terça-feira, 4 de setembro de 2018

"A realidade é meramente uma ilusão apesar de ser uma ilusão muito persistente." (Albert Einstein)


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  O meu olhar sobre o incêndio no Museu Nacional
O que as labaredas nos revelam sobre a condição humana?



O dia 2 de setembro de 2018 será marcado historicamente como o dia em que o Brasil e o mundo viram, com profundo pesar, um vasto acervo histórico (com mais de 20 milhões de itens) ser quase completamente consumido pelas chamas de um incêndio por cuja prevenção nossas autoridades políticas nada fizeram, a despeito dos inúmeros alertas feitos sobre a necessidade de adoção de medidas que, se não evitassem o incidente, contribuíssem, ao menos, para diminuir seus danos. Todos os jornais nacionais e internacionais, ao tratar o incidente como uma tragédia, não cessaram de sublinhar a ideia de que o incêndio no Museu Nacional representa uma perda lastimável de um patrimônio cultural cuja importância é reconhecida por toda a humanidade. Enquanto a maioria das pessoas, especialistas ou leigos, acompanhando a mídia em suas avaliações estereotípicas, pelas quais o incidente foi categorizado, por exemplo, como “uma devastação da história, da ciência, das artes e da memória brasileira”, reproduz a ideia de que um patrimônio cultural  foi destruído, eu gostaria de chamar a atenção para um aspecto muito mais profundo e trágico que a grande maioria das pessoas não soube reconhecer, ao assistir, incrédulas e pesarosas, às chamas consumindo o Museu. O meu olhar sobre o triste incidente é um olhar filosófico; é, portanto, uma forma de interpretação cuja elaboração e densidade ontológica não é imediatamente acessíveis aos não filósofos.
As pessoas, em geral, ao reproduzirem a ideia de que o incêndio no Museu Nacional representou a perda de um “patrimônio cultural”, pressupõem, em sua fala, o seguinte significado de “cultura”: conjunto de instituições como a arte, a literatura, a música, a dança, a ciência, a religião, etc. É o que estudiosos como Milton Bennett chamam de cultura objetiva. A cultura objetiva – também chamada de cultura material – encerra tudo que é produzido pela atividade humana e que por ela é transformado. Essa dimensão da cultura é acessível à experiência sensível dos membros de uma sociedade. Quando as pessoas comuns falam, então, de “patrimônio cultural”, estão se referindo a essa herança cultural material que é comum a uma sociedade. Mas cultura também apresenta uma face subjetiva. Nesse caso, Bennett fala em cultura subjetiva como o conjunto de crenças, valores, conhecimentos, ideologias; enfim, símbolos que modelam e informam a vida das pessoas nas relações que estabelecem entre si em sociedade. Não pretendo levantar um inventário das inúmeras propostas de conceituação da cultura. Quero apenas frisar que a cultura recobre mais do que os produtos das atividades artísticas, literárias, científicas, políticas do homem; ela constitui um grande sistema de atitudes, valores, normas, que estruturam as experiências do homem. Ela compreende um sistema de símbolos e significados. É nesse domínio semântico do termo cultura que devemos reconhecer o papel da linguagem ou do símbolo.
A faculdade da linguagem, ou seja, a capacidade que os homens têm de usar uma língua constitui a condição de possibilidade do desenvolvimento da cultura. De fato, a linguagem humana é produto da cultura, mas, ao mesmo tempo, não existiria cultura se o homem não fosse capaz de usar a linguagem articulada. Decerto, a cultura é um processo cumulativo, resultante de toda uma experiência histórica das gerações anteriores (concepção que é subjacente ao conceito de “patrimônio cultural”). Mas esse processo cumulativo historicamente constituído não seria possível sem a linguagem. Todo comportamento humano se origina no uso dos símbolos. Foi graças à ordem simbólica que os ancestrais antropoides se tornaram homens. Toda cultura depende, portanto, dos símbolos. É o exercício da faculdade de simbolização que criou a cultura e foi por meio do uso dos símbolos (palavras) que foi possível sua perpetuação.  Sem a linguagem verbal, não haveria cultura, e o homem seria apenas um animal.
De modo algum, pretendo dar a entender que o homem não seja um animal, que não pertença à natureza tanto quanto os demais animais, ou que seja ontologicamente superior ao animal. Como todo animal, também o homem deve manter uma relação adaptativa com o meio ambiente, a fim de sobreviver. Mas, como seja um ser biológico destituído de instintos, o homem precisa adaptar-se ao meio ambiente adotando outro caminho. Esse caminho é o da produção da cultura. Geertz sustenta que todos os homens são geneticamente aptos para receber um programa, o qual se chama cultura. A cultura se desenvolveu simultaneamente com o equipamento biológico do homem e, por isso, deve ser compreendida como uma das características da espécie homo sapiens sapiens juntamente do bipedismo e de um adequado volume cerebral.
Graças à linguagem e à cultura, o homem pôde se desprender da ordem natural, tomar distância de si e do mundo para exercitar a reflexão sobre ela, sobre o mundo e sobre si mesmo. A ordem simbólica é que torna possível ao homem refletir sobre seu próprio lugar no universo. É claro que, desde que o homem existe como efeito da emergência da palavra, ele se tornou um ser desnaturado e iludido sobre sua real condição no Universo. Ora, na medida em que a linguagem permitiu ao homem a construção de imensos edifícios de representação simbólica que se sobrepõem e parecem se elevar à ordem natural como gigantescas presenças de um outro mundo – o mundo do simbólico -, o homem pôde produzir os mais diversos sistemas de significados historicamente constituídos - entre os quais os mais importantes são a religião, a filosofia, a arte e a ciência -, a fim de que encontrasse amparo e sentido numa existência que,  se contemplada como um acontecimento puramente biológico e/ou natural, o levaria, muito provavelmente, à terrificante angústia e desespero total.
A emergência da palavra, ou o surgimento da ordem simbólica, rompe a suposta harmonia entre o homem e a natureza; desfeita essa harmonia, os caminhos pré-formados se perderam e a adaptação tornou-se inviável. Mas não nos enganemos: a preexistência de um mundo natural ao surgimento da ordem simbólica é uma ilusão. Esse mundo natural, essa totalidade ordenada de entes que existem independentemente do homem, não constituía ainda um mundo (uma totalidade significativamente ordenada) sem a linguagem.
Quero enfatizar, tendo em vista o que até aqui expus, que a importância da linguagem simbólica consiste em tornar possível ao homem uma transcendência, a qual consiste no desarrancamento do homem das relações imediatas com a natureza e na ascensão dele a regiões que permaneceriam inacessíveis, caso seu fato de ser no mundo estivesse circunscrito à experiência cotidiana. Como muito perspicazmente ensina Cassirer (2012, p. 48):


O homem não pode mais confrontar-se com a realidade imediatamente; não pode vê-la, por assim dizer, frente a frente. A realidade física parece recuar em proporção ao avanço da atividade simbólica do homem. Em vez de lidar com as próprias coisas, o homem está, de certo modo, conversando consigo mesmo.



Um conceito bastante esclarecedor de cultura nos é apresentado por Roberto DaMatta. Nele, o autor deixa-nos entrever ser a dimensão simbólica o fundamento da cultura:

Cultura é um conceito-chave para a interpretação da vida social. Cultura é, em Antropologia Social e Sociologia, um mapa, um receituário, um código, através do qual as pessoas de um dado grupo pensam, classificam, estudam e modificam o mundo e a si mesmas. É justamente porque compartilham de parcelas importantes deste código (cultura) que um conjunto de indivíduos, com interesses e capacidades distintas e até mesmo opostas, transformam-se num grupo e podem viver juntos sentindo-se parte de uma mesma totalidade. Podem, assim, desenvolver relações entre si porque a cultura lhe forneceu normas que dizem respeito aos modos mais (ou menos) apropriados diante de certas situações”.


Iluminada a necessidade de não limitarmos nossa compreensão de cultura ao seu aspecto material, que significado filosófico é possível trazer a lume a partir da experiência do incêndio no Museu Nacional? Ora, uma das funções da cultura é proteger o homem contra o terror que adviria da apreensão psicofisiológica de sua verdadeira condição no mundo. Uma das formas de que se servem os homens em sociedade para se proteger dessa visão aterradora, pode ser contemplada no espanto de Becker, em seu A negação da morte (2012, p. 228), com o fato de as pessoas suportarem fazer o que fazem.

Houve época em que eu ficava imaginando como é que as pessoas aguentavam trabalhar em torno daqueles infernais fogões em cozinhas de hotéis, o frenético torvelinho de servir uma dúzia de mesas ao mesmo tempo, a loucura do escritório de um agente de viagens no auge da temporada de turismo, ou a tortura de trabalhar o dia inteiro na rua com uma perfuratriz peneumática, num verão calorento. A resposta é tão simples, que nem a percebemos: a loucura dessas atividades é exatamente a da condição humanaElas estão “certas” para nós, porque a alternativa é o desespero natural. A loucura diária desses empregos é uma repetida vacina contra a loucura de hospício. Veja a alegria e a disposição com que os trabalhadores voltam das férias para suas rotinas compulsivas. Mergulham no seu trabalho com tranquilidade e alegria, porque o trabalho abafa algo mais sinistro. Os homens têm que ficar protegidos contra a realidade. Tudo isso levanta outro gigantesco problema para um marxismo sofisticado, ou seja: qual é a natureza das obsessivas negações da realidade que uma sociedade utópica irá proporcionar, para evitar que os homens enlouqueçam. (grifo nosso).


