A linguagem que não vemos
Contra a ingênua visão instrumentalista da língua
Parte 2
Este texto
se pretende um prosseguimento do texto intitulado A gramática que não
aprendemos, postado neste blog.
Nesta oportunidade, vou-me esforçar por argumentar contrariamente a uma
visão reducionista de língua, segundo a qual ela é um instrumento de
comunicação. Sigo a tendência comum, nos estudos funcionalistas, de não fazer
distinção entre língua e linguagem e usarei os dois termos indiferentemente
para designar um tipo específico de sistema semiótico. Necessário é
observar que, ao usar o termo linguagem, refiro-me à linguagem verbal.
Pretendo
aqui demonstrar a relação necessária entre linguagem, cultura,
percepção-cognição na fabricação da realidade, na constituição do pensamento e
na construção do conhecimento. Desse modo, viso a contribuir para que a
compreensão do papel e da importância da linguagem na vida do homem seja
alargada, de modo que se supere a visão limitada e equivocada da linguagem como
instrumento de comunicação de pensamentos. Quando enfocada na dinâmica social,
a linguagem deve ser encarada como uma atividade, como uma prática, como uma
forma de ação no mundo e sobre os outros. Pelo uso da língua, nós agimos, executamos
atos de linguagem, com os quais influenciamos ou modificamos o comportamento do
outro. A língua é lugar ou domínio de inter-ação social.
Começarei
situando minha discussão sobre as questões recobertas pelo complexo fenômeno da
relação mútua entre linguagem, cultura, percepção-cognição na perspectiva do
funcionalismo desenvolvido por Michael Halliday, linguista australiano de
origem britânica que, em trabalho conjunto com estudiosos como Ruqaiya Hasan,
Christian Mitthiessen e Geoff Thompson, tem se dedicado, desde 1970, a uma intensa
produção de estudos sobre a linguagem e o seu ensino, recobertos pela
designação Linguística Sistêmico-Funcional (LSF). Não teciono resenhar à
exaustão o modelo de Halliday, mas tão só apontar os postulados e conceitos que
balizarão as reflexões que se seguirão.
O
termo funcionalismo recobre um conjunto heterogêneo de abordagens sobre a
linguagem que, no entanto, compartilham entre si dois postulados: a
necessidade de estudar a língua em uso e a primazia da função sobre a
forma. Embora não negligenciem a descrição da estrutura da língua, os
linguistas cujos trabalhos se desenvolvem na esteira do funcionalismo insistem
em que se deve dar prioridade à compreensão das funções a que serve a língua. O
princípio basilar por que se norteiam os estudos funcionalistas pode ser
expresso da seguinte forma: o uso da língua influencia e/ou determina a
forma dos seus enunciados. Para os funcionalistas, as escolhas linguísticas
que fazemos, a configuração estrutural de nossos enunciados são influenciadas
pelas funções que cumpre a língua nos mais diversos contextos sociais de
interação.
A
LSF, sendo uma abordagem da linguagem marcadamente social, enfoca a língua em
uso nos mais variados contextos sociais. Revelando uma face sistêmica –
portanto, não deixando de integrar em seu modelo uma análise das relações entre
os diferentes estratos da linguagem, perspectiva esta à luz da qual a gramática
é entendida como uma rede de escolhas -, a LSF, porque também é funcional,
compreende a linguagem em sua relação necessária com a estrutura social e se
estriba na tese, segundo a qual nós usamos a linguagem para satisfazer
determinadas necessidades sociais.
Halliday
está, particularmente, interessado em compreender como a língua se estrutura
com vistas à satisfação de necessidades relacionadas ao seu uso social em
contextos social e culturalmente definidos. Nunca é demais insistir em que a
coluna vertebral dos funcionalismos, em Linguística, assume a forma da tese segundo
a qual o uso influencia a forma da língua. Em outras palavras, os
funcionalistas, ainda que proponham modelos teóricos diversos e nem sempre
comensuráveis, estão de acordo quanto à proposição segundo a qual a forma que
assumem nossos enunciados é influenciada pelas necessidades decorrentes do uso
a que eles sevem. De acordo com essa perspectiva, a linguagem é um a forma de
interação social. De fato, sustentam os funcionalistas que uma das funções a
que seve o uso da língua é permitir que seus usuários interajam em sociedade. A
abordagem funcionalista da linguagem prevê que os falantes usam a língua para
atuar no mundo, para agir uns sobre os outros, para influenciar o comportamento
uns dos outros.
Vale
lembrar que não é minha intenção cobrir todos os postulados do funcionalismo
proposto por Halliday, tampouco descer a pormenores sobre as dimensões
teórico-metodológicas da LSF. A decisão por começar referindo a contribuição de
Halliday e por apresentar, em linhas gerais, o que é o funcionalismo em Linguística
foi motivada pelo reconhecimento da importância que têm suas reflexões para a
pavimentação dos caminhos que nos conduzirão à compreensão da relação
intrínseca e recíproca entre linguagem, cultura, percepção-cognição.
Antes
de pontuar as ideias que me parecem lançam alguma luz sobre essa relação,
gostaria de considerar a concepção de Halliday de linguagem como semiótica social. Halliday nota que,
acima de tudo, a linguagem é um sistema social ou cultural produtor de
significados, os quais servem para construir a realidade. De acordo com essa
visão, a linguagem é indissociável do contexto sócio-cultural em que ela é
usada, e a cultura, que é uma dimensão desse contexto, deve ser vista também
como um sistema semiótico (um sistema de significados).
É
necessário esclarecer que, em semiótica, devemos distinguir, segundo Halliday,
três aspectos que lhe são intrínsecos: o físico, o biológico e o social (Halliday & Mathissen, 1999, p. 507). A semiótica designa o estudo científico
das propriedades dos sistemas de comunicação, seja naturais, seja artificiais.
