sábado, 4 de junho de 2011

A árdua tarefa do professor de português

     

   


                                   
                             
                          Uma questão sociolinguística

 A polêmica sobre o livro didático "Para uma vida melhor" foi um tema em destaque recentemente na mídia brasileira. Trata-se de um livro didático destinado pelo MEC a mais de quatro mil escolas do nosso país, no qual havia lições sobre a possibilidade de usar variedades linguísticas menos prestigiosas socialmente, tais como “Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado”. É importante lembrar que a autora do livro tem uma formação adequada em Linguística, de sorte que ela teve o cuidado de sinalizar para a adequação ou inadequação de uso de tais variedades.
Toda vez que uma questão linguística vem à tona, a classe intelectual de nossa sociedade, excetuando-se os linguistas profissionais, emitem suas opiniões eivadas pelas crenças, preconceitos e superstições disseminados e arraigados pela longa tradição da gramática normativa. Discriminar as diversas formas de falar/ escrever o português em “certas” e “erradas” é, infelizmente, ainda a única forma pela qual a grande maioria da sociedade trata do assunto. De uma maneira simplista e antidemocrática – melhor seria dizer, elitista -, jornalistas, professores (incluindo os de português), apresentadores de televisão, entre outros, ainda insistem em ignorar a pluralidade linguística do Brasil. Em outras palavras, ainda insistem em ignorar o fato de o português brasileiro (aliás, como toda língua no mundo) ser um balaio de variedades, não podendo ser confundido com uma única variedade apenas, a chamada variedade padrão. Infelizmente, a ignorância grassa insuspeita. Aqueles profissionais continuam a propalar a crença, então muito arraigada na mentalidade social, de que há uma forma “correta” de falar e escrever o português e outras tantas que são “erradas”. Estas últimas são as formas não agasalhadas pela norma culta prescrita pelas gramáticas normativas. É claro que as pessoas em geral se referem apenas a “gramática”, sem acompanhamento do adjetivo “normativa”. Reside aqui outro equívoco, ou melhor, outra maneira simplista de encarar a realidade linguística.
A discussão sobre as complexas e intricadas relações entre língua e sociedade demandaria muito tempo e espaço. Como eu não dispunha nem de um nem de outro, e como eu não pretenda enfadar o leitor, vou elencar duas teses cujo conhecimento é fundamental para que o professor de português desenvolva uma prática pedagógica alinhada com os princípios mais elementares de uma educação verdadeiramente democrática.

1ª TESE – ENSINAR LÍNGUA É ASSUMIR UM COMPROMISSO SÓCIO-POLÍTICO

Essa é a primeira e fundamental lição que deve ser ensinada aos graduandos em Letras. O professor de português é um agente sócio-político. É claro que, em grande medida, todo professor o é. Mas me refiro especialmente aos professores e às professoras de português e a eles me dirijo, porque são eles os responsáveis pela formação linguística dos estudantes. Para que venham a desempenhar adequada e satisfatoriamente o seu trabalho como agente sócio-político, é indispensável que eles estejam, ao menos, familiarizados com as contribuições da sociolinguística. É esta área da Linguística moderna que abrirá as portas para o ensino de lições e o debate de questões implicadas nas relações entre linguagem e sociedade. O que o professor precisa saber é que a linguagem (ou a língua) é a base fundamental de toda sociedade. Não haveria esse meio de trocas, de relações, de organização conhecido como sociedade sem um sistema de signos.
A sociolinguística está interessada na correlação entre aspectos linguísticos e sociais. Nessa perspectiva, a língua é estudada em uso no seio de uma sociedade. O postulado principal que fundamenta toda pesquisa sociolinguística é toda língua é heterogênea. Donde se segue o afirmar que toda língua varia e muda. Dizer que uma língua é heterogênea significa dizer que ela apresenta um repertório variado e rico de formas de expressão, de usos.  Cada sub-sistema que constitui um conjunto de formas de dizer/ escrever é chamado de variedade; e cada uma das alternativas de uso disponibilizada por esse sub-sistema chama-se variante.  É claro que as variedades não se nos apresentam de modo estanque e nem podem ser consideradas como pertencentes a dois pólos opostos, como “padrão x não-padrão”; ao contrário, as variedades distribuem-se num continuum.
Os estudos sociolingüísticos reconhecem que toda língua natural está sujeita a pressões que atuam em duas direções contrárias: umas no sentido da variação e mudança; e outras, no sentido da conservação; umas, no sentido da diversidade; outras, no sentido da unidade. Portanto, é claro que haverá, em toda sociedade, setores que buscam inibir ou refrear a tendência social da língua à variação e à mudança. Na verdade, mais do que uma tendência, a variação e a mudança são uma regra. Toda língua varia e muda ao longo do tempo e no espaço (neste último caso, dependendo das regiões em que é falada).
Negar as noções de “certo” e “errado” não significa negar a sua existência. Ou melhor, a prática de rotulação dos padrões linguísticos em “certos” e “errados” é uma prática real e evidente. Nega-se, na verdade, que existam usos certos e errados como realidades imanentes ao sistema da língua. Ora, não é a língua que exibe formas “corretas” e “erradas”. O rotular de “corretas” ou de “erradas” é uma prática de ordem sócio-cultural e ideológica. Os padrões linguísticos estão sujeitos à avaliação positiva ou negativa e, nessa medida,  são determinantes da inserção dos falantes na escala social.  “Certo” e “errado” são valores atribuídos socialmente e não qualidades das formas da língua em si.

