quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Evangelhos gnósticos


                             


                           O gnosticismo cristão

Precisei tornar-me ateu para interessar-me pelo estudo de religiões. Tornando-me ateu, passei a me interessar, particularmente, pelo aprendizado e compreensão da história do cristianismo, religião cujos preceitos e valores entraram a fazer parte de minha formação socioeducacional desde muito cedo. E os caminhos ateístas me levaram a ler livros de teologia cristã.  Hoje, sei mais sobre o cristianismo do que sabia no tempo em que eu era um cristão católico. Não há por que estranhar essa minha postura, já que toda rejeição a um sistema de ideias, valores e crenças que não nos parece mais satisfatório para explicar o mundo e dar sentido à vida deve assentar num exame que demonstre seus pontos problemáticos. Em outras palavras, não me bastava declarar-me ateu; sentia a necessidade de justificar meu ateísmo e sustentá-lo com base num esclarecimento sobre a fé que havia abandonado, um esclarecimento que fosse superior ao saber que qualquer cristão comum declara ter sobre a doutrina que subsidia sua fé. Acredito que um ateu que não conseguiu acumular os conhecimentos necessários na base dos quais possa desenvolver, sempre que necessário, uma argumentação sólida e eficaz contra o proselitismo dos cristãos, provavelmente, será visto como um problemático (no sentido pejorativo) ou como uma “ovelha desgarrada” em favor de quem a comiseração cristã se encarregará de fazer orações. Assim, aos olhos de cristãos piedosos e redentores, um ateu que necessita de orações é um indivíduo que se afastou de uma suposta verdade inquestionável e que precisa voltar a reconhecê-la, caso pretenda gozar da salvação.
Como eu pretendesse responder aos que, por ventura, me considerassem uma pessoa desditosa, para quem a vida, tendo abandonado a fé, não faria mais sentido, cuidei que proveitoso seria aprender sobre a história e os dogmas do sistema doutrinário a que meu espírito não podia mais submeter-se.
Somente o conhecimento pode combater a fé. Quem tem fé tem tão-só confiança em que seja verdadeiro o sistema de ideias e crenças que a sustenta, mas não detém o conhecimento do valor de verdade desse sistema. Por exemplo, esse sistema pode incluir o dogma segundo o qual Jesus Cristo reunia em si mesmo as naturezas humana e divina. Que Jesus fosse humano não se discute, mas que tenha sido uma encarnação de Deus, ninguém pode saber. Isso é matéria para a fé, ou seja, quem tem fé confia em que seja verdadeiro que Jesus Cristo tinha natureza divina. Diga-se, de passagem, uma visão que não encontrou unanimidade entre os primeiros seguidores de Jesus nos primórdios da era cristã. Houve, posteriormente, historiadores bíblicos que argumentaram no sentido de que as Escrituras não permitem sustentar tal crença. No entanto, essa foi a crença que se tornou ortodoxa.
Defenderei, aqui, a ideia de que a crítica à fé pode ser desenvolvida percorrendo-se dois caminhos que não são, necessariamente, estanques: um dos quais nos leva a examinar as Escrituras, a história de sua fabricação e as condições socio-históricas e ideológicas nas quais se desenvolveu o cristianismo (termo que engloba um espectro grande de variedades, hoje, e na Antiguidade); o outro nos leva a examinar, por meio de um confronto, as representações e afirmações sobre Deus com as nossas experiências de mundo, tendo em conta o modo como o mundo funciona, como a realidade é (e não como desejamos que fosse).
Ilustrarei como podemos percorrer esses dois caminhos para fazer a crítica. Emprego a palavra crítica no sentido rigorosamente filosófico, a saber, um exame racional pormenorizado das coisas, sem preconceitos ou prejulgamento. Quando criticamos, por exemplo, uma ideia, um costume, uma obra de arte, fazemos deles uma avaliação detalhada.
Começo por uma constatação que, de imediato, me surpreendeu, não sem agrado. Lendo o livro Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi? (2010), de Bart. D. Ehrman, se me deparou a seguinte passagem, que se segue ao subtítulo QUEM ESCREVEU OS EVANGELHOS? Convém reter que, a essa altura, Ehrman já havia tratado das contradições existentes entre os quatro evangelhos e já havia nos contado sobre suas experiências no Seminário Teológico de Princenton (instituto onde sua visão sobre a Bíblia mudou drasticamente). Leiamos o trecho abaixo:

“Embora evidentemente não seja o tipo de coisas que os pastores costumem contar às congregações, há mais de um século existe um forte consenso de que muitos dos livros do Novo Testamento não foram escritos pelas pessoas cujos nomes estão ligados a elas. Mas, se isso é verdade, quem então os escreveu?”

