Se é
verdade que a subjugação não é uma invenção humana, já que ela se exerce nos
modos parasitários, é igualmente verdade que a sujeição da natureza pelo homem
transformou radicalmente a natureza da sujeição. Pela ação do homem, a sujeição
afeta não apenas os processos ecológicos, mas também o princípio
eco-organizador da vida. Mas a natureza subjugada não é, no entanto, passiva;
ela responde à sujeição imposta pelo homem interferindo drasticamente em suas
condições de vida. A natureza reage à sujeição humana através das variações
ecológicas, tais como seca, gelo, inundações que provocam desastres e fome,
epidemias... Assim, quanto mais o homem domina a natureza mais ela o domina
também, mais ela o lembra de seu devido lugar na ordem universal.
O
homem é um animal tão insignificante na ordem universal, que pode ser morto por
um microrganismo bastante simples, que se situa na fronteira entre a matéria
viva e não viva - um vírus. Sinto-me, deveras, espantado de ver como este
animal ufano não se aperceba disso (e não seja tomado de assombro!) na sua vida
diária, sempre muito atarefada, sempre entulhada de afazeres que só lhe servem
para evitar que sucumba ao tédio ou ao desespero. Se insisto em lembrar ao meu
semelhante à insignificância radical de sua condição existencial, não é para
humilhá-lo ou aviltá-lo, mas para esclarecê-lo sobre a insensatez de sua
conduta, sobre a loucura, a estupidez, a desmesura, a incúria de seu modo de
ser e viver; é para esclarecê-lo, em suma, sobre o fato de que os valores e os afetos que
governam seu agir levam-no, com frequência, a chafurdar no autoengano e em
aborrecimentos que, contemplados à luz de seu destino tumular, são sem
importância alguma. A morte, essa credora implacável, a tudo revoga, a tudo
confere um caráter de futilidade , nadidade e insignificância. Meu exercício
espiritual de todas as manhãs consiste não em orar a Deus (hábito comum e
motivado pela empedernida vaidade humana), mas em me lembrar que não sou um ser
necessário, que minha existência é contingente e insignificante para a economia
da ordem cósmica. Agindo assim, me poupo de grandes aborrecimentos e evito dar
excessivo valor às coisas e à minha autoimagem.
Sinto muito,
cristãos!
Uma das descobertas sólidas e, por
isso, mais persistentes ainda hoje, feitas pelos estudiosos do Novo Testamento
e dos cristianismos primitivos, nos últimos 200 anos, é que os seguidores de
Jesus, durante a vida deste, não o viam como Deus, mas como completamente
humano. As pessoas do século I d.C, tempo em que viveu Jesus, viam-no como um
rabino, um profeta; outras o consideraram o messias, porém muito humano. Ele
nascera numa Galileia rural e não era muito diferente dos demais judeus. Jesus
foi criado em Nazaré e não se destacou muito em sua juventude. Quando adulto,
sobretudo, ele passou a acreditar - como, aliás, muitos outros judeus de seu
tempo - que vivia perto do fim dos tempos. Como um profeta judeu apocalíptico,
Jesus acreditava que Deus interviria no curso da história para derrubar as
forças do mal e instituir o reino do bem aqui na terra. Jesus sentiu-se como o
mensageiro do apocalipse vindouro e passou todo o seu ministério público
pregando esta mensagem. Pelo menos, até que causou profundo descontentamento
nas autoridades governantes durante sua viagem a Jerusalém, sendo preso e
julgado pelo governador da Judeia, Pôncio Pilatos. De um rápido julgamento,
seguiu-se sua condenação. Considerado um agitador político, Jesus foi condenado
à morte ignominiosa por crucificação. Para os romanos, a história de Jesus
acabava por aí.