2ª TESE - NENHUM LINGUISTA ENSINA O FAMIGERADO vale-tudo

Incorre em erro grosseiro, em falta de honestidade quem propala a ideia de que os linguistas advogam a prática linguística aleatória ou cega às expectativas ou às exigências sociais. Substituir as noções de certo e errado, que encontram raízes na ideologia linguística, por adequado e inadequado é mais do que uma mera substituição de conceitos. Trata-se de uma mudança de atitude em relação às práticas linguísticas. Considerar os usos linguísticos, na perspectiva de sua adequação às diferentes situações de interação, significa libertar nossa consciência da ideologia segundo a qual há formas terminantemente corretas de falar um idioma.
Ora, falar em adequação de uso é manifestar consciência e sensibilidade em relação à dinâmica social de uso da língua, às diferentes formas de manifestação de poder implicadas nas práticas linguísticas. Ao usarmos a língua, demarcamos as fronteiras socio-culturais que nos separam do outro.  É claro que a linguagem constitui um instrumento poderoso para impedir o acesso ao poder e também é ela um instrumento poderoso a serviço do poder.
Como bem observa o professor Maurizzio Gnerre, em Linguagem, Escrita e poder (2003)

“Segundo os princípios democráticos nenhuma discriminação dos indivíduos tem razão de ser, com base em critérios de raça, religião, credo político. A única brecha deixada aberta para a discriminação é aquela que se baseia nos critérios da linguagem e da educação”
(p. 25)

Ora, a sociedade se cala em face da discriminação linguística, em face do preconceito linguístico, que é, no fundo, um preconceito social. Há quem negue a existência desse tipo de preconceito.  Combater o preconceito linguístico não significa lutar contra o ensino do português padrão ou da chamada norma culta. Cabe à escola ensinar a variedade linguística de prestígio. Nenhum linguista nega isso.  Sucede, contudo, que esse ensino não deve desprivilegiar, discriminar, desqualificar as outras variedades, com as quais o aluno entra em contato muito antes de ingressar na escola. Também não pode o professor pretender que os alunos devem substituir as formas linguísticas que já dominam por outras formas que virão a aprender por força da ação pedagógica escolar. O objetivo do ensino de português a falantes nativos dessa língua é desenvolver a competência comunicativa deles, o que equivale a dizer desenvolver-lhes o domínio e a capacidade de usar adequadamente o maior número de variedades linguísticas possível, ou seja, de acordo com a situação comunicativa de que eles participam.
A discussão é interminável e o trabalho do professor de português é, sem dúvida, exaustivo e dificultoso. Não será ele o salvador da pátria, é claro. Mas, se estiver disposto a assumir verdadeiramente aquele compromisso a que me referi, ele deverá exibir uma sólida formação em Linguística e, pelo menos, estar familiarizado com os estudos sociolingüísticos. Isso significa, por exemplo, poder ele reconhecer que ensinar ao aluno que o enunciado “Os menino saiu” é uma forma de uso construída na base de uma regra que prevê a pluralização somente do primeiro elemento do sintagma nominal, ou seja, do determinante no sujeito é ensinar que toda manifestação de linguagem, todo uso linguístico é governado por algum tipo de regra. Não caberá mais dizer que formas como “pra mim fazer” e “eles chegou” são desprovidas de regras. Ora, um olhar cuidadoso nos mostrará que nesses - como em outros inúmeros casos de “desvio”, segundo um padrão de uso prestigiado - opera-se com outras regras. A título de esclarecimento, cabe notar que em “pra mim fazer”, o falante segue a regra que prevê o uso do pronome oblíquo depois de preposição, como em “falar de mim”, “contar pra/ a mim”, etc. De um ponto de vista científico, ou seja, da Linguística, o falante tem, nesse caso, duas alternativas de uso: “eu” ou “mim”. Isso se deve ao aparecimento do infinitivo. A estrutura ‘prep_____inf.’ admite o uso tanto de “mim” quanto de “eu”. A escolha será determinada por fatores socio-pragmáticos e não gramaticais.   Importa considerar o contexto comunicativo: a quem eu falo (grau de hierarquia e intimidade) e em que circunstância eu falo (numa palestra, numa entrevista de emprego ou num barzinho).



