

                           Pensamentos dispersos


Vezes há em que precisamos parar. Simplesmente, cessar de pensar tanto, de ler tanto e de projetar. Há momentos em que preciso simplesmente reler, rever, re-experienciar, relembrar, revisitar os produtos de minha labuta verbal. Foi isso que fiz, ao ler breve e descompromissadamente meus textos antigos no blog, mas também os comentários que a eles se seguem. Notei que muitos não se acompanham de comentários; apercebi-me de que meu grupo de seguidores reúne hoje alguns outros simpatizantes. Houve um pequeno crescimento, mas nada ainda comparável ao número de seguidores que observo nas páginas de outros bloguistas, que encerram grupos com mais de 400 leitores.
Não é que eu me preocupe com o fato de meus textos não angariarem muitos leitores; alguns dos poucos que decidiram acompanhar meu blog são leitores assíduos de meus textos, ainda que estes possam incomodá-los de algum modo (talvez por insistir em cutucar suas crenças mais arraigadas e vitais).
Por um instante, pus diante de mim o livro Ecce Homo, de Nietzsche, a fim de nele buscar algum trecho que me infundisse um sentimento de potência, de superação que, no filósofo, não raro, era amparado numa soberba com que aquele homem de saúde frágil fazia valer seu espírito. Nietzsche, conforme nos revela em um de seus textos nesta obra, só atacava as coisas grandiosas. O cristianismo está entre essas coisas que lançou aos confins do mundo seus hinos de vitória. Nietsche via aí a moral do rebanho, dos decadentes, na qual se baseia a doutrinação incansável que se vem propagando há mais de dois mil anos.
No entanto, não podia seguir adiante, porque senão estaria eu novamente a me ocupar com os pensamentos. E este texto é erigido para negar a atividade de pensamento, para rejeitar as reflexões que teimam em perturbar o desejo de simplesmente reler, rever, re-ssentir, rememorar. Escrevo como quem regressa a sua terra natal e se pasma com suas mudanças.

O dia seguinte...

