Certa vez, numa conversa on-line com uma amiga distante, ocorreu-nos a ideia de que haveria alguma ligação necessária entre ser graduado e ser agnóstico ou ateu. A razão para tal crença é simples: quanto mais instruídos ficamos tanto menos dispostos a aceitar passiva e resignadamente os abusos intelectuais da religião. No entanto, em conversa recente com alguns professores, pude me certificar de que isso não é verdade. O assunto religião e Deus ou é contornado ou não é tratado com seriedade. Na verdade, os professores sequer se preocupam em refletir sobre esse tema; talvez, porque tenham coisas mais importantes com que se ocupar, no que estou de acordo. Todavia, não pude deixar de notar que eles simplesmente se recusam a ver para além de sua herança religiosa.
Este texto que lhes escrevo, leitores, tem um caráter confessional e deve parecer-lhes um exame pessoal aberto, não-tendencioso e honesto, produzido por alguém cuja sensibilidade, entusiasmo e amor exorbitam as medidas da alma.
Começarei explicando por que assumo o ateísmo. Em primeiro lugar, em matéria de pensamento ou de intelectualidade, penso ser uma virtude abrir mão de nossas crenças e opiniões, caso sejamos convencidos, mediante um discurso consistente e embasado em argumentos racionais, de que tais crenças e opiniões são insatisfatórias para explicar um dado estado-de-coisas. É o que ocorre no domínio das ciências. Acolher o ateísmo é dar ouvidos à inteligência, à razão e inclinar o coração à dignidade humana. É claro que, para assumir o ateísmo, temos de nos confrontar com alguma forma de religião ou crendices ao longo da vida, a menos que tenhamos nascido em países como Dinamarca, Suécia e Japão, cuja taxa de ateus é, em comparação ao resto do globo terrestre, superior. Mas lembro, de passagem, que todo bebê é ateu... nascemos ateus.
Em comparação com a quantidade de pessoas que seguem uma religião ou se dizem religiosas, os ateus é uma minoria irrisória. Nunca dantes me dei conta de como nós, brasileiros, usamos a palavra Deus e evidenciamos nossas inclinações ao divino em nossas práticas discursivas cotidianas. É claro, dirá o leitor, você nasceu e vive, senão no maior, num dos maiores países religiosos do mundo (mais precisamente católicos). E cabe aqui um esclarecimento desde já: ainda me surpreendo utilizando expressões como “Deus me livre!”, “Meu Deus!”, “Deus que me perdoe!”, etc. Mas isso não depõe contra mim, já que há uma explicação adequada cultural e linguisticamente: nossa língua portuguesa está repleta de expressões em que se acha a palavra “Deus”, bem como de outras entidades religiosas (santos), simplesmente porque nossa cultura se formou predominantemente pelo pensamento e valores desenvolvidos e disseminados pelo cristianismo. Certamente, há exemplos de expressões análogas em outras línguas ocidentais, já que a cultura ocidental se formou (não só) pela influência judaico-cristã. No entanto, a palavra Deus, para mim, está esvaziada de sentido transcendente; designa pura e simplesmente uma ideia oriunda de nossa imaginação e, de certo modo, de nosso entorpecimento racional.
Em comparação com a quantidade de pessoas que seguem uma religião ou se dizem religiosas, os ateus é uma minoria irrisória. Nunca dantes me dei conta de como nós, brasileiros, usamos a palavra Deus e evidenciamos nossas inclinações ao divino em nossas práticas discursivas cotidianas. É claro, dirá o leitor, você nasceu e vive, senão no maior, num dos maiores países religiosos do mundo (mais precisamente católicos). E cabe aqui um esclarecimento desde já: ainda me surpreendo utilizando expressões como “Deus me livre!”, “Meu Deus!”, “Deus que me perdoe!”, etc. Mas isso não depõe contra mim, já que há uma explicação adequada cultural e linguisticamente: nossa língua portuguesa está repleta de expressões em que se acha a palavra “Deus”, bem como de outras entidades religiosas (santos), simplesmente porque nossa cultura se formou predominantemente pelo pensamento e valores desenvolvidos e disseminados pelo cristianismo. Certamente, há exemplos de expressões análogas em outras línguas ocidentais, já que a cultura ocidental se formou (não só) pela influência judaico-cristã. No entanto, a palavra Deus, para mim, está esvaziada de sentido transcendente; designa pura e simplesmente uma ideia oriunda de nossa imaginação e, de certo modo, de nosso entorpecimento racional.