* Seguem-se os links dos vídeos com entrevistas sobre a polêmica do livro didático:



quinta-feira, 2 de junho de 2011

Linguagem e amor




“O uso da língua se resume a esta máxima:
Há coisas que devem ser ditas
E outras que devem ser caladas
Buscar o entremeio
É encheção de lingüiça"       (BAR)

“O silêncio comunica mais
Quando as palavras estão mudas”  (BAR)

“Não busquemos explicações demasiadas
Elas pesam e tolhem o sentido”                            (BAR)

“A linguagem do amor é feito de uma só palavra:
                       Reciprocidade                                               (BAR)
Dela se desdobra todo o seu vocabulário”

“Dizer é abrir silêncios. Das palavras vazam silêncios”                (BAR)

“Toda palavra proferida desencadeia uma série de silenciamentos”          (BAR)

“O amor é lúcido; a paixão é translúcida, por isso ela nos cega”           (BAR)

“O incompreensível no amor é que ele faz todo sentido”  (BAR)

quarta-feira, 1 de junho de 2011

"O amor se descomplica, descomplicando a vida" (BAR)



"O amor se descomplica
Descomplicando a vida" (BAR)

“O tempo do amor é prazer único
O resto são tempos que aturamos” (BAR)

“Se nada na vida é por acaso;
O amor é um acaso feliz e raro” (BAR)

“Se não há tempo para o amor
É que nós não estamos no tempo dele” (BAR)

“Se o amor fosse tudo,
Nós não precisávamos acordar cedo” (BAR)

“O amor são dois
Não há metade” (BAR)

“A alegria do amor está em compartilhar
Um tempo que, se perdido"
Nos fará chorar” (BAR)


“O amor pode não ser tudo
Mas é o bastante para nos contentar” (BAR)


“O amor exige um tempo em comum
Cedido inteiramente
E não em doses homeopáticas” (BAR)

“O amor não é homeopatia
É tratamento clínico” (BAR)

"O problema da distância
para o amor
É nós nos acostumarmos a ela" (BAR)


"O amor requer presença
Cuidado (BAR)
Tempo e convívio"

"Eros é nobre quando esvazia de si
O ego                                                
E se contenta
Sem nada mais esperar"


(BAR)
"O amor  
Sem sexo       
           vira amizade"     (BAR)



"O amor é uma busca reticenciosa (BAR)
Uma reticência...
Que nunca desistimos de completar"

domingo, 29 de maio de 2011

"Quando faltou tempo..."

                                        
                     Nosso tempo

                                       
                                       Houve um tempo em que chorei

                                                                        [  Tempestades de lágrimas
                             Houve um tempo em que ansiei
                                                                                     [por momentos intensos de amor
                                     Houve um tempo em que te esperei
                                                                                                                [o sonho que não se realizou
                                                                           Houve um tempo em que acreditei
                                                                                                                       [que bastava tão-só se entregar
                                                                                   Houve um tempo em que só amei
                                                                                                                       [ e amar a intensidade do eterno
                                              [bastava
                                                                                         Houve um tempo que fora tão belo
                                                                                                                              [mas o silêncio em mim falou
                                                                                            Houve um tempo roubado ao amor.

                                                                                                   (BAR)



terça-feira, 24 de maio de 2011

"O AMOR é o erro mais belo e excitante desta vida!" (BAR)

                                                        

