A polêmica sobre o livro didático "Para uma vida melhor" foi um tema em destaque recentemente na mídia brasileira. Trata-se de um livro didático destinado pelo MEC a mais de quatro mil escolas do nosso país, no qual havia lições sobre a possibilidade de usar variedades linguísticas menos prestigiosas socialmente, tais como “Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado”. É importante lembrar que a autora do livro tem uma formação adequada em Linguística, de sorte que ela teve o cuidado de sinalizar para a adequação ou inadequação de uso de tais variedades.
Toda vez que uma questão linguística vem à tona, a classe intelectual de nossa sociedade, excetuando-se os linguistas profissionais, emitem suas opiniões eivadas pelas crenças, preconceitos e superstições disseminados e arraigados pela longa tradição da gramática normativa. Discriminar as diversas formas de falar/ escrever o português em “certas” e “erradas” é, infelizmente, ainda a única forma pela qual a grande maioria da sociedade trata do assunto. De uma maneira simplista e antidemocrática – melhor seria dizer, elitista -, jornalistas, professores (incluindo os de português), apresentadores de televisão, entre outros, ainda insistem em ignorar a pluralidade linguística do Brasil. Em outras palavras, ainda insistem em ignorar o fato de o português brasileiro (aliás, como toda língua no mundo) ser um balaio de variedades, não podendo ser confundido com uma única variedade apenas, a chamada variedade padrão. Infelizmente, a ignorância grassa insuspeita. Aqueles profissionais continuam a propalar a crença, então muito arraigada na mentalidade social, de que há uma forma “correta” de falar e escrever o português e outras tantas que são “erradas”. Estas últimas são as formas não agasalhadas pela norma culta prescrita pelas gramáticas normativas. É claro que as pessoas em geral se referem apenas a “gramática”, sem acompanhamento do adjetivo “normativa”. Reside aqui outro equívoco, ou melhor, outra maneira simplista de encarar a realidade linguística.
A discussão sobre as complexas e intricadas relações entre língua e sociedade demandaria muito tempo e espaço. Como eu não dispunha nem de um nem de outro, e como eu não pretenda enfadar o leitor, vou elencar duas teses cujo conhecimento é fundamental para que o professor de português desenvolva uma prática pedagógica alinhada com os princípios mais elementares de uma educação verdadeiramente democrática.
1ª TESE – ENSINAR LÍNGUA É ASSUMIR UM COMPROMISSO SÓCIO-POLÍTICO
Essa é a primeira e fundamental lição que deve ser ensinada aos graduandos em Letras. O professor de português é um agente sócio-político. É claro que, em grande medida, todo professor o é. Mas me refiro especialmente aos professores e às professoras de português e a eles me dirijo, porque são eles os responsáveis pela formação linguística dos estudantes. Para que venham a desempenhar adequada e satisfatoriamente o seu trabalho como agente sócio-político, é indispensável que eles estejam, ao menos, familiarizados com as contribuições da sociolinguística. É esta área da Linguística moderna que abrirá as portas para o ensino de lições e o debate de questões implicadas nas relações entre linguagem e sociedade. O que o professor precisa saber é que a linguagem (ou a língua) é a base fundamental de toda sociedade. Não haveria esse meio de trocas, de relações, de organização conhecido como sociedade sem um sistema de signos.
A sociolinguística está interessada na correlação entre aspectos linguísticos e sociais. Nessa perspectiva, a língua é estudada em uso no seio de uma sociedade. O postulado principal que fundamenta toda pesquisa sociolinguística é toda língua é heterogênea. Donde se segue o afirmar que toda língua varia e muda. Dizer que uma língua é heterogênea significa dizer que ela apresenta um repertório variado e rico de formas de expressão, de usos. Cada sub-sistema que constitui um conjunto de formas de dizer/ escrever é chamado de variedade; e cada uma das alternativas de uso disponibilizada por esse sub-sistema chama-se variante. É claro que as variedades não se nos apresentam de modo estanque e nem podem ser consideradas como pertencentes a dois pólos opostos, como “padrão x não-padrão”; ao contrário, as variedades distribuem-se num continuum.
Os estudos sociolingüísticos reconhecem que toda língua natural está sujeita a pressões que atuam em duas direções contrárias: umas no sentido da variação e mudança; e outras, no sentido da conservação; umas, no sentido da diversidade; outras, no sentido da unidade. Portanto, é claro que haverá, em toda sociedade, setores que buscam inibir ou refrear a tendência social da língua à variação e à mudança. Na verdade, mais do que uma tendência, a variação e a mudança são uma regra. Toda língua varia e muda ao longo do tempo e no espaço (neste último caso, dependendo das regiões em que é falada).