Estando o homem submetido ao regime da linguagem, do qual ele jamais pode sair, e tendo produzido esse vasto sistema de símbolos e significados que constitui o “mundo” próprio do homem, onde sua vida mesma acontece - isto é, a cultura -, é ele mesmo responsável por produzir toda uma série de crenças ilusórias que o conservam num estado persistente de torpor e autoengano.
Quando, por exemplo, ele se permite pensar na morte, os sistemas de crença complexos que estão a guiá-lo nesse exercício nunca o levam a pensar em si mesmo como um excesso de bagagem. O homem quase nunca, ao se defrontar com a certeza de sua morte, exercita seu pensamento até o ponto em que se convença de que não é mais do que um simples instrumento para transmissão do DNA. No entanto, se levasse sua reflexão sobre a sua própria morte até seus verdadeiros primórdios – a morte das células individuais -, seria forçado a admitir uma conclusão que, a muitos dos indivíduos de sua espécie, parecer-lhes-ia sombria e terrificante: cada um dos indivíduos da espécie humana é insignificante na condição de um organismo participante da totalidade do universo.
Do ponto de vista biológico, a despeito do que costumamos pensar, a morte não apareceu simultaneamente com a vida. A morte não é inextricavelmente ligada à definição de vida. As primeiras formas de vida, conhecidas hoje como bactérias, eram imunes à morte programada. Assim, os organismos unicelulares são, a rigor, imortais, porque não estão programados para morrer. Isso se deve ao fato de a morte programada ser consequência da reprodução sexuada e da pluricelularidade dos organismos. Ao longo de centenas de milhões de anos na escala evolutiva, o uso do sexo como um meio de reprodução foi acompanhado, na linha evolutiva que leva aos seres humanos, pela geração do DNA reprodutivamente irrelevante. O DNA só tem um único objetivo: reproduzir-se. A insignificância radical do indivíduo foi literariamente descrita por Schopenhauer e pode ser sumariada na formulação “quando um indivíduo morre, a natureza em seu conjunto não fica mais doente”. De fato, somente a sobrevivência da espécie interessa à natureza. Quando nossas células germinativas conseguem transmitir seu DNA à geração seguinte, nossas células somáticas e cada um de nós, você e eu, se tornam irrelevantes. Cada um de nós - eu e você - deixa de ter uma função biológica, por isso nossas células e nós mesmos devemos morrer para que a mudança possa ser transmitida à geração seguinte.
Depois que um número razoável de nossas células germinativas tiveram a oportunidade de transmitir seu DNA reprodutivo à geração seguinte, o resto de nós e nosso superestimado eu somático se tornam um excesso de bagagem, uma excrescência que deve ser eliminada. É esta a origem da senescência – o envelhecimento gradual e programado das células e dos organismos que elas compõem, independentemente dos acontecimentos do ambiente. A vida, nessa perspectiva, não é mais que um sistema autorregulador cujo desenvolvimento se realiza por meio dos processos de reprodução e de destruição de organismos que, por sua vez, não são mais do que máquinas de sobrevivência programadas por seus genes para satisfazer o “interesse” do conjunto desses genes, qual seja, a perpetuação nas gerações futuras.
Mas o que tudo isso tem a ver com o significado filosófico que tento iluminar a partir da consideração do incêndio no Museu Nacional? Esse significado profundo só vem a lume quando levamos em conta a insignificância radical do homem e de sua atividade, de sua obra, de seu trabalho, de seus esforços a partir do domínio de referência do Universo do qual o homem não é mais que um organismo biológico a cuja sorte esse Universo é completamente indiferente. O patrimônio cultural que se perdeu, cujo valor é incalculável, só tem importância única e exclusivamente para o homem. As chamas que consumiram o legado de todo um trabalho de pesquisa científica, que destruíram todos (ou quase todos) os registros materiais da existência de tantos outros homens e seres que, num passado remoto, produziram e se reproduziram em complexas relações com outros tantos homens e seres na superfície dessa pálido ponto azul chamado Terra revelam que é somente o homem o único ser vivo ontologicamente capaz de se preocupar com a preservação da memória de sua existência. Para todo o resto, digo, para todos os demais seres, para todo o Universo, a vida humana não passa de uma luz de vela que, tendo sido acesa no curso de terrificantes cataclismos cósmicos, combustões e processos de aparecimento e desaparecimento de espécies, brilha por um lapso de tempo breve para ser necessariamente apagada na vasta escuridão de um Universo desprovido de sentido e de memória.
As chamas que consumiram o Museu Nacional pareciam querer nos comunicar uma verdade que insistimos em ignorar (ou que permanece recalcada em nós): somos nós os únicos a reivindicar a nós mesmos o significado de nossa obra, de nossos rastos, de nossas dores, de nossas produções, de nossas lutas, de nossos sacrifícios, de nosso trabalho. É somente quando nos apreendemos como uma parte ínfima do Universo e quando somos absorvidos no silêncio de sua indiferença e na ausência de sua memória que podemos mensurar o que significou o incêndio do Museu Nacional. Os políticos que, seja por negligência, seja por desprezo, não ouviram os apelos daqueles que clamavam pela preservação do patrimônio cultural que o Museu representava, participam, mesmo sem o saber, dessa mesma tragédia humana que, vista da perspectiva do indivíduo imerso na cotidianidade mediana, assume a forma de uma tragicomédia, que é a vida de cada um de nós, organismos biologicamente sofisticados que anseiam por encontrar significado, sentido onde a Natureza ou o Universo se representa, aos espíritos argutos, como um bufão que expõe continuamente o ridículo que há no inveterado hábito do autoengano.


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