                                                         Amor Imperfeito


        Chega!
Abandonarei os esquadros, as réguas e os compassos de meus ideais. Os amores vão e vêm, como marolas beijando a orla.  O que vejo são pessoas desmanchando amores e reatando-os, como se amarrassem e desamarrassem cadarços. Não as culpo, não as condeno, não as julgo. É que o AMOR é insistente, vive a martelar nosso coração. O AMOR é o erro mais belo e excitante desta vida! Sim, ele é um erro que desejamos que dê certo. É um erro que desejamos se torne um acerto. Quantos de nós desejam, idealizam o amor verdadeiro? Mas qual é a verdade do AMOR? O que é o amor verdadeiro, senão aquele que se manifesta pela abertura irrestrita de nossa alma, pelos gestos de carinho, pelo compromisso que não abandonamos, pelas horas que dedicamos, pelo tempo empregado em seus cuidados?
Aceitemos o AMOR como ele é: errado, defeituoso. O AMOR não é um ser que habita o mundo das ideias perfeitas, como imaginado por Platão. O AMOR é carne, é corpo, é prática, é escolha que não se escolhe. O AMOR é vivido, experimentado, sentido por seres humanos, que erram, que choram, que se entregam, que se abandonam. Ninguém está certo no AMOR. Não há culpados no AMOR. Culpa e AMOR são inconciliáveis, não se casam e só agrava a distância.
O AMOR não é uma figura geométrica perfeita; uma obra prima pintada por Michelangelo. É um borrão que a criança lança sobre a tela, é um desenho infantil num papel. O AMOR não tem formas, nem simetria, não é obra de um desenhista ou arquiteto; ele é humano, demasiadamente humano e imperfeito. Ele traz cicatrizes à alma, mas também cálices de alegria abundante. O AMOR não pode ser escravo das ideias, mas deve servir à linguagem, como sua fonte de inspiração. Palavras podem feri-lo, mas ele pode ressurgir como fênix. O AMOR incendeia, mas não pega fogo, porque não é uma coisa. O AMOR não é uma arte, é um desastre por que desejamos passar por toda a vida. É um desastre que queremos experimentar debaixo dos lençóis. O AMOR é prazer, é gozo desastrado.
O AMOR excede sim as medidas da alma, e também dispensa a métrica dos pensamentos. O AMOR transborda do corpo, escapa pelos poros da pele, está no suor, na saliva, no sêmen, nas genitálias. Está na lágrima, na carne lasciva, no ventre. O AMOR é um erro que queremos cometer sempre mais. É um borrão nas páginas de nossa vida. O AMOR é a explosão do ego, a dinamite do orgulho, a nudez da decência e a indecência do excesso de decoro. O AMOR é transgressor, é, por excelência, sinal de revolta contra tudo que reprime, que coage, que constitui tabu. O AMOR é a negação da rigidez das normas, da própria sociedade de homens conservadores e hipócritas. O AMOR é subversão de toda ordem que censura, que proíbe e nos tolhe a liberdade.
O AMOR é imperfeito, se fosse perfeito seria muito chato!

terça-feira, 17 de maio de 2011

o esvaziamento do ego

                                                                                
                                                      

                                                                           Somos dois

Cuido que a capacidade de autocrítica, de auto-avaliação é uma virtude. Mas o que é uma virtude? Virtude é poder para agir para o bem. Aristóteles a considerava uma disposição para a prática do bem.  A virtude, em suma, constitui a maneira de ser e de agir humanamente visando ao bem.

            Qual é o bem que se alcança na capacidade de autocrítica ou auto-avaliação? É o autoconhecimento. Uma pessoa capaz de autocrítica reconhece em si as diversas formas de manifestação de seu ser, ou seja, os seus diferentes modos de ser , de se dar ao mundo.
Escrever, para mim, é um meio de me reconhecer. No entanto, há outra maneira de buscar um auto-reconhecimento: a auto-reflexão propiciada pela experiência amorosa. É porque, no AMOR, necessariamente, estamos diante do Outro. E o AMOR que logre sucesso e felicidade deve ser experimentado no intervalo entre o Eu e o Outro. Aqui, se deve reconhecer a necessidade de o Outro ocupar um espaço que lhe é próprio e dele usufruir. O AMOR nos impele à luta do Ego. O ego deve esvaziar-se à medida que se nos vai desanuviando a consciência de que o Outro é um ser independente, autônomo.
O ideal de amor romântico – o amor da desmesura – pode ser assim representado no discurso de Aristófanes, em Banquete, de Platão:

“Ser unido e fundido no amado! Serem apenas um! E a razão disso é que assim era nossa antiga natureza, pelo fato de havermos formado anteriormente um todo único. E o amor é esse o desejo e a ânsia dessa contemplação, dessa unidade”.
(p. 124)