Desde de Peirce (1834-1914), a semiótica, como parte da abordagem filosófica da
linguagem, recobria o estudo dos sistemas de signos e símbolos em geral. Mais
recentemente, a semiótica passou a abrigar uma análise da comunicação humana
interessada em todos os seus modos de percepção - audição, visão, tato e
olfato.
Na
Europa, especialmente, a análise semiótica se desenvolveu como parte de um
trabalho destinado a compreender todos os aspectos da comunicação tomados como
sistemas de sinais, ou seja, sistemas semióticos. A língua está entre os
sistemas semióticos, produzidos culturalmente. Outros exemplos de sistemas
semióticos são: a música, a alimentação,
o vestuário, a dança, a arte, a religião, etc.
Para
Halliday, a linguagem é um sistema semiótico mais geral, visto que é uma
linguagem natural, falada por seres humanos e aprendida como língua materna.
Deve-se destacar, nesse sentido, a propriedade que tem a linguagem de servir à
tradução de todos os demais sistemas semióticos. Seu uso supõe um ambiente
físico, um organismo biológico capaz de produzir sinais e uma ordem social de
relações interativas que lhe garante significado. Na visão funcionalista, os
significados são construídos interacionalmente. A interação social pela
linguagem se expressa na forma de negociação de significados. Ao usar a língua,
os falantes estão, constantemente, negociando significados.
Halliday
nos ensina que, quando buscamos investigar de que modo a linguagem se relaciona
com a cultura, ou ainda, quando buscamos compreender como se manifesta a
relação necessária, indissociável e dinâmica entre esses dois domínios do
universo social, impõem-se ao reconhecimento fatos que nos despertam para o
papel fundamental que a língua/linguagem cumpre em nossas vidas. Elenco,
abaixo, esses fatos:
1) O uso da
linguagem serve não só para estruturar as nossas experiências de mundo, mas
também para dar sentido a elas;
2) A linguagem torna possíveis as
nossas interações com outras pessoas;
3) O uso da linguagem não só serve para
moldar a realidade, mas também para defendê-la contra os que a ela se opõem;
4) A
linguagem toma parte do mecanismo perceptual-cognitivo e cultural de fabricação
da realidade e serve ao homem para que essa mesma realidade de cuja construção
ela participa seja por ele examinada.
Convém,
pois, insistir em que, de um ponto de vista funcional, o significado é
construído na interação social pelo uso da língua, e não é algo que as
expressões linguísticas comportam.
Tomemos
a relação entre linguagem e contexto, dada a importância que este conceito
desempenha na abordagem funcionalista. A relação entre linguagem e contexto não
deve ser concebida como a relação entre o quadro e sua moldura. O contexto não
é uma moldura ou cenário onde os eventos linguísticos acontecem. Linguagem e
contexto são interdependentes, e este último limita nossas escolhas
linguísticas.
Não
me alongarei sobre o significado de contexto no funcionalismo, embora eu
precise enfatizar que esse conceito alicerça toda abordagem funcionalista de
linguagem. Mesmo não tencionando pormenorizar seu significado, não poderia
deixar de notar que, para o que se segue, necessário se faz reconhecer, na
noção de contexto, uma interface cognitiva. Sem negar o entorno
biofísico-social, é necessário reconhecer que sua influência sobre o uso da
língua só se dá numa forma semiotizada, porque representado em modelos mentais
em que se organiza todo um complexo de conhecimentos e crenças, alocado em
nossa memória. Esses modelos consistem em conjuntos estruturados de formas de conhecimentos,
crenças, valores adquiridos pelos usuários da língua nas mais diversas
experiências sócio-culturais de que participam.
Tanto
a linguagem quanto o contexto social são, assim, entendidos como abstrações que
se complementam. Assim, a construção sócio-cultural e semiótica da realidade
não se dissocia da construção do sistema semiótico que é a linguagem. A
linguagem, como sistema semiótico, codifica a realidade, visto que, “nosso
ambiente é moldado pela cultura e as condições em que nós aprendemos a
linguagem são, de modo geral, culturalmente determinadas” (Halliday, 1978, p. 1-3; p. 23). Para Halliday, a realidade é construída por meio da troca de
significados na interação social, e os significados tornam-se constitutivos da
própria realidade. Compreendendo os significados como componentes constitutivos
da realidade, Halliday advoga a necessidade de pensarmos a linguagem como uma
atividade produtora de significados, a qual toma parte, de modo indissociável,
da dinâmica de nossas experiências vitais. A linguagem é, assim, inseparável do
próprio viver, que, no homem, se manifesta num mundo social. Halliday, contudo,
não nega que a linguagem sirva para construir e representar experiências
pessoais, mas ele insiste em que é próprio da linguagem tornar possível e
manifestar a dimensão intersubjetiva das experiencia humanas.
Mesmo
incorrendo na inconveniência de eu ser repetitivo, reitero a ideia de que a
linguagem atende a diversas demandas sociais, a fim de sinalizar para uma outra
característica fundamental da língua: ela é uma rede de sistemas funcionais.
Em outras palavras, o uso da língua se manifesta por meio de enunciados ou
textos que cumprem funções múltiplas. Toda
unidade linguística é multifuncional. Trata-se de um axioma que dá
coerência e coesão às diferentes abordagens funcionalistas. Trata-se de um
principio que norteia as reflexões desenvolvidas na corrente de estudos
funcionalistas.