O fato é que os primeiros cristãos
chamavam Jesus de Deus num tempo em que imperadores romanos também eram
considerados deuses. Os judeus, embora fossem monoteístas, distinguindo-se,
notavelmente por isso, dos demais povos politeístas do mundo antigo, também
acreditavam que humanos podiam se tornar divinos e deuses podiam assumir a
forma humana. Mas foi apenas 300 anos depois da morte de Jesus, por volta de IV
d.C, que grandes pensadores do mundo romano passaram a acreditar na
transcendência do reino divino em relação ao reino humano. Antes dessa época,
predominava a crença de que os reinos humano e divino se situavam no continuum
vertical. Tais reinos se interpenetravam: humanos podiam assumir formas
divinas, embora ocupassem as camadas inferiores da pirâmide das divindades. Por
isso, para os primeiros cristãos, a maioria dos quais judeus convertidos, Jesus
não era Deus no sentido em que os cristãos modernos o concebem como Deus. A
maneira como o imaginário cristão moderno representa a divindade de Jesus é um
produto do século IV d.C., período em que o Império Romano iniciara o processo
de conversão do paganismo para o cristianismo.
A conclusão que não se pode recusar,
após estudarmos a história do desenvolvimento da fé cristã desde seus
primórdios até hoje, é que o Jesus histórico é muito diferente do Jesus
construído pela dogmática da Igreja, que a natureza supostamente divina de
Jesus é uma ficção histórica, ou seja, uma criação histórica. Essa mesma
história produziu a significação do Deus metafísico cristão, como o entende
Castoriadis.
O niilismo não é uma doutrina
filosófica; pelo menos, não é assim que o concebo. Entendo-o como uma espécie
de manifesto de desmitificação, ou, como tenho procurado pensá-lo em minha
pesquisa, entendo-o como um campo hermenêutico, à luz do qual tudo aquilo que o
ser humano toma como dotado de “ser”, de “objetividade”, de “substancialidade”,
ou que toma como algo originado de uma instância metafísica, aparece como
artifício, ficção, constructo, produto da instituição do imaginário-simbólico
que é ele mesmo instituído pelo domínio social-histórico. O “nihil” do niilismo
não pode, portanto, ser concebido como a contraparte ontológica do “ser”,
porque, dessa forma, prolongamos o hábito de pensar em termos de dualismos
metafísicos, ou melhor, continuamos a conferir o caráter de substância ao que é
ficção (criação, fabricação) imaginária. Ora, a própria substantivação “o nada”
opera, no âmbito semântico, a substancialização do “nada”, ou seja, “o nada” é
tomado, concebido, paradoxalmente, como algo ( um ente) que existe como o antípoda do “ser” ( é o não-ser - a contraparte do ser). A nadificação operada pelo niilismo
não se define no quadro das categorias metafísicas; “nadificação” deve ser
entendido como “dessubstancialização”, esvaziamento do caráter de ser, de
substância, de quididade, a fim de que aquilo que sofreu a nadificação apareça
como ficção imaginária, artefato, figura, signo, símbolo; em suma, significação
imaginária. Assim, “Deus”, “ser”, “nada”, “Estado”, “democracia”, “Essência”
são significações imaginárias (não da mesma ordem, já que se inscrevem em
campos de sentido diferentes; em todo caso, são significações criadas pelo
imaginário-simbólico). Mas significações imaginárias não são irrealidades, "fantasias"; elas
existem para a sociedade que as institui; existem como objetos-de-discurso,
funcionam como "coisas", "referentes" em determinados domínios discursivos. O imaginário depende do real
para existir, e o real não é possível sem o imaginário.
Tome-se o exemplo do modo como, em
nossa cultura, “vida” e “morte” são representados. O niilismo, como processo
histórico e antropológico de desmitificação, expõe, à luz do dia, o caráter
ficcional do dualismo da vida-morte, instituído pelo imaginário-simbólico
metafísico, fundante do modo de ser e das sensibilidades do homem ocidental.
