segunda-feira, 5 de outubro de 2015

"Todo ato existencial é um ato de indeterminação problemática" (Abbagnano)

                                                         
                     

                       Existir como relação com o ser

Introdução

Este texto não pode ser lido, meditado, saboreado e fisiologicamente compreendido por leitores de ciberespaços, habituados que estão a fast-sentences leves e simples que facilitam a digestão. O tema do texto, decerto, pode intimidá-los, mas é a extensão que os enfada, porque não habituados a consumir seu tempo  com elucubrações. Um texto longo que verse sobre um tema sério demanda do leitor um paciente trabalho de ruminação; mas os leitores de ciberespaços são inaptos para exercícios intelectuais que exigem demora, entrega e paciência mais longas do que se espera numa época em que é preciso estar em movimento constante, indo a todos os lugares sem nunca estar (deter-se) em lugar algum. Mas, quando penso na razão por que insisto em escrever e por que me apetece essa atividade, ela não compreende meu interesse pela recepção do leitor. Muito antes de decidir divulgar meus textos em um blog, escrevia para apreender o que lia e para lançar luzes sobre minhas escuridões, para expurgar meus males, deslindar ou acentuar meus conflitos. Ler e escrever são atividades que se completam: a leitura deve sempre preceder à escrita. No entanto, aquela não pode dispensar esta, pois somente quando escrevemos demonstramos se realmente compreendemos o que foi lido. É chegado o momento de entregar-me à elaboração das reflexões a que este texto se destina. Principio com a apresentação de meu objetivo principal.
Ofereço, neste texto, um recorte da minha leitura da posição existencialista do filósofo italiano Nicola Abbagnano, apresentada e desenvolvida em seu livro Introdução ao Existencialismo (2006). Sendo um recorte, o que ofereço não cobre todo o conjunto de reflexões do autor. Como este texto verse sobre um tema existencialista, os problemas de que me ocuparei recobrem questões que interessam fundamentalmente ao existencialismo. Tais questões podem ser subsumidas em um macro-problema, que será centro de minhas preocupações: o problema do ser. Por ser esse o problema central deste texto, cuidei oportuno revisitar o pensamento de Heidegger, cuja contribuição para o desenvolvimento do pensamento filosófico começa com a retomada da questão sobre o ser. Mas antes de Heidegger, foi preciso iluminar, muito brevemente, o lugar de onde ele partiu, para o que recupero a significação do ser em Parmênides e Platão e a distinção operada pelos filósofos da Idade Média entre ser e ente. Até chegar ao exame da posição de Abbagnano, depois de revisitar Heidegger, foi necessário considerar o tema da liberdade em Sartre com o intento de esclarecer a ideia de indeterminação originária do homem, discutida por Abbagnano. Em Sartre, busquei subsídios para pensar a oposição determinação/indeterminação relativamente ao problema da existência. Com Sartre encerro a primeira parte de minha exposição. A segunda parte é dedicada à análise da posição de Abbagnano, tarefa ao longo da qual discrimino no conjunto de preocupações do autor aquelas que compreendem o problema da existência como relação com o ser. Não se trata de um problema distinto do macro-problema a que aludi acima como sendo o problema central. Trata-se do mesmo problema perspectivado como problema existencial do homem concreto.