Não
posso deixar de notar a dimensão da importância que Halliday atribui à linguagem,
ao considerá-la como uma realidade constitutiva do próprio viver. Para ele, não
é possível ao homem dar uma ordem (estrutura, organização, sentido) às suas
experiências de mundo que seja diferente da ordem que ao mundo impõe a
linguagem. O homem, pela linguagem e na linguagem, dá ordem às suas
experiências de mundo, e esse mundo não conhece outra ordem senão a que a
linguagem lhe impõe. Disso se segue que Halliday não hesita em propor definir a
experiência em termos de linguagem. Para ele, a experiência é a realidade que
os indivíduos constroem para si mesmos mediante a língua.
Antes
de pôr termo a esta seção, quero tecer algumas considerações sobre o significado da dimensão sistêmica da língua no modelo da LSF. Na LSF, a língua é um
complexo sistema semiótico que se organiza em vários níveis ou estratos.
São
três estratos diferentes que dão forma ao sistema. Eles se organizam segundo o
grau de abstração: o semântico, o léxico-gramatical e o grafo-fonológico. Cada
estrato é uma rede de relações de escolhas em termos de som, fraseado
(estruturas gramaticais e itens lexicais) e significado. Esses estratos se
relacionam pelo mecanismo de realização.
Na
concepção de língua como rede sistêmica, a semântica constitui o nível-base,
que é realizado pelo estrato léxico-gramatical ou fraseado; este, por sua vez,
é realizado pelo sistema grafo-fonológico ou sistema de som-grafia. A
léxico-gramática e a semântica, que constituem o plano do conteúdo, permitem a
expressão indefinida do potencial de significados da língua. O termo potencial é importante na compreensão
do mecanismo de realização A
realização é um conceito que se refere à relação entre os diferentes sistemas
que compõem a língua. Cada um desses sistemas ou camadas define um potencial,
ou seja, um conjunto de possibilidades – um potencial de significado, um
potencial de fraseado e um potencial de expressão.
O
potencial de significado é realizado tanto no potencial de fraseado quanto no
potencial de expressão. Um sistema, portanto, redunda no outro. Um não existe
sem o outro. Eles se determinam mutuamente.
Acrescente-se
que as opções semânticas constroem as opções contextuais e estas são
construídas pelas opções léxico-gramaticais. Assim também, as escolhas
semânticas são ativadas pelas contextuais e, ao mesmo tempo, ativam as opções
léxico-gramaticais.
A
linguagem, por conseguinte, realiza um sistema semiótico mais abstrato, qual
seja, o contexto social. A realização é, pois, um processo de re-codificação ou
simbolização, o que supõe um processo de construção e reconstrução mútua entre
a linguagem e o contexto social, ou seja, a linguagem constrói o contexto e é
por ele construída; ela o reconstrói e é por ele reconstruída.
Halliday
vê o texto como uma instanciação das escolhas léxico-gramaticais. O texto,
quando cotejado com a cultura, é menos abstrato, e os significados que o
estruturam são mais abstratos do que os fraseados que os expressam. O texto é o
que se pretende significar, tendo em conta o potencial de escolhas de
significados. O texto realiza as escolhas operadas no nível semântico por
intermédio da léxico-gramática. Por
instanciação, devemos entender uma dimensão abstrata que realiza o movimento
contínuo do significado entre os estratos do sistema.
A
gramática, na LSF, é uma rede de sistemas de escolhas.
Sem
supor ter esgotado o tema relativo à visão funcionalista de linguagem,
sistematizada na LSF, noto, em síntese, que a linguagem cumpre um papel
fundamental no desenvolvimento psicossocial e intelectual humano, visto que é
por meio do seu uso que os padrões sócio-culturais são transmitidos, que os
indivíduos aprendem a agir como sujeitos sociais em coletividade, adquirindo e
pondo em prática modos de pensamento, ação, crenças e valores de seu grupo.
Insisto: a linguagem é o lugar onde se revela a dimensão social da existência
humana.
2.
Linguagem, cultura e realidade
A
cultura é uma dimensão do processo social; ela se apresenta sob duas formas:
uma, material; outra, imaterial. A cultura material encerra tudo que é
produzido pela atividade humana e por ela transformado. Trata-se de uma
dimensão da cultura acessível à experiência sensível dos membros de uma
sociedade. A cultura material inclui desde a preparação de alimentos, passando
por hábitos alimentares e de se vestir, até a produção de arte, literatura,
música, cinema, novelas, ciência, religião, etc.
A
cultura não-material abriga as crenças, os valores, conhecimentos, ideologias;
enfim, símbolos que modelam e informam a vida das pessoas nas relações que
estabelecem entre si em sociedade. A cultura não-material encerra os sistemas
sociais, que se definem como conjuntos de elementos culturais que, relacionados
em dependência recíproca, compõem uma unidade. É no interior dos sistemas
sociais que se definem tipos de relações sociais, as posições que ocupam os
agentes sociais. Essa noção supõe que o todo importa mais que as partes que o
compõem. Constituem exemplos de sistemas sociais, entre outros, casamentos,
times de futebol, amizade, consultórios médicos, empresas, governos, exército,
etc.
A
cultura não-material forma um grande sistema de atitudes, crenças, valores,
normas que estruturam nossas experiências. É nela que devemos, pois, situar a
linguagem.
Não
pretendendo me estender sobre a problemática do conceito de cultura, cinjo-me a
observar que a cultura é o próprio modo de existir do homem. Em outros termos,
a existência humana é existência cultural, no sentido de que são os homens que,
em coletividades e com o concurso da linguagem, produzem sua existência. A
cultura compreende todas as experiências vivenciadas, todas as atividades e
seus produtos, tudo que o homem faz, realiza, adquire e transmite pelo uso da
linguagem. A cultura produz e molda os costumes, estabelece os padrões, as normas, a moral, as
leis, as crenças, os conhecimentos, modela hábitos e comportamentos, fornece as
condições para o desenvolvimento de habilidades e capacidades ; em uma palavra,
é o domínio onde o homem se humaniza;
é o domínio graças ao qual ele se desprende da ordem natural, toma distância de
si e do mundo para exercitar a reflexão sobre ela, sobre o mundo e sobre si
mesmo; é o domínio onde o homem reflete sobre seu próprio lugar no universo.