(p. 118)
(ênfase no original)


Ehrman desenvolverá uma argumentação lúcida que visa a nos fazer entender as razões por que se pode afirmar com certeza que os quatro evangelhos que constam do cânone e que chegaram até nós não foram escritos pelas pessoas cujos nomes figuram em suas páginas. O grande número de contradições entre os escritos evangélicos indicam que seus autores não foram testemunhas oculares dos acontecimentos relatados. Citem-se alguns exemplos de inconsistências, referidos por Ehrman. Por exemplo, em Mateus, conta-se que Jesus foi concebido por uma virgem:

23. Eis que a virgem conceberá, e dará à luz um filho, e chamá-lo-ão pelo nome de EMANUEL, que traduzido é: Deus conosco. (Mt. 1: 23)

Em João, não há referência à crença em que Jesus teria nascido de uma virgem. Em João, lemos o seguinte:

1. No princípio, era o Verbo; e o verbo estava com Deus, e o verbo era Deus.
(Jo 1: 1)

O Verbo a que se refere o autor de João é Jesus.
Segundo Ehrman, em Mateus, não há qualquer referência à natureza divina de Jesus. Mateus simplesmente silencia a respeito da crença de que Jesus era Deus. Em João, ao contrário, Jesus se identifica com Deus. Em Mateus, Jesus anuncia a bem-aventurança futura no Reino de Deus; em João, Jesus prega sobre si mesmo, destacando sua divindade.
É interessante notar que, no catolicismo, os dois dogmas são aceitos: o do nascimento de Jesus de uma virgem e o de sua natureza divina. Buscou-se, assim, conciliar as duas visões diferentes de dois autores que não foram discípulos de Jesus.
Não tenho a intenção de apresentar todas as evidências fornecidas por Ehrman para sustentar a afirmação de que nenhum dos evangelhos que compõem a Bíblia cristã foi escrito por discípulos que conviveram com Jesus. Convido o leitor a verificar por si mesmo. Compreendamos, no entanto, a razão por que se disseminou a crença de que os autores dos evangelhos foram realmente os apóstolos de Jesus? Leiamos o que nos ensina Ehrman abaixo:

“Por que surgiu a tradição de que esses livros foram escritos por apóstolos e por companheiros dos apóstolos? Em parte de modo a garantir aos leitores que eles foram escritos por testemunhas oculares e companheiros das testemunhas oculares. Uma testemunha ocular merece a confiança de que iria contar a verdade sobre o que realmente aconteceu na vida de Jesus. Mas a realidade é que não é possível confiar em que as testemunhas ofereçam relatos historicamente precisos. Elas nunca mereceram confiança e ainda não merecem. Se testemunhas oculares sempre fizessem relatos historicamente precisos, não teríamos a necessidade de tribunais. Quando precisássemos descobrir o que realmente aconteceu quando um crime foi cometido, bastaria perguntar a alguém. Casos reais demandam muitas testemunhas, porque seus depoimentos diferem entre si. Se duas testemunhas em um tribunal divergissem tanto quanto Mateus e João, imagine como seria difícil chegar a um veredicto”.

(p. 119)