O excerto faz referência ao mito do andrógino. Com a divisão perpetrada pelos deuses, “a humanidade encontraria a perfeita felicidade se se abandonasse às injunções do amor, encontrando cada um o seu próprio amor, e voltando assim ao antigo estado natural” (p. 125).
Evidentemente, entre o AMOR idealizado, sustentado por ideais de sublimidade e perfeição, nutrido pela fantasia, e o AMOR praticado, experienciado, que nos convoca ao convívio com o outro, que nos ensina sobre a sua autonomia e independência em relação à nossa própria capacidade de atuação, há uma distância intransponível. Atuar com o outro e não atuar sobre o outro – é isso o que nos ensina o AMOR.
O AMOR não é saturante; saturação é incompatível com o AMOR. O AMOR é abstinente.
Imagino não ser fácil para muitos de nós esvaziar o ego em face da experiência animicamente impregnante do AMOR. Mas disso depende nosso crescimento individual, nossa maturação amorosa. É certo que o desejo, quando intenso e abrangente, torna-nos incapazes de reconhecer que ao Outro deve ser reconhecido o seu espaço. Nascemos separados em anos, em lugares, em famílias, em formas de educação e de transmissão de valores. O AMOR, todavia, promove um novo nascimento: o da união. Essa união, contudo, não se confunde com dependência unilateral. Reciprocidade não se manifesta por interdependência, mas na quantidade de vezes que somos capazes de emitir sinais de que estamos presentes, nos preocupamos, nos interessamos, nos doamos, nos dedicamos. A reciprocidade é expressa na nossa capacidade de suprir alguma carência mais urgente, aquela que grita do fundo de nossa alma.
Todavia, também me parece equivocada toda a expectativa demasiada projetada sobre o Outro. Esperar demais é caminhar junto ao abismo da frustração. Devemos esperar na medida da possibilidade de espera. Essa medida é determinada pela abrangência do relacionamento amoroso, pela sua maturidade, pela natureza das emoções nele envolvidas, pela solidez de seus projetos.
A experiência amorosa nos põe diante do vazio da existência; de certo modo, ficamos continuamente vulnerável a este vazio. É que sua abrangência existencial é totalizante. O AMOR totaliza o ser, sem sufocá-lo. O laborioso trabalho espiritual e emocional de que nos encarrega o AMOR é, justamente, o esvaziamento do ego.
Acho que depois do AMOR resta o silêncio ou o eterno ressoar silencioso das palavras inaudíveis – aquelas que significam no fundo de nossa alma, que desse fundo lançam seus sons acalentados. Diante do AMOR, convém subtrair o ego e deixá-lo ser como é: incompreensivelmente deleitoso, harmonioso, intrigante e transgressor.



