terça-feira, 27 de dezembro de 2011

"O jeito de ver pela fé é fechar os olhos da razão". (Benjamin Franklin)

                        

                     
                             O que todo religioso deveria saber
                       O valor do conhecimento para a emancipação dos homens



   A conversa se estendia deliciosa, quando minha amiga indagou-me sobre o ter-me tornado ateu. Embora conserve sua fé, ela está entre as raras pessoas de fé que se dispõem a ouvir de bom grado um discurso polêmico. Decerto, ela não abraça a religião como as ovelhas cegas e surdas que se sentam enfileiradas nas igrejas. Ela pediu-me que justificasse a adoção do ateísmo e silenciou para que eu falasse, só interrompendo para corroborar alguns de meus argumentos.
Ambos fomos criados na tradição católica, mas, até então, apenas um de nós teve a coragem de romper com essa tradição. Este texto que ofereço à leitura pretende fazer ver que a minha adoção do ateísmo se deveu a razões tão-só intelectuais. Também neste texto dou a saber aos leitores um pouco do que venho aprendendo sobre religião, particularmente, sobre a Bíblia. Para tanto, trarei à baila as contribuições de um dos mais renomados especialistas nos estudos da Bíblia e da origem do cristianismo, autor cujos livros tenho lido com deliciosa atenção, Bart D. Ehrman. Em seu livro Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi?, o leitor estará diante de um discurso claro, acessível e honesto. O autor nos ensina, entre outras coisas, sobre as discrepâncias entre os evangelhos, sobre suas contradições, sobre as ficções bíblicas e as dificuldades encontradas pelos historiadores em usar os evangelhos como fontes históricas.
Os meus leitores sabem que tenho escrito pouco ultimamente, por isso pretendo com este texto satisfazer essa carência. É possível, portanto, que ele exceda ao número de linhas ao qual, ultimamente, tenho limitado meus textos. Peço-lhes, pois, paciência.
Sem mais delongas, a adoção do ateísmo por mim resulta de uma aturada convivência com os livros. Tenho insistido em que minhas posições ateístas são intelectualmente fundamentadas. Não me tornei ateu por uma revolta contra as circunstâncias adversas nas quais vi minha vida envolvida; mesmo depois das dificuldades de saúde por que passei, conservei minha fé durante certo tempo. Sucede, contudo, que havia já em minha alma o germe da inquietude, do questionamento, da necessidade do conhecimento. A força motriz de meu ateísmo repousa justamente nessa necessidade de conhecer, de saber, de buscar a(s) verdade(s).
E os leitores que me acompanham desde que decidi publicar em blog meus escritos sabem bem que dois são os maiores valores em minha vida: o amor e o conhecimento. Valores, quer de um ponto de vista ético, quer de um ponto de vista utilitário, são indispensáveis à vida humana. A moral está fundamentada em valores. Em certo sentido, valores consistem em tudo que acarreta felicidade aos homens. Pois bem: o amor e o conhecimento trazem-me felicidade. E, se considerarmos a brevidade da vida e o fato de que certamente morreremos, pareceu-me mais profícuo dedicar-me a (viver ou pensar) o amor e acumular conhecimento.
Vou-me ater à necessidade de conhecimento. Apercebi-me de que o conhecimento é um valor intrínseco à condição humana graças à minha dedicação à leitura de livros de filosofia. A minha incursão neste terreno foi determinante para o meu reconhecimento do valor do saber. Com a filosofia, reconheci que ignorava. Os homens têm, nesse tocante, duas escolhas: ou buscam a ascensão ao conhecimento, reconhecendo, felizmente, que ignoravam, ou continuam ignorando que ignoram. Essa última escolha é comum entre os religiosos: eles permanecem ignorantes de sua própria ignorância. Eles ignoram que ignoram. Na verdade, espero fique claro, no decorrer desta exposição, que as pessoas de fé são ludibriadas.
No que toca à necessidade de conhecimento, gosto de referir uma passagem que se topa no livro Introdução à Filosofia – histórias e sistemáticas (2004), de Roberto Rossi. À página 37, do capítulo quarto, dedicado à consideração da realidade como objeto de saber, escreve o autor:

“Se a realidade fosse simplesmente um dado, não precisaríamos conhecê-la. Os outros seres vivos, tratando a natureza como um dado, apenas se adaptam a ela, aprendendo só o suficiente para sobreviver. Precisamente porque a realidade é um problema, o homem sente a necessidade de conhecê-la. E ela se revela problemática, somente porque o homem a põe em discussão como tal, em virtude de um critério alternativo, que lhe vem daquele conhecimento primeiro da verdade perdida.”

