segunda-feira, 16 de maio de 2011

                                       Desafios docentes

Acho que peso muito sobre a vida; minha alma é densa demais, é repleta demais para que a vida a abrigue. Sua fragilidade é tão evidente, mas muitos de nós fingem não notá-la. Ignoram-na. O nascimento de um ser humano é um acontecimento de resistência à morte; é a vitória da vida sobre ela. No entanto, poucos se apercebem disso.
Ainda me agarro a ideais; fico grudado neles e custa-me desapegar-me. Eles, às vezes, dificultam o vagaroso e consistente percurso dos projetos, certamente mais sólidos e tangíveis. De resto, os ideais são frágeis e dissolúveis; podem evaporar-se nas calorosas emoções.
A palavra paixão foi definida diferentemente na tradição filosófica. Aristóteles chamava paixão a toda ação que se sofre; daí se deduz a ideia de passividade; para Descartes, paixão recobre os estados afetivos impressos na alma,  ou melhor,  no cérebro.
Modernamente, paixão tanto pode designar uma tendência que anula a vontade e a razão, como uma tendência que as reforça, que as potencializa. A paixão em meu espírito cumpre esse último papel: é potencializadora.
Minhas palavras ficaram mergulhadas num silêncio repressor por longo tempo, simplesmente porque se me calou no espírito a paixão. Fui acometido de um resfriamento espiritual que me tornou ausente de mim mesmo. Faço-me presente em mim quando escrevo; as palavras promovem o reencontro de mim comigo mesmo, na medida em que me motivam a externar meus pensamentos e os sentimentos que se vão acumulando ao longo do tempo em que me mantive silenciado.
Acredito em que a vida torna-se insossa e pesada, porque nos fadiga, nos atrofia e nos cerceia a vontade de potência, sempre que nos vemos privados de paixão. É movido pela paixão que exerço a docência e é com paixão, afinada com a razão, harmonizada com o bom-senso, com o espírito crítico, que combato toda forma de preconceito, discriminação e superstição.
Se a existência dos homens se expressa senão através de projetos; se os homens são um projeto, que se reinventam no decorrer de suas inúmeras experiências de vida; se nos resta senão a liberdade de escolhas, considerando-se sempre as condições socioculturais, econômicas e ideológicas em que tais escolhas se tornam mais ou menos possíveis, então sou forçado a admitir que meu projeto intelectual é promover sempre uma tensão, um desequilíbrio, uma desestabilização de nossas crenças mais arraigadas, de nossos padrões de pensamento, de nossas ideias engessadas, enferrujadas e enraizadas.
Como professor-pesquisador, estudioso e leitor tenaz, filósofo das horas vagas, inconformado num mundo de conformados, imponho-me dois desafios: o ensino da leitura crítico-emancipatória (e de sua contra-face escrita desafiadora); e o combate ao preconceito linguístico. Desenraizá-lo da consciência social dos brasileiros não constitui tarefa fácil; e, talvez, pretender que uma sociedade dividida em classes como a nossa se livre do preconceito linguístico seja uma utopia. Não obstante, tal reconhecimento não deve frustrar o admirável trabalho, que consiste na formação de professores de português suficientemente instrumentalizados teórica e metodologicamente para que, atuando no ensino escolar, do nível fundamental ao médio, possa: a)  trabalhar a variação linguística como um fato inegável na heterogênea sociedade brasileira; b) discutir (com os alunos) a adequação/ inadequação de uso de uma ou outra variedade linguística; c) sensibilizá-los para o fato de que não existe uma norma culta; ou melhor, que sua existência é meramente ideológica, já que ela é um ideal de correção linguística; d) ensinar-lhes que não há, de um ponto de vista estritamente linguístico, erro ao usar a língua, mas que as noções de certo e errado resultam de julgamentos socioculturais (em geral, preconceituosos) que as camadas mais favorecidas da sociedade (que detém o poder econômico e político-ideológico) fazem dos usos linguísticos das camadas menos favorecidas; e) mostrar-lhes que também entre os membros das classes mais favorecidas há censura mútua relativamente ao seu comportamento verbal, na base de um ideal de correção linguística, etc. As lições podem ser multiplicadas, é claro.
Ontem, assisti a uma reportagem, divulgada no Jornal do Sbt  apresentado por Carlos Nascimento, sobre a apresentação, em um livro didático destinado ao ensino de português no nível escolar, de variantes linguísticas como “nós vai no cinema”. A autora do livro, que na entrevista, exibia uma formação adequada em Linguística, salientou a importância de discutir essas variantes em termos de adequação de uso. No próprio livro, se achavam observações sobre a possibilidade de uso dessas variantes.  Mas o apresentador Carlos Nascimento ironizou dizendo que agora ele deveria usar “nós vai apresentar” e os telespectadores “vai assistir”. A ignorância quanto às contribuições da sociolinguística no tocante à descrição da heterogeneidade linguística do Brasil e ao combate do preconceito linguístico é um fato geral em nossa sociedade, infelizmente reforçado por aqueles que podem ser incluídos na classe dos intelectuais, como os jornalistas.
Recomendo ao leitor interessado a leitura de alguns livros do professor e pesquisador Marcos Bagno – um dos mais renomados especialistas de Sociolinguística no Brasil -, entre os quais estão O Preconceito Linguístico e Nada na Língua é Por Acaso.
A par do combate ao preconceito linguístico, reside em meu espírito a força sempre renovável para o ensino da leitura, ou seja, da atividade de produção de sentidos para um  texto.  O primeiro problema com que o professor se vê à volta é fazer com que o aluno se desapegue da superficialidade linguística do texto. Com efeito, o esforço docente se destina a levar o aluno a transcender o nível da materialidade linguística do texto, para atingir o nível dos implícitos, dos silenciamentos.
Numa aula com alunos do curso de pedagogia, na faculdade onde trabalho, a fim de ensinar que o leitor experiente é agente de sua leitura, pois que capaz de produzir sentidos para o texto e não “captar” ou “pinçar” sentidos previamente existentes, propus uma frase simples como:

(1) Maria chegou.

Como nenhuma atividade linguística se dá fora de contextos sociais, disse-lhes que reconhecessem (1) como um enunciado, de modo que tivessem de recuperar, pelo menos, as duas instâncias: a) o produtor e b) o receptor.
Posteriormente, solicitei que produzissem uma interpretação dos seguintes pares, tendo em conta uma continuação cognitivo-conceitual entre as duas partes:

(a) – Maria chegou.
      - Podemos ir.

(b) – Maria chegou.
       - É melhor se esconder.

(c) – Maria chegou.
       - Estou salva.

(d) – Maria chegou.
       - Agora, estou perdida!

Para (a), alguns alunos sugeriram que Maria era aguardada para que todos pudessem sair juntos; outros disseram que Maria ficaria encarregada de cuidar das crianças, enquanto os pais estavam fora. Para (b), Maria representava alguma ameaça para alguém e, por isso, essa pessoa devia se esconder. Alunos houve que sugeriram que Maria seria surpreendida com uma festa. Para (c), alguns alunos disseram que Maria iria ajudar numa situação complicada. Para (d), o interlocutor espera que Maria o repreenderá por alguma coisa que ele fez de errado.
Suponhamos que sabemos ser Maria a irmã mais velha do interlocutor. Então, munidos dessa informação contextual, poderíamos dizer que em (a) Maria ficaria encarregada de cuidar de seu irmão mais novo. Em (b), poderíamos dizer que a irmã de Maria fez alguma coisa de errado e que, para evitar a bronca, deveria se esconder. Em (c), Maria ajudará a irmã a solucionar um problema (um exercício de matemática complicado). Em (d), ao contrário, ela representa um problema, uma ameaça (a irmã manchou involuntariamente o vestido de Maria).
O que o exercício revela é que, para que possamos atribuir sentido a uma dada sequência linguística, precisamos reconstruir contextos. Tais contextos são de ordem sociocognitiva. Portanto, dizem-se contextos sociocognitivos. Precisamos saber a respeito dos papéis sociais desempenhados pelos interactantes, as imagens recíprocas que fazem de si mesmos e uns dos outros, que conhecimentos partilham entre si, que expectativas também são partilhadas, etc. Cada qual deles possui uma informação pragmática que será negociada e modificada na interação verbal. Essa informação diz respeito ao conjunto de conhecimentos de que dispõem referentes à situação comunicativa (papeis sociais dos interlocutores, grau de intimidade entre eles, saberes compartihados, etc.). Dada a escassez de informações necessárias à interpretação dos pares de enunciados, cabe ao leitor reconstruir um contexto sociocognitivo que lhe permita produzir um sentido. Por isso, interpretar, isto é, produzir sentido é ir além do material linguístico, sem, contudo, dispensá-lo.

Um comentário:

  1. Oi Bruno!
    Só desperta paixão de aprender quem tem paixão em ensinar já dizia Werneck... O envolvimento, contextualizar as relações em sala de aula é muito importante... Os desafios são enormes, mas vejo que consegues trabalhar isso bem, fugindo do mero instrucionismo, do preconceito lingüístico e assumindo uma tarefa que se tornou tão difícil em nossas escolas que é formar leitores críticos e que consigam produzir textos com um mínimo de sentido. Metodologia utilizada bem interessante... Gostei!
    Bjusss

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