E cá estou eu novamente... Em face do computador, alinhando estas palavras, estruturando-as de modo a compor enunciados que configurem um texto que atenda às minhas necessidades interacionais.
Por vezes, quando entretido com as minhas leituras, sinto engrandecer-me dentro de mim um espírito empreendedor, germina-me um ânimo que faz com que meus pensamentos estejam sempre adiante de mim; eles se antecipam às palavras; mas não tarda para eu me convencer de que o tempo de vida que me é permitido por minha condição humana é relativamente curto em face dos grandes projetos nos quais nós, seres humanos, podemos nos engajar. É claro que esse reconhecimento não constitui razão suficiente para levar à derrocada as pretensões mais viris de um espírito ávido pelo saber.
Eu abrigo uma inquietude intelectual que não me deixa descansar, até que eu ponha diante de meus olhos um texto que testemunhe meus sentimentos e pensamentos mais viscerais e urgentes. Enquanto escrevo este texto, fico a catar textos ou blogs sobre autores cujas produções intelectuais eu admiro, como as de Bart D. Ehrman. E tudo que vou achando, deixo arquivado on-line. Talvez, esses materiais me sirvam em tempo para trazer a lume novas arquiteturas verbais.
É justamente por haver em mim um sentimento de urgência de conhecimentos e um ânimo sempre renovado de compartilhá-los que eu não me satisfaço em lecionar por mera conveniência financeira. A mim me incomoda o ter de “dançar conforme a música”. Um professor acomodado é um professor resignado, vencido pela frustração. E a frustração - certamente, inevitável, muitas vezes - é como um sentimento que deve ser exorcizado. A luta contra a frustração parece ser a única saída para os professores, a menos que eles estejam dispostos a desistir de seu compromisso pedagógico.
O mesmo vale para aqueles que, mesmo não sendo professores, dedicam-se a escrever sobre temas intelectualmente estimulantes. Quando diante de um público desinteressado, resta-nos decidir se nos vale trazer a lume nossos pensamentos ou deixá-los estampados em páginas dentro de uma gaveta. Por anos, escolhi a segunda opção. Felizmente, conclui que estava desperdiçando meu tempo em escrever para mim mesmo. Não há escritor sem leitores e não há textos sem leitores . Não pretendo agradar a um grande público; e acredito que meus textos não são feitos para uma grande quantidade de pessoas. É possível que meu estilo estorva a compreensão, dificulte a leitura, enfade. Eu tenho me preocupado em escrever com menos rigor formal e com menos formalidade. No entanto, não escapo à satisfação de lapidar a linguagem, enquanto me sirvo dela para escrever. Gosto de me envolver neste trabalho laborioso de arranjar palavras, selecioná-las cuidadosamente, apagá-las quando não me parecem oportunas, reinventá-las, rearranjá-las quando parecem ocupar um lugar inadequado nas estruturas sintáticas.
Eu não fujo aos equívocos. Sempre que releio meus textos, antes de divulgá-los, encontro-os em penca. Como palavras ou acrescento-as onde não são necessárias. Extrapolo as exigências da sintaxe, e, não raro, subverto a semântica. Escrevo coisas que me parecem sem sentido, depois de duas ou três leituras. Apresso-me a reescrever e, ainda assim, fico com a impressão de que não era bem o que eu queria ter dito.
Aceito a ideia de que a escrita não é uma terapia; nem sempre ela entretém; nem sempre traz felicidade. Pode, no entanto, trazer um bem-estar, quando, através dela, produzimos uma catarse. Aceito também a ideia de que as palavras nos traem; certamente; não estamos no controle dos sentidos, ignoramos os sileciamentos que vazam delas; a linguagem é opaca, não é transparente. Se nossa alma sangra, se as palavras nos causam sofrimento, se a escrita torna-se, assim, uma atividade dolorosa, disso não se segue que não sirva para afugentar nossos fantasmas, para restituir o que se perdeu em nós. Penso a escrita como uma atividade de que me ocupo para resolver um problema. É possível que, ao final dela, o problema ainda persista, mas vale o esforço, a entrega, a tentativa de domesticar as palavras que parecem desafinar os sentimentos, desalinhar-se, desarmonizar-se com os pensamentos e traçar a inexatidão dos dizeres que se calcam ininterruptamente sobre os já-ditos.
Escusa dizer quanto a linguagem me causa admiração e fascínio. E estudá-la na universidade é, decerto, uma atividade na qual me envolvo com grande prazer. Nestes mais de dez anos de dedicação aos estudos sobre linguagem, aprendi muito, mas tive poucas oportunidades para transmitir o que aprendi e, quando o fiz, ensinei muito pouco. E, em muitas ocasiões, minhas aulas não correspondiam qualitativamente ao legado de conhecimentos acumulado nestes mais de dez anos. Quem leciona pode imaginar por que razões as minhas aulas, por vezes, me frustravam. Não me delongarei nesse tocante.
Quando descobrimos que o discurso não se confunde com o texto e não é um dado apartado da realidade, quando descobrimos que o discurso é um acontecimento sócio-histórico de produção de sentidos, que ele não representa a realidade, mas a (re)constrói; quando descobrimos que o autor não é senhor do seu discurso, não está no controle dos sentidos previstos pelo seu texto, que não há discursos sem ideologia (portanto, que é a ideia da neutralidade do discurso é um efeito da ideologia), que identidades são discursivamente construídas, que discursos são práticas sociais nas quais os homens se envolvem também para constituir, reproduzir e alterar as estruturas sociais; quando descobrimos que também pelos discursos legitimamos o poder – e as descobertas não param por aí -; quando estamos a par de tudo isso, então somos capazes de reconhecer quão ricas são as reflexões sobre a linguagem e quão fundamentais à nossa vida são as atividades linguajeiras. Toda empresa intelectual passa, necessariamente, pela linguagem.
Em suma, discursos tanto podem aclarar consciências quanto podem estorvá-las; tanto podem libertar, quanto podem aprisionar, subjugar, embotar. Todo debate, toda discussão é um exercício de compromisso e confronto com a linguagem; não escapamos à linguagem; não escapamos às palavras; e não temos, portanto, acesso direto ao mundo, à realidade. O que sabemos sobre o mundo sabemos somente pelas nossas lentes linguísticas, pelas nossas visões, pelas nossas interpretações. Não escapamos dos pontos de vista.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

"O jeito de ver pela fé é fechar os olhos da razão". (Benjamin Franklin)

                        

                     
                             O que todo religioso deveria saber
                       O valor do conhecimento para a emancipação dos homens