Os quatro evangelhos foram escritos anonimamente e os títulos que trazem estampados (p. ex. “o Evangelho segundo Lucas”) foram acrescentados por escribas, posteriormente à produção dos textos. A intenção era esclarecer o público sobre quem se acreditava ser seus autores. Ehrman argumenta que a própria expressão “segundo x” indica que não se trata do próprio autor, já que o próprio autor não se referiria a si mesmo na terceira pessoa. Trata-se, na verdade, de um acréscimo feito por uma pessoa que acreditava que o autor foi um dos discípulos de Jesus. Foi assim que surgiram outros milhares de evangelhos que não entraram para o cânone, como os de Tomé, de Filipe, de Judas, etc.
Qualquer um que acompanhasse os argumentos aduzidos por Ehrman chegaria, com ele, à conclusão de que a Bíblia é um conjunto de livros produzido por mãos humanas; é uma obra humana, demasiado humana.
Todas as evidências apontam para o fato irrecusável, à luz da razão, de que a Bíblia não foi inspirada por Deus. A inspiração divina pressuporia uma exatidão dos textos, uma coerência entre as visões teológicas adotadas por seus autores, ou seja, uma unidade de concepções teológicas.
Na medida em que reconhecemos que Marcos, Mateus, João e Lucas não são os verdadeiros autores dos evangelhos, começamos aprender sobre um costume bastante comum na Antiguidade: o das fraudes literárias. Delas tratará Ehrman.
O segundo caminho, que tange ao confronto entre as representações de Deus, na memória discursiva teológico-cristã, e o modo como o mundo ou o universo funciona, pode ser percorrido pela reflexão sobre fatos  que invalidam a crença na existência de um Deus todo-poderoso e bom. Nesse domínio, devemos nos esforçar por desenvolver argumentos assentados na lógica. Assim, dada as premissas:

p.1 Deus criou o universo e tudo que nele há
p.2 Deus é todo-poderoso e bom

É forçoso que as levemos em conta quando confrontamos as representações de Deus como um criador e um ser todo-poderoso e bom com os fatos do mundo. Agora, vejamos os fatos. Sabemos que o Universo é indiferente ao nosso desejo de felicidade e segurança. Sabemos que os asteróides existem e que são potencialmente perigosos. Um deles dizimou os dinossauros. É razoável acreditar na possibilidade de que um asteróide, algum dia, possa colidir com a Terra, extinguindo todos os seres vivos que a habitam. Muitos asteróides passam pela Terra e muitos continuarão passando. A ideia de que o Universo foi criado por um designer inteligente e bom pressupõe que toda a sua criação tem de ter um propósito e que esse propósito seja benéfico. Isso é uma exigência lógica da própria definição desse ser. Ora, como podemos sustentar que os asteróides sejam alguma coisa produzida com um propósito bom? Na verdade, como podemos sustentar que há algum propósito subjacente à criação de um asteróide? Asteróides são objetos compostos pelos restos de outros grandes objetos, restantes da formação de planetas. Eles não existem para um propósito, muito menos para um propósito benéfico. Eles entram na formação de outros planetas e satélites e seu movimento se dá nas órbitas de Júpiter e Marte. Alguns eventualmente alargam suas órbitas, aproximando-se de planetas como a Terra e Vênus.
Ora, um Deus todo-poderoso, bom e onisciente reconheceria que tais objetos espaciais são ameaçadores e dotados de um imenso poder de destruição e, portanto, não os teria criado. Mas o fato é que os asteróides existem!

O desafio gnóstico

Imensa era a variedade de cristianismos primitivos. Prova disso surgiu quando da descoberta por trabalhadores agrícolas no Alto Egito de um punhado de livros produzidos por outros grupos cristãos cujos ensinamentos divergiam muito das visões proto-ortodoxas. A biblioteca de Nag Hammadi abrigava um vasto conjunto de livros, vários do quais encerravam concepções sobre Deus, sobre o mundo, sobre Cristo e sobre religião muito diferentes das perspectivas da proto-ortodoxia. Entre os livros, se acharam evangelhos supostamente escritos por Filipe e João, filhos de Zebedeu, por seu irmão Tiago, e seu irmão gêmeo Tomé. Também esses livros eram falsificados. A maioria dos textos se baseava na crença de que não havia apenas um Deus bom e grandioso que criou um mundo bom. Outros afirmavam, explicitamente, que o mundo não era bom e que resultava de um erro cósmico. Esse mundo fora criado por uma deidade inferior e ignorante, que era identificada, por engano, com o Deus verdadeiro e Todo-poderoso.
Os grupos gnósticos apelavam para a necessidade do “auto-conhecimento” como um meio de alcançar a verdade. A salvação só se alcançaria pelo conhecimento (gnose), que, no entanto, é secreto e reservado a uma elite espiritual. Conforme observa Ehrman,

“Documentos assim expressam o que muitos, ao longo da história, conhecem tão bem por experiência própria – os famintos, os doentes, os aleijados, os oprimidos, os abandonados, os inconsoláveis. Este mundo é miserável. Se há alguma esperança de libertação, não virá de dentro deste mundo por meios terrenos, como, por exemplo, melhorando o bem-estar social, colocando mais professores nas salas de aula ou investindo mais em recursos nacionais para a luta contra o terrorismo. Este mundo é um poço de ignorância e sofrimento, e a salvação não virá por meio de sua melhora, mas escapando-se completamente daqui”.