Espero que o leitor me acompanhe na avaliação que farei deste passo. Atentemos para a primeira frase. Admitir ser a realidade um dado significaria dizer que ela se impõe a nós como algo independente e como algo que não demanda conhecimento. Sabemos que o organismo dos animais são uma extensão do meio em que vivem; para eles, a realidade não é objeto de conhecimento. Tudo que precisam saber para sobreviver na natureza já está inscrito em seu organismo; eles estão geneticamente pré-dispostos aos atos necessários à sua sobrevivência. A relação dos homens com a realidade é diferente: para nós, que dispomos da razão e da linguagem (que representa um grande salto de nossa espécie), a realidade não é algo que pré-existe a nós, é algo que precisa ser (re)construído em nossas experiências de mundo. Nossa sobrevivência como espécie depende, em grande parte, do desenvolvimento de conhecimentos sobre ela. As nossas relações com a realidade são mediadas pela linguagem; a realidade entra em nossa consciência, em forma de conhecimento, graças à função de simbolização inerente à linguagem. Sabe-se, hoje, que nossa mente é um processo, ou melhor, um processador de informações (de símbolos). E o conhecimento da realidade - sua (re)construção contínua - se dá pela sua estruturação em categorias fornecidas pela linguagem.
Ora, está claro também que a realidade só é um problema na medida em que os homens a colocam em discussão, o que significa dizer que a submetem a um tratamento discursivo. Essa atitude é, insistentemente, rejeitada pelos religiosos, em geral, que não parecem dispostos a encarar suas crenças religiosas como um problema a ser debatido. Para eles, a realidade da religião é algo dado. Tais quais os animais, eles se adaptam a ela. Vale dizer que essa questão de adaptação ao que se sabe por herança de gerações anteriores é lucidamente desenvolvida por Daniel Dennett, em Quebrando o Encanto – a religião como fenômeno natural (2006). Vou citar um trecho interessante, com que o autor nos ensina sobre essa disposição dos homens (compreensível do ponto de vista de sua evolução) à adaptação às condições que resultaram de uma dada herança de grupos. O próprio filósofo, em debates, insiste na ideia de que as religiões devem ter o mesmo tratamento dispensado a questões políticas ou de interesse público (ou seja, não são imunes ao crivo da razão). É justamente o argumento a que me inclino, segundo o qual é necessário quebrar a “áurea” que torna a religião um assunto inatacável. A religião é uma realidade demasiado humana para não ser passível de discussão, de avaliação racional.
Atentemos para este trecho, em que o filósofo, apoiando-se no arcabouço teórico proveniente do darwinismo, nos ensina sobre nossa tendência sistemática à adaptação às condições culturalmente determinadas:

“Nossos cérebros se desenvolveram para se tornar processadores de palavras mais eficazes, e eles podem também ter evoluído para implementar com maior eficácia os hábitos culturalmente transmitidos das religiões populares. (...) Não há, de fato, razão alguma para supor que os animais tenham qualquer ideia a respeito dos motivos que os levam a fazer o que instintivamente fazem, e os seres humanos não são exceção. A diferença entre nós e outras espécies é que somos a única espécie que se preocupa com sua ignorância! Ao contrário de outras espécies, sentimos uma necessidade geral de compreender, de modo que, mesmo que ninguém deva compreender ou possuir a intenção de inovar qualquer dos projetos que criaram as religiões populares, deveríamos reconhecer que as pessoas, naturalmente curiosas, reflexivas, e dotadas de linguagem na qual enquadrar e reenquadrar suas perplexidades, teriam apresentado a probabilidade – ao contrário das aves – de se perguntar qual seria o significado desses rituais. A coceira da curiosidade não é forte em algumas pessoas, aparentemente. A julgar pela variação observável ao nosso redor hoje, seria justo apostar que apenas uma pequena minoria de nossos ancestrais chegou a ter o tempo ou a inclinação para questionar as atividades em que se engajaram com seus parentes vizinhos”.
(p. 173)
(grifos meus)

Grifei alguns fragmentos que me pareceram mais importantes para a compreensão desse trecho. Elenco abaixo essas ideias:

1º - Ignoramos, tanto quanto os animais, as motivações que nos levam a comportar-nos de modo instintivo;

2º - Em geral, nos preocupamos com a nossa ignorância, muito embora haja muitos dentre nós que permanecem ignorantes de sua ignorância;

3º - Somos, naturalmente, pré-dispostos ao conhecimento.