   A conversa se estendia deliciosa, quando minha amiga indagou-me sobre o ter-me tornado ateu. Embora conserve sua fé, ela está entre as raras pessoas de fé que se dispõem a ouvir de bom grado um discurso polêmico. Decerto, ela não abraça a religião como as ovelhas cegas e surdas que se sentam enfileiradas nas igrejas. Ela pediu-me que justificasse a adoção do ateísmo e silenciou para que eu falasse, só interrompendo para corroborar alguns de meus argumentos.
Ambos fomos criados na tradição católica, mas, até então, apenas um de nós teve a coragem de romper com essa tradição. Este texto que ofereço à leitura pretende fazer ver que a minha adoção do ateísmo se deveu a razões tão-só intelectuais. Também neste texto dou a saber aos leitores um pouco do que venho aprendendo sobre religião, particularmente, sobre a Bíblia. Para tanto, trarei à baila as contribuições de um dos mais renomados especialistas nos estudos da Bíblia e da origem do cristianismo, autor cujos livros tenho lido com deliciosa atenção, Bart D. Ehrman. Em seu livro Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi?, o leitor estará diante de um discurso claro, acessível e honesto. O autor nos ensina, entre outras coisas, sobre as discrepâncias entre os evangelhos, sobre suas contradições, sobre as ficções bíblicas e as dificuldades encontradas pelos historiadores em usar os evangelhos como fontes históricas.
Os meus leitores sabem que tenho escrito pouco ultimamente, por isso pretendo com este texto satisfazer essa carência. É possível, portanto, que ele exceda ao número de linhas ao qual, ultimamente, tenho limitado meus textos. Peço-lhes, pois, paciência.
Sem mais delongas, a adoção do ateísmo por mim resulta de uma aturada convivência com os livros. Tenho insistido em que minhas posições ateístas são intelectualmente fundamentadas. Não me tornei ateu por uma revolta contra as circunstâncias adversas nas quais vi minha vida envolvida; mesmo depois das dificuldades de saúde por que passei, conservei minha fé durante certo tempo. Sucede, contudo, que havia já em minha alma o germe da inquietude, do questionamento, da necessidade do conhecimento. A força motriz de meu ateísmo repousa justamente nessa necessidade de conhecer, de saber, de buscar a(s) verdade(s).
E os leitores que me acompanham desde que decidi publicar em blog meus escritos sabem bem que dois são os maiores valores em minha vida: o amor e o conhecimento. Valores, quer de um ponto de vista ético, quer de um ponto de vista utilitário, são indispensáveis à vida humana. A moral está fundamentada em valores. Em certo sentido, valores consistem em tudo que acarreta felicidade aos homens. Pois bem: o amor e o conhecimento trazem-me felicidade. E, se considerarmos a brevidade da vida e o fato de que certamente morreremos, pareceu-me mais profícuo dedicar-me a (viver ou pensar) o amor e acumular conhecimento.
Vou-me ater à necessidade de conhecimento. Apercebi-me de que o conhecimento é um valor intrínseco à condição humana graças à minha dedicação à leitura de livros de filosofia. A minha incursão neste terreno foi determinante para o meu reconhecimento do valor do saber. Com a filosofia, reconheci que ignorava. Os homens têm, nesse tocante, duas escolhas: ou buscam a ascensão ao conhecimento, reconhecendo, felizmente, que ignoravam, ou continuam ignorando que ignoram. Essa última escolha é comum entre os religiosos: eles permanecem ignorantes de sua própria ignorância. Eles ignoram que ignoram. Na verdade, espero fique claro, no decorrer desta exposição, que as pessoas de fé são ludibriadas.
No que toca à necessidade de conhecimento, gosto de referir uma passagem que se topa no livro Introdução à Filosofia – histórias e sistemáticas (2004), de Roberto Rossi. À página 37, do capítulo quarto, dedicado à consideração da realidade como objeto de saber, escreve o autor:

“Se a realidade fosse simplesmente um dado, não precisaríamos conhecê-la. Os outros seres vivos, tratando a natureza como um dado, apenas se adaptam a ela, aprendendo só o suficiente para sobreviver. Precisamente porque a realidade é um problema, o homem sente a necessidade de conhecê-la. E ela se revela problemática, somente porque o homem a põe em discussão como tal, em virtude de um critério alternativo, que lhe vem daquele conhecimento primeiro da verdade perdida.”