(p. 172)


Os gnósticos acreditavam que nós não fomos criados para viver neste mundo. Na verdade, nós fomos aprisionados aqui pela divindade ignorante e inferior que o criou. Para escapar a essa prisão terrena, os gnósticos propunham que devemos conhecer quem somos, de onde viemos e o que nos tornamos. Segundo esses cristãos, nós viemos do reino de Deus.
Não é correto entender o gnosticismo como um todo homogêneo. Havia diversas formas de gnosticismo, bem como há diversas formas de cristianismo.
Vejamos como os gnósticos e os escritores bíblicos pensavam o problema do mal no mundo. Para os primeiros, o mundo material é essencialmente mau. Tal mundo não fora criado por um Deus bom que declarou boas as coisas que criou, tal como se relata no Gênesis. É claro que judeus e cristãos não acreditavam ser o mundo perfeito, mas explicavam a origem do mal de modo diferente. Eles acreditavam que o mal provinha do pecado humano.
O gnosticismo é um movimento cristão que surgiu no interior do judaísmo, embora deste tenha divergido em alguns pontos da doutrina, sem, contudo, abandonar visões e matérias judaicas e cristãs. Particularmente interessante é a apresentação que faz Ehrman, em Os Evangelhos Perdidos (2008), da carta de Ptolomeu, um discípulo gnóstico de Valentim, a uma mulher, provavelmente, cristã proto-ortodoxa, nas quais encontramos as posições gnósticas sobre o Velho Testamento.
Antes de começar a apresentar o que tinha a dizer Ptolomeu sobre o Velho Testamento, convém lembrar que havia, naqueles tempos, uma ampla variedade de entendimentos do Velho Testamento entre os grupos cristãos. Os ebionitas acreditavam que o Velho Testamento era a sagrada Escritura em que se deveria basear o cânone cristão; para Marcião (de onde provém o termo “marcionitas”), o Velho Testamento recobria apenas as Escrituras do Deus judaico, não do Deus de Jesus; portanto, não poderiam ser incluídas no cânone.
Ptolomeu, a seu turno, concentra suas críticas nos cinco primeiros livros do Velho Testamento (conhecido como “Pentateuco”). Discordava de duas visões correntes acerca de quem estabeleceu a Lei. Os cristãos proto-ortodoxos defendiam que a Lei fora estabelecida pelo Deus, que é Pai. Alguns grupos gnósticos, ao contrário, entendiam que ela fora estabelecida pelo diabo. Para Ptolomeu, ambas as visões são equivocadas.
Ptolomeu – e nisso devemos reconhecer-lhe o bom-senso – entendia que o Velho Testamento não poderia ter sido inspirado por um Deus bom e perfeito, já que seus textos incluem uma série de recomendações imorais que não são dignas de um Deus bom e perfeito, como as dadas aos israelitas, que deveriam assassinar os canaanitas que viviam na terra que lhes fora prometida àqueles. Por outro lado, não poderia ter sido inspirado pelo diabo, já que inclui alguns preceitos bons e justos. Para mim, isso encaminha à conclusão de que o Velho Testamento foi produzido por homens, seres essencialmente contraditórios. Mas Ptolomeu não poderia, evidentemente, chegar a essa conclusão. Se nem era o Deus verdadeiro nem o diabo o autor, quem teria sido então?
Ptolomeu observa que os Dez Mandamentos devem ter sido estabelecidos pelo Deus verdadeiro. Todavia, há outras leis que não provieram desse Deus, no que Jesus parecia estar de acordo. Escreve-nos Ehrman a esse respeito o seguinte:

“(...) apenas algumas leis da Escritura vêm realmente de Deus. Porém, até mesmo essas leis divinas são de três tipos. Algumas são perfeitas, como os Dez Mandamentos, por exemplo. Outras são manchadas pela paixão humana. Por exemplo, a lei de retaliação, “olho por olho, dente por dente”, é “entrelaçada com injustiça”, porque, como destaca Ptolomeu, “aquele que é segundo em agir injustamente ainda assim age injustamente, diferindo apenas na ordem relativa na qual ele age, e cometendo o mesmo ato” (5:4). Terceiro, há algumas leis da Escritura que devem ser claramente interpretadas de forma simbólica, e não literal”.

