quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

O que estuda a Linguística?

Muito prazer, a Linguística!


Não consigo pensar em conhecimento sem que eu lhe confira uma função de emancipação. Claro é que certas formas de conhecimento são dispensáveis, como, por exemplo, saber como funciona o mercado da prostituição. Se disso podemos concluir que nem toda forma de conhecimento tem uma função dignificante, também é possível sustentar que todo conhecimento está suscetível a valorações sociais.
Para mim, duas formas de conhecimento foram assaz valiosas: a da Linguística e a da Filosofia. Aquela é anterior e mais sólida do que esta, evidentemente. Excogitei na possibilidade de dar a conhecer aos meus leitores um pouco da contribuição da Linguística para a minha formação acadêmica e, sobretudo, humana.
Desde já, convém ficar claro que não vou me exceder em fundamentações e requintes teóricos. Estou ciente de que não escrevo para especialistas; portanto, cuidarei para não enfadar os leitores. Embora a variedade linguística em que este texto é vazado me traia, esforçar-me-ei por apresentar e discutir o tema de modo mais simples possível.
Começarei, pois, afirmando que, não obstante haver outras tantas contribuições, a Linguística, mormente na sua versão aplicada, viabiliza a formação da consciência crítica do professor. Essa é uma contribuição que quero aqui assinalar: o recém-graduado em Letras, se familiarizado com os estudos desenvolvidos no campo da ciência linguística, tem o potencial necessário para adotar uma atitude crítica em face do ensino tradicional de português. Vale dizer que me dirijo, nesse momento, aos alunos, então professores, que passarão a atuar nos ensinos fundamental e médio. A questão que deve ser aventada aqui e na base da qual desenvolverei meus pensamentos é a seguinte: O que é indispensável ao professor de português saber quando de sua atuação em sala de aula na escola? Vejamos.
Não estou preocupado em elencar conhecimentos, o que seria tarefa exaustiva e improfícua. Quero apenas indicar aquilo que me parece ser indispensável para que a prática pedagógica do professor de português seja minimamente eficiente. Creio em que é importante, num primeiro momento, ter em conta a concepção de gramática com a qual ele desenvolverá seu trabalho pedagógico. Aqui, aliás, há a primeira grande ruptura com o senso-comum, já que, para a grande maioria esmagadora de nossa sociedade, gramática é um conjunto de regras para se falar e escrever corretamente. Trata-se, portanto, do que se costuma chamar, nos meios acadêmicos, de gramática normativa, que Franchi (2006: 16) define como se segue:
“Gramática é o conjunto de normas para bem falar e escrever, estabelecidas pelos especialistas, com base no uso da língua consagrado pelos bons escritores”
(ênfase no original)

Não vou descer a pormenores na avaliação dessa definição, mas convém esclarecer quem são os especialistas a que Franchi se refere. Eles são os gramáticos e/ou filólogos (os mais renomados de nosso tempo são Evanildo Bechara, Celso Cunha e Rocha Lima) a quem compete prescrever as regras de uso da norma culta. Tanto o papel desses estudiosos quanto o conceito de norma culta propiciam discussões fecundas, das quais eu, evidentemente, não vou me ocupar. Basta insistir em que a gramática normativa é a disciplina que prescreve (dita) as regras de uma das variedades da língua, as quais devem ser conhecidas e dominadas pelos falantes nativos a fim de que sejam bem avaliados socialmente. Essa definição já nos deixa entrever um pouco da contribuição da Linguística para a formação do professor. Ora, o que ele costuma ensinar na escola é a gramática normativa – e na sua versão clássica e ortodoxa –, a qual, embora se acredite no contrário, não compreende a totalidade de usos da língua; mas tão-só aqueles usos que são considerados social, cultural, política e ideologicamente prestigiosos.
A primeira lição que todo professor deve aprender é: o que está ensinando não é como se deve falar e escrever “corretamente”; o que está ensinando é, na verdade, como se deve falar e escrever numa dada variedade da língua (a variedade padrão ou de prestígio) para que se possa ser bem avaliado socialmente. Além disso, é indispensável reconhecer que o uso da variedade padrão não é extensivo a todo e qualquer contexto comunicativo. Mesmo o falante mais bem escolarizado, o intelectual, o douto, o professor não se expressará de acordo com as regras da variedade padrão do português em qualquer situação comunicativa. É preciso adequar a variedade da língua à situação comunicativa de que participamos. Cada situação exige um certo grau de formalidade linguística; em outras palavras, cada situação comunicativa exigirá uma determinada variedade linguística. Não falamos do mesmo modo quando estamos numa entrevista de emprego ou na praia com os amigos. Nesse tocante, a adequação social em termos linguísticos é semelhante a qualquer outra forma de adequação de comportamento social. Não vamos a um casamento de bermuda e sandálias, porque o código cultural deste contexto prevê o uso de outra espécie de vestimenta.
A segunda lição é a que toca ao reconhecimento do preconceito linguístico, disseminado e sustentado pelas classes dominantes e reproduzido por toda a sociedade. Tal forma de preconceito, que penetra no inconsciente social (as pessoas sequer se dão conta dele, mesmo os mais escolarizados, integrantes da elite intelectual do país), se fundamenta numa série de mitos, de superstições, de noções equivocadas do tipo “certo” e “errado”, de juízos de valor como “bom”, “ruim”, com os quais são classificadas as diferentes formas de uso linguístico. A ideologia do erro linguístico mascara mais uma forma de preconceito social. Pois é isso: o preconceito linguístico não é senão mais uma forma de manifestação do preconceito social comum no Brasil (embora não seja uma peculiaridade da sociedade brasileira; o preconceito linguístico existe em praticamente todas as sociedades do mundo civilizado).
Reconhecer e combater o preconceito linguístico é também papel do professor, não só dos linguistas. Não quero sustentar a crença em que tal combate seja tarefa fácil e que logrará sucesso num tempo breve. Essa forma de preconceito está arraigada em nossa cultura e é resultado de séculos de colonização portuguesa, de perpetuação de um ensino de português normativista, ortodoxo, que fez face às descobertas da Linguística, desde a sua institucionalização como disciplina universitária em nosso país na década de 60. No entanto, o professor universitário que, numa turma de quarenta alunos (e me refiro aos alunos do curso de Letras), consiga que dez deixem os bancos universitários conscientes do seu papel sócio-político e pedagógico e da necessidade de se arvorar em defensores da emancipação sociolinguística de seus futuros alunos, esse professor já terá logrado sucesso.
A título de ilustração, considerem-se as seguintes ocorrências:

(a) Quando a gente chegamu, eles já tinha saído.
(b) A gente não sabemu se comportar.

Qualquer falante escolarizado perceberá que tais formas se desviam da norma de prestígio da língua, que se costuma chamar de norma culta. Em (a) e (b), observamos um desacordo com essa norma, atinente à concordância verbal. Não reproduzi, nesses exemplos, a pronúncia tal como ela se realizaria (cf. /chegamu/, /sabemu/ e /saídu/), pois nos basta ter em conta o “desvio” apontado. Se comparamos tais construções às que são recobertas pela norma culta, ou seja, às suas correspondentes formas-padrão,

(c) Quando nós chegamos, eles já tinham saído.
(d) Nós não sabemos nos comportar.

deveremos reconhecer que entre elas só há diferença de uso. Assim, toda língua é um balaio de variedades ou diferenças de uso. O considerar (a) e (b) como “erradas” e (c) e (d) como “certas” resulta de uma valoração social, com grande dose de preconceito elitista. Não há nada na construção de tais enunciados que justifique o rotular umas de “erradas” e outras de “corretas”. O que a ideologia do preconceito linguístico mascara é o fato de que as avaliações negativa e positiva conferidas a cada qual dos pares dessas construções são motivadas pelo status social do falante que as utiliza. É só porque (a) e (b) são formas de uso tipicamente comum entre os falantes pertencentes às classes sociais menos favorecidas, às quais se nega o acesso aos bens culturais prestigiados e cujos membros têm grau de escolaridade baixo, em relação aos membros das classes mais abastardas, que tais formas são consideradas “erradas”, “feias”, “estropiadas”. Do exposto, se deve concluir que as formas linguísticas valem tanto quanto valem socialmente os seus usuários.
Eu procuro sempre fazer ver aos meus alunos do curso de Letras que, toda vez que fazemos um comentário negativo sobre, por exemplo, a fala de uma empregada doméstica, ou de uma pessoa que provenha de uma comunidade carente, quase sempre fazemo-lo acompanhado de justificativas do tipo “pobrezinho(a), não tem instrução”, “também, olha só onde ela (ele) mora”, etc.
Esclareçamos, de uma vez por todas: todo falante nativo de português, independentemente de sua origem geográfica, classe social, gênero, idade, etnia, grau de escolaridade sabe português, sabe falar português. Nem todos, entretanto, têm a oportunidade de ter acesso à variedade de prestígio – tarefa esta que cabe à escola.
Chegamos, pois, a outra lição da qual o professor de português deve estar consciente: a existência da variação linguística. Não há erros, mas tão-só diferenças de uso. E, definitivamente, é preciso que seja rechaçado outro equívoco, um disparate, infelizmente, reproduzido pela mídia e pelos pseudogramáticos de plantão que, ignorando completamente o trabalho desenvolvido pelos mais renomados especialistas nos grandes centros de pesquisa linguística de nosso país, insistem em propagar a gramatiquice que não faz senão agravar ainda mais a já baixa auto-estima linguística do brasileiro, contribuindo para perpetuar o preconceito linguístico: os linguistas não defendem o famigerado “vale-tudo” em matéria de língua. Nada disso. Tampouco, vale crer na ideia de que “havendo comunicação, não há problema”. Também não é isso. As diferenças de uso serão condicionadas e avaliadas segundo as expectativas sociais que permeiam as esferas de poder. Avulta aqui a necessidade de reconhecer a organização hierárquica na base da qual os atores sociais, cumprindo determinados papéis sociais, atuam linguísticamente. Assim, o uso da língua é uma forma de marcar a hierarquia social. O linguista não ignora as relações de poder entre linguagem e sociedade. Todo uso da língua, em alguma medida, é um ato político (no sentido lato do texto), na medida em que ele reflete a luta de classes no nível ideológico.
Quando uso a língua, negocio significados, procuro atender às minhas necessidades comunicativas e a satisfazer às expectativas de meu interlocutor. O linguista, em suma, não ignora a estratificação que há no vasto espectro de usos da língua. Há um forte sentimento de estratificação na prescrição dos usos da língua e o linguista não está alheio a isso. Ele reconhece que apropriar-se das variedades de prestígio é apropriar-se de um poderoso capital linguístico. Usar a língua é exercer uma forma de poder social. Por isso, os linguistas são unânimes em advogar que cabe à escola o ensino da norma culta ou da variedade padrão do português, embora respeitando as outras variedades da língua. Cabe a ela propiciar aos estudantes o acesso à norma linguística de prestígio e o domínio dos recursos que ela estão associados para que ele possa ter maior mobilidade social.
Se, por um lado, o linguista rechaça a ideia equivocada e preconceituosa de que existem formas “certas” e formas “erradas” de usar a língua; por outro lado, ele reconhece a necessidade de adequação dos usos aos diferentes contextos sócio-comunicativos, como condição indispensável para a maior participação social dos falantes, para uma inserção mais significativa deles no processo social que, em se tratando do nosso país, é marcado por profundas desigualdades socioeconômicas. Pensar o uso da língua em termos de inclusão e exclusão social constitui uma das competências dos linguistas.
A Linguística, em suma, é uma ciência, ainda jovem, se comparada a outras ciências; mas uma ciência já há muito estabelecida (embora vulgarmente ignorada), cujo objeto de estudo é a língua(gem). Como toda ciência, ela é orientada empiricamente, trabalha com coleta e análise de dados reais da língua; adota uma metodologia específica e rechaça toda e qualquer valoração de ordem subjetiva, ideológica e eivada de preconceito.
Ùltima nota
O único “fracasso” da linguística, no que toca à sólida formação teórico-metodológica do professor de português, repousa na incapacidade de ela livrá-lo do estereótipo social que lhe confere os papéis imaginários de ‘guardião da pureza do idioma’, ‘detentor do saber linguístico legítimo’, ‘profundo conhecedor do português’ ou mesmo de um ‘policial da língua’. Não obstante exibir sua formação em Linguística, é inevitável que, diante de pessoas comuns, todo aquele que é formado em Letras seja recebido com a famigerada observação “ele é professor de português”, do que se infere: “cuidado ao falar!”.
E lembre-se, leitor: é vão pretender explicar que a formação dada aos alunos do curso de Letras é outra, que existe uma ciência chamada Linguística, que não existe certo e errado em matéria de língua, etc., etc., etc. As pessoas, em geral, querem receitas: se elas procuram um professor de português, é simplesmente para saber se elas podem ou devem dizer ou escrever tal ou qual coisa. E nada de iniciar a explicação com depende... Isso, certamente, vai enfadar o inquisidor, que está afoito para solucionar sua dúvida, justa, mas alimentada por uma profunda ignorância, infelizmente, perpetuada.

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