Espero que o leitor me acompanhe na avaliação que farei deste passo. Atentemos para a primeira frase. Admitir ser a realidade um dado significaria dizer que ela se impõe a nós como algo independente e como algo que não demanda conhecimento. Sabemos que o organismo dos animais são uma extensão do meio em que vivem; para eles, a realidade não é objeto de conhecimento. Tudo que precisam saber para sobreviver na natureza já está inscrito em seu organismo; eles estão geneticamente pré-dispostos aos atos necessários à sua sobrevivência. A relação dos homens com a realidade é diferente: para nós, que dispomos da razão e da linguagem (que representa um grande salto de nossa espécie), a realidade não é algo que pré-existe a nós, é algo que precisa ser (re)construído em nossas experiências de mundo. Nossa sobrevivência como espécie depende, em grande parte, do desenvolvimento de conhecimentos sobre ela. As nossas relações com a realidade são mediadas pela linguagem; a realidade entra em nossa consciência, em forma de conhecimento, graças à função de simbolização inerente à linguagem. Sabe-se, hoje, que nossa mente é um processo, ou melhor, um processador de informações (de símbolos). E o conhecimento da realidade - sua (re)construção contínua - se dá pela sua estruturação em categorias fornecidas pela linguagem.
Ora, está claro também que a realidade só é um problema na medida em que os homens a colocam em discussão, o que significa dizer que a submetem a um tratamento discursivo. Essa atitude é, insistentemente, rejeitada pelos religiosos, em geral, que não parecem dispostos a encarar suas crenças religiosas como um problema a ser debatido. Para eles, a realidade da religião é algo dado. Tais quais os animais, eles se adaptam a ela. Vale dizer que essa questão de adaptação ao que se sabe por herança de gerações anteriores é lucidamente desenvolvida por Daniel Dennett, em Quebrando o Encanto – a religião como fenômeno natural (2006). Vou citar um trecho interessante, com que o autor nos ensina sobre essa disposição dos homens (compreensível do ponto de vista de sua evolução) à adaptação às condições que resultaram de uma dada herança de grupos. O próprio filósofo, em debates, insiste na ideia de que as religiões devem ter o mesmo tratamento dispensado a questões políticas ou de interesse público (ou seja, não são imunes ao crivo da razão). É justamente o argumento a que me inclino, segundo o qual é necessário quebrar a “áurea” que torna a religião um assunto inatacável. A religião é uma realidade demasiado humana para não ser passível de discussão, de avaliação racional.
Atentemos para este trecho, em que o filósofo, apoiando-se no arcabouço teórico proveniente do darwinismo, nos ensina sobre nossa tendência sistemática à adaptação às condições culturalmente determinadas:

“Nossos cérebros se desenvolveram para se tornar processadores de palavras mais eficazes, e eles podem também ter evoluído para implementar com maior eficácia os hábitos culturalmente transmitidos das religiões populares. (...) Não há, de fato, razão alguma para supor que os animais tenham qualquer ideia a respeito dos motivos que os levam a fazer o que instintivamente fazem, e os seres humanos não são exceção. A diferença entre nós e outras espécies é que somos a única espécie que se preocupa com sua ignorância! Ao contrário de outras espécies, sentimos uma necessidade geral de compreender, de modo que, mesmo que ninguém deva compreender ou possuir a intenção de inovar qualquer dos projetos que criaram as religiões populares, deveríamos reconhecer que as pessoas, naturalmente curiosas, reflexivas, e dotadas de linguagem na qual enquadrar e reenquadrar suas perplexidades, teriam apresentado a probabilidade – ao contrário das aves – de se perguntar qual seria o significado desses rituais. A coceira da curiosidade não é forte em algumas pessoas, aparentemente. A julgar pela variação observável ao nosso redor hoje, seria justo apostar que apenas uma pequena minoria de nossos ancestrais chegou a ter o tempo ou a inclinação para questionar as atividades em que se engajaram com seus parentes vizinhos”.
(p. 173)
(grifos meus)

Grifei alguns fragmentos que me pareceram mais importantes para a compreensão desse trecho. Elenco abaixo essas ideias:

1º - Ignoramos, tanto quanto os animais, as motivações que nos levam a comportar-nos de modo instintivo;

2º - Em geral, nos preocupamos com a nossa ignorância, muito embora haja muitos dentre nós que permanecem ignorantes de sua ignorância;

3º - Somos, naturalmente, pré-dispostos ao conhecimento.

