sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

A leitura é uma fonte inesgotável de prazer mas por incrível que pareça, a quase totalidade, não sente esta sede" (Carlos Drummond de Andrade)

             

              Quando a leitura entra em cena

É lugar-comum afirmar que ler é um meio eficiente para a aquisição de conhecimentos. Os textos são responsáveis por tornar o conhecimento socio-cognitivamente existente. Insisto neste ponto: o conhecimento como fato social só existe pela sua constituição linguística em textos. Os textos são formas de cognição social. Segundo Koch, em Introdução à Linguística Textual (2004),


“Os textos são condição de possibilidade de se tornar o conhecimento explícito, de segmentá-lo, diferenciá-lo, pormenorizá-lo, de inseri-lo em novos contextos, permitir sua reativação, de testá-lo, avaliá-lo, corrigi-lo, reestruturá-lo, tirar novas conclusões a partir daquilo que já é compartilhado e de representar linguisticamente, de forma nova, novas relações situacionais e sociais”.
(p. 173)

Convém enfatizar a mudança de perspectiva que se opera na relação entre texto (ou leitura) e conhecimento. Os textos não são apenas meios de aquisição de conhecimentos; mas permitem constituí-los e estruturá-los dando-lhes um formato socialmente relevante. Koch (p. 172) ainda nos ensina que “todo o conhecimento declarativo de nossa sociedade é (com exclusão daquele que se traduz em números ou fórmulas) primariamente linguístico, ou melhor, conhecimento textualmente fundado”. Não se segue daí que só podemos conhecer na base de textos. Russel nos ensinara sobre a forma de conhecimento que decorre da experiência sensível, denominada por ele de conhecimento por familiaridade.
Mas minha preocupação aqui é mostrar que, desde o advento da escrita alfabética, há uns 3.000 a.C. , entre os sumérios (posteriormente desenvolvida pelos gregos), o conhecimento pôde ser registrado, organizado e conservado para ser estendido às gerações posteriores. Não suponho, contudo, que ele tenha sido, com a escrita, democratizado; longe disso: a escrita é uma das formas de legitimar o poder e de impedir a um grande número de indivíduos o acesso ao conhecimento. E o conhecimento é um instrumento a serviço dos segmentos que detém o poder político, social e econômico.
As palavras de  Lyotard – A condição pós-moderna (2009) - esclarecem-nos sobre a relação entre conhecimento e poder:

“Sabe-se que o saber tornou-se nos últimos decênios a principal força de produção, que já modificou sensivelmente a composição das populações ativas nos países desenvolvidos e constitui o principal ponto de estrangulamento para os países em vias de desenvolvimento. (...) Sob a forma de mercadoria informacional indispensável ao poderio produtivo, o saber já é e será um desafio maior, talvez o mais importante, na competição mundial pelo poder”
(p. 5)

No tocante às condições em que se acha o saber, o autor nos mostra que ele é, nas sociedades de consumo da era (pós-)moderna, uma mercadoria, inserida ao lado das outras nas esferas de consumo; além disso, o conhecimento tornou-se também um importante instrumento a serviço da reprodução do poder, em escala mundial.
Não pretendo, no entanto, pormenorizar a questão do status do conhecimento na sociedade pós-moderna. Quero apenas insistir, mais uma vez, que a posse de conhecimento é indispensável à maior participação social, política e cultural. E lembro, embora não possa me deter neste tema aqui, que a participação política não se cinge ao exercício do voto, mas envolve o engajamento de indivíduos em organizações, grupos e se caracteriza também pela capacidade de eles tomarem decisões e responderem criticamente ao status quo. A própria contribuição de cada um de nós para a conscientização de outros indivíduos da importância de defender a liberdade de pensamento, de lutar pela igualdade de condições, de combater toda forma de preconceito e intolerância, etc. já é uma forma de participação política. Costumo lembrar aos meus alunos que ensinar é assumir um compromisso político e, portanto, é participar politicamente da construção de uma sociedade mais justa. Na Educação, todos nós, professores, sabemos não escapar aos ideais.
Até aqui, podemos arrolar as seguintes conclusões:

a) estamos de acordo em que o conhecimento tem importância social;
b) estamos de acordo em que a leitura é o principal caminho para adquiri-lo.