                                   PARTE I

1. A questão do ser

Ser, em seu sentido básico e abstrato, é a única realidade verdadeira e fundamental, subjacente à diversidade das coisas que se nos dão à experiência sensível. O ser é o real no sentido mais fundamental. O ser parmenidiano tem caráter oculto e só era acessível ao pensamento.
Para os antigos, o ser é presentificação, é aquilo que se apresenta depois do desvelamento. O ser é presença, é manifestação daquilo que sempre foi, mas que não se deixa apreender pela experiência sensível; é uma presença que gosta de se ocultar. O ser não é a totalidade das coisas sensíveis, mas é condição de possibilidade de aparecimento das coisas. O ser é o que há de mais subjacente na totalidade dos objetos que se dão à nossa experiência sensível. O espanto que os gregos experimentavam diante do ser é o espanto em face de haver algo; o fato de ‘haver’ é fonte de admiração. Os gregos não podiam conceber a geração do ser a partir do nada. O ser é uma presença plenificante e eterna – donde o espanto.
Na filosofia contemporânea, o conceito de ser recobre, além da ideia de imutabilidade que remonta a Parmênides e a Platão, o sentido existencial de ‘existir’ ou ‘estar no mundo’. Do ponto de vista existencialista, o ser é simplesmente aquilo que há ou existe, que está no mundo. Mesmo na contemporaneidade, o conceito de ser não deixou de conservar seu significado mais geral e abstrato, passando a recobrir a ideia de essência ou natureza íntima das coisas. Quando nos referimos ao ser do homem, ao ser desta ou daquela coisa, queremos dizer a essência do homem, a essência ou natureza íntima desta ou daquela coisa, a saber, referimo-nos àquilo faz a coisa ser o que ela é, sem o qual ela deixaria de ser. Os escolásticos pensavam a essência como uma das grandes divisões do ser, de modo que a essência é o ser mesmo das coisas. Vê-se que, entre os escolásticos, apesar da contiguidade semântica entre os dois conceitos, ser e essência não designavam a mesma coisa. É na modernidade, com Descartes, que ser diz o mesmo que essência, ou seja, aquilo que a coisa é.
O significado mais geral e abstrato de ser conduz-nos de volta a Platão. Decerto, toda a metafísica se ocupa, em certo sentido, da reflexão sobre o significado de ser. A abstratividade do conceito de ser, isto é, o ser no sentido de ser puro, sem nenhum determinação chega a exagerar-se em Hegel. Hegel diz que o ser é igual a si mesmo em sua imediatez indeterminada, é a indeterminação pura e o vazio puro. Hegel chega a dizer que o ser é, na realidade, nada.
É preciso notar, contudo, que a diferença entre o sentido geral e abstrato do ser e o sentido existencial levou à distinção, na filosofia da Idade Média, entre o ser e o ente – distinção esta retomada por Heidegger na contemporaneidade. Com base nessa distinção, o ser passou a recobrir o sentido mais geral e abstrato, ou seja, o real em seu sentido mais fundamental e abstrato, a realidade verdadeira e fundamental (sentido que encontramos entre os gregos); e o ente, a designar aquilo que está no mundo, o indivíduo, cada coisa existente. No primeiro capítulo da Introdução de seu Ser e Tempo (2012), Heidegger passa em revista o que a tradição nos legou a respeito do conceito de ser, concluindo não só faltar resposta à questão, mas também, e sobretudo, ser ela obscura e carecida de direção. Dada a reconhecida obscuridade da questão, vejamos de que modo Heidegger procurou encaminhá-la. O ser como horizonte de possibilidade de aparecimento dos entes conduz-nos para a preocupação central da pesquisa heideggeriana, a saber, a existencialidade do Dasein. Cumpre precisar esse ponto com as palavras do próprio Heidegger:

“(...) Entendemos a existencialidade como a constituição de ser de um ente que existe. Na ideia de constituição de ser já se encontra, pois, a ideia de ser em geral. Desse modo, a possibilidade de se realizar uma analítica do Dasein sempre depende de uma elaboração prévia da questão sobre o sentido de ser em geral”. (p. 13)


Quem é o Dasein? Quem é o ser-o-aí? Quem é o ser-no-mundo? A elucidação do sentido do ser depende da análise prévia das estruturas existenciais do Dasein. É a esta empresa que se lança Heidegger. O que eu farei, no entanto, é tão-só lançar luzes sobre o estatuto privilegiado desse ente que é o Dasein, tendo em vista o problema do sentido do ser.

2. Dasein

Atentemos para o trecho a seguir, tomado a Heidegger, em Ser e Tempo (2012):

“O Dasein não é apenas um ente que ocorre entre outros entes. Ao contrário, ele se distingue onticamente pelo privilégio de, em seu ser, isto é, sendo, estar em jogo seu próprio ser. Mas também pertence a essa constituição de ser do Dasein a característica de, em seu ser, isto é, sendo, estabelecer uma relação de ser com seu próprio ser”. (p.48).


