Serei breve nas formulações linguísticas
que se seguem. Há instantes, ocorreu-me que, durante muito tempo, vivi como um
hipócrita em face da possibilidade inescapável de minha morte. Hoje, devo
admitir que tenho horror à perspectiva de morrer. Não, meu horror à morte não
decorre logicamente de um amor incondicional à vida; é muito mais um sintoma do apego
irracional a ela, que creio ser quase um registro instintivo da seleção natural no corpo dos indivíduos da espécie humana, ainda que existam seres humanos propensos a sublevar-se contra a subserviência que ele lhes impõe, quando cometem autocídio. Meu horror em face da morte é um sintoma de minha sede de
livros e de conhecimento. São tantos livros que quero ler e um mar inesgotável
e infindo de conhecimento a ser explorado... Seria necessário um número infindo
de vidas para atingir seu ponto culminante e final... Talvez, esse ponto final
sequer exista... O conhecimento é inesgotável, e a vida insuficiente, frágil,
fugidia... Mas deixo aqui um conselho:
para afugentar o tédio da vida diária - leia! Leia, leia, leia... para tornar
sua existência, humanamente precária e fadada ao abismo inescrutável da morte,
suportável, vigorosa, robusta, talvez um pouco menos absurda... Leia para se curar do
aborrecimento com as coisas triviais, com as importunações diárias da vida
comum... Leia, antes que seu cérebro atrofie ou se torne um alimento agradável aos vermes tumulares...
Um corpo que tomba
Guerras, por exemplo, podem ser objeto de estudos ou de considerações
feitos pelos mais variados especialistas: sociólogos, cientistas políticos,
historiadores, especialistas em relações internacionais... e filósofos. Guerras
podem ser avaliadas segundo parâmetros bem específicos, por exemplo, o
econômico, o geopolítico, o social, o militar... É raro, contudo, que os
diversos especialistas que são convidados a fazer suas considerações sobre o
desastre humanitário produzido pelas guerras as tomem do ponto de vista
filosófico. Somente o filósofo, especialmente aquele que tem algum pendor para
o existencialismo, ou é constituído por disposições afetivas trágicas e
pessimistas que apuram seu olhar sobre a condição humana, tornando-o quase
aquilino, pode ampliar o horizonte das considerações, a fim de iluminar a trama
de absurdidade dessa condição existencial.
Um míssil atinge as proximidades por onde uma família passava, e a
explosão provocada pelo impacto do projétil a mata instantaneamente. A mãe, o
pai e a criança são fulminados e seus corpos destroçados. Toda a rede afetiva e
simbólica que mantinha viva aquela família foi reduzida a fragmentos de corpos
que deverão ser recolhidos para serem enterrados. Tais fragmentos de osso,
tripas e carne serão decompostos por bactérias... voltarão a habitar o
corpúsculo de alguns vermes... E isso é tudo! E quantos miseráveis em nossas
megalópoles morrem diariamente sem que o Universo derrame uma única lágrima
sequer? As guerras internacionais, os genocídios humanos, as megalomanias de
tiranos, a miséria das periferias de nossas cidades, as doenças que matam as
pessoas que amamos e que, eventualmente, nos matarão também, ou os projéteis
desavisados que fazem corpos tombar numa rua, nos becos de uma favela - nada
disso perturba o silêncio do Universo, nada disso o demove de seu estado
abismal e insondável de indiferença. A brigada de bombeiros trabalha nos
escombros à procura de sobreviventes (embora recolham muitos cadáveres), após
um grande deslizamento de encostas que destruiu casas durante um temporal... e
eles trabalham debaixo de chuviscos... quando volta a chover mais forte,
precisam interromper seu trabalho... a natureza ou o universo obedece a leis
inflexíveis... ela não demonstra qualquer preocupação ou compaixão para com
seus filhos... a morte de 600 mil sapiens não a deixa órfã, não a entristece ou
a empobrece... é que a dura verdade que recusamos admitir é que somos
insignificantes para ela, somos insignificantes para o cosmos... Mas, da
perspectiva do Universo, não há vítimas nem culpados, ou melhor, à natureza não
se deve imputar qualquer culpa ou responsabilidade. O devir ou o real é uma
criança inocente que brinca o jogo do acaso e da necessidade, o jogo da criação
e aniquilação contínuos... A natureza é uma Mãe louca e sábia, onisciente,
onipresente, mas míope e cega... ela trabalha em favor das espécies e não dos
indivíduos, cujas vidas são insignificantes para ela... um indivíduo que morre
é um corpo que tomba, 600 mil indivíduos que morrem são para ela corpos que
tombam... e isso é tudo!
Chegamos a este universo sem que tenhamos decidido, nascemos numa época
e lugar sem que nos fosse dada escolha alguma... o acaso nos pôs aqui sem que
precisasse prestar contas ou dar razões... Por alguns anos, como vaga-lumes cósmicos
viajamos com outros seres humanos, com nossos pais, com nossos amigos, com
nossos inimigos, com nossos irmãos, com nossos filhos... viajaremos também com
outros organismos vivos, com bactérias, com vírus, com babuínos, viajaremos com
montanhas, estrelas, oceanos, auroras, quarks, fótons, supernovas, buracos
negros, telefones celulares, e com muito, muito, muito espaço vazio. Em algum
momento, deixaremos de ser viajantes, sairemos desse misterioso e perturbador
desfile cósmico, mas o desfile prosseguirá sem nós. Talvez, num futuro remoto,
outros viajantes venham participar do desfile e o deixarão... Daqui a bilhões
de anos, o desfile cósmico desaparecerá como um fantasma ao amanhecer, se
dissolverá no oceano de energia de onde se originou... E isso é tudo!
Sofro, padeço permanentemente, continuamente,
veementemente de ser incapaz de despertar no outro o amor à leitura, de ser
incapaz de fazê-lo sentir fascínio pelo misterioso e maravilhoso universo do
signo. Estamos atados a teias simbólicas que sustentam nossa existência e a
nutrem de sentido. Veja. Experimente determinar o significado de uma palavra,
por exemplo, como “flor”. Você só conseguirá conhecer seu significado através
de outro signo, ou de um encadeamento de outros signos. A semiose é ilimitada. A
ação do signo é a do crescimento ilimitado através de sua autogeração. Tudo
pode ser signo, ou seja, pode representar alguma outra coisa para alguém. Um
“livro” pode ser signo: pode representar fonte de conhecimento, caminho para
emancipação individual, “arma” contra a ignorância, etc. O signo está fadado a
germinar, a se desenvolver em um interpretante, que é outro signo num processo
ad infinitum. O objeto do signo não se confunde com a coisa material nem com a
causa material de uma sensação. Os signos podem ter muitos objetos, entre os
quais noções abstratas, evento, universais, etc. O signo é caracterizado por
uma incompletude intrínseca: ele jamais recobre todos os aspectos do seu objeto,
por isso é signo. O signo está sempre em falta com o seu objeto. Em virtude
dessa falta, o signo se desenvolve noutro interpretante (outro signo) onde
busca a completude, jamais passível de ser atingida. O interpretante, sendo de
natureza sígnica, jamais pode oferecer a completude exigida pelo signo; logo o
interpretante também está em dívida com o signo. O lugar lógico do objeto do
signo é, em última instância, a “realidade”, a qual se torna acessível ao homem
pela mediação dos signos. Mas, ao mesmo tempo, a realidade é que impulsiona a
semiose, o crescimento contínuo e sucessivo dos signos. O homem está fadado a
nunca conhecer nenhuma coisa em si, seu acesso ao real é sempre aproximativo; o
conhecimento que o homem tem da realidade é de natureza simbólica: seu
conhecimento se expressa como progressão infinita em direção da realidade que,
no entanto, jamais é imediatamente cognoscível.
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