No entanto, também devemos estar de acordo quanto ao fato de que não conseguiremos estimular jovens e adultos a ler mais pela via argumentativa que ressalta a importância sócio-política e cultural dessa prática. Não estou interessado aqui  em apresentar propostas para o incentivo à leitura. Quero apenas insistir em que ela não é uma atividade lúdica, muito embora possa causar prazer. E é sobre o prazer que a leitura pode provocar em nós que repousa meu interesse.
Não foi exatamente durante o período em que me graduava que comecei a experimentar prazer na leitura. Provavelmente, porque as leituras que nós, então estudantes, devíamos fazer dos textos que nos eram dados pelos professores visava sempre a alguma avaliação (trabalhos ou provas). Parece-me que toda leitura orientada para uma avaliação pedagógica é uma atividade pouco prazerosa. O prazer sucumbe ao propósito de, pela leitura, lograrmos êxito no exame a cuja realização ela se destina. A finalidade da leitura, seja na escola, seja na universidade, é a realização de atividades. Lê-se porque se tem de fazer testes, exercícios de avaliação de aprendizagem (incluindo seminários, redações...), provas e testes.
 Outro fator que obstaculiza o prazer diz respeito a interesses pessoais por um ou outro tema. Sabemos, como leitores, que há temas que nos interessam e outros que não nos interessam. Na escola, especialmente, temos de ler textos que não nos agradam.  Os que não apreciam as aulas de biologia precisam ler a matéria de biologia no livro didático (não estou pressupondo que os alunos leiam, realmente; em geral, o professor passa-lhes um questionário e eles se baseiam nele para realizar a prova). De qualquer forma, eles precisam ler os capítulos em que se acham  as respostas das questões propostas.
Quero dizer que a leitura não é uma atividade restrita às aulas de português. Os alunos são expostos à leitura, nas aulas escolares, durante todo o tempo em que delas participam. A escola é o espaço para a leitura, por excelência.
Há um discurso pedagógico, talvez influenciado pelas posições de Paulo Freire, que insiste em que o trabalho de leitura deva ser orientado de tal modo, a abranger o universo sócio-cultural em que vive o aluno. Este seria incentivado a ler mediante a leitura que ele possa fazer do próprio mundo; em outras palavras, ele leria textos que toquem às suas experiências de mundo, textos que representem aspectos do mundo que lhe são acessíveis por suas experiências sociais imediatas. Esse é um caminho que tem-se mostrado profícuo, mas é necessário ultrapassá-lo, já que não conseguiremos, se apenas nos limitarmos a segui-lo, alargar-lhe a consciência de mundo. Por exemplo, o professor que trabalhe com letras de funk com uma turma de jovens da periferia, numa escola pública, elaborando sobre elas atividades de interpretação, deve saber que está contribuindo para uma tomada de consciência deles da realidade social em que vivem (caso a letra da canção retrate aspectos importantes dessa realidade); no entanto, deve reconhecer também que ainda estará reforçando a limitação deles a essa realidade (conserva-se a exclusão). Eles precisam ter acesso a outros modelos de mundo, textualizados; a outras visões de mundo, a outras formas de compreensão da realidade. Uma maior participação cultural, aqui, significa, principalmente, conhecer outras produções culturais que não só a dos membros que pertencem à sua realidade social.
Mas voltemos ao prazer na leitura. Esse prazer é o prazer do desvelar. Desvelar que nos incute o deslumbramento. Ler é “retirar o véu”. Véu da ignorância. O deslumbramento é o encanto, o maravilhamento que experimentamos quando conhecemos, ou seja, quando tornamos presente à consciência algo que ignorávamos. É o que sinto quando meu espírito se embrenha nas páginas de livros, quando ele trafega pelas amplidões que lhe abrem as palavras.
Só pode haver prazer em ler, se o sujeito leitor é capaz de reconhecer o valor do saber ou do conhecer como um imperativo da condição humana. Ler por qualquer obrigação castra o prazer. Da mesma forma, ler sem reconhecer a importância do conhecimento dificilmente será uma atividade que provoque deslumbramento.
Ler porque é necessário conhecer. E conhecer pode sim causar prazer. Um prazer intelectual, que nos engrandece, que nos contenta, que nos torna mais atuante, a despeito das tendências conformistas.

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