
Granjeio
filosófico
Uma única chance para que eu pudesse contar-me,
dizer-lhe a que venho – sou uma história ínfima na imensidão de um universo
escuro e indiferente... Não tenho eu qualquer pretensão de ser lembrado pela
História... A minha insignificante história já me é demasiado pesada... (por
que quereria eu ser co-responsável pela marcha de tão terrível História?) Para
o ser humano, a vida se decide no instante, pois todo instante reclama-lhe a
liberdade, um ato (que pode ser seu último)... num instante, se descortina ou
se eclipsa seu horizonte de possíveis... cada instante é, no entanto, um novo horizonte de possíveis... Entre dois
nadas – o passado e o futuro – se faz a vida em seu contínuo desfazimento; vida
é desfazimento (quantas perdas! Quantos desenlaces! Quantas contínuas, pequenas
e comuns mortes!); o real? É o próprio presente.
Disseram que você é uma pessoa legal, mas
não foi por isso que decidi solicitar-lhe uma “amizade virtual” (que, em
pouquíssimo tempo, se torna um número esquecido entre outros). Conheci algumas
poucas pessoas legais; mas não conheci ainda uma pessoa ilegal. Os ilegais são
os que vivem à margem das tendências sistemáticas, das forças domesticadoras,
dos automatismos massificadores; são os que não se deixam arrastar pela marcha,
com seus passos compassados em seu movimento sincronicamente arregimentado –
marcha em que todos são como todos, em que todos ignoram a todos; marcha para a
qual o único caminho é a congênita indiferença humana. Dizem que os ilegais são
transgressores, conturbadores da ordem política, criminosos; tais como eu os
entendo no presente contexto, porém, eles são criadores, tanto na esfera
pública, quanto na privada; criam a si mesmos, criam como artistas a vida,
assumindo-se como verdadeiramente livres, a despeito de, neste ato criador,
aprofundarem sua solidão (e não é na solidão que se experiencia a verdadeira
liberdade?).
A legalidade do amor condenou-o a este estado
de entorpecimento contagioso de seus praticantes, que não se percebem como
reprodutores de uma ordem à qual raramente fazem resistência. Não vê como se
comportam os amantes? Eles se escorregam por seus corpos (amores líquidos,
fluidos, escorregadios; gozos intensos, efêmeros, vadios). Todos os amantes
começam a se amar na legalidade (seguem os mesmos scripts, as mesmas normas);
mas rapidamente se cansam, se entediam um do outro. A legalidade os esteriliza;
tornam-se infecundos e se apressam por buscar as mesmas formas de divertimentos
conformadas com a legalidade. Todo amor, em seus tempos germinais, é legal;
todos os amantes são legais; prometem um ao outro viver fielmente na legalidade
pela qual se pauta a relação. Em pouco tempo, a legalidade os torna cansativos
um para o outro. Amar na ilegalidade não é entregar-se a traições, a
concupiscências; é dar à relação as condições para seus gestos espontâneos, é
dar seu sentido de autonomia em declarada resistência à heteronomia pela qual
as relações humanas são continuamente adestradas. Se quiser, um dia, amar profundamente
e ser amada, deixe de crer no amor; não há nenhum sentido salvífico nele;
nenhuma profundidade. Só podemos amar o amor não crendo mais nele, aliviando-o
dos aguilhões das nossas fantasias; libertando-o – se preferir- dos grilhões
das ilusões que sobre ele produzimos. Amá-lo na ilegalidade; só assim amaremos
em sua fecundidade (se houver alguma...).
Não pode imaginar quão custoso me é
escrever-lhe isto. Hoje, como de costume, fiquei ocupado com os livros. Mas a
leitura não transcorria sem alguma inquietação. Pressinto o abismo mais próximo
de mim. Apesar disso, tenho de escolher (estou, como todo ser humano sartreano,
“condenado a ser livre”). Extravagâncias! Desmesuras! Excrescências! Ímpetos
vãos! Hábitos comuns quando me deixo seduzir pela astúcia da linguagem e por sua
irresistível nudez que me desregula os estados de espírito. A vaidade de todas
as coisas humanas me assombra, embora me seja tão familiar. Sinto-me, agora, o
mais tolo dos homens que se conservam sobre a terra; quiçá, esteja a rir-se de
mim. Contudo, tendo ainda trinta e três anos, posso permitir-me ser
pateticamente esquisito. Insisto nesta minha tolice íntima para perguntar-lhe
se me daria o privilégio de conhecê-la pessoalmente.
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