sábado, 19 de março de 2022

Mais da metade da história da vida é apenas uma história de bactérias” . (Stephen J. Gould) (... E você aí se sentindo uma criatura especial de Deus...)





Serei breve nas formulações linguísticas que se seguem. Há instantes, ocorreu-me que, durante muito tempo, vivi como um hipócrita em face da possibilidade inescapável de minha morte. Hoje, devo admitir que tenho horror à perspectiva de morrer. Não, meu horror à morte não decorre logicamente de um amor incondicional à vida; é muito mais um sintoma do apego irracional a ela, que creio ser quase um registro instintivo da seleção natural no corpo dos indivíduos da espécie humana, ainda que existam seres humanos propensos a sublevar-se contra a subserviência que ele lhes impõe, quando cometem autocídio. Meu horror em face da morte é um sintoma de minha sede de livros e de conhecimento. São tantos livros que quero ler e um mar inesgotável e infindo de conhecimento a ser explorado... Seria necessário um número infindo de vidas para atingir seu ponto culminante e final... Talvez, esse ponto final sequer exista... O conhecimento é inesgotável, e a vida insuficiente, frágil, fugidia...  Mas deixo aqui um conselho: para afugentar o tédio da vida diária - leia! Leia, leia, leia... para tornar sua existência, humanamente precária e fadada ao abismo inescrutável da morte, suportável, vigorosa, robusta, talvez um pouco menos absurda... Leia para se curar do aborrecimento com as coisas triviais, com as importunações diárias da vida comum... Leia, antes que seu cérebro atrofie ou se torne um alimento agradável aos vermes tumulares...





Um corpo que tomba

 

Guerras, por exemplo, podem ser objeto de estudos ou de considerações feitos pelos mais variados especialistas: sociólogos, cientistas políticos, historiadores, especialistas em relações internacionais... e filósofos. Guerras podem ser avaliadas segundo parâmetros bem específicos, por exemplo, o econômico, o geopolítico, o social, o militar... É raro, contudo, que os diversos especialistas que são convidados a fazer suas considerações sobre o desastre humanitário produzido pelas guerras as tomem do ponto de vista filosófico. Somente o filósofo, especialmente aquele que tem algum pendor para o existencialismo, ou é constituído por disposições afetivas trágicas e pessimistas que apuram seu olhar sobre a condição humana, tornando-o quase aquilino, pode ampliar o horizonte das considerações, a fim de iluminar a trama de absurdidade dessa condição existencial.

Um míssil atinge as proximidades por onde uma família passava, e a explosão provocada pelo impacto do projétil a mata instantaneamente. A mãe, o pai e a criança são fulminados e seus corpos destroçados. Toda a rede afetiva e simbólica que mantinha viva aquela família foi reduzida a fragmentos de corpos que deverão ser recolhidos para serem enterrados. Tais fragmentos de osso, tripas e carne serão decompostos por bactérias... voltarão a habitar o corpúsculo de alguns vermes... E isso é tudo! E quantos miseráveis em nossas megalópoles morrem diariamente sem que o Universo derrame uma única lágrima sequer? As guerras internacionais, os genocídios humanos, as megalomanias de tiranos, a miséria das periferias de nossas cidades, as doenças que matam as pessoas que amamos e que, eventualmente, nos matarão também, ou os projéteis desavisados que fazem corpos tombar numa rua, nos becos de uma favela - nada disso perturba o silêncio do Universo, nada disso o demove de seu estado abismal e insondável de indiferença. A brigada de bombeiros trabalha nos escombros à procura de sobreviventes (embora recolham muitos cadáveres), após um grande deslizamento de encostas que destruiu casas durante um temporal... e eles trabalham debaixo de chuviscos... quando volta a chover mais forte, precisam interromper seu trabalho... a natureza ou o universo obedece a leis inflexíveis... ela não demonstra qualquer preocupação ou compaixão para com seus filhos... a morte de 600 mil sapiens não a deixa órfã, não a entristece ou a empobrece... é que a dura verdade que recusamos admitir é que somos insignificantes para ela, somos insignificantes para o cosmos... Mas, da perspectiva do Universo, não há vítimas nem culpados, ou melhor, à natureza não se deve imputar qualquer culpa ou responsabilidade. O devir ou o real é uma criança inocente que brinca o jogo do acaso e da necessidade, o jogo da criação e aniquilação contínuos... A natureza é uma Mãe louca e sábia, onisciente, onipresente, mas míope e cega... ela trabalha em favor das espécies e não dos indivíduos, cujas vidas são insignificantes para ela... um indivíduo que morre é um corpo que tomba, 600 mil indivíduos que morrem são para ela corpos que tombam... e isso é tudo!