Em segundo lugar, a assunção de meu ateísmo, ao contrário do que sucede com os religiosos, em geral, não me outorga a autoridade de levar ninguém a acolher os argumentos ateus, muito embora não se possa simplesmente negar-lhes o peso. Podemos preferir continuar apegados às nossas crenças absurdas e viver em conflito e com inquietações (ou simplesmente indiferentes à nossa tragédia), mas não podemos, se nos dermos ao trabalho de pensar reflexivamente e de iluminar nossa alma com a lucidez da razão, perceber a coerência e consistência dos argumentos.
Na vida prática, nada muda; apenas minha vida interior se desanuviou. Tornei-me mais sossegado espiritualmente e mais conciliado com o humano em mim. Minha sensibilidade desmedida e exacerbada encontra inspiração nesta vida orgânico-material, mas também espiritual (porque sempre inclinada ao Bem e ao AMOR), não mais numa vida transcendente (ainda que eu conserve uma esperança na sobrevivência do espírito e na reencarnação). E não há contradição aí: os budistas creem na reencarnação sem que precisem acreditar na existência de alguma divindade. Isso, contudo, é matéria para outro texto. Escuso-me de me alongar nesse tocante.
Eu ouso dizer que, ao assumir publicamente meu ateísmo, torno-me uma pessoa ainda mais sensível e um pouco menos egocêntrica e egoísta. Percebi que, para ser religioso, para seguir algum sistema doutrinário religioso, devemos sufocar nossa sensibilidade por sob o peso de nosso egoísmo. Explico-me: é que eu me dei conta de que os religiosos agradecem a Deus, se alguma coisa de pior não lhes aconteceu (por exemplo, caso tenham se acidentado, ou acometido de alguma enfermidade, ou sido vítima da maldade humana, etc.), mas sequer se preocupam com o fato de que, em algum outro lugar, uma pessoa ficou paraplégica, ou está padecendo de câncer, ou foi vitimada por um projétil numa tentativa de assalto.
Após o massacre na escola de Realengo, o arcebispo decidiu celebrar uma missa, para confortar os inconsoláveis. Não me oponho à celebração, é claro; mas me pergunto até quando as autoridades religiosas continuarão a fechar os olhos para a inação de Deus, para o seu completo silêncio? Serei ainda mais incisivo: até quando continuaremos a chorar nossa miséria amparando nossos corações num delírio que atenta contra a nossa própria condição de seres pensantes? Até quando entoaremos cantos, nos ajoelharemos e nos humilharemos por medo do absurdo e fecharemos nossos olhos para a grande medida de sofrimento humano que grassa pelo mundo? O sofrimento trama as malhas da existência humana. Isso é uma verdade inabalável.
Não é aqui o lugar para desenvolver uma argumentação consistente, equilibrada e convincente em favor da inexistência de Deus. Preciso refletir mais sobre os caminhos racionais que meu espírito haverá de trilhar. No entanto, não poderia deixar de notar que a existência irrecusável do mal no mundo constitui um obstáculo intransponível para a teologia. Muitos teólogos tentaram resolvê-lo, mas sem lograr sucesso, simplesmente porque os fatos, as evidências são mais fortes do que qualquer argumento racionalmente aceitável.
A grande questão, que não deixará de retumbar no espírito e no coração de quem quer que esteja disposto a pensar, é: como conciliar a possibilidade de existência de um Deus infinitamente benevolente, onisciente, onipresente e ONIPOTENTE com a existência irrecusável do mal no mundo e do sofrimento dele consequente? E, antes, que ocorra a alguém a ideia de que, parte desse sofrimento é causado pela própria ação humana, no que estou de acordo, isso não serve de argumento para sustentar a possibilidade de Deus existir; mas, ao contrário, a torna ainda mais inaceitável, já que poderíamos contra-argumentar no sentido de responsabilizar a Deus pela miserabilidade de sua criação. Ora, se Deus nos criou, ele é cúmplice, ou melhor, é responsável por nossas mazelas, por nossas loucuras, por nosso sofrimento. Mas os religiosos ainda tentarão sair com esta: “Deus nos deu o livre-arbítrio”, embora se contradigam ao assumir que Deus determina completamente, do início ao fim, o intercurso da vida de uma pessoa. Para além dessa contradição, há uma inverdade no dogma do livre-arbítrio. Nós, homens, não temos “livre-arbítrio”; nossos comportamentos e ações são orientados por um sistema de valores morais e de Leis estabelecidas pelo Direito. Como seres sociais, devemos viver de acordo com a moral de nossa sociedade; devemos cumprir as leis, devemos fazer escolhas de acordo com o grau de incidência das diferentes formas de coerção social. Como seres sociais, devemos ser educados, aprender, entre outras coisas, sobre ciência, sobre história, etc., para podermos gozar da condição de seres humanos integrados ao mundo civilizado. A insistência no livre-arbítrio é um estratagema de que lançam mão os religiosos para “desculpar” a Deus de sua clara incompetência ou incapacidade de criar seres humanos um pouco melhores.