segunda-feira, 16 de maio de 2011

                                       Desafios docentes

Acho que peso muito sobre a vida; minha alma é densa demais, é repleta demais para que a vida a abrigue. Sua fragilidade é tão evidente, mas muitos de nós fingem não notá-la. Ignoram-na. O nascimento de um ser humano é um acontecimento de resistência à morte; é a vitória da vida sobre ela. No entanto, poucos se apercebem disso.
Ainda me agarro a ideais; fico grudado neles e custa-me desapegar-me. Eles, às vezes, dificultam o vagaroso e consistente percurso dos projetos, certamente mais sólidos e tangíveis. De resto, os ideais são frágeis e dissolúveis; podem evaporar-se nas calorosas emoções.
A palavra paixão foi definida diferentemente na tradição filosófica. Aristóteles chamava paixão a toda ação que se sofre; daí se deduz a ideia de passividade; para Descartes, paixão recobre os estados afetivos impressos na alma,  ou melhor,  no cérebro.
Modernamente, paixão tanto pode designar uma tendência que anula a vontade e a razão, como uma tendência que as reforça, que as potencializa. A paixão em meu espírito cumpre esse último papel: é potencializadora.
Minhas palavras ficaram mergulhadas num silêncio repressor por longo tempo, simplesmente porque se me calou no espírito a paixão. Fui acometido de um resfriamento espiritual que me tornou ausente de mim mesmo. Faço-me presente em mim quando escrevo; as palavras promovem o reencontro de mim comigo mesmo, na medida em que me motivam a externar meus pensamentos e os sentimentos que se vão acumulando ao longo do tempo em que me mantive silenciado.
Acredito em que a vida torna-se insossa e pesada, porque nos fadiga, nos atrofia e nos cerceia a vontade de potência, sempre que nos vemos privados de paixão. É movido pela paixão que exerço a docência e é com paixão, afinada com a razão, harmonizada com o bom-senso, com o espírito crítico, que combato toda forma de preconceito, discriminação e superstição.
Se a existência dos homens se expressa senão através de projetos; se os homens são um projeto, que se reinventam no decorrer de suas inúmeras experiências de vida; se nos resta senão a liberdade de escolhas, considerando-se sempre as condições socioculturais, econômicas e ideológicas em que tais escolhas se tornam mais ou menos possíveis, então sou forçado a admitir que meu projeto intelectual é promover sempre uma tensão, um desequilíbrio, uma desestabilização de nossas crenças mais arraigadas, de nossos padrões de pensamento, de nossas ideias engessadas, enferrujadas e enraizadas.
Como professor-pesquisador, estudioso e leitor tenaz, filósofo das horas vagas, inconformado num mundo de conformados, imponho-me dois desafios: o ensino da leitura crítico-emancipatória (e de sua contra-face escrita desafiadora); e o combate ao preconceito linguístico. Desenraizá-lo da consciência social dos brasileiros não constitui tarefa fácil; e, talvez, pretender que uma sociedade dividida em classes como a nossa se livre do preconceito linguístico seja uma utopia. Não obstante, tal reconhecimento não deve frustrar o admirável trabalho, que consiste na formação de professores de português suficientemente instrumentalizados teórica e metodologicamente para que, atuando no ensino escolar, do nível fundamental ao médio, possa: a)  trabalhar a variação linguística como um fato inegável na heterogênea sociedade brasileira; b) discutir (com os alunos) a adequação/ inadequação de uso de uma ou outra variedade linguística; c) sensibilizá-los para o fato de que não existe uma norma culta; ou melhor, que sua existência é meramente ideológica, já que ela é um ideal de correção linguística; d) ensinar-lhes que não há, de um ponto de vista estritamente linguístico, erro ao usar a língua, mas que as noções de certo e errado resultam de julgamentos socioculturais (em geral, preconceituosos) que as camadas mais favorecidas da sociedade (que detém o poder econômico e político-ideológico) fazem dos usos linguísticos das camadas menos favorecidas; e) mostrar-lhes que também entre os membros das classes mais favorecidas há censura mútua relativamente ao seu comportamento verbal, na base de um ideal de correção linguística, etc. As lições podem ser multiplicadas, é claro.
Ontem, assisti a uma reportagem, divulgada no Jornal do Sbt  apresentado por Carlos Nascimento, sobre a apresentação, em um livro didático destinado ao ensino de português no nível escolar, de variantes linguísticas como “nós vai no cinema”. A autora do livro, que na entrevista, exibia uma formação adequada em Linguística, salientou a importância de discutir essas variantes em termos de adequação de uso. No próprio livro, se achavam observações sobre a possibilidade de uso dessas variantes.  Mas o apresentador Carlos Nascimento ironizou dizendo que agora ele deveria usar “nós vai apresentar” e os telespectadores “vai assistir”. A ignorância quanto às contribuições da sociolinguística no tocante à descrição da heterogeneidade linguística do Brasil e ao combate do preconceito linguístico é um fato geral em nossa sociedade, infelizmente reforçado por aqueles que podem ser incluídos na classe dos intelectuais, como os jornalistas.
Recomendo ao leitor interessado a leitura de alguns livros do professor e pesquisador Marcos Bagno – um dos mais renomados especialistas de Sociolinguística no Brasil -, entre os quais estão O Preconceito Linguístico e Nada na Língua é Por Acaso.
A par do combate ao preconceito linguístico, reside em meu espírito a força sempre renovável para o ensino da leitura, ou seja, da atividade de produção de sentidos para um  texto.  O primeiro problema com que o professor se vê à volta é fazer com que o aluno se desapegue da superficialidade linguística do texto. Com efeito, o esforço docente se destina a levar o aluno a transcender o nível da materialidade linguística do texto, para atingir o nível dos implícitos, dos silenciamentos.
Numa aula com alunos do curso de pedagogia, na faculdade onde trabalho, a fim de ensinar que o leitor experiente é agente de sua leitura, pois que capaz de produzir sentidos para o texto e não “captar” ou “pinçar” sentidos previamente existentes, propus uma frase simples como:

(1) Maria chegou.

Como nenhuma atividade linguística se dá fora de contextos sociais, disse-lhes que reconhecessem (1) como um enunciado, de modo que tivessem de recuperar, pelo menos, as duas instâncias: a) o produtor e b) o receptor.
Posteriormente, solicitei que produzissem uma interpretação dos seguintes pares, tendo em conta uma continuação cognitivo-conceitual entre as duas partes:

(a) – Maria chegou.
      - Podemos ir.

(b) – Maria chegou.
       - É melhor se esconder.

(c) – Maria chegou.
       - Estou salva.

(d) – Maria chegou.
       - Agora, estou perdida!