Herdamos desse imaginário-simbólico metafísico a crença comum de que vida e
morte são polos antagônicos e excludentes entre si, ou seja, herdamos a crença
de que há uma relação de oposição e exclusão entre a vida e a morte, de sorte
que, nessa relação imaginária de oposição e exclusão, a morte não só é
representada como a antagonista da vida (a despeito de ela cooperar para o
equilíbrio biológico do ecossistema), mas também é negada pela sua
transfiguração em imagens como a de ‘passagem’, ‘caminho’ para uma outra vida
além-túmulo. Essas metáforas/imagens/simbolismos da morte são ficções, figuras,
significações geradas, produzidas na instituição do social-histórico, que é o
imaginário radical, o qual, por sua vez, é a matriz fundamental e originária de
todas as significações sociais imaginárias, uma vez que o imaginário radical é
criação, sob a forma de representação, de uma coisa ou de relações que não são dadas
na experiência sensível e imediata de mundo. É assim que Deus é uma
significação imaginária, produto do imaginário radical que constitui a base do
imaginário efetivo e do simbólico. Também “democracia”, “economia”,
“capitalismo”, etc. são ficções do imaginário social instituído. Essas “coisas”
não existem sem a instituição imaginária da sociedade. O niilismo, portanto, ao
declarar guerra aos valores superiores, a todo o imaginário produzido pela
metafísica ocidental, que levou o homem a se conceber, a se representar, a se
significar como um ser vivo superior e à parte da ordem natural, da totalidade
ecossistêmica da vida, “quebra” o “feitiço” do imaginário-simbólico, na medida
em que expõe seu mecanismo de funcionamento, na medida em que descerra o modo de
produção das significações imaginárias instituídas, as quais não aparecem como
tais nos processos sociais da vida comum, mas se transmitem sob a forma de
saberes inquestionáveis, sistematizados numa tradição, em doutrinas religiosas,
filosóficas, políticas, e cuja origem é metafisicamente justificada ou apagada
no próprio processo de constituição sócio-histórica da consciência individual.
Por não ser uma doutrina, o niilismo
se constitui historicamente em processos dialógicos com outras áreas do conhecimento
humano, apropriando-se de suas críticas, de seus conhecimentos, de seus
postulados a fim de compor o seu arsenal, seus arranjos, seu instrumental
crítico-corrosivo. É claro que, como todo empreendimento humano, o niilismo
envolve um risco, um perigo, já que não é imune à apropriação por tipos humanos
ou formações vitais movidos pelo ressentimento, pelo ódio à vida, pelo instinto
de negação divorciado da afirmação; todavia, é no horizonte do niilismo que se
devem travar as batalhas, que se deve afirmar a resistência, que se deve fazer
triunfar a vontade de viver sobre a vontade de morte, de nada; o niilismo é a
condição de possibilidade para novas instituições de sentidos, de valores, de
significações, em suma, de um imaginário-simbólico que promova a vida, que a
favoreça em face de seu irrecusável caráter trágico, que passa a ser então
afirmado, desejado, quero dizer, como jogo contínuo de complementaridade entre
criação e aniquilação, nascimento e morte, sofrimento e alegria, amor e ódio,
luz e escuridão. Pois que afirmar o trágico é afirmar o conflito, o jogo dos
opostos, dos antagonismos, mas também a complementaridade dos opostos, dos
antagonismos. Afirmar o caráter trágico da vida é reconhecer que no mundo
natural “não apenas uma reorganização permanente responde à desorganização
permanente, mas, sobretudo, que o processo de reorganização se encontra no
próprio processo de desorganização”. (Morin). Não há criação sem aniquilação,
como soube bem ver Nietzsche; e vida e morte estão numa relação inextricável de
cooperação e complementaridade - uma evidência que nos habituamos a ignorar - e
ignoramos porque, como sujeitos sociais, somos fabricados pelas instituições de
nossa sociedade, somos moldados pelo imaginário social instituído.