(p. 196)



Uma dessas leis que devem ser interpretadas simbolicamente é a da circuncisão. Para Ptolomeu, ela não deveria ser interpretada como uma ordem para que retirassem o prepúcio dos meninos, mas como uma indicação da necessidade de destinar o coração a Deus. A lei do Sabá não tem nada que ver com abster-se de trabalhar no sétimo dia, mas de evitar a prática do mal; e a lei do jejum não é uma prescrição para que se passe fome, mas para que se abstenha de maus hábitos.
Com base no ensinamento de Jesus sobre o Velho Testamento, Ptolomeu conclui que a Lei implica um ser divino e justo, mas não um Deus único verdadeiro e perfeito. A esse ser divino e justo, Ptolomeu chamou o Demiurgo, ou seja, o criador do mundo. Esse Demiurgo é um intermediário entre o Deus verdadeiro, bom e perfeito e o Diabo.
Ptolomeu estava convencido de que seus ensinamentos foram baseados naquilo que Jesus ensinou. Declara que seguiu a “tradição apostólica”. Ehrman, concluirá, como se segue:

Claramente, aqui está um crente sincero, que entendia que suas visões eram aquelas dos apóstolos e, por meio deles, de Jesus. Isso se aplica não apenas às suas visões da Escritura, mas àquelas do mundo divino e do lugar do ser humano neste mundo. Aqui temos uma evidência adicional, como se fosse necessária mais alguma, de que os perdedores na batalha para estabelecer a “verdadeira” forma de Cristianismo lutavam para descobrir a verdade e a certeza de que seu entendimento da fé residia no ensinamento dos próprios apóstolos de Jesus. Se as visões de Ptolomeu não tivessem sido citadas nos escritos de Epifânio, que as explicou somente a fim de atacá-las, poderíamos nunca ter percebido como elas eram claras, apaixonadas e íntegras”.

(p. 197)