Para (a), alguns alunos sugeriram que Maria era aguardada para que todos pudessem sair juntos; outros disseram que Maria ficaria encarregada de cuidar das crianças, enquanto os pais estavam fora. Para (b), Maria representava alguma ameaça para alguém e, por isso, essa pessoa devia se esconder. Alunos houve que sugeriram que Maria seria surpreendida com uma festa. Para (c), alguns alunos disseram que Maria iria ajudar numa situação complicada. Para (d), o interlocutor espera que Maria o repreenderá por alguma coisa que ele fez de errado.
Suponhamos que sabemos ser Maria a irmã mais velha do interlocutor. Então, munidos dessa informação contextual, poderíamos dizer que em (a) Maria ficaria encarregada de cuidar de seu irmão mais novo. Em (b), poderíamos dizer que a irmã de Maria fez alguma coisa de errado e que, para evitar a bronca, deveria se esconder. Em (c), Maria ajudará a irmã a solucionar um problema (um exercício de matemática complicado). Em (d), ao contrário, ela representa um problema, uma ameaça (a irmã manchou involuntariamente o vestido de Maria).
O que o exercício revela é que, para que possamos atribuir sentido a uma dada sequência linguística, precisamos reconstruir contextos. Tais contextos são de ordem sociocognitiva. Portanto, dizem-se contextos sociocognitivos. Precisamos saber a respeito dos papéis sociais desempenhados pelos interactantes, as imagens recíprocas que fazem de si mesmos e uns dos outros, que conhecimentos partilham entre si, que expectativas também são partilhadas, etc. Cada qual deles possui uma informação pragmática que será negociada e modificada na interação verbal. Essa informação diz respeito ao conjunto de conhecimentos de que dispõem referentes à situação comunicativa (papeis sociais dos interlocutores, grau de intimidade entre eles, saberes compartihados, etc.). Dada a escassez de informações necessárias à interpretação dos pares de enunciados, cabe ao leitor reconstruir um contexto sociocognitivo que lhe permita produzir um sentido. Por isso, interpretar, isto é, produzir sentido é ir além do material linguístico, sem, contudo, dispensá-lo.

domingo, 24 de abril de 2011

"A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa" (BAR)

Herança natural



O Tempo

A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa. Quando se vê, já são seis horas! Quando se vê, já é sexta-feira! Quando se vê, já é natal... Quando se vê, já terminou o ano... Quando se vê perdemos o amor da nossa vida. Quando se vê passaram 50 anos! Agora é tarde demais para ser reprovado... Se me fosse dado um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio. Seguiria sempre em frente e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas... Seguraria o amor que está a minha frente e diria que eu o amo... E tem mais: não deixe de fazer algo de que gosta devido à falta de tempo. Não deixe de ter pessoas ao seu lado por puro medo de ser feliz. A única falta que terá será a desse tempo que, infelizmente, nunca mais voltará. 

Mário Quintana


É uma páscoa para ser esquecida: meu avozinho está hospitalizado, entregue à negligência médica num hospital público.  E, a princípio, estará destinado a uma emergência durante uma semana. É bem conhecida de meus leitores, especialmente dos mais obstinados, a minha hipersensibilidade às flutuações e à fragilidade da vida. É na crise que ela aflora ainda mais; a vida não me passa despercebida, nem eu passarei por ela sem apreendê-la.
Em O capelão do Diabo (livro que constitui uma coletânea de ensaios cujos temas variam da clonagem à educação), Richard Dawkins, um dos mais brilhantes cientistas da atualidade, defensor inveterado do darwinismo, escreveu, à página 29, num ensaio intitulado O capelão do Diabo:

“Por razões absolutamente darwinianas, a evolução nos legou um cérebro que se avolumou até o ponto de se tornar capaz de compreender a sua própria origem, de deplorar suas implicações morais e de lutar contra elas. Toda vez que usamos a contracepção, demonstramos que o cérebro pode contrariar os desígnios darwinianos. Se, como minha esposa me sugeriu, os genes egoístas são “doutores Frankenstein”, e a totalidade da vida, a sua criatura, somente nós podemos completar a fábula voltando-nos contra nossos criadores”.
(p. 29)