Ora, se somos dotados de uma inquietude cognitiva, o que explica a permanência na ignorância sobre determinados temas?. Mais especificamente, o que explica a tendência de os religiosos permanecerem ignorantes sobre a falsidade dos fundamentos de sua fé ou de sua religião? O que explica a conformação deles a um sistema doutrinário repleto de inconsistências e embustes? Dennett procura responder a esta questão, no referido livro (recomendo a leitura). O imperativo evolutivo é, de fato, um bom caminho explicativo, mas parece-me que não devemos atribuir a ele um poder explicativo absoluto. Devemos reconhecer que, a par desse determinante herdado pelo processo evolutivo, que leva os homens a fiarem-se naquilo que se sabe (ver. Dennett, p. 174), há o determinante cultural, ou seja, a atuação de gerações como adestradores de comportamentos. Parece lícito admitir que, historicamente, a Igreja, acumpliciada com o poder político, foi decisiva, como instituição ideológica, para a conservação das pessoas de fé em suas crenças, de cuja validade elas sequer suspeitam. Acredito que a conciliação entre os dois caminhos (o evolutivo e o cultural) constitui o modo mais eficaz de explicar por que as pessoas de fé permanecem irresistivelmente apegadas às suas crenças religiosas.
Nesta oportunidade, procurarei mostrar, valendo-me das considerações de Ehrman (na obra já referida), como é possível manter os religiosos ignorantes de sua própria ignorância, o que significa dizer fiéis ao que sabem graças ao adestramento perpetrado pelas instituições eclesiásticas há séculos. Espero que as luzes do conhecimento esclareçam as escuridões dos espíritos que ainda insistem em conservar sua credulidade. Espero que a névoa da ignorância seja dissipada e que as cortinas do esclarecimento se abram, revelando o engodo, a trapaça. Espero que meus leitores compartilhem comigo o pasmo que experimento sempre que, ao me dedicar à leitura, descubro que minhas suspeitas se confirmaram, ou  sempre que reconheço a vasta quantidade de conhecimentos de que, há anos, eu me privei.


1. Removendo o véu: que se faça a luz!

É notável na produção intelectual de Ehrman a sua honestidade. Como fizera em O problema com Deus, o autor nos conta sobre seu ingresso no seminário. Ele cursou o Seminário Teológico de Princeton (e chegou a ser pastor evangélico). Naquele tempo (1978), o jovem Ehrman entrara para a universidade com o único propósito de confirmar suas certezas de fé. Conta-nos, à página 10:

“Como um convicto cristão confiante na Bíblia, eu tinha  certeza de que ela, em todas as suas palavras, tinha sido inspirada por Deus. Talvez tenha sido isso o que me levou ao meu estudo intensivo”.

Sucedeu que as aulas no Seminário frustraram seu desejo de confirmação de sua fé, embora ele estivesse apaixonadamente disposto a argumentar contrariamente àqueles que insistissem em negar à Bíblia qualquer inspiração divina, patenteando suas contradições:

“Como bom cristão evangélico, estava pronto para demolir quaisquer ataques à minha fé bíblica. Eu podia responder a qualquer aparente contradição e a solucionar qualquer potencial discrepância na Palavra de Deus, fosse no Antigo ou no Novo Testamento. Eu sabia que tinha muito a aprender, mas não iria aprender que meu texto sagrado tinha algum equívoco”.
(p. 11)

Todavia, o autor não conseguiu resistir, por muito tempo, à força das evidências, muito embora, inicialmente,  permanecesse contrafeito:

“Algumas coisas não aconteceram como planejado. O que realmente aprendi em Princeton me fez mudar de ideia sobre a Bíblia. Não mudei a maneira de pensar com boa vontade – fui derrotado gritando e esperneando. Orei (muito) por causa disso e lutei (de forma extenuante) contra isso, resistindo com todas as minhas forças. (...) E após um bom tempo ficou claro para mim que minha antiga visão da Bíblia como a revelação inequívoca de Deus era absolutamente equivocada”.