“Só vejo o devir” (Heráclito)
O trabalhador bem ajustado
socialmente quer unicamente encontrar em seu ralo e esquálido tempo livre
alguns momentos de distração. Ao chegar a casa, senta-se no sofá, e a televisão
se lhe oferece um cardápio de nossas tragédias humanas, que ele pronta e
servilmente degusta. A mais recente delas é a da chuva que arruinou a cidade de
Petrópolis (novamente). ( contam-se 130 mortos no silêncio indiferente do
Universo e de uma natureza que não dá sinais de remorso ou luto). O
trabalhador-telespectador bem ajustado aos padrões de comportamento, de
pensamento e de sensibilidades estabelecidos em sua cultura, forjada e
entretecida no simbólico-imaginário cristão, reage ao nefasto acontecimento
como todo mundo reage: “ meu Deus, tenha misericórdia!”. Como Deus não responda
aos insistentes apelos destes sapiens devotos e ávidos de encontrar uma ordem
moral do mundo, há que buscar os culpados entre os humanos a fim de justificar
o silêncio e a indiferença divinos. É certo que as chuvas volumosas, nesta época
do ano, costumam causar estragos; é certo que nossas autoridades governamentais
nada fazem para prevenir ou minimizar os impactos danosos de fenômenos naturais
como estes sobre a vida já flagelada e precária de populações inteiras de
sapiens, que são forçadas a residir em casas apinhadas em encostas. Já
conhecemos bem o roteiro: “depois que a porta é arrombada é que se preocupa em
colocar a tranca”. Num mundo que fosse obra de um Deus criador, como o Deus
judaico-cristão, teríamos, ao menos, o direito de dividir com ele a culpa pelo
sofrimento infligido a inocentes; mas num mundo como o nosso, obra do jogo do
acaso e da necessidade, onde grita uma natureza sábia e louca, ao mesmo tempo
cega, míope e onisciente, onde Dike (justiça) nasce da Hybris (desmedida),
temos o dever de assumir o nosso trágico destino como espécie de primatas entre
milhões de outras espécies existentes e nossa responsabilidade em ações e
omissões cujos efeitos acrescentam mais dor e sofrimento a um mundo que é por
toda parte jogo inocente do devir. Quantos, entretanto, entre os homo demens,
são capazes de suportar esta experiência estética do mundo, que é devir eterno?
Refiro-me àquele olhar artístico que Nietzsche pincelou em tão belas e potentes
palavras de refinada sabedoria trágica, fazendo-nos ouvir nas transpirações
delas o grito do sábio Heráclito:
“ NESTE MUNDO, SÓ O JOGO DO ARTISTA E DA CRIANÇA
TEM UM VIR À EXISTÊNCIA E UM PERECER, UM CONSTRUIR E UM DESTRUIR SEM QUALQUER
IMPUTÇÃO MORAL EM INOCÊNCIA ETERNAMENTE IGUAL. E, ASSIM COMO BRINCAM O ARTISTA
E A CRIANÇA, ASSIM BRINCA TAMBÉM O FOGO ETERNAMENTE ATIVO, CONSTRÓI E DESTRÓI
COM INOCÊNCIA - E ESSE JOGO JOGA-O O EÃO CONSIGO MESMO. TRANSFORMANDO-SE EM
ÁGUA E EM TERRA, JUNTA, COMO UMA CRIANÇA, MONTINHOS DE AREIA À BEIRA-MAR, CONSTRÓI
E DERRUBA: DE VEZ EM QUANDO, RECOMEÇA O JOGO. UM INSTANTE DE SACIEDADE: DEPOIS,
A NECESSIDADE APODERA-SE OUTRA VEZ DELE, TAL COMO A NECESSIDADE FORÇA O ARTISTA
A CRIAR”.