Não tive a intenção de ser exaustivo na apresentação do diversificado pensamento gnóstico cristão. Apoiarei minhas conclusões, com as quais, espero, o leitor esteja de acordo, sobre esse trecho final de Ehrman.
Em primeiro lugar, é imperioso notar que o autor usa aspas em “verdadeira”, ao se referir à forma vitoriosa do cristianismo. Isso nos leva a considerar o fato de que não temos razões para assegurar que a perspectiva vitoriosa, a proto-ortodoxa, representada por figuras como Irineu e Epifânio, seja tão verdadeira quanto a de Ptolomeu. Espero que fique claro que o que pesou para a vitória dos proto-ortodoxos, que estabeleceram num cânone definitivamente, suas visões teológicas, foi seu poder (político e ideológico). A visão “verdadeira” é a visão dos grupos vitoriosos. Já as perspectivas dos perdedores foram qualificadas de heréticas ou falsas. Quão diferente, podemos supor, seria o Cristianismo, hoje, caso as visões defendidas por Ptolomeu predominassem sobre aos dos pais da Igreja primitiva.
Em segundo lugar, o próprio fato de que havia grupos cristãos, muito variados entre si, que tinham concepções diferentes sobre quem era Jesus, sobre a natureza de Deus (ou dos deuses) e do mundo material prova que foi por razões históricas que hoje, os cristãos, modernos assumem determinadas representações de Deus como “verdadeiras” e, supostamente, reveladas pelo próprio Deus. Como vimos, grupos de cristãos tinham compreensões diferentes de Deus, do mundo, do problema do mal e do sofrimento, de Jesus, etc. Ora, um Deus que pretendesse se revelar deveria fazê-lo de modo a evitar equívocos e diversidade de opiniões, por vezes, contraditórias a seu respeito.
É interessante notar também que a posição dos gnósticos, em face do problema do mal no mundo, era mais confortável, teologicamente, do que a dos israelitas, que tinham de conviver com o desapontamento sempre que se apercebiam de que seu povo sofria, sem que Deus interviesse. É verdade que os autores de Isaías, Jeremias, Ezequiel, Oséias e Amós buscavam explicar o sofrimento do povo de Israel, que sofrera com invasões militares, dificuldades políticas e sociais, culpando o próprio povo pelo pecado contra Deus. O sofrimento era, assim, na perspectiva desses autores, resultado da punição de Deus. Mas como explicar a permanência do sofrimento, mesmo quando as pessoas se voltavam para Deus? Essa visão também falha, porque não explica o sofrimento dos justos e a prosperidade dos perversos.
Os gnósticos, a seu turno, explicariam que o sofrimento é inerente à matéria de que o mundo foi feito; é produto de uma criação imperfeita, feita por uma divindade ignorante. Não suponho que os gnósticos estivessem com a verdade. Tanto eles quanto os demais cristãos buscavam compreender o mundo a partir de suas visões ideológico-teológicas. Mas notem a coerência interna da visão gnóstica. Uma vez reconhecendo ser este mundo impregnado de dor e sofrimento, os gnósticos não poderiam sustentar a crença de que este mundo tenha sido criado por uma divindade boa e perfeita. A alternativa foi elaborar uma teologia que ensinasse existirem dois deuses: um bom e perfeito, que não criou o mundo; e uma divindade era imperfeita e ignorante, que teria criado o mundo e capturado os seres humanos, aprisionando-os. Os gnósticos tinham um mito através do qual contavam o surgimento tanto do Deus verdadeiro e perfeito quanto da divindade imperfeita. Nós, seres humanos, proviemos desse Deus bom e perfeito, que nos reserva um reino de paz e felicidade.
Quando nos esforçamos por estudar e compreender fatos como os que apontei, que dizem respeito à formação do cristianismo, um movimento religioso marcado, ainda hoje, pela diversidade de dogmas, crenças e rituais, somos levados a perceber como tudo que se escreveu e se disse sobre Deus, Jesus, e seus feitos grandiosos, são ficções históricas produzidas por homens socio-historicamente situados, que buscavam respostas às suas dificuldades, em sua época. Se alcançamos essa compreensão, entendemos o que quero dizer quando sugiro que busquemos o enraizamento de Deus na história. O Deus transcendente (que existe além do mundo e do universo e independente destes) é um Deus de que não se ouviria falar se não existissem seres humanos para produzir história. A compreensão da história do Deus judaico-cristão ajuda-nos a entender também as razões por que ele não é um Deus unanimemente reconhecido no mundo. Há povos, comunidades que o ignoram. E os povos que o desconheciam passaram a professar a fé nele por força da opressão de povos colonizadores. Novamente, a história vem em socorro da real forma como esse Deus “se revela”. Um Deus do qual se diz ser bom, justo, perfeito, amoroso e todo-poderoso não deveria depender da ação opressora e violenta de grupos humanos para se tornar conhecido por comunidades humanas que, por razões culturais e históricas, o ignoravam até então. Veja-se o caso dos povos indígenas do Brasil de 1500, aos quais os valores do cristianismo (e, evidentemente, a crença, até então inconcebível nos padrões culturais desses povos, no Deus cristão) foram impostos por força da ação dos colonizadores portugueses.
Um Deus que pretendesse se revelar como único e verdadeiro deveria cuidar para que outras tantas comunidades de homens não viessem a cultuar outros deuses ou mesmo a abandonar qualquer crença em deuses. Os ateus existem. Não se trata de um Deus que deveria se impor e obrigar a todos devoção a ele. De certo modo, foi o que aconteceu: não que Deus tenha se imposto, é claro, mas sim homens que impuseram suas crenças em um único Deus que julgavam verdadeiro. Um Deus tão grandioso quanto o Deus cristão simplesmente seria capaz de revelar-se, de modo que todos os homens se tornariam convencidos de que só há um único Deus e, certamente, o meio pelo qual se revelaria não poderia consistir em  “inspirar” Escrituras produzidas por seres humanos tão suscetíveis ao erro e à corrupção, tampouco por meio de apropriações de terras alheias e jugo de seus habitantes, mediante a força da opressão e violência.









2 comentários:

  1. Muitas omissões devem mesmo pairar nesse mantenimento da Bíblia como reveladora de verdades.
    Acho, realmente, divertidas as contradições (e o tom irônico de Ehrman) q, talvez, sejam justamente a intenção católica ecumênica. Levando os crentes a pensarem q, se há mais por trás das histórias, é pq tem algo aí.
    Acho q, no fundo, 'deus' é um grande brincalhão manipulador de mentes mesmo. Rsrs

    Bjo, amigo
    (Dando início às minhas atualizações por aqui) ;)

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  2. Beijos, amiga! Que bom poder ler suas respostas. Tem muita coisa por detrás.

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