(id.ibid.)
(grifo meu)

Está claro, pois, que Ehrman foi capaz de, por seu compromisso com o saber, abandonar suas opiniões sobre a Bíblia. E mais: ele foi honesto ao confessar isso. E terá a ousadia de nos revelar o que há nos bastidores que sustentam nossas convicções de fé.
Na seção seguinte, intitulada de Um ataque histórico à fé, Ehrman nos apresentará a perspectiva histórico-crítica, sob a qual a Bíblia é estudada nos centros acadêmicos por estudiosos cristãos, evangélicos, agnósticos (e possivelmente ateus). E nos lembra que eles não se preocupam em discutir a existência ou não de Deus. Deus não é a questão sobre a qual se debruçam. Adotando o método crítico-histórico, esses acadêmicos se preocupam em estudar a bíblia como uma obra humana, como um produto cultural e histórico, muito embora reconhecidamente os textos dela não possam ser usados como fontes históricas confiáveis. Nas palavras de Ehrman:

“Nos últimos duzentos anos, os estudiosos conseguiram um progresso significativo na compreensão da Bíblia, com base em descobertas arqueológicas, avanços em nosso conhecimento do grego e do hebraico arcaicos, línguas nas quais os livros das Escrituras foram originalmente escritos, e profundas e penetrantes análises históricas, literárias e textuais. É uma enorme empreitada acadêmica”.
(p. 13)

Estudos sérios desenvolvidos por estudiosos competentes e dedicados à produção do conhecimento só podem contribuir para a elucidação de nossa consciência. Ler a Bíblia na perspectiva histórico-crítica, e não devocional (que é comum entre os religiosos), é poder conhecer a verdade por trás dos textos desta que é a obra mais reverenciada do mundo. No entanto, como bem observa Ehrman (e eu já havia intuído isso antes de lê-lo), as pessoas, em geral, desconhecem os resultados do trabalho desses profissionais; ignoram as suas contribuições, (quase) nada sabem sobre as circunstâncias históricas, culturais, ideológicas nas quais a Bíblia foi fabricada.

“Mas essas visões sobre a Bíblia são praticamente desconhecidas da população em geral. Em grande medida, isso acontece porque aqueles que passam a vida profissional estudando a Bíblia não conseguiram transmitir esse conhecimento ao público em geral e porque, por várias razões, muitos pastores que tiveram contato com esse material no seminário não o partilham com os membros de suas igrejas quando assumiram seus cargos (...).”
(id.ibid.)
(grifo meu)


De passagem, gostaria de notar que a mesma situação de ignorância geral se observa na área dos estudos da linguística atinentes às relações entre língua e sociedade. A ideologia da correção idiomática, segundo a qual existem formas essencialmente corretas e erradas de usar uma língua persiste com muita força na consciência das pessoas (letradas ou não). Eis mais um desafio a ser superado!
Note-se bem: além da ignorância geral sobre os estudos bíblicos desenvolvidos pelos acadêmicos, há também a ocultação dessas contribuições pelos membros das igrejas, quando exercem o ministério. A farsa começa a ser revelada!
Qual é o valor do método histórico-crítico? O que ele nos permite conhecer? Ehrman nos ensinará a respeito dessa abordagem, na página 16. Leiamos com atenção:

“A abordagem histórico-crítica tem um conjunto de preocupações distinto, e portanto, implica um conjunto de perguntas diferentes. No cerne desse ponto de vista está a questão histórica (daí o nome) daquilo que os textos bíblicos significavam em seu contexto histórico original.”

Uma das perguntas aventadas por esse método é “quem foram os verdadeiros autores da Bíblia? Sabe-se que alguns dos autores de textos bíblicos não foram as pessoas que declaravam ser.