Nietzsche
Como convencer os leitores mal dispostos para com a
filosofia de Schopenhauer de que a imagem que tradicionalmente lhe é
construída, em conformidade com a qual ele é representado como um filósofo
efusiva e profundamente pessimista, cujo olhar está inteiramente devotado a nos
expor o pior da existência, não só não faz jus ao refinamento de seu gênio, à
sua aptidão lírica e cirúrgica para nos esclarecer sobre nossos habituais
autoenganos, sobre nossas ilusões acerca de quem somos e de nosso lugar no
mundo, bem como também ensombrece as mais profundas lições sobre a precariedade
e vaidade da condição existencial humana? Se, de fato, Schopenhauer assumiu ser
o viver um processo de desfazimento, de decadência que culmina com a eutanásia
da vontade (da vontade de viver), não o fez por um mero gosto estético pelos
aspectos sombrios, mórbidos e fúnebres da vida; o fez, sobretudo, com o intento
ético, nutrido por um solo metafísico exuberante que se destaca de uma paisagem
mística oriental, de nos libertar das ilusões, das quimeras que nos fazem
escravos, em nossa caverna cotidiana, de um ciclo de desejos sempre renováveis
e insaciáveis, que jamais nos dá a satisfação e a felicidade plenas e
permanentes que tanto anelamos durante nossa juventude, mormente. O curso
natural das coisas, a decrepitude de nosso corpo com o avanço da idade nos abrem
o caminho para o conhecimento da vaidade de todos os bens terrenos em cuja
busca consumimos, com ardor inquebrantável, a nossa vida. O amor próprio é
suplantado pelo amor aos filhos, graças ao qual os pais passam a viver mais em
função da imagem idealizada do eu alheio do que em função do ideal de seu
próprio eu. O niilismo, em Schopenhauer, longe de se reduzir à negação da
vontade, que, de modo algum, significa uma hecatombe da Vontade como
coisa-em-si, já que esta é indestrutível e eterna, se apresenta, entre as suas
vias de expressão, como meio pelo qual se expressa a purificação da vontade de
viver mediante o sofrimento. Sim, o sofrimento conduz à purificação, à viragem
da vontade e à redenção. O caminho da redenção é mais geral; o da viragem da vontade,
diz Schopenhauer, é mais restrito e difícil, porque supõe a empatia, a
solidariedade do indivíduo, naturalmente egoísta, com o sofrimento de todo o
mundo, só atingidas por uma forma de conhecimento intuitivo. A redenção só é
possível a todos porque a vida que leva à purificação pelo sofrimento é um
caminho aberto a todos. É certo, porém, que, muitas vezes, observa
Schopenhauer,
“Resistimos para nele entrar, mas
antes nos esforçamos com todas as forças para preparar para nós mesmos uma
existência segura e agradável, com o que nos acorrentamos ainda mais firmemente
à vontade de vida”.
Para Schopenhauer, a vida é também um processo de
purificação, e a solução purificante é a dor. A sabedoria “pessimista” de
Schopenhauer é equiparável à profundidade e sobriedade das sabedorias de vida
dos grandes sábios da Antiguidade, que combinavam melancolia com lucidez. Ela é
um bálsamo espiritual para a loucura do utilitarismo hedonista de nossas
sociedades hipermodernas que, em nome do acúmulo desenfreado de riqueza e da
busca do prazer efêmero no consumo, transformam o mundo inteiro numa imensa
reserva de bens a serviço da manutenção e reprodução de uma vida humana que se
consome na incessante destruição da reserva de bens que se destina a
sustentá-la:
“O destino e o curso das coisas
cuidam de nós melhor do que nós mesmos, na medida em frustram continuamente
nossos projetos de uma vida nababesca, cuja insensatez já se reconhece em sua
brevidade, inconstância, vazio e futilidade, e no fato de terminar numa amarga
morte; ademais, aparecem no nosso caminho espinhos sobre espinhos que apontam
em tudo o sofrimento salvífico, panaceia de nossa miséria”.
Eis o que defendo:
O imaginário radical, matriz de todas
as significações sociais e fundante da cultura ocidental, é produto da
metafísica que, já em Parmênides, tem como base a identidade entre pensamento,
ser e verdade. Platão e Aristóteles permaneceram fiéis ao pai parmenidiano.
Tanto Platão quanto Aristóteles tiveram de enfrentar o desafio sofístico. A
metafísica que moldará profundamente o modo de ser do homem nascerá desse
enfrentamento. A oposição de valores estabelecida por Parmênides entre o ser e
o não-ser e subvertida por Górgias será pela pena de Platão substituída por uma
nova oposição: o ser e o falso ser. A lógica de Aristóteles, que determinou os
fundamentos do pensamento do homem ocidental, depende de certos pressupostos
metafísicos. Assim, crê Aristóteles que a linguagem, cuja forma é a lógica,
revela a ordem essencial das coisas. Aristóteles estabelece a correspondência
entre a dimensão lógica e a ontológica: assim, articula-se o ser (como essência
e verdade primeira) à linguagem. Aristóteles afirma a identidade ao mesmo tempo
que rejeita a contradição. A matriz imaginário-simbólica que funda e trama a
cultura ocidental está centrada na produção da significação, na ficção do ser,
cujas origens remontam a Parmênides e cuja transmissão à posteridade se fez no
pensamento socrático-platônico-aristotélico pela via da metafísica cristã.