É muito provável que um sacerdote, se indagado sobre o porquê de Deus não evitar ou, pelo menos, não diminuir o sofrimento no mundo, não encontrando explicação razoável para isso, saia pela tangente, numa atitude intelectualmente desonesta, dizendo: “é a vontade de Deus”. Deus quer que soframos? Ora, isso é ultrajante!
Feuerbach, em A essência do Cristianismo, desenvolverá e sustentará a tese de que Deus nada mais é do que a essência humana objetivada, ou seja, projetada para fora de si e tornada objeto da razão e do coração. À página 64, escreve o filósofo:
“Deus como Deus, i.e., como um ser não finito, não humano, não determinado materialmente, não sensorial, é apenas um objeto do pensamento. É o ser transcendente, sem forma, intocável, sem imagem – o ser abstrato e negativo; só é conhecido pela abstração e a negação (...). Por quê? Porque não é nada a não ser a essência objetiva do pensamento, a capacidade ou atividade em geral, que se a chame como se quiser, pela qual o homem se torna consciente da razão, do espírito, da inteligência.”
Mais adiante, acrescentará:
“Deus é a razão que se pronuncia, se afirma como ente supremo.
(p. 65)
O trabalho de Feuerbach merece ser reconhecido, especialmente, pelo seu valor desmitificador ou dessacralizador, na medida em que ele humaniza Deus. Essa humanização se exprime na forma de um “rebaixamento” ontológico ou de uma desconstrução ideológica. Ou seja, Deus deixa de ser concebido como um “ser” superlativizado, para ser entendido como uma ideia, ou melhor, como a objetivação da razão humana. Deus, assim, não é um “ser” separado do humano, mas a própria construção imaginária da sublimação da essência humana. A essência humana é projetada na forma de um Deus, ao qual se atribui predicados humanos, que são superlativizados. Deus é o anseio humano por perfeição: se os homens são bons, então o seu Deus é infinitamente bondoso; se os homens são amorosos, o seu Deus é infinitamente amoroso; se os homens são misericordiosos, o seu Deus é infinitamente misericordioso.
Ao fazer a crítica antropológica da religião, Feuerbach teve o mérito de nos mostrar que são os homens que criaram Deus (e a religião) e não o contrário. Todo o entorpecimento, o embaraço, o anestesiamento, o anuviamento e o obscurantismo da consciência do homem religioso advém dessa inversão ideológica: os homens deixam de se reconhecer como criadores de uma ideia ou conceito, para fazer dele um “ser” independente capaz de criá-los e governá-los.
Se, algum dia, eu vier a desenvolver a minha posição ateísta, começarei considerando as ideias de Feuerbach, muito embora delas eu divirja em alguns momentos. Por exemplo, se Deus é a razão humana objetivada como ente supremo, como pretendia o filósofo, então é imperioso reconhecer que se trata de uma razão deturpada, depravada, alienada, corrompida em sua lógica.
O que me aviva profundamente o espírito no discurso ateu é a ideia de que, para amar e seguir os elementares preceitos morais e buscar a justiça, não precisamos crer em Deus. Não somos melhores nem piores porque não acreditamos em Deus. Apenas devemos enfrentar nossa própria condição humana conflituosa, contraditória e angustiante. Devemos prestar contas a nós mesmos (aperfeiçoando a Justiça) por nossos erros; devemos lidar com as nossas tragédias existenciais, enfrentar nossa estupidez e ignorância, sem querer buscar abrigo numa ilusão.
É claro que a existência de um Deus misericordioso, bondoso e sempre diligente seria maravilhosa, mas maravilhosa demais para ser verdade. A experiência, contudo, não nos dá sinais de que ele possa existir. E os argumentos apresentados para sustentar a sua existência são inconsistentes. Contudo, não me entristeço, pois acredito que o AMOR poderá subsistir, que para amar basta-nos doarmo-nos, entregarmo-nos ao seu mistério.
Em todo caso, se, um dia, quando eu morrer, Deus a mim se revelar, ele terá de me dar boas explicações para a sua omissão, o seu silêncio e a sua negligência. Por enquanto, prefiro dar voz à inteligência e à razão e fazer ecoar de meu coração humano, demasiadamente humano para ignorar as abomináveis tragédias cometidas por certos tipos de homens. Prefiro me solidarizar com as vítimas de catástrofes naturais e de moléstias para as quais os homens de ciência não encontraram a cura. Mas também prefiro dormir aliviado com a esperança de que existem homens que trabalham incansavelmente para solucionar os males que nos atormentam, que nos fragilizam e nos levam à morte.
“Os religiosos deveriam deixar de olhar para o próprio umbigo para olhar o umbigo do mundo, onde reside o absurdo de nossas tragédias” (BAR).