Ora, se somos dotados de uma inquietude cognitiva, o que explica a permanência na ignorância sobre determinados temas?. Mais especificamente, o que explica a tendência de os religiosos permanecerem ignorantes sobre a falsidade dos fundamentos de sua fé ou de sua religião? O que explica a conformação deles a um sistema doutrinário repleto de inconsistências e embustes? Dennett procura responder a esta questão, no referido livro (recomendo a leitura). O imperativo evolutivo é, de fato, um bom caminho explicativo, mas parece-me que não devemos atribuir a ele um poder explicativo absoluto. Devemos reconhecer que, a par desse determinante herdado pelo processo evolutivo, que leva os homens a fiarem-se naquilo que se sabe (ver. Dennett, p. 174), há o determinante cultural, ou seja, a atuação de gerações como adestradores de comportamentos. Parece lícito admitir que, historicamente, a Igreja, acumpliciada com o poder político, foi decisiva, como instituição ideológica, para a conservação das pessoas de fé em suas crenças, de cuja validade elas sequer suspeitam. Acredito que a conciliação entre os dois caminhos (o evolutivo e o cultural) constitui o modo mais eficaz de explicar por que as pessoas de fé permanecem irresistivelmente apegadas às suas crenças religiosas.
Nesta oportunidade, procurarei mostrar, valendo-me das considerações de Ehrman (na obra já referida), como é possível manter os religiosos ignorantes de sua própria ignorância, o que significa dizer fiéis ao que sabem graças ao adestramento perpetrado pelas instituições eclesiásticas há séculos. Espero que as luzes do conhecimento esclareçam as escuridões dos espíritos que ainda insistem em conservar sua credulidade. Espero que a névoa da ignorância seja dissipada e que as cortinas do esclarecimento se abram, revelando o engodo, a trapaça. Espero que meus leitores compartilhem comigo o pasmo que experimento sempre que, ao me dedicar à leitura, descubro que minhas suspeitas se confirmaram, ou  sempre que reconheço a vasta quantidade de conhecimentos de que, há anos, eu me privei.


1. Removendo o véu: que se faça a luz!

É notável na produção intelectual de Ehrman a sua honestidade. Como fizera em O problema com Deus, o autor nos conta sobre seu ingresso no seminário. Ele cursou o Seminário Teológico de Princeton (e chegou a ser pastor evangélico). Naquele tempo (1978), o jovem Ehrman entrara para a universidade com o único propósito de confirmar suas certezas de fé. Conta-nos, à página 10:

“Como um convicto cristão confiante na Bíblia, eu tinha  certeza de que ela, em todas as suas palavras, tinha sido inspirada por Deus. Talvez tenha sido isso o que me levou ao meu estudo intensivo”.

Sucedeu que as aulas no Seminário frustraram seu desejo de confirmação de sua fé, embora ele estivesse apaixonadamente disposto a argumentar contrariamente àqueles que insistissem em negar à Bíblia qualquer inspiração divina, patenteando suas contradições:

“Como bom cristão evangélico, estava pronto para demolir quaisquer ataques à minha fé bíblica. Eu podia responder a qualquer aparente contradição e a solucionar qualquer potencial discrepância na Palavra de Deus, fosse no Antigo ou no Novo Testamento. Eu sabia que tinha muito a aprender, mas não iria aprender que meu texto sagrado tinha algum equívoco”.
(p. 11)

Todavia, o autor não conseguiu resistir, por muito tempo, à força das evidências, muito embora, inicialmente,  permanecesse contrafeito:

“Algumas coisas não aconteceram como planejado. O que realmente aprendi em Princeton me fez mudar de ideia sobre a Bíblia. Não mudei a maneira de pensar com boa vontade – fui derrotado gritando e esperneando. Orei (muito) por causa disso e lutei (de forma extenuante) contra isso, resistindo com todas as minhas forças. (...) E após um bom tempo ficou claro para mim que minha antiga visão da Bíblia como a revelação inequívoca de Deus era absolutamente equivocada”.