Chegamos a este universo sem que tenhamos decidido, nascemos numa época e lugar sem que nos fosse dada escolha alguma... o acaso nos pôs aqui sem que precisasse prestar contas ou dar razões... Por alguns anos, como vaga-lumes cósmicos viajamos com outros seres humanos, com nossos pais, com nossos amigos, com nossos inimigos, com nossos irmãos, com nossos filhos... viajaremos também com outros organismos vivos, com bactérias, com vírus, com babuínos, viajaremos com montanhas, estrelas, oceanos, auroras, quarks, fótons, supernovas, buracos negros, telefones celulares, e com muito, muito, muito espaço vazio. Em algum momento, deixaremos de ser viajantes, sairemos desse misterioso e perturbador desfile cósmico, mas o desfile prosseguirá sem nós. Talvez, num futuro remoto, outros viajantes venham participar do desfile e o deixarão... Daqui a bilhões de anos, o desfile cósmico desaparecerá como um fantasma ao amanhecer, se dissolverá no oceano de energia de onde se originou... E isso é tudo!





Sofro, padeço permanentemente, continuamente, veementemente de ser incapaz de despertar no outro o amor à leitura, de ser incapaz de fazê-lo sentir fascínio pelo misterioso e maravilhoso universo do signo. Estamos atados a teias simbólicas que sustentam nossa existência e a nutrem de sentido. Veja. Experimente determinar o significado de uma palavra, por exemplo, como “flor”. Você só conseguirá conhecer seu significado através de outro signo, ou de um encadeamento de outros signos. A semiose é ilimitada. A ação do signo é a do crescimento ilimitado através de sua autogeração. Tudo pode ser signo, ou seja, pode representar alguma outra coisa para alguém. Um “livro” pode ser signo: pode representar fonte de conhecimento, caminho para emancipação individual, “arma” contra a ignorância, etc. O signo está fadado a germinar, a se desenvolver em um interpretante, que é outro signo num processo ad infinitum. O objeto do signo não se confunde com a coisa material nem com a causa material de uma sensação. Os signos podem ter muitos objetos, entre os quais noções abstratas, evento, universais, etc. O signo é caracterizado por uma incompletude intrínseca: ele jamais recobre todos os aspectos do seu objeto, por isso é signo. O signo está sempre em falta com o seu objeto. Em virtude dessa falta, o signo se desenvolve noutro interpretante (outro signo) onde busca a completude, jamais passível de ser atingida. O interpretante, sendo de natureza sígnica, jamais pode oferecer a completude exigida pelo signo; logo o interpretante também está em dívida com o signo. O lugar lógico do objeto do signo é, em última instância, a “realidade”, a qual se torna acessível ao homem pela mediação dos signos. Mas, ao mesmo tempo, a realidade é que impulsiona a semiose, o crescimento contínuo e sucessivo dos signos. O homem está fadado a nunca conhecer nenhuma coisa em si, seu acesso ao real é sempre aproximativo; o conhecimento que homem tem da realidade é de natureza simbólica: seu conhecimento se expressa como progressão infinita em direção da realidade que, no entanto, jamais é imediatamente cognoscível.

 


Nenhum comentário:

Postar um comentário