Na
cultura, o homem deixa de ser um mero objeto dos instintos, para tornar-se
sujeito da história. Sua experiência deixa de pautar-se meramente pela
necessidade de sobrevivência, para tornar-se fonte de expressão de
significados, para tornar-se ela mesma significativa. Em Ensino de Português
–Fundamentos, percursos, objetos (2007), Azeredo enfatiza a dimensão do
significado como própria do mundo humano:
“O mundo humano não é um mero
conjunto de objetos, mas um sistema de significados; não se encontra “fora” do
homem como uma coleção de coisas que ele possui, ganha, perde, deseja ou
descarta; o que chamamos “mundo humano” é o universo de valores e conceitos que
interiorizamos ao longo da vida, no convívio com nossos semelhantes, muitas
vezes estruturados dicotomicamente, como realidade/fantasia, remédio/veneno,
normalidade/diferença, prazer/sofrimento (...) É esta interiorização que nos
humaniza, à medida que nos integramos “na sociedade dos seres humanos””.
(p. 17)
O
mundo dos objetos, das coisas, dos entes com que o homem entra em contato é
constituído como uma gigantesca rede de significados. Esses objetos, coisas e
entes que de serve o homem para uso recebem um “investimento simbólico”. Ao
pensar neste objeto que seguro com uma de minhas mãos e que uso para escrever,
e que chamo “caneta”, dou-me conta de que, ao receber um nome que o define,
esse objeto passa a existir para mim (e para toda a comunidade a que pertenço)
independentemente de eu a estar fazendo uso dele. Esse objeto, ao ser nomeado,
passa a existir num campo perceptual-cognitivo entretecido de significado,
passa a existir como conceito em minha mente e no “mundo humano”. Esse objeto, a caneta, entra a
fazer parte de uma rede de relações significativas com outros
“objetos-significados”.
A
palavra “caneta” define para mim as propriedades e a função do objeto que
designa. Essa definição lhe fixa um “lugar” relacional no mundo dos conceitos,
que é uma dimensão fundamental do mundo humano. A linguagem, por meio de sua
realização no discurso, transforma os objetos do mundo em objetos do discurso, isto é, em referentes. São propriamente os referentes que passam a configurar campos
conceituais, universos de significados, nos quais as nossas experiências de
mundo se estruturam.
Transformado
em um objeto-de-discurso, o elemento acessível à nossa experiência sensorial –
a caneta – pode ser reunida a outros referentes correlacionados, por exemplo,
pela função, tais como “lápis” e “lapiseira”. “Caneta”, “lápis” e “lapiseira”
se relacionam pela função que lhes é comum, qual seja, a de permitir que
escrevamos. Esses referentes podem-se reunir a outros com base no campo
experiencial designado pela ação de “escrever”, tais como “borracha” e “papel”.
Como
membro de uma dada cultura, disponho do conhecimento enciclopédico, que me
permite dizer que, no mundo moderno, a maioria das pessoas escreve em papéis. A
associação de ideias, comum na prática psicanalítica, ilustra como a língua,
interagindo com a cognição, organiza nossa experiência de mundo, com base na
formação de campos conceituais. Por exemplo, quando trazemos à mente o conceito
de ‘caneta’, tendemos a associá-lo a ‘escrever’, ‘papel’, ‘lápis’, ‘escritório’,
‘estudar’, etc. Claro é que podemos fazer associações imprevistas ou mesmo
extravagantes, porque não esperadas com base no conhecimento comum suposto como
partilhado com o interlocutor. Assim, alguém, ao pensar em “caneta”, poderia
associá-lo a “tédio”, “pai”, “coação”, “ônibus”, “Paulinho”, etc. Mesmo que
essas palavras não compartilhem traços semânticos com a palavra “caneta” ou,
dito doutro modo, mesmo que elas não pertençam ao mesmo campo semântico, elas
integram o campo experiencial do locutor, elas se revestem de significado no
conjunto de experiências do locutor com “caneta”. O locutor, ao associar
“tédio” a “caneta”, por exemplo, vincula “caneta” a uma atividade que considera
entediante. Essa atividade pode ser o exercício de copiar a matéria que o
professor escreve no quadro ou a prática de assinar inúmeros documentos no
trabalho. Cite-se, novamente, Azeredo que, desta vez, nos ensina sobre o valor
da palavra:
“A palavra é o mais elaborado,
versátil e abrangente instrumento de criação, circulação e assimilação de
representações do conjunto de nossas experiências da realidade. Eu diria, até
mesmo, que a linguagem é muito mais que
um instrumento: ela é o próprio espaço simbólico que torna possíveis essas
representações e, em larga medida, é por meio dela que modelamos mentalmente o
que chamamos de contexto social em que interagimos. Esse contexto não é um
dado real objetivo; mas uma construção mental das pessoas, um quadro de
referência que nos orienta sobre o que podemos ou devemos dizer, o que podemos
ou devemos ouvir (...)”.