(id.ibid.)
(grifo meu)

Está claro, pois, que Ehrman foi capaz de, por seu compromisso com o saber, abandonar suas opiniões sobre a Bíblia. E mais: ele foi honesto ao confessar isso. E terá a ousadia de nos revelar o que há nos bastidores que sustentam nossas convicções de fé.
Na seção seguinte, intitulada de Um ataque histórico à fé, Ehrman nos apresentará a perspectiva histórico-crítica, sob a qual a Bíblia é estudada nos centros acadêmicos por estudiosos cristãos, evangélicos, agnósticos (e possivelmente ateus). E nos lembra que eles não se preocupam em discutir a existência ou não de Deus. Deus não é a questão sobre a qual se debruçam. Adotando o método crítico-histórico, esses acadêmicos se preocupam em estudar a bíblia como uma obra humana, como um produto cultural e histórico, muito embora reconhecidamente os textos dela não possam ser usados como fontes históricas confiáveis. Nas palavras de Ehrman:

“Nos últimos duzentos anos, os estudiosos conseguiram um progresso significativo na compreensão da Bíblia, com base em descobertas arqueológicas, avanços em nosso conhecimento do grego e do hebraico arcaicos, línguas nas quais os livros das Escrituras foram originalmente escritos, e profundas e penetrantes análises históricas, literárias e textuais. É uma enorme empreitada acadêmica”.
(p. 13)

Estudos sérios desenvolvidos por estudiosos competentes e dedicados à produção do conhecimento só podem contribuir para a elucidação de nossa consciência. Ler a Bíblia na perspectiva histórico-crítica, e não devocional (que é comum entre os religiosos), é poder conhecer a verdade por trás dos textos desta que é a obra mais reverenciada do mundo. No entanto, como bem observa Ehrman (e eu já havia intuído isso antes de lê-lo), as pessoas, em geral, desconhecem os resultados do trabalho desses profissionais; ignoram as suas contribuições, (quase) nada sabem sobre as circunstâncias históricas, culturais, ideológicas nas quais a Bíblia foi fabricada.

“Mas essas visões sobre a Bíblia são praticamente desconhecidas da população em geral. Em grande medida, isso acontece porque aqueles que passam a vida profissional estudando a Bíblia não conseguiram transmitir esse conhecimento ao público em geral e porque, por várias razões, muitos pastores que tiveram contato com esse material no seminário não o partilham com os membros de suas igrejas quando assumiram seus cargos (...).”
(id.ibid.)
(grifo meu)


De passagem, gostaria de notar que a mesma situação de ignorância geral se observa na área dos estudos da linguística atinentes às relações entre língua e sociedade. A ideologia da correção idiomática, segundo a qual existem formas essencialmente corretas e erradas de usar uma língua persiste com muita força na consciência das pessoas (letradas ou não). Eis mais um desafio a ser superado!
Note-se bem: além da ignorância geral sobre os estudos bíblicos desenvolvidos pelos acadêmicos, há também a ocultação dessas contribuições pelos membros das igrejas, quando exercem o ministério. A farsa começa a ser revelada!
Qual é o valor do método histórico-crítico? O que ele nos permite conhecer? Ehrman nos ensinará a respeito dessa abordagem, na página 16. Leiamos com atenção:

“A abordagem histórico-crítica tem um conjunto de preocupações distinto, e portanto, implica um conjunto de perguntas diferentes. No cerne desse ponto de vista está a questão histórica (daí o nome) daquilo que os textos bíblicos significavam em seu contexto histórico original.”

Uma das perguntas aventadas por esse método é “quem foram os verdadeiros autores da Bíblia? Sabe-se que alguns dos autores de textos bíblicos não foram as pessoas que declaravam ser.