Negar as noções de “certo” e “errado” não significa negar a sua existência. Ou melhor, a prática de rotulação dos padrões linguísticos em “certos” e “errados” é uma prática real e evidente. Nega-se, na verdade, que existam usos certos e errados como realidades imanentes ao sistema da língua. Ora, não é a língua que exibe formas “corretas” e “erradas”. O rotular de “corretas” ou de “erradas” é uma prática de ordem sócio-cultural e ideológica. Os padrões linguísticos estão sujeitos à avaliação positiva ou negativa e, nessa medida, são determinantes da inserção dos falantes na escala social. “Certo” e “errado” são valores atribuídos socialmente e não qualidades das formas da língua em si.
2ª TESE - NENHUM LINGUISTA ENSINA O FAMIGERADO vale-tudo
Incorre em erro grosseiro, em falta de honestidade quem propala a ideia de que os linguistas advogam a prática linguística aleatória ou cega às expectativas ou às exigências sociais. Substituir as noções de certo e errado, que encontram raízes na ideologia linguística, por adequado e inadequado é mais do que uma mera substituição de conceitos. Trata-se de uma mudança de atitude em relação às práticas linguísticas. Considerar os usos linguísticos, na perspectiva de sua adequação às diferentes situações de interação, significa libertar nossa consciência da ideologia segundo a qual há formas terminantemente corretas de falar um idioma.
Ora, falar em adequação de uso é manifestar consciência e sensibilidade em relação à dinâmica social de uso da língua, às diferentes formas de manifestação de poder implicadas nas práticas linguísticas. Ao usarmos a língua, demarcamos as fronteiras socio-culturais que nos separam do outro. É claro que a linguagem constitui um instrumento poderoso para impedir o acesso ao poder e também é ela um instrumento poderoso a serviço do poder.
Como bem observa o professor Maurizzio Gnerre, em Linguagem, Escrita e poder (2003)
“Segundo os princípios democráticos nenhuma discriminação dos indivíduos tem razão de ser, com base em critérios de raça, religião, credo político. A única brecha deixada aberta para a discriminação é aquela que se baseia nos critérios da linguagem e da educação”
(p. 25)
Ora, a sociedade se cala em face da discriminação linguística, em face do preconceito linguístico, que é, no fundo, um preconceito social. Há quem negue a existência desse tipo de preconceito. Combater o preconceito linguístico não significa lutar contra o ensino do português padrão ou da chamada norma culta. Cabe à escola ensinar a variedade linguística de prestígio. Nenhum linguista nega isso. Sucede, contudo, que esse ensino não deve desprivilegiar, discriminar, desqualificar as outras variedades, com as quais o aluno entra em contato muito antes de ingressar na escola. Também não pode o professor pretender que os alunos devem substituir as formas linguísticas que já dominam por outras formas que virão a aprender por força da ação pedagógica escolar. O objetivo do ensino de português a falantes nativos dessa língua é desenvolver a competência comunicativa deles, o que equivale a dizer desenvolver-lhes o domínio e a capacidade de usar adequadamente o maior número de variedades linguísticas possível, ou seja, de acordo com a situação comunicativa de que eles participam.
A discussão é interminável e o trabalho do professor de português é, sem dúvida, exaustivo e dificultoso. Não será ele o salvador da pátria, é claro. Mas, se estiver disposto a assumir verdadeiramente aquele compromisso a que me referi, ele deverá exibir uma sólida formação em Linguística e, pelo menos, estar familiarizado com os estudos sociolingüísticos. Isso significa, por exemplo, poder ele reconhecer que ensinar ao aluno que o enunciado “Os menino saiu” é uma forma de uso construída na base de uma regra que prevê a pluralização somente do primeiro elemento do sintagma nominal, ou seja, do determinante no sujeito é ensinar que toda manifestação de linguagem, todo uso linguístico é governado por algum tipo de regra. Não caberá mais dizer que formas como “pra mim fazer” e “eles chegou” são desprovidas de regras. Ora, um olhar cuidadoso nos mostrará que nesses - como em outros inúmeros casos de “desvio”, segundo um padrão de uso prestigiado - opera-se com outras regras. A título de esclarecimento, cabe notar que em “pra mim fazer”, o falante segue a regra que prevê o uso do pronome oblíquo depois de preposição, como em “falar de mim”, “contar pra/ a mim”, etc. De um ponto de vista científico, ou seja, da Linguística, o falante tem, nesse caso, duas alternativas de uso: “eu” ou “mim”. Isso se deve ao aparecimento do infinitivo. A estrutura ‘prep_____inf.’ admite o uso tanto de “mim” quanto de “eu”. A escolha será determinada por fatores socio-pragmáticos e não gramaticais. Importa considerar o contexto comunicativo: a quem eu falo (grau de hierarquia e intimidade) e em que circunstância eu falo (numa palestra, numa entrevista de emprego ou num barzinho).
* Seguem-se os links dos vídeos com entrevistas sobre a polêmica do livro didático: