sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

"Invejo todas as pessoas o não serem eu" (Fernando Pessoa)

 
                                  

                                            Pessoa em mim
                            Impressões do desassossego


Ainda estou por descobrir se a vida me está atravessada na alma, ou se eu nasci atravessado na vida. No entanto, tenho este sentimento vigoroso de mim e ele abriu-me um livro que é só meu. Suas páginas são manchadas com minhas lágrimas e com o meu sangue. E nelas eu estampo minhas tristezas, desnudo minha alma que vive a deslizar pelo amor. Embora poucas, as alegrias que ficam espalhadas não são menos intensas.

Tenho uma forte sensação de mim. Não temo a morte porque compreendo que toda forma de vida tende a ela. É o imperativo natural: tudo que vive deve morrer. Abro as páginas de Pessoa e o que acho ali me traz uma paz perturbadora, um espanto sereno; e me deixo estar, com os olhos pregados nestas palavras:

“Fui um momento com consciência, o que os grandes homens são com a vida. (...) Não saber de si é viver. Saber mal de si é pensar. Saber de si, de repente, como neste momento lustral, é ter subitamente a noção de mónada íntima, da palavra mágica da alma. Mas essa luz súbita cresta tudo, consume tudo. Deixa-nos nus até de nós”
(pp. 70-71)

O desassossego de Pessoa acolhe-me como um ninho acolhe uma ninhada. Este desassossego aninhado em minha alma desde que fui lançado a essa existência que excede às pretensões da razão, e desde que lhe reconheci o caráter contingente, pelas mãos de Sartre, esse desassossego me é tão íntimo, que suspeito teria sido eu que o sentia em outras épocas.

“Considero então que coisa é esta a que chamamos de morte. Não quero dizer o mistério da morte, que não penetro, mas a sensação física de cessar de viver. A humanidade tem medo da morte, mas incertamente, o homem normal bate-se bem em exercício, o homem normal, doente ou velho, raras vezes olha com horror o abismo do nada que ele atribuiu a esse abismo. Tudo isso é falta de imaginação. Nem há nada menos de quem pensa que supor a morte um sono. Por que o há-de ser se a morte se não assemelha ao sono? O essencial do sono é acordar-se dele, e da morte, supomos, não se acorda. E se a morte se assemelha ao sono, deveremos ter a noção de que se acorda dela. Não é isso, porém, o que o homem normal se figura: figura para si a morte como um sono de que não se acorda, o que nada quer dizer. A morte, disse, não se assemelha ao sono, pois no sono se está vivo e dormindo, nem sei como alguém pode assemelhar-se a morte a qualquer coisa, pois não pode ter experiência dela, ou coisa com que comparar. A mim, quando vejo um morto, a morte parece-me uma partida. O cadáver dá-me a impressão de um trajo que se deixou. Alguém se foi embora e não precisou de levar aquele fato único que vestira”.
(p. 71)

Não sinto medo da morte, tampouco me esquivo de pensá-la. Ela, como o amor, é tema recorrente em minhas páginas. Pensar a morte permite-nos sentir mais visceralmente a vida, a vida que pulsa em nossas entranhas, não do corpo, mas da alma. Quando pensamos, nos comprometemos mais com a vida. Pensá-la é ressenti-la. E cada pensamento que dedicamos a ela é um pouco dela que ressentimos. Quando pensamos sobre a morte, retiramos-lhe a catadura de horror. De fato, não acordamos da morte, como acordamos de um sono. O despertar para a morte só pode acontecer quando reconhecemos à vida o direito de morrer. Somos grávidos da morte, e esta certeza não se pode abortar. Abortam-se vidas prematuras, mas a morte está entranhada em nós; nascemos pré-destinados a ela. Não há vida sem morte; nem se pode morrer sem estar vivo. É óbvio, dirão, mas insistimos em negar essa implicação.

“O que tem a Assustadora Morte para Assombrar o Homem,
Se as Almas, assim como os Corpos, morrem?...
Da aflição e da dor nos libertaremos;
Não iremos sentir, porque não Seremos”.

(Lucrécio)

Se não mais seremos, não mais sentiremos; não-ser é o fim da consciência. Nada restará de nós, salvo as lembranças na memória dos que aqui ficaram. E, se, por ventura, tivermos sido artistas, legaremos nossa obra à posteridade; isso já é uma forma de sobreviver; mas entenda-se bem: a obra não torna à vida o artista, apenas o torna rememorável. O pó deixa a sua grandeza na obra legada. Isso distingue os artistas (poetas, escritores, escultores, pintores...) dos demais. A morte não os aniquila por completo.
A morte, que, por definição, não nos legará dor alguma (simplesmente porque não há mais o que sentir, quando se está morto) é temida porque ela atinge a todos nós, seres cientes dela, indiscriminadamente. A ela não importa se você se realizou ou não enquanto ser humano. O medo da morte advém, na verdade, do medo da não-realização enquanto pessoa. Provavelmente, uma pessoa que se realizou numa vida de longevidade não temerá tanto a morte.
A fragilidade da vida e a inexorabilidade da morte não me assombram, não me atormentam; sinto-as na lucidez imperturbável de meu espírito; sinto-as pulsantes em minha carne. Eu represento a morte de tudo quanto é baixo nesta vida e proclamo as alturas das coisas delicadas, frágeis, porém sublimes: a alma, o amor, a amizade, a ternura, a existência, a consciência de existir, de estar em relação de significação com os outros...
Eu só sei de mim, se não ignorar o outro, mas preciso dar-lhe a indiferença para alcançar uma dimensão mais potente e íntegra de mim. Dar-se demais ao outro nos fragmenta, e não convém viver colhendo os pedaços de nós, pois que talvez não tenhamos tempo de reunir os fragmentos.
Não temo a morte e sei que ela me espreita; porém o sentimento que tenho dela me adverte, me sinaliza como devo experienciar o tempo breve que tenho de vida. Eu existo por consentimento da morte. A morte é como o credor que nos permite viver, a despeito das dívidas. Viver bem é adiar o pagamento.
Uma consciência aguçada da existência implica reconhecer que a divisão passado-presente-futuro é mera abstração feita pelos homens, é uma forma de representar a temporalidade que se experiencia; uma dimensão que, de outro modo, é um ir-se imensurável. Donde se segue que o futuro é a não-consciência; que sou no presente e só posso saber de mim neste instante mesmo em que estou consciente de que sou entre as coisas e as pessoas que me cercam. O futuro não é senão o presente que não se realizou para a consciência para a qual só há presente (o passado é memória da qual temos que tomar consciência, só assim o passado é presente a nós). A vida se dá a nós através dos momentos, dos instantes e dos sentimentos experienciados, desde o momento em que acordamos até o momento em que repousamos para o sono da noite. A vida se dá a nós pelos relacionamentos, pelo existir que é estar em relação com o mundo, uma relação significativa. Os homens são seres de sentido e o sentido lhes é essencial. Homens vêem-se às voltas com questões sobre o sentido da vida. Quando o sentido lhes escapa, a vida perde o valor. Essa necessidade de dar sentido às suas experiências de mundo explica por que os homens precisam dar sentido à morte. Se a morte é o fim da consciência, se ela porá fim a tudo que experienciamos, então deve ela também ter sentido. Somos caçadores de sentido! Mas a morte é o esvaziamento do sentido. Vida e morte nos vinculam ao absurdo. A morte implode a razão. A vida a excede. À razão resta compreender os modos como a vida se dá, como se manifesta, como é experienciada, sem nunca pretender alcançar-lhe as raízes que lhe permitiram acontecer (para o homem comum deve ser assim). A vida aconteceu e nós passamos a existir. Trazemos na alma excesso de sentido que será destinado ao nada. Para mim, é isso que torna a vida plena de sentido.

6 comentários:

  1. Oi tudo bem ?
    Muito bacana o seu blog e desde ja estou seguindo bjos =)

    http://jhdocemel.blogspot.com/

    http://pensador.uol.com.br/colecao/blogjuh/

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  2. "Não tenho medo de morrer,tenho medo sim é de deixar de viver."
    (François Mitterant)

    Beijos, meu guri!!!

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  3. É isso mesmo Bruno! Diante da possibilidade da morte,devemos nos permitir mais a vida...
    Adorei o texto! Como sempre muito lúcido!
    Bjusss

    "Eu só sei de mim, se não ignorar o outro, mas preciso dar-lhe a indiferença para alcançar uma dimensão mais potente e íntegra de mim. Dar-se demais ao outro nos fragmenta, e não convém viver colhendo os pedaços de nós, pois que talvez não tenhamos tempo de reunir os fragmentos". BAR

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  4. Fico sempre maravilhada ao ler seus textos Bruno, tão coerentes, tão sábios! Poucas pessoas tem essa compreensão da vida e da morte, mesmo com muitos anos já vividos...é preciso compreender a fragilidade da vida, morrer está na esquina que qualquer um de nós pode dobrar agora mesmo, então... "É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã", certo? Eu
    já tive medo de morrer, hoje tenho medo de viver...

    E depois como diz sabiamente Fernando Pessoa: "A morte é a curva da estrada. Morrer é só não ser visto".


    Um beijo carinhoso pra vc! :)

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  5. o desassossego tb me é um livro de 'consultas' anímicas, que eu mantenho sempre à minha cabeceira.
    incrível é que ele me dá as respostas [ou perguntas!] de que necessito!
    ainda bem que eles existem [grandes autores]...
    ainda bem que temos o privilégio de nos [nós e o livro] conhecermos.

    beijão

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