Nossa habitual crença no ser como identidade e verdade é produto da confluência
de dois imaginário-simbólicos: o socrático-platônico-aristotélico, herdado de
Parmênides, e o cristão, moldado no platonismo (então transformado em
platonismo para o povo). A afirmação do ser como verdade, como identidade
significa o esquecimento do devir; simboliza a vitória de Parmênides sobre
Heráclito e sobre os sofistas. Essa vitória de Parmênides sobre Heráclito e
sobre os sofistas é também a vitória de todo um imaginário social moldado na
metafísica platônico-aristotélica-cristã. Já conhecemos bem, por meio de
Nietzsche, como a metafísica e a moral platônico-cristã moldaram nosso modo de
ser como tipos humanos culturais. Talvez, contudo, não seja tão claro de que
modo Aristóteles faz ecoar a vitória de Parmênides sobre Heráclito e os
sofistas. Se Parmênides tomou o ser como lugar do pensamento verdadeiro,
buscando estabelecer a identidade entre pensar, dizer e ser, Aristóteles estava
interessado em garantir a possibilidade do conhecimento verdadeiro, para o que
ele propôs a identidade entre dizer e significar. Somente dizemos se
significamos algo, ou seja, dizer deve estar vinculado a um sentido. Dizer é
significar, e, se significar é não contradizer-se, então quem diz deve obedecer
ao princípio de não contradição. Aristóteles pensa ter estabelecido a verdade
da linguagem, a saber, o sentido. Quem fala sem sentido, a rigor, nada fala,
pois nada significa. Pela lógica cunhada por Aristóteles, habituamo-nos a crer
que há um vínculo inextricável entre ser e sentido, de sorte que, para ele e
para o imaginário fundante de nossa cultura, há um sentido verdadeiro nas
coisas, e esse sentido é desvelado na linguagem. Se há um sentido verdadeiro
que a linguagem revela, então há um sentido falso. Ora, o que Nietzsche soube
ver é que a lógica é fruto de um AGON, ou seja, de um campo agonístico de
produção de ficções. A lógica nasceu de um campo de combate, com suas regras
específicas. Nasceu de um campo de combate sustentado em ficções. O mundo da
lógica elide o mundo do fluxo, da impermanência de todas as coisas, das
sensações, das paixões, do corpo. Esse mundo da lógica é sustentado por uma
ficção primeira - a linguagem. A linguagem é o modelo a priori de inserção e
exclusão e, por isso, serve de paradigma para todos os outros modos de exclusão
vigentes. Uma vez que nem Platão nem Aristóteles conseguiram refutar os
sofistas, se encarregaram de inventar a categoria do “falso” ou o argumento do
sentido: “ ele não deve ser ouvido, porque é falso”; “ o que ele diz é contraditório,
e o que é contraditório não tem sentido”.
Se a raiz do niilismo da fraqueza,
conformado pelas forças reativas, pelas vontades de potência negativas, repousa
na crença no SER, que culmina com a produção de uma forma homem caracterizada
pela vontade de nada, o niilismo em sua forma ascendente, conformado pelas
vontades de potência afirmadoras, representa o caminho pelo qual todo o
edifício imaginário-simbólico moldado pela metafísica tradicional, que se forma
pela confluência de do pensamento de Parmênides, Platão, Aristóteles e o
cristianismo, entra em colapso libertando a existência do animal humano desse
mundo edificado em ilusões, que o fazem chafurdar no autoengano sobre sua
condição existencial no mundo, que o impede de reconhecer-se na origem da
criação do mundo de signos, significados, imagens, figuras que ele assume como
produto de forças que lhe são estranhas. Nadificar esse mundo que se constitui
pela projeção de significados humanos não é reduzi-lo a uma miragem, a um
simulacro, a um “nada”; mas dessubstancializá-lo, restituir-lhe o estatuto de
constructo, de artifício. O mundo do ser, o mundo em cuja origem, por força do
imaginário-simbólico socialmente instituído, o homem vê um Criador, um Deus
metafísico, é um mundo edificado, construído pela atividade humana que se
realiza pela inter-relação entre cultura, linguagem, percepção-cognição. Em
Nietzsche, não há criação sem aniquilação; aniquilar, destruir e criar são
formas de expressão da afirmação dionisíaca da vida. O niilismo não é apenas
máquina de destruição, de demolição dos alicerces de valor e sentido
metafísicos que deram e (ainda dão) sustentação à existência humana; é também
um campo de interpretação que libera as forças ativas, as vontades de potência
afirmativas e criadoras que se encarregam de fixar perspectivas e
interpretações que encorajam, potencializam o animal humano para o querer
jubiloso do devir, para a afirmação do caráter trágico ineliminável da vida,
sem concessão e recuo.