“(...) É possível (sim) que alguns autores de certos livros bíblicos na verdade não fossem ou tenham sido quem alegavam ser – por exemplo, que 1 Timóteo na verdade não tenha sido escrito por Paulo, ou que o Gênesis não tenha sido escrito por Moisés? Em que época esses autores viveram? Em que circunstâncias escreveram? Que questões estavam tentando abordar em seu próprio tempo? Como eles foram afetados pelas suposições culturais e históricas de sua época? Que fontes utilizaram? De quando são tais fontes? É possível que os pontos de vistas desses materiais diferissem uns dos outros? É possível que os autores que as utilizaram tivessem visões distintas tanto de suas fontes quanto uns dos outros?
(...)
(pp. 16-17)

Quantas questões podem ser exploradas pela adoção de um método que visa a descobrir a história real por detrás das Escrituras! E não posso deixar de notar minha perplexidade, quando, diante de um religioso portando a Bíblia, ouço-o dizer a respeito da verdade inabalável contida neste livro. Fico perplexo com a sua ignorância, com a sua ingenuidade. E, ao passar por uma igreja abarrotada de gente, lamento que permaneça ali ludibriada por discursos que lhe entorpecem a consciência, com uma série de embustes, de ficções, de crenças seriamente nocivas à inteligência.
O autor nos adverte sobre a questão da inconsistência das interpretações comuns em virtude, especialmente, de não termos acesso aos textos originais. As interpretações da Bíblia, que tão reverenciadas são pelos religiosos e ensinadas a eles pelas autoridades eclesiásticas, podem indicar (como indicam) a descontextualização das mensagens de seus autores. Segundo Ehrman,

“E se nem dispomos de palavras originais? E se, ao longo dos séculos durante as quais a Bíblia – tanto o Antigo Testamento em hebraico, quanto o Novo Testamento, em grego – foi copiado à mão, as palavras tiverem sido modificadas por copistas bem-intencionados mas descuidados, ou por copistas plenamente conscientes de que desejavam alterar os textos para fazer com que dissessem o que eles queriam?”
(p. 17)

Limito-me a sugerir a leitura da página 18, em que Ehrman aponta os principais problemas encontrados nos textos bíblicos, como, por exemplo, a grande probabilidade de a conquista da Terra Prometida ter sido baseada numa lenda.
A situação dos estudantes ingressos na universidade muda. Inicialmente dispostos a conservar suas convicções de fé, rendem-se à força das evidências.

“E assim que esses estudantes baixam a guarda, admitindo que pode haver equívocos na Bíblia, sua compreensão das Escrituras sofre uma mudança radical. Quanto mais leem o texto cuidadosa e intensamente, mais erros encontram; então começam a entender que na verdade a Bíblia faz mais sentido quando se reconhecem suas inconsistências, em vez de se insistir teimosamente que não há nenhuma, mesmo quando elas são tão evidentes”.
(p. 19)

Desacomodar-se, ter a ousadia de ver para além das aparências, superar, com coragem, o legado de equívocos, de enganos, de falsidades que nos foi transmitido por nossa educação religiosa; ao menos, desconfiar de que podemos estar redondamente enganados – essa é a lição que aprendemos nesse excerto.
A seção Do Seminário ao Púlpito, na página 25, é dedicada à observação de que os conhecimentos adquiridos pelos estudantes do seminário, justamente aqueles que são revelados pelo método histórico-crítico, não são transmitidos aos fiéis, quando aqueles se tornam sacerdotes (ou pastores).

“Uma das características mais impressionantes e chocantes do cristianismo hegemônico é que os seminaristas que aprendem o método histórico-crítico em suas aulas sobre a Bíblia parecem esquecer tudo sobre as abordagens críticas das Escrituras, as discrepâncias e contradições, descobrem todo tipo de erros e equívocos históricos, se dão conta de que é difícil saber se Moisés existiu ou o que Jesus realmente disse e fez, descobrem que há outros livros que um dia foram considerados canônicos mas acabaram não sendo incorporados às Escrituras (como outros Evangelhos e Apocalipses), passam a reconhecer que um bom número de livros da Bíblia é assinado por pseudônimos (por exemplo, escritos em nome de um apóstolo por outra pessoa), que na verdade não temos as cópias originais de nenhum dos livros bíblicos, apenas versões feitas séculos depois, todas elas alteradas. Eles aprendem tudo isso e, ainda assim, quando entram para o ministério da Igreja, parecem deixar isso de lado.”