Com Dawkins, aprendemos que a seleção natural é um longo processo destruidor e cruel, que se caracteriza por tentativas e erros. Mas, é claro, a natureza não conhece a moral; não há ‘certo’ e ‘errado’ no domínio natural. Portanto, longe de dizer que a natureza é má ou cruel; ela é, apenas, indiferente, porque cega para o sofrimento das espécies. Felizmente, essa mesma seleção legou ao seres humanos a capacidade de discernimento, de compreensão; e sua consciência é capaz de voltar-se para si mesma; afinal, nós somos os únicos seres capazes de ter autoconsciência.
A despeito dessas vantagens de que somos herdeiros, não rompemos, de modo algum, o cordão umbilical que nos une à condição de animal. Somos, com Dawkins, “animais humanos”. Donde se conclui que nossa vida é intrinsecamente natural, ou seja, somos complexos físico-orgânicos integrantes da natureza. Não escapamos e nem escaparemos, malgrado os avanços da ciência em pesquisas genéticas, ao envelhecimento, à doença e à morte.
Você, leitor, que está, agora, lendo este texto, não pode evitar esta verdade: somos todos filhos da natureza, de seu grandioso e espetacular processo de seleção e, portanto, somos seres produzidos, ou nascidos – se assim o preferir – para a morte.
Não podendo escapar a essa herança e uma vez arremessados à existência sem poder escolher as condições em que querem nascer e em que irão viver, os homens devem fazer a si mesmos, tendo em conta as pressões ou condições socioculturais, evidentemente. Eles se lançam como projeto, consoante ensina Sartre. A finitude da existência, a brevidade e fragilidade da vida é o que a torna irresistivelmente atraente e valorosa.
A insensibilidade da natureza, a sua impassibilidade são compensadas pela capacidade dada aos homens de se emocionarem. Os homens são seres de emoção. Emoção é movimento. Existir é movimento. É exteriorização. É expansão para fora. É “ex-istire”, ou seja, sair de si, abrir-se ao ser. Em suma, existir é estar em relação com. O que mais desejam os homens, independentemente de sua origem social e cultural, senão a felicidade? Acontece que a felicidade assume muitas formas e não existe senão no domínio social (que é cultural e econômico).
O gozo da felicidade está, para os artistas, em seu próprio trabalho artístico; para os médicos, no empenho em salvar vidas; para os pais, na felicidade dos próprios filhos. E eu poderia seguir enumerando o que a felicidade é para diversas classes de pessoas. E certamente eu haveria de enumerar muitas formas de felicidade. No entanto, parece-me existir uma felicidade comum a todos os homens e ela se chama AMOR.
Não vou, contudo, me ocupar desse tema novamente. Às vezes, convém deixar que o AMOR vá, como naquela canção de Ana Carolina (“será que é tão difícil aceitar o amor...”). Quando nos detemos no AMOR, ele tende a nos escapar; basta olhar para ele, que se torna indefinível ou imperscrutável. Melhor é experienciá-lo nas suas entranhas; lá onde o seu ser reside e onde morre o sofrimento, e a dor se cala. Diante do AMOR, é melhor, às vezes, silenciar, calar-se, apenas para ouvir o seu silêncio, que nos abrange; para admirar o seu espetáculo que nos contém, nos absorve.
A fragilidade da vida é compensada pela força do AMOR. Que seria desta vida sem ele? Que seria de nós se, em face das tragédias desta existência árdua, não pudéssemos gozar do conforto nos longos e acolhedores braços do AMOR? O AMOR é a-natural, num sentido específico: ele nega a morte para sonhar com a eternidade. E me dirão, é claro: não há eternidade na natureza; com efeito, a vida natural é incompatível com a eternidade, que é delírio, que é herança de nossa imaginação – outra capacidade especificamente humana. A eternidade é filha da linguagem, do desejo. Mas também o AMOR, que se estende para além do tempo, que não se cerceia, que não se comprime; que contém e não pode ser totalmente contido. A existência mesma não contém completamente o AMOR, pois que ele lhe escapa, transbordando-lhe.
Há sinais de AMOR na natureza? Sim, algumas espécies nos dão testemunho dele, quando do cuidado com suas crias. O AMOR resiste à indiferença da natureza, anima-nos em face da inevitabilidade da morte, encoraja-nos diante da astúcia do fado – este arqueiro cego, que nos lançou à vida nus e indefesos, mas dotados da faculdade de conhecimento: aqui está outra fonte de felicidade que dignifica o humano e faz dele um “erro” aspirante, uma contra-força no domínio tirânico de sua herança natural.
A capacidade para a linguagem, em sua forma escrita, foi algo que me aconteceu; minha sensibilidade à linguagem, às diversas formas de expressão lírica de que minha alma é fonte abundante foi algo que me aconteceu. Se tive alguma participação no aperfeiçoamento dessa capacidade, ela só foi possível graças às pessoas que me propiciaram as condições necessárias para tanto. A minha vida, há muito, tem estado imersa na linguagem; vida e linguagem, em mim, são indissociáveis. É no seio da linguagem que me desnudo: aí eu me encontro mergulhado no mistério do AMOR. Ainda que haja discrepância entre as representações de mundo de que sou responsável, ao usar a linguagem para emocionar, fertilizar, e as experiências nas quais todo o meu ser está imerso, essa discrepância não chegará a macular a decência que há em minhas palavras. Se aí também podemos ver as mãos habilidosas da natureza, devemos reconhecer-lhe seu poder grandioso: é dela que nasce o espírito.