“(...) É possível (sim) que alguns autores de certos livros bíblicos na verdade não fossem ou tenham sido quem alegavam ser – por exemplo, que 1 Timóteo na verdade não tenha sido escrito por Paulo, ou que o Gênesis não tenha sido escrito por Moisés? Em que época esses autores viveram? Em que circunstâncias escreveram? Que questões estavam tentando abordar em seu próprio tempo? Como eles foram afetados pelas suposições culturais e históricas de sua época? Que fontes utilizaram? De quando são tais fontes? É possível que os pontos de vistas desses materiais diferissem uns dos outros? É possível que os autores que as utilizaram tivessem visões distintas tanto de suas fontes quanto uns dos outros?
(...)
(pp. 16-17)

Quantas questões podem ser exploradas pela adoção de um método que visa a descobrir a história real por detrás das Escrituras! E não posso deixar de notar minha perplexidade, quando, diante de um religioso portando a Bíblia, ouço-o dizer a respeito da verdade inabalável contida neste livro. Fico perplexo com a sua ignorância, com a sua ingenuidade. E, ao passar por uma igreja abarrotada de gente, lamento que permaneça ali ludibriada por discursos que lhe entorpecem a consciência, com uma série de embustes, de ficções, de crenças seriamente nocivas à inteligência.
O autor nos adverte sobre a questão da inconsistência das interpretações comuns em virtude, especialmente, de não termos acesso aos textos originais. As interpretações da Bíblia, que tão reverenciadas são pelos religiosos e ensinadas a eles pelas autoridades eclesiásticas, podem indicar (como indicam) a descontextualização das mensagens de seus autores. Segundo Ehrman,

“E se nem dispomos de palavras originais? E se, ao longo dos séculos durante as quais a Bíblia – tanto o Antigo Testamento em hebraico, quanto o Novo Testamento, em grego – foi copiado à mão, as palavras tiverem sido modificadas por copistas bem-intencionados mas descuidados, ou por copistas plenamente conscientes de que desejavam alterar os textos para fazer com que dissessem o que eles queriam?”
(p. 17)

Limito-me a sugerir a leitura da página 18, em que Ehrman aponta os principais problemas encontrados nos textos bíblicos, como, por exemplo, a grande probabilidade de a conquista da Terra Prometida ter sido baseada numa lenda.
A situação dos estudantes ingressos na universidade muda. Inicialmente dispostos a conservar suas convicções de fé, rendem-se à força das evidências.

“E assim que esses estudantes baixam a guarda, admitindo que pode haver equívocos na Bíblia, sua compreensão das Escrituras sofre uma mudança radical. Quanto mais leem o texto cuidadosa e intensamente, mais erros encontram; então começam a entender que na verdade a Bíblia faz mais sentido quando se reconhecem suas inconsistências, em vez de se insistir teimosamente que não há nenhuma, mesmo quando elas são tão evidentes”.
(p. 19)

Desacomodar-se, ter a ousadia de ver para além das aparências, superar, com coragem, o legado de equívocos, de enganos, de falsidades que nos foi transmitido por nossa educação religiosa; ao menos, desconfiar de que podemos estar redondamente enganados – essa é a lição que aprendemos nesse excerto.
A seção Do Seminário ao Púlpito, na página 25, é dedicada à observação de que os conhecimentos adquiridos pelos estudantes do seminário, justamente aqueles que são revelados pelo método histórico-crítico, não são transmitidos aos fiéis, quando aqueles se tornam sacerdotes (ou pastores).

“Uma das características mais impressionantes e chocantes do cristianismo hegemônico é que os seminaristas que aprendem o método histórico-crítico em suas aulas sobre a Bíblia parecem esquecer tudo sobre as abordagens críticas das Escrituras, as discrepâncias e contradições, descobrem todo tipo de erros e equívocos históricos, se dão conta de que é difícil saber se Moisés existiu ou o que Jesus realmente disse e fez, descobrem que há outros livros que um dia foram considerados canônicos mas acabaram não sendo incorporados às Escrituras (como outros Evangelhos e Apocalipses), passam a reconhecer que um bom número de livros da Bíblia é assinado por pseudônimos (por exemplo, escritos em nome de um apóstolo por outra pessoa), que na verdade não temos as cópias originais de nenhum dos livros bíblicos, apenas versões feitas séculos depois, todas elas alteradas. Eles aprendem tudo isso e, ainda assim, quando entram para o ministério da Igreja, parecem deixar isso de lado.”