Dizer é significar
Dizer que os significados se produzem na interação social por meio da
língua, dizer que, ao usarmos a língua, negociamos significados, significa
dizer que o significado não está localizado nas palavras ou nos textos em si,
significa dizer que a relação significativa não se esgota na articulação do
significante (imagem acústica) com o objeto referido pelo signo, nem na
articulação entre os signos na cadeia sintagmática. A semiose, ou seja, o
processo pelo qual o objeto de um signo é sempre outro signo, é infinita.
Assim, quando se advoga que os significados sejam pensados como efeitos das
práticas discursivas, como construções sociocognitivas, como produzidos e
negociados na interação verbal, desloca-se o problema básico da semiótica, que
consiste em determinar como um signo significa, como um signo representa a
realidade, como o signo tem sentido, ou como é possível a experiência do
sentido através da linguagem, do âmbito de um realismo referencial, para o
âmbito sociocognitivo-interacional do discurso. Assim, o significado não é a
relação do signo com seu referente no mundo exterior. Se digo “Mônica está
dormindo”, num contexto em que alguém insiste em querer falar com “Mônica”,
produzo aí muito mais do que o significado proposicional ‘há alguém que está
dormindo e que se chama Mônica”. Comunico também “não convém perturbá-la”, “não
seja inconveniente”, “volte outra hora”, etc. Note-se que o signo complexo (o
enunciado) “Mônica está dormindo” é signo de outros signos complexos, tais como
“não convém pertubá-la”, “não seja inconveniente”, “volte outra hora”. Em
outras palavras, “Mônica está dormindo” significa muito mais do que o
estado-de-coisas representado na proposição realizada. O modo como meu
interlocutor reagirá ao ato de fala “Mônica está dormindo” indicará se ele
compreendeu, se aceitou ou não os significados produzidos e negociados nesse
contexto de interação. Evidentemente, todo e qualquer enunciado ocorre sempre
num contexto (ou supõe a mobilização de contextos sociocognitivos) e com um
co-texto, ou seja, vem acompanhado de outros enunciados ou sinais não verbais
que nos orientam na adequada reconstrução do sentido pretendido por nosso
interlocutor. É claro também que a construção ou a produção de sentido nas
práticas linguísticas é um processo muito mais complexo do que sugere este meu
exemplo, que é bastante esquemático. Quando entramos numa interação verbal,
entramos a fazer parte de um jogo de produção de imagens recíprocas que é , ele
mesmo, constitutivo dos significados negociados. Se, por exemplo, depois de
pedir para falar com Mônica, alguém me diz em tom ríspido “Ela está dormindo,
passe outra hora!”, não só compreendo que é inútil insistir em falar com
Mônica, que devo ir embora, como também julgo que o interlocutor é uma “pessoa
grosseira”. E é possível que meu interlocutor também construa uma imagem de mim
como “pessoa chata e impertinente”. Em suma, a significação é um processo que
extrapola o âmbito manifestamente linguístico, os significados se produzem para
além da superfície textual; os textos fornecem pistas, indicações para a
reconstrução dos sentidos, mas não os encerram, não os “aprisionam”, não os
esgotam. Dizer é significar para além do dito; os silêncios do dizer, os
silêncios que atravessam as palavras ditas, significam. A língua não é apenas
um sistema de signos; ela é muito mais do que isso: é lugar de interação
social, é atividade sociocognitiva de produção internacional de sentidos ou
significados.
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