( grifo meu, pp. 69-70)
Duas
ideias me parecem se destacar em importância, nesse passo de Azeredo, tendo em
conta a relação entre linguagem, cognição e realidade. A primeira é que a
palavra nos permite criar representações de nossas experiências de mundo; a
segunda é que a linguagem é muito mais do que um instrumento que nos permite
comunicá-las; ela é o “lugar simbólico” que nos permite produzi-las. Para
Azeredo, a linguagem dota o homem de uma espécie de sétimo sentido (já que o
sexto é geralmente destinado à intuição), que se sobrepõe aos demais “em um
universo de conhecimento e significados a que só tem acesso através do símbolo”
(p. 70).
Teremos
a oportunidade de avaliar, com alguma atenção, o papel da cognição na fabricação
da realidade e o modo como ela interage com a linguagem e a cultura. Por ora,
prossigo trazendo à cena outro domínio extremamente importante na consideração
da inter-relação entre linguagem, cultura e realidade. Trata-se do domínio da práxis.
É na práxis, por meio da produção de representações simbólicas, que o homem vai
interiorizando o mundo para se tornar um ser social.
Se
o homem, à semelhança do que sucede com os outros animais, toma parte da
dimensão biológica, é somente ele, cuja existência se desenrola especialmente
na dimensão simbólica, que pode libertar-se dos condicionamentos a que as
outras espécies da natureza estão irremediavelmente entregues. A capacidade de linguagem é a linha
demarcatória entre o homem e os animais não humanos. Por meio dela, nós
construímos o mundo em que vivemos, no curso da história, mundo que, por força
da função de simbolização da linguagem, é segmentado e transformado em ‘dados’
de nossa consciência, na forma de conhecimento. O mundo do homem é um mundo
dotado de significado, mundo onde ele mesmo, o homem, tem um significado.
Ouçamos, novamente, Azeredo:
“(...) as palavras são símbolos,
graças aos quais “a realidade bruta” de nossos sentimentos e sensações é
transformada em um “universo dotado de sentido”. Ter ou representar um sentido
é a função do símbolo, propriedade que não têm os instrumentos e ferramentas na
sua utilidade primária”.
(p. 74)
Que
elas – as palavras – não são coisas ou instrumentos (exceto, metaforicamente)
fica claro também quando nos apercebemos de sua função de presentificação, isto
é, a palavra presentifica o que não nos é imediatamente acessível aos sentidos.
Em geral, falamos sobre coisas, entes, que não são acessíveis à nossa
experiência sensorial imediata (não podemos vê-los, tocá-los, etc.);
descrevemos situações, falamos sobre experiências ou acontecimentos que não
estamos vivenciando no momento mesmo em que a eles nos referimos. Que o poder
das palavras é muito mais do que servir de artefatos para comunicar pensamentos
também fica claro quando nos damos conta de que milhares delas designam
conceitos que só existem como entidades mentais, tais como “bruxa”,
“felicidade”, “aspereza”. Esses dois últimos substantivos são,
tradicionalmente, chamados de abstratos, porque designam propriedades que
abstraímos das coisas ou entes, para conferir-lhes uma existência independente
como ‘conceitos’. O substantivo “bruxa” se diz “concreto”, porque designa uma
entidade que concebemos como um conceito independente de outro conceito. Se
“felicidade” designa uma qualidade ou estado “abstraído” de quem é feliz (cf.
Pedro é feliz, ou seja, a felicidade é uma propriedade de Pedro), “bruxa”
designa um ente concebido na imaginação como se tivesse uma existência
independente de outro ente. Não se segue daí que a distinção entre “abstrato” e
“concreto”, na base da qual se classificam semanticamente os substantivos, deva
ser interpretada em termos discretos, ou seja, supondo-se que haja limites
rígidos entre as duas noções. Na verdade, concreto e abstrato ocupam extremos
num contiuum que supõe graus numa escala em que o uso fixa maior ou menor
abstratividade/concretude ao significado das palavras. Pense-se na palavra
“cobertura”. Em “a cobertura televisiva”, “cobertura” comporta um significado
mais abstrato. Trata-se da ‘situação em que a televisão registra um fato ou
acontecimento’. Mas, em “consertei a cobertura da casa”, “cobertura” tem um
significado “concreto”, designando “telhado”. Assim também “acampamento” tanto
pode designar “o evento de acampar” (abstrato)
quanto “o lugar em que se acampa” (concreto) (cf. Hoje, faremos um
acampamento/ Vamos montar o acampamento).
Sabe-se
que diferentes línguas recortam o mundo de modos diferentes. Ainda que falantes
de línguas diferentes disponham de um aparelho perceptual-cognitivo que é o
mesmo para todos os seres humanos, que é comum à espécie humana, eles não vêem
o mundo da mesma maneira, visto que cada língua recorta, segmenta “a
realidade bruta do mundo” de modo diferente. As línguas codificam a realidade
de modos distintos. Em A língua do Brasil amanhã e outros mistérios
(2004), o linguista Mario Perini faz algumas considerações bastante
interessantes a esse respeito. Nessa obra, ele escreve o seguinte:
“Cada língua é um retrato do
mundo, tomado de um ponto de vista diferente, e que revela algo não tanto sobre
o próprio mundo, mas sobre a mente do ser humano. Cada língua ilustra uma das
infinitas maneiras que o homem pode encontrar de entender a realidade”.
(p. 52)
Memória,
imaginação e linguagem – são as três dimensões que possibilitam ao homem
libertar-se das exigências naturais extensivas aos demais animais.
