segunda-feira, 7 de março de 2022

"Estou longe de conhecer o ateísmo na condição de resultado, menos ainda como conhecimento: em mim ele é compreensível na qualidade de instinto". (Friedrich Nietzsche)




Aos adoradores do Insondável

 

  aquela senhora ajoelhada defronte do altar tendo entrelaçado nas mãos um terço? Ela reza a Deus com a voz silenciosa do pensamento suplicante... Quem a fita de longe cogita da representação que ela faz de Deus. Quem é Deus para ela, além de um mero interlocutor suposto na sua imaginação e forjado na caldeirinha de sua afetividade? ...

Interrompo meus estudos sobre a Filosofia Medieval, especificamente sobre as contribuições filosófico-teológicas do Pseudo-Dionísio, para escrever este breve texto, com o fito de dizer aos que insistem em sugerir que devo retornar ao seio do Altíssimo que é por conhecê-lo filosófica e teologicamente melhor do que vocês pensam conhecê-lo, por força dos ensinamentos doutrinários da Igreja, que o nego com todas as forças de meus nervos, que o nego com toda vivacidade do tutano de meus ossos, com todos os axónios de meu cérebro; mas não o nego por revolta ou birra infantil. Nego-o na condição de quem consumiu muitas horas e dias em meditações aturadas sobre o problema filosófico de Deus,  na condição de quem, por isso, sente-se autorizado pelos homens mais sábios da história do pensamento a fazê-lo; nego-o, portanto, como instância ontológica, nego-o como uma espécie de Pessoa transcendente com quem é possível manter um relacionamento humano, nego-o como Criador do mundo, nego-o como fonte da Vida e do Ser, nego-o como a resposta pronta e definitiva para todas as nossas agruras, para todas as questões viscerais da existência; nego-o porque a vida pulsante do dia a dia é um testemunho gritante de sua inexistência - ou, se preferirem, quiçá porque a inexistência de Deus lhes pareça uma verdade insuportável - , é um testemunho estridente de sua ausência e indiferença abissal (que, no entanto, se deixa sentir por todos os cantos do mundo, entre os gemidos dos inocentes que sofrem e morrem sem razão, nas lágrimas cálidas e dolorosas daqueles que pranteiam a morte absurda de um filho); nego-o também porque a vida do dia a dia é uma missiva aberta de denúncia da Insanidade, da futilidade, da insignificância cosmológica de que é tecida a existência humana e a história; nego-o como a figura tirânica, ciumenta, narcísica cunhada pelo imaginário popular que, aliás, afronta toda a seriedade e escrutínio das especulações teológicas e filosóficas que animavam o espírito de grandes pensadores em debates calorosos por séculos a fio.

Quem me quer como ovelha recobrada de Deus deve saber que habitamos dois campos de sentido, isto é, dois “mundos” radicalmente distintos e incomensuráveis. Não frequentei um curso de filosofia durante 6 anos, ao longo do qual mantive contato com a rica e interessante filosofia cristã para deixar-me seduzir e persuadir pelas admoestações dos servos da tradição apologética decantada em missas e em cultos. Deus, para mim, é apenas um conceito, um objeto-de-discurso, uma ficção cultural, ou, como o define Castoriadis, uma significação. Interesso-me pelo problema filosófico de Deus ou do Divino, que é polimórfico. No Ocidente, por contingências históricas, o Divino é representado na forma sígnica “Deus”, que encerra em si significados cunhados no imaginário-simbólico judaico-cristão. O conceito de Deus tem uma materialidade histórica, enfeixa uma materialidade de sentidos derivados de uma memória discursiva que, ao longo de milênios, em disputas políticas, teológicas e ideológicas, foi se formando e dando a este conceito sua espessura semântica e histórica como alguns a conhecem hoje. Por isso, é inútil tanto pretender calar-me quanto pretender converter-me à velha fé já sepultada por mim. E não me cuidem arrogante; afirmo-me apenas como um livre pensador, um pensador refratário a toda forma de dogmatismo. Conviver com as diferenças, com a pluralidade de modos de viver e de opiniões ou crenças não significa curvar-se à tirania das tolices das multidões. E, por fim, erra crassamente quem julga ser o filósofo um sábio ou - nos termos do vulgo - um “sabichão”. O filósofo é, desde a Antiguidade grega, o amante da Sophia, é aquele que mantém com a sabedoria uma relação profundamente erotizada. E como todo amante, que mais ama quanto mais o objeto amado lhe resiste ao desejo de posse, o filósofo ama permanentemente a sabedoria porque jamais a possui. O erotismo filosófico repousa sobre a busca da sabedora e nessa busca permanente e infindável ele se anima, se inflama. A todo pretenso saber de teólogos, sacerdotes e seus acólitas contraponho aquela famigerada máxima socrática, que constitui o marco de toda atitude verdadeiramente filosófica: “só sei que nada sei”. O maior perigo é ignorar que não se sabe nada daquilo que se afirma saber. Deus sabe quantos cemitérios foram abertos como custo alto pago por essa forma de ignorância!

  

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