Nenhuma pessoa gosta de ser enganada. Os consumidores sabem bem disso, quando procuram seus direitos no PROCON. Mas as pessoas que se sentam nos bancos de igrejas estão sendo enganadas há séculos, sem sequer desconfiar disso! Aqueles que lhes falam com a autoridade de especialistas na Palavra de Deus estão iludindo-as, ocultando-lhes os fatos, os conhecimentos que adquiriram nos anos em que se dedicaram a estudos seriamente comprometidos com a verdade. As religiões forjam as suas “verdades” inabaláveis, que não são senão resultados de produções falsificadas.
Ehrman conta-nos ainda sobre sua experiência como palestrante, que ensinava aos estudantes sobre as discrepâncias encontradas entre os Evangelhos:

“Em minhas palestras, falei sobre por que os historiadores têm dificuldade em usar os Evangelhos como fontes históricas, dadas as suas discrepâncias e o fato de que foram escritos décadas depois da vida de Jesus por autores desconhecidos que herdaram os relatos sobre eles da tradição oral, facilmente alterável”.
(pp. 25-26)

É, realmente, possível continuar confiante na credibilidade de textos discrepantes, escritos décadas depois da morte do homem em cujos ensinamentos eles foram inspirados, de textos resultantes de uma tradição oral? A Bíblia, como se compreende bem, é produto de muitas bocas e mãos humanas.
Conto ainda com a paciência de meu leitor para levar a bom termo este texto. Como professor universitário, Ehrman nos deixa um ensinamento importante:

“(...) outro dos meus principais objetivos – que deveria ser o de qualquer professor universitário – é fazer com que os alunos pensem.”
(p. 28)

Como professor universitário, dou razão ao autor, muito embora reconheça quão dificultosa é essa empresa. É razoável esperar que alunos universitários venham a se interessar pela reflexão crítica e, decerto, cabe ao professor criar as condições necessárias ao seu desenvolvimento. Fazê-los pensar é indispensável ao sucesso de seu desempenho acadêmico. Todavia, não podemos esperar a mesma inclinação à reflexão dos homens de fé, pelas razões que depreendemos de tudo que foi exposto aqui. Não será com algumas aulas e discussões que conseguiremos livrar as pessoas do adestramento desenvolvido em mais de dois mil anos de erros e falsidades. A despeito de suas contradições e inconsistências, a Bíblia é o livro mais vendido do mundo, portanto mais acessível às pessoas, independentemente de seu grau de escolarização.
Recentemente, li uma reportagem sobre um estudo que procurava corroborar a hipótese de que quanto maior a escolaridade de alguém menos propenso a adotar crenças religiosas estará. Essa correlação entre maior grau de escolarização e rejeição de um comportamento religioso já havia sido por mim sugerida. No entanto, minhas experiências na faculdade onde trabalhava pareciam derrubá-la. Além de qualificar-se com um mestrado (ou mesmo um doutorado), o professor universitário precisa ser alguém interessado em estudos sobre religião. O que observei foi a reprodução dos lugares-comuns que povoam as visões ou opiniões dos religiosos em geral. Quando a temática era Deus, eles não hesitavam em vomitar as concepções herdadas ao longo de anos de exposição ao discurso doutrinário religioso.
Tenho, por ora, que concluir que as pessoas religiosas são as menos interessadas em religião. Pode parecer contraditória essa declaração, mas a esclareço. Parece-me que, para seguir uma religião, é preciso demonstrar pouco ou nenhum interesse em estudá-la seriamente. Para os religiosos, a sua religião é um dado. Eles a herdaram de seus pais e, por um pragmatismo, levam-na adiante, apegados a ela, sem questioná-la.
Como ficou claro aqui (e em outros textos de cunho ateísta), eu ousei questioná-la e abandoná-la. E meu esforço, neste texto, consistiu em fazer ver que, tornando-me ateu, pude estudar e aprender mais sobre religião. Tornando-me ateu, aprendi sobre teologia e a história da formação do cristianismo. Tornando-me ateu, acumulei mais conhecimentos históricos e filosóficos. Tornando-me ateu, corroborei o valor do conhecimento e continuei dedicado ao repúdio a toda forma de ignorância que escraviza, que embota a consciência, que conforma, que resigna e submete. Tornando-me ateu, aprendi mais sobre as relações entre a Igreja e os Estados ditatoriais, sobre a cumplicidade entre os sacerdotes e os tiranos, na longa história da formação do cristianismo. E meus estudos prosseguem, e minhas leituras não cessam, porque o conhecimento é uma busca ininterrupta e nenhum sistema de crenças poderá pretender traçar-lhe um limite definitivo.

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