Em
Kaspar Hauser ou a fabriação da realidade (2003), Izodoro Blikstein
estuda o papel que desempenha a linguagem na construção da própria realidade
que o homem experiencia. A tese dele pode ser formulada como se segue: a realidade que experienciamos é produto de
uma interação contínua, na práxis social, entre linguagem, percepção-cognição e
cultura. A visão de Blikstein está sintetizada no seguinte excerto:
“Para o senso comum, a realidade
parece não constituir problema algum: real é todo o universo estável e tangível
de sons, cores, formas, espaços e movimentos. Trata-se, no entanto, de uma
ilusão: na verdade o que julgamos ser a
realidade não passa de um produto da nossa percepção cultural. Percebemos os
objetos que as nossas práticas culturais já definiram previamente, em outras
palavras, a realidade já foi fabricada por toda uma rede de estereótipos
culturais, que condicionam a percepção. Tais estereótipos, por sua vez, são
garantidos e reforçados pela linguagem”.
(grifo meu)
A
percepção, ensina Blikstein, depende de uma construção e de uma prática social.
É na prática social ou na práxis que reside o mecanismo que gera o sistema
perceptual que fabricará o referente. A fabricação do referente estrutura-se
nas seguintes etapas, sugeridas pelo autor: 1) realidade/ estímulos; 2) prática
social ou práxis; 3) percepção/cognição/ponto de visto; 4) referente.
O
referente não deve, contudo, ser tomado como um objeto do mundo
extralinguístico; mas como uma entidade discursiva. O mundo textualizado, o
mundo reconstruído no discurso não é um espelho do mundo de nossa experiência
imediata. Não falamos, no discurso, de objetos do mundo propriamente, mas de
objetos do discurso. Não se está negando a existência do mundo tal como nos é
acessível à experiência sensorial; o mundo “real” existe, conforme assinala
Blikstein, como uma totalidade de sensações, de estímulos, movimentos, cores,
formas, etc. O que se nega é que a língua reflita esse mundo, como um espelho
que reflete nossa imagem. Quando articulamos a linguagem à engrenagem de
fabricação da realidade, quando a pensamos na relação necessária com a práxis e
o nosso aparelho perceptual-cognitivo, o referente que resulta dessa interação
se converte em uma entidade do discurso. É no próprio processo discursivo que
os referentes vão sendo fabricados, estendidos, transformados, etc.
Blikstein
nos lembra que “sem práxis não há significação” (p. 54). Para ele, a língua
atua sobre a práxis (p. 60). Destarte, o homem cognoscente, vivendo na dimensão
da práxis, desenvolve, para existir e sobreviver, mecanismos não-verbais que
lhe permitem diferenciar e identificar as feições do continuum do real. O homem
move-se no tempo e no espaço de sua comunidade. Por isso, precisa estabelecer e
articular traços de diferenciação e identificação que o auxiliam a discriminar,
reconhecer, selecionar, dentre os estímulos do continuum do real, as cores, as
formas, as funções, os espaços e tempos indispensáveis à sua sobrevivência.
Tais traços adquirem, no contexto da práxis, um valor positivo que se relaciona
por oposição a um valor negativo ou pejorativo. Assim, impregnados de valores
positivos/negativos, eles convertem-se em traços ideológicos.
Os
traços ideológicos desencadeiam a estruturação de “formas” ou “corredores”
semânticos, por onde atravessam os fios básicos de significação, as chamadas isotopias da cultura de uma comunidade.
Em nossa cultura, “em cima” é um traço de valor positivo, enquanto “abaixo” tem
um valor negativo. Esses traços ideológicos constituem a base dos corredores semânticos ou isotópicos da
verticalidade positiva em oposição à horizontalidade pejorativa.
São
os corredores semânticos ou isotópicos que vão delimitar a percepção/cognição,
gerando padrões ou modelos de percepção, chamados de “óculos sociais” (Schaff).
Os
óculos sociais são os estereótipos de percepção. São com esses estereótipos que
“vemos” a realidade e fabricamos o referente. Agora, estamos em condições de
compreender o papel da língua na fabricação da realidade. A língua age sobre a
práxis e sobre os corredores isotópicos e sobre os estereótipos perceptuais.
Estabelece-se, assim, uma interação entre língua e práxis de tal modo, que, à
proporção que nos socializamos, mais difícil torna-se distinguir as fronteiras
entre ambas. É na ação sobre a práxis que a língua modela o referente.
Blikstein entende que a cognição está sujeita a uma atividade incessante de
estereotipação, cuja consequência é que passamos a considerar como real e
natural a totalidade do universo de referentes e realidades que são, na
verdade, fabricados. Consoante nota o autor,
“A língua “amarra” a
percepção/cognição, impedindo o indivíduo de ver a realidade de um modo ainda
não-programado pelos corredores de estereotipação como Sísifo, estaríamos
condenados a conhecer, ou a reconhecer, sempre a mesma realidade.”
(p. 82)
Com
Blikstein, devemos concluir que o processo de conhecimento da realidade, a fabricação
da realidade são governados por práticas culturais, percepção e linguagem. É a
práxis que produzirá os universos simbólicos. O universo simbólico é a matriz
de todos os significados socialmente objetivados e subjetivamente reais. A
linguagem constitui o mais importante meio de socialização. Ela é o principal
veículo por que o mundo real “fora” da consciência passa a corresponder ao que
é real “dentro” da consciência. Assim, a linguagem permite a tradução da
realidade objetiva em realidade subjetiva e vice-versa. O mundo se traduz como
linguagem.
4. Linguagem e cognição
Como
campo de estudo estabelecido, a Linguística Cognitiva surge nos anos de 1980,
embora a expressão “linguística cognitiva” já aparecesse no cenário da
Linguística desde os anos de 1960. Não será equivocado sugerir que suas
primícias já se encontravam na Gramática Gerativa, proposta por Noam Chomsky,
ainda que seu modelo de gramática nunca tenha sido qualificado de cognitivista.
Mas coube a Chomsky promover uma virada cognitivista no interior da
Linguística. Estudiosos que trabalham nessa nova vertente de estudos da
Linguística concordam com a fórmula chomskyana “a linguagem é o espelho da
mente”.
No
entanto, a Linguística Cognitiva se distancia do modelo chomskyano sob muitos
aspectos, entre os quais destacamos um que é fundamental: ao contrário do que
propunha a teoria gerativa, o módulo cognitivo da linguagem não é independente
de outros módulos cognitivos (por exemplo, raciocínio matemático, percepção,
etc.) A Linguística Cognitiva nega a independência entre os módulos, adota uma
perspectiva não-modular, segundo a qual, na mente, atuam princípios cognitivos
gerais que são compartilhados entre a linguagem e outras capacidades
cognitivas. Ademais, a Linguística Cognitiva postula uma interação entre os
sistemas da linguagem, mais propriamente entre o sistema sintático e o sistema
conceptual.
A
tese básica da Linguística Cognitiva é a seguinte: a relação entre a linguagem e o mundo é mediada pela cognição.
Nessa perspectiva, o significado não é mais considerado um reflexo do mundo,
tampouco se encontra “embutido” nas palavras, mas é uma construção por meio da
qual o mundo é apreendido e experienciado. Vale notar que, provavelmente, a
maior dificuldade que temos em definir o significado e pensá-lo repousa no fato
de que não podemos sair do significado, para pensá-lo. Não é possível pensá-lo
e defini-lo como um objeto a partir do qual tomamos distância. Tente, leitor,
responder à questão: o que é o significado? Ou ainda: o que queremos dizer com
“isso significa”? Estamos imersos no significado, por isso ele se torna uma
realidade tão difícil de definir. Não estou dizendo que seja impossível propor
definições de significado, tampouco que não o compreendamos; estou, no entanto,
dizendo que para pensar e definir o significado lançamos mão de estruturas
significativas, de cadeias de significados, assim como para definir o que é
linguagem, usamos a própria linguagem, ou para definir o que é palavra, usamos
palavras.
Disse
que, na perspectiva da Linguística Cognitiva, as palavras não têm significado.
Preciso acrescentar que elas servem, na verdade, de pistas para a construção do
significado. Uma hipótese comum às abordagens cognitivistas da linguagem é a de
que a linguagem serve à organização, processamento e transmissão da informação
semântico-pragmática. Insisto em que a Linguística Cognitiva entende o
significado dos enunciados como construção
mental, como movimento ininterrupto de categorização e recategorização do
mundo, que se realiza com base na interação entre estruturas cognitivas e
modelos de crenças e conhecimentos socioculturais compartilhados. Assim,
estabelece-se uma semântica cognitiva que assenta numa visão do significado
linguístico como produto de um saber
enciclopédico. Seguem-se os exemplos abaixo, com os quais busco ilustrar a
ideia de que o significado não se acha contido nas palavras e como ele é
dependente de um saber sobre o mundo:
(1)
O gato está no sofá.
(2)
As flores estão no vaso.
(3)
A camisa está no armário.
Do
ponto de vista cognitivo, a preposição “em” marca uma relação do tipo “contém
x”. O exemplo (3) ilustra o significado que se estabilizou pelo uso, o
significado que se sedimentou no uso, ou seja, o significado do qual se diz, de
um modo um tanto grosseiro, “literal” - “contém x”. Em (3), sabemos que a camisa está
totalmente dentro do armário. Mas, em (2), as flores não estão totalmente
contidas no vaso; e, em (1), decerto, o sofá não contém o gato. Em (1), a
preposição “em” situa numa superfície alguma coisa. Entendemos (1) como “o gato
está em cima do sofá”. Veja-se ainda o caso (5), abaixo:
(5)
Esse ônibus passa em Vila Isabel?
Quando
usamos o verbo “passar” construímos, em geral, uma experiência em que alguma
coisa ou um ente animado “movimenta-se através, ao longo de, próximo de”, como
em “Eu passei pela rua em que você mora” ou “Eu passei por você, mas você não
me viu”. Na primeira frase, “passar por” significa “ir-se através de, ao longo
de”; na segunda frase, significa “transitar próximo de”. Essas frases não
pretendem esgotar as possibilidades de uso do verbo “passar”, evidentemente.
Seus usos são muitos e configuram experiências variadas. Não obstante, elas
servem para ilustrar o fato de que o significado de (5) não se deduz do verbo
“passar”, mas se constrói com base numa informação semântico-pragmática, num
saber comum, em expectativas sobre qual o significado deve ser construído. O
que queremos saber com (5) não é se o ônibus passará pelo bairro de Vila Isabel
como um caminhante que passa por uma rua sem parar; na verdade, nós queremos
saber se ele para num ponto em Vila Isabel. O uso de “em” marca um dos pontos
de destino do ônibus. Mas o significado é sempre negociado, pois o
interlocutor, a quem perguntamos se o ônibus passa em Vila Isabel, poderia
responder algo como “passar ele passa, só não sei se para”. Nesse caso, nosso
interlocutor constrói um significado diferente do que nós produzimos e
esperávamos que ele reconhecesse. Para nós, “passar em Vila Isabel” significa
“parar num ponto em Vila Isabel”; para ele, ao contrário, significa “atravessar
o bairro de Vila Isabel”.
Veja-se
como se constroem os significados da preposição “para” nos casos abaixo:
(6)
Eu não estou para o seu Alberto.
(7)
Eu não estou nem aí para você.
(8)
Eu comprei um relógio para você.
(9)
O bolo é para comer.
Assumindo
o princípio de que o significado constrói nossas experiências de mundo e de que
ele é construído no discurso, podemos compreender os significados ativados na
relação da preposição “para” com os constituintes oracionais, nos casos acima.
Em (6), “para”, na combinação com “estar” (estou para), serve à produção do
significado que se define mais ou menos como “não quero que o seu Alberto saiba
da minha presença”. Em (7), “para”, combinado com a expressão “estou nem aí”
indica a pessoa que é alvo de minha indiferença. Em (8), “para” introduz o
destinatário ou beneficiário da compra. Em (9), “para” introduz um constituinte
que denota a finalidade ou fim a que serve o bolo.
Os
exemplos considerados aqui patenteiam o fato de que o significado não se
constrói com base numa unidade linguística que se toma isoladamente, mas nas
relações entre as unidades linguísticas na totalidade do enunciado ou discurso,
sob a influência inegável dos contextos sociocognitivos partilhados pelos
interlocutores.. Mas nem as unidades linguísticas nem a totalidade do enunciado
ou discurso comportam ou contêm o significado. Para a Linguística Cognitiva, as
unidades linguísticas servem de pistas para a construção do enunciado. Essa
corrente de estudos linguísticos adota uma perspectiva assentada no uso e
sustenta que o contexto (sociocognitivo) orienta a construção do significado.
O
conhecimento enciclopédico é um sistema de conhecimento estruturado em rede. Os
diferentes aspectos do conhecimento ativados por uma palavra não têm status
idêntico. Tome-se, por exemplo, a palavra [QUEIJO]. Ela especifica uma forma,
no domínio espacial/visual; uma configuração de cor, no domínio cromático; uma
indicação de gosto, no domínio das sensações do paladar/cheiro, mas também toda
sorte de saberes que resultam de nossas experiências com o queijo, por exemplo,
o conhecimento de que é comestível, de que é um derivado do leite, de que entra
na composição de certos alimentos, de que possui vários tipos, etc.
Evidentemente,
certas especificações são mais centrais do que outras. Acrescente-se que a
centralidade dessas especificações está relacionada à possibilidade de sua
ativação no contexto de uso, de modo que as palavras não podem ser vistas como
“pacotes” que armazenam o significado, mas sim como vias de acesso aos sistemas
de conhecimento.
4.1 Categorização
A
categorização está entre os fenômenos mais importantes de que se ocupa a
Linguística Cognitiva e é reconhecidamente uma atividade central da linguagem.
A categorização é a atividade por meio da qual nós agrupamos entidades
semelhantes (objetos, pessoas, lugares) em classes específicas. Categorias são
módulos que enformam os pensamentos e com os quais eles são entretecidos.
A
categorização é uma função essencial da linguagem. Para falarmos do mundo,
precisamos segmentá-lo e classificar suas entidades em classes específicas, com
base em propriedades que lhe são comuns. As estratégias de categorização
prendem-se de modo intrínseco à capacidade de nossa memória. Não nos é possível
criar um número infinito de categorias, sob pena de sobrecarregar a memória.
Por
fim, destaco os seguintes pontos que não podem ser olvidados:
1)
A categorização sugere que as línguas se relacionam com um mundo desorganizado
e, não raro, caótico;
2)
Não há uma relação especular entre a língua e o mundo, senão uma relação
necessariamente mediada pelo aparelho perceptual-cognitivo dos falantes, tendo
em conta suas características e restrições;
3)
As categorias não representam divisões que se fixam pelo arbítrio, mas que se
baseiam em capacidades cognitivas da mente humana;
4)
Os limites entre as categorias não são rígidos. Entre os elementos de um
conjunto, há uns mais prototípicos do que outros, e entre os prototípicos e as
fronteiras categoriais, há membros intermediários que se organizam segundo uma
escala de prototipicidade.
5)
A categorização supõe níveis de inclusão, entre os quais um é o nível básico de
especificidade.
As
sequências de palavras a seguir ilustram a situação de 5):
Veículo
– carro – ônibus – trem
Fruta
– banana – banana-maçã
Ser
vivo – animal – cachorro – basset
As
palavras em negrito são os termos que comportam o nível básico de
especificidade relativamente aos membros das classes “veículo”, “fruta” e
“animal”.
Embora
não se possa negar que existem processos mentais que não são especificamente
linguísticos, como, por exemplo, o reconhecimento de rostos, a (re)construção
de espaços, a depreensão das relações entre as partes que constituem o todo,
etc., é forçoso reconhecer a interdependência entre linguagem e cognição. Uma
das consequências que daí se seguem é que, no momento em que a criança domina o
uso da sua língua materna, sua capacidade de produzir/construir conhecimento
tem um ganho qualitativo enorme, muito porque ela passa a atuar
significativamente por meio de símbolos num mundo onde as pessoas ao seu
derredor são herdeiras de um sistema que fixa para os signos os mesmos valores
fundamentais e onde elas o transmite tal como o receberam.
Pensar
é julgar, escreveu Kant. “Pensar é conhecer através de conceitos” (Kant). E
como poderiam existir conceitos senão pelas palavras que os criam? De que é
feito o pensamento senão de palavras? Para a Antropologia, pensar é
articular/produzir uma compreensão do mundo pela linguagem. Pensar, no sentido
em que considero aqui, é uma atividade da consciência que não seria possível
sem a linguagem verbal. Pensamos articulando palavras. Pensamos graças à nossa
capacidade de linguagem.
Pensar
não é tão-só, é claro, um ato individual; é, sobretudo, um ato coletivo, na
medida em que as categorias do pensamento, com as quais compreendemos o mundo,
nos são fornecidas pela linguagem via cultura.
Pensar
também é um ato coletivo em outro sentido: no sentido de que os significados
que estruturam nosso pensamento são culturalmente produzidos e compartilhados.
Finalmente, vale reiterar, a cultura é um sistema que dá ordem ao pensar e ao
agir.
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