Volvendo olhares sobre o limiar desse trecho, não resta dúvida de que Heidegger ressalta o caráter privilegiado do ente que não é apenas um ente que ocorre em meio a outros entes, ente que não se confunde com os outros entes, que não é mais um entre os demais entes. O Dasein se caracteriza por uma distinção ôntica, que constitui um privilégio seu, qual seja, o de relacionar-se com seu ser em seu modo próprio de ser. O Dasein se “compreende”, tem de fazer-se enquanto existindo. Seu privilégio ôntico de ser se traduz como compreensão implícita do sentido de ser que, em termos heideggerianos, se diz pré-ontológica.
O Dasein é o ente em cujo ser se coloca a questão sobre o sentido do ser. A questão do ser lhe diz respeito. O Dasein é cada um de nós pensado na relação necessária com o ser, a saber, como nosso próprio ser, com o ser das coisas e com o ser dos outros. O modo próprio de ser do Dasein é a existência. Só o Dasein existe. O Dasein é o entre privilegiado para o qual, em seu ser, está em causa o seu próprio ser. É ele o horizonte de abertura para a questão sobre o sentido do ser. Deve-se ficar claro que, partindo do reconhecimento de que a questão sobre o ser é obscura e intentando desdobrá-la em sua transparência, Heidegger propõe como condição primeira de investigação tornar transparente o ser daquele que questiona. A questão sobre o sentido do ser só pode ser elucidada por meio da compreensão prévia do ser do ente para o qual o ser está em questão. Essa é a direção que Heidegger pretende dar a referida questão, após concluir que ela foi tratada pela tradição de modo obscuro, conforme se lê abaixo:

“Assim, o exame dos preconceitos tornou ao mesmo tempo claro que não somente falta resposta à questão do ser, mas que a própria questão é obscura e sem direção”. (p. 40).

Justamente porque não se encontrara, àquela altura, uma resposta para a questão do ser e justamente porque essa questão não foi bem colocada que Heidegger apela a que se a retome.

“Deve-se colocar a questão do sentido do ser. Tratando-se de uma ou até da questão fundamental, seu questionamento precisa, portanto, adquirir a devida transparência (...)”. (ib.id.).


Para que se possa conferir a essa questão uma direção, para que se possa torná-la transparente, necessário se faz que se tome um ponto de partida outro, pelo qual se pode situá-la num horizonte de abertura à luz do qual possamos visualizá-la. Onde encontrar esse horizonte de abertura? A resposta já se deixa entrever desde o início desta sub-seção: no Dasein.

“O Dasein sempre se compreende a si mesmo a partir de sua existência, de uma possibilidade própria de ser ou não ser ele mesmo” (p. 48).


A próxima sub-seção será reservada para o tratamento do primado do Dasein. Por ora, notemos que Heidegger reconhece que as possibilidades de ser ou não ser si mesmo podem ter sido escolhidas pelo Dasein, podem ser possibilidades que lhe aparecem e com as quais ele decide comprometer-se ativamente, ou podem ser possibilidades nas quais ele simplesmente foi lançado. Em quaisquer dos casos, a existência só se decide a partir de cada Dasein (ser-no-mundo). Desde já, é preciso sublinhar que a questão do ser situa-se numa problematicidade existencial que é própria do Dasein. Em Heidegger: introdução a uma leitura (2004), Dubois patenteia-nos o que significa Ser nesse quadro hermenêutico existencial:

“Ser, no sentido existencial, é permanecer engajado numa possibilidade de si mesmo, quer a tenhamos ou não escolhido, de tal modo que esta possibilidade, nós a temos precisamente – a ela nos relacionando – com o ser no sentido verbal e transitivo”. (p. 18, grifo meu).


Ser, para o Dasein, é ser no mundo, é ser ocupado de si mesmo e dos outros entes no mundo. Ao ocupar-se de si, o Dasein está sempre em face da possibilidade de escolher entre ser isto ou aquilo. É nesse sentido que ele se relaciona com o ser em sua acepção verbal. Na tradição gramatical, o verbo “ser” é considerado um verbo de cópula ou de ligação, já que a ele compete unir um predicado a um sujeito, como sucede na frase “eu sou médico”. Enfatize-se, portanto, que, para o Dasein, ser é engajar-se numa possibilidade de ser isto ou aquilo. Esse engajamento numa possibilidade de ser si mesmo se dá a cada vez para um Dasein concreto, numa existência singular. O modo de existir concretamente em sua singularidade que está sempre sob a decisão do Dasein constitui a sua tarefa existencial. Em Heidegger, a investigação das estruturas existenciais do Dasein é tarefa da analítica existencial.


2.1. O primado do Dasein

Segundo Heidegger (p. 49), a analítica existencial deve encarregar-se da determinação da “ontologia fundamental de onde todas as demais podem originar-se”. Essa tarefa impõe o reconhecimento do primado do Dasein sobre todos os outros entes. Esse primado do Dasein se expressa de três maneiras, que Heidegger se encarrega de explicitar:

1) primado ôntico: o Dasein é determinado em seu ser pela existência;

2) primado ontológico: na medida em que é determinado pela existência, o Dasein possui uma compreensão de ser de todos os entes que não possuem o modo de ser de si mesmo. Esta compreensão pertence originariamente ao Dasein e é constitutiva da compreensão da existência;

Convém esclarecer o sentido que assume o termo  compreensão no pensamento Heidegger, quase sempre reconhecidamente obscuro, a fim de que não se confunda esse termo com entendimento ou explicação. Não se trata de uma compressão que demanda reflexão, raciocínios, intelecção. Por um lado, a compreensão que constitui um momento estrutural do Dasein se acompanha da sensibilidade. Mas, principalmente, essa compreensão é já um poder-ser, um projeto. Compreensão é um poder-ser e existir segundo o modo das possibilidades que o Dasein têm diante de si. O Dasein tende para o futuro; nesse ‘tender para’, ele compreende-se como uma possibilidade lançada no mundo, em suma, como projeto. A compreensão, portanto, se move nesse domínio de possibilidades de poder-ser.

3) primado ôntico-ontológico: trata-se da possibilidade de todas as ontologias. Destarte, o Dasein se mostra como ente que, ontologicamente, deve ser o primeiro interrogado, antes de qualquer outro. (p. 49).

Na sub-seção seguinte, não se abandonará, de modo algum, o estatuto privilegiado do Dasein. Se lanço mão de outra sub-seção é para realçar esse estatuto a partir do exame da estrutura formal da questão do ser. Compreendamos, então, o modo como Heidegger examina essa estrutura formal da questão do ser.


2.2. A questão do ser: sua estrutura formal

De início, vimos que Heidegger afirma a necessidade de se colocar a questão do sentido do ser. Admitindo se tratar de uma questão fundamental, ele está preocupado em dotá-la da devida transparência. Para atingir seu objetivo, ele se encarrega de analisar a constituição da própria questão, a saber, se ocupa de discriminar os elementos implicados na estrutura da questão. A partir desse exame sobre o sentido do ser é que ele evidenciará se tratar de uma questão privilegiada.
Vamos acompanhar com o merecido cuidado o desenvolvimento do raciocínio de Heidegger, dado que se trata de um momento importante de seu pensamento, momento que lança luzes não só sobre as considerações precedentes a respeito do Dasein, como também sobre as ulteriores que figurarão neste texto.
Heidegger principia com a proposição “todo questionar é um buscar” (p. 40). Toda busca – prossegue ele -, tem naquilo que é buscado sua direção prévia. Ora, a determinação do sentido (direção) da busca é fixada pelo objeto de investigação. O questionar é uma busca ciente do ente naquilo que ele é e como é. O que se visa, nessa busca, sempre consciente, é a transparência do ente, que é o objeto buscado. Recapitule-se, então, os três momentos do questionar, até aqui delineados por Heidegger: 1) todo questionar é uma busca; 2) a direção da busca é fixada pelo objeto a que ela se dirige; 3) no questionar, busca-se cientemente o ente naquilo que ele é e como é.  Prossigamos empenhados em compreender o desenvolvimento do pensamento de Heidegger.
Em todo questionar – na medida em que é definido como “questionar sobre alguma coisa” - , há um questionado. Ora, o particípio não deixa dúvida acerca da passividade do objeto do questionar: questionado é aquele (sobre) o qual se questiona. Essa coisa sobre a qual incide o questionar é o questionado. Heidegger dá um passo adiante, identificando o “questionar sobre” com o “interrogar sobre”. Agora, o questionar encerra também o interrogado. Há uma diferença, conquanto não imediatamente clara, entre o questionado e o interrogado. Ambos, naturalmente, estão na condição de objeto. Ainda não sabemos o que é questionado e o que é interrogado. Devemos permanecer à espera de esclarecimentos. Por ora, prossigamos fazendo dizer Heidegger. Cumpre atentar para o trecho abaixo:

“No questionado reside, pois, o perguntado, enquanto o que propriamente se intenciona, aquilo em que o questionamento alcança sua meta. Como atitude de um ente que questiona, o questionar possui em si mesmo um modo próprio de ser”. (p. 40, ênfase no original).


É preciso sublinhar que o que está no escopo do questionar é propriamente o interrogado, justamente aquilo em vista do qual se faz o questionamento. Questionar é uma atitude de um ente que questiona, por isso “possui em si mesmo um modo próprio de ser” (id.ib.) Que ente é este, único capaz de questionar? A resposta salta evidente: o Dasein. Heidegger passa à recapitulação da questão do sentido do ser, a fim de esclarecer alguns pontos que ficaram apenas entrevistos. Prossigamos acompanhando o desdobramento de seu pensamento.
Na medida em que é busca, o questionar demanda uma orientação prévia do que se busca, conforme vimos. Aqui, Heidegger insistirá que o sentido de ser já deve estar, de algum modo, acessível, porquanto sempre nos movemos numa compreensão de ser. Consoante Heidegger, é verdade que “não sabemos o que diz “ser”, mas já quando perguntamos o que é “ser”, mantemo-nos numa compreensão do “é””. (p. 41). Isso não significa que podemos determinar o conceito desse “é”. Para Heidegger, aquilo que se busca no questionar do ser não é algo completamente desconhecido, muito embora seja, numa primeira aproximação, totalmente inapreensível.
Compreendamos, doravante, o conteúdo dos momentos constitutivos da questão do sentido do ser. Heidegger é bastante claro ao dizer que o questionado da questão a ser elaborada é o ser. O ser, em questão, é o ser como condição de possibilidade de aprecimento do ente (“o que determina o ente como ente”). O ser, segundo Heidegger, não “é” em si mesmo um outro ente. Por um lado, na medida em que é o questionado, ser demanda uma forma de demonstração que lhe é própria, portanto, distinta do modo como se dá a descoberta de um ente. Por outro lado, o interrogado, ou seja, o conteúdo do questionar, o sentido do ser, reclama uma conceituação distinta das formas de conceituar a determinação do significado do ente.
Ser é o questionado e é irredutível ao ente. O interrogado na questão do ser é sempre o ente. O ente é interrogado em seu ser. Assim, escreve Heidegger,

“Quanto ao interrogado, a questão de ser exige que se conquiste e se assegure previamente um modo adequado de acesso ao ente. Chamamos de “ente” muitas coisas e em diversos sentidos. Ente é tudo de que falamos dessa ou daquela maneira, ente é também o que e como nós somos. Ser está naquilo que é e como é, na realidade, no ser simplesmente dado, no teor e recurso, no valor e validade, no existir, no “dá-se””. (p. 42).


Heidegger assume que o interrogado é o ente e define os significados de ente em contraste com a acepção de ser. Tal distinção já encontramos na filosofia cristã (embora, aí, Ser identifique-se com o próprio Deus). O ente é sempre objeto de predicação; são as coisas que se acham no mundo e sobre as quais falamos; mas nós mesmos somos um ente. O Dasein é um tipo privilegiado de ente. Esta cadeira em que me sento é um ente. O Ser, por sua vez, é o que possibilita a aparição do ente; o ser é inobjetivável. Ser está no “dar-se”, está no “mostrar-se”; ser está na presença das coisas que se dão a “ver”. O ser é o ser transcendente. O ser não se reduz ao ente.
           O questionado é o ser; o interrogado é o ente; e o perguntado é o sentido do ser. Ser e ente estão em relação de co-pertença; mas a elucidação do ser impõe o interrogar sobre o ente.
Retomemos, contudo, o que ocupa Heidegger, a saber, a tarefa de desvelar o sentido de ser – esse sentido só se deixa apreender na constituição de um ente que existe na abertura para o ser. Por conseguinte, Heidegger se pergunta “de que ente deve partir a abertura para o ser?”; “Qual é  o ente exemplar e em que sentido possui ele um primado?”
Se ainda houver um leitor que tenha resistido ao trabalho laborioso de leitura até aqui, é possível a ele intuir, ao menos, a resposta às questões formuladas por Heidegger. Este ente privilegiado que existe no modo de abertura para o ser é o Dasein. É o Dasein o ente que será interrogado em seu ser, afim de que seja possível dar conta da questão do sentido do ser. Por conseguinte, “elaborar a questão do ser significa, portanto, tornar transparente um ente – que questiona em seu ser” (p. 42). Esse ente que possui, entre outras coisas, a possibilidade de questionar, ente que cada um de nós é, é o Dasein. Questionar é o modo de ser do Dasein, e a própria colocação da questão está essencialmente determinada por aquilo que nela é questionado – o ser.
Crendo ter elucidado a delimitação da questão do sentido do ser em Heidegger, passarei a contemplar a compreensão sartreana de liberdade, com vistas não só a deslindar alguns embaraços que cercam a tentativa de compreensão da questão, como também a lançar alguma luz sobre a indeterminação originária do homem, tema de que me ocuparei quando da discussão da posição existencialista de Abbagnano.