Nenhuma pessoa gosta de ser enganada. Os consumidores sabem bem disso, quando procuram seus direitos no PROCON. Mas as pessoas que se sentam nos bancos de igrejas estão sendo enganadas há séculos, sem sequer desconfiar disso! Aqueles que lhes falam com a autoridade de especialistas na Palavra de Deus estão iludindo-as, ocultando-lhes os fatos, os conhecimentos que adquiriram nos anos em que se dedicaram a estudos seriamente comprometidos com a verdade. As religiões forjam as suas “verdades” inabaláveis, que não são senão resultados de produções falsificadas.
Ehrman conta-nos ainda sobre sua experiência como palestrante, que ensinava aos estudantes sobre as discrepâncias encontradas entre os Evangelhos:

“Em minhas palestras, falei sobre por que os historiadores têm dificuldade em usar os Evangelhos como fontes históricas, dadas as suas discrepâncias e o fato de que foram escritos décadas depois da vida de Jesus por autores desconhecidos que herdaram os relatos sobre eles da tradição oral, facilmente alterável”.
(pp. 25-26)

É, realmente, possível continuar confiante na credibilidade de textos discrepantes, escritos décadas depois da morte do homem em cujos ensinamentos eles foram inspirados, de textos resultantes de uma tradição oral? A Bíblia, como se compreende bem, é produto de muitas bocas e mãos humanas.
Conto ainda com a paciência de meu leitor para levar a bom termo este texto. Como professor universitário, Ehrman nos deixa um ensinamento importante:

“(...) outro dos meus principais objetivos – que deveria ser o de qualquer professor universitário – é fazer com que os alunos pensem.”
(p. 28)

Como professor universitário, dou razão ao autor, muito embora reconheça quão dificultosa é essa empresa. É razoável esperar que alunos universitários venham a se interessar pela reflexão crítica e, decerto, cabe ao professor criar as condições necessárias ao seu desenvolvimento. Fazê-los pensar é indispensável ao sucesso de seu desempenho acadêmico. Todavia, não podemos esperar a mesma inclinação à reflexão dos homens de fé, pelas razões que depreendemos de tudo que foi exposto aqui. Não será com algumas aulas e discussões que conseguiremos livrar as pessoas do adestramento desenvolvido em mais de dois mil anos de erros e falsidades. A despeito de suas contradições e inconsistências, a Bíblia é o livro mais vendido do mundo, portanto mais acessível às pessoas, independentemente de seu grau de escolarização.
Recentemente, li uma reportagem sobre um estudo que procurava corroborar a hipótese de que quanto maior a escolaridade de alguém menos propenso a adotar crenças religiosas estará. Essa correlação entre maior grau de escolarização e rejeição de um comportamento religioso já havia sido por mim sugerida. No entanto, minhas experiências na faculdade onde trabalhava pareciam derrubá-la. Além de qualificar-se com um mestrado (ou mesmo um doutorado), o professor universitário precisa ser alguém interessado em estudos sobre religião. O que observei foi a reprodução dos lugares-comuns que povoam as visões ou opiniões dos religiosos em geral. Quando a temática era Deus, eles não hesitavam em vomitar as concepções herdadas ao longo de anos de exposição ao discurso doutrinário religioso.
Tenho, por ora, que concluir que as pessoas religiosas são as menos interessadas em religião. Pode parecer contraditória essa declaração, mas a esclareço. Parece-me que, para seguir uma religião, é preciso demonstrar pouco ou nenhum interesse em estudá-la seriamente. Para os religiosos, a sua religião é um dado. Eles a herdaram de seus pais e, por um pragmatismo, levam-na adiante, apegados a ela, sem questioná-la.
Como ficou claro aqui (e em outros textos de cunho ateísta), eu ousei questioná-la e abandoná-la. E meu esforço, neste texto, consistiu em fazer ver que, tornando-me ateu, pude estudar e aprender mais sobre religião. Tornando-me ateu, aprendi sobre teologia e a história da formação do cristianismo. Tornando-me ateu, acumulei mais conhecimentos históricos e filosóficos. Tornando-me ateu, corroborei o valor do conhecimento e continuei dedicado ao repúdio a toda forma de ignorância que escraviza, que embota a consciência, que conforma, que resigna e submete. Tornando-me ateu, aprendi mais sobre as relações entre a Igreja e os Estados ditatoriais, sobre a cumplicidade entre os sacerdotes e os tiranos, na longa história da formação do cristianismo. E meus estudos prosseguem, e minhas leituras não cessam, porque o conhecimento é uma busca ininterrupta e nenhum sistema de crenças poderá pretender traçar-lhe um limite definitivo.

 http://ateusdobrasil.com.br/p/1655/



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