3. No homem, a existência precede a essência

Antes de atacar a problematicidade da questão da liberdade em Sartre, não posso escusar-me de dizer algumas palavras sobre o conceito filosófico de determinação. Ao fazê-lo, pretendo antecipar o significado de indeterminação do homem de que nos fala Abbagnano. Encontramos no Dicionário Básico de Filosofia, de Japiassú & Marcondes (2008), a seguinte definição de determinação, que é a que me interessa na presente exposição:

Determinação é “o fato de ser causa ou condição necessária de uma coisa, provocando diretamente sua existência ou ocorrência” (p. 71)


Assim, dizemos que, se um evento determina outro, ele é a causa necessária desse evento. A determinação cujo significado aqui se define situa-se no domínio da ontologia. Sartre nega que o homem seja objeto de qualquer determinação. O homem não tem uma essência a priori que determine o que ele é. As condições sócio-históricas em que ele vive também não o determinam em seu ser. Também não há um Deus que determine o destino do homem, o que ele é, o que ele deve ser e como deve agir. A indeterminação originária do homem consiste em um poder-ser como existente que nada é antes de existir. Antes de surgir no mundo, o indivíduo humano nada é e existir é a tarefa que ele assume de constituição do seu ser. A questão da indeterminação originária do homem não deve nos ocupar agora, visto que será objeto de exame na seção em que trarei à cena a posição existencialista de Abbagnano. Lancemo-nos à discussão sobre o existencialismo ateu de Sartre, enfocando a questão da liberdade.
O existencialismo ateu de Sartre se articula em torno de um princípio básico que se expressa na fórmula “no homem, a existência precede a essência”. Essa fórmula é esclarecida em O Existencialismo é um Humanismo (1946), obra em que Sartre se ocupa de responder às críticas correntes levantadas por marxistas e católicos à sua doutrina. Essa fórmula, tal como eu a entendo, encapsula uma justificação da liberdade humana. Seu exame encaminha-nos para a compreensão de outra fórmula famosa que consiste na afirmação de que “o homem está condenado a ser livre”.
Na fórmula “a existência precede a essência”, Sartre destaca a anterioridade ontológica do homem como existente. Essa anterioridade ontológica tem caráter distintivo, já que o homem é o único ente que existe antes de ser. Existir é sua condição primeira e fundante. Primeiramente, o homem existe, descobre-se enquanto existente, surge no mundo, e somente, em uma dada situação em que se encontra no mundo, se define, ou seja, se autodetermina, escolhe o que quer ser. Originalmente, ou seja, por ocasião de seu aparecimento do mundo, sem qualquer razão de ser, marcado profundamente pela contingência, o indivíduo humano não é nada; é pura indeterminação. Não há nada, a priori, que defina o homem, nem essência, nem natureza humana, nem programa genético, nada que lhe determine um modo de ser inalterável para sempre. O homem, existindo na tarefa de si mesmo, enquanto projeto, em face de suas possibilidades de realizar-se, escolhe a sua essência. A sua essência, portanto, segundo Sartre, resulta de seus atos. O homem nada mais é do que aquilo que projeta ser.
Se, como pretende Sartre, “no homem a existência precede a essência”, segue-se daí que ele será aquilo que fizer daquilo que os outros fizeram dele. Não há lugar para desculpas. A liberdade é a essência do homem, a única coisa da qual ele não pode escapar. Ao contrário dos outros entes (em-si), o homem não é predeterminado. Por exemplo, a semente de uma planta traz em potência tudo aquilo que ela será em seu desenvolvimento normal. Os animais nascem equipados com um programa genético (seus instintos) que os prepara para todas as ações de sua vida. A andorinha é pré-programada por natureza para confeccionar seu ninho. Ainda que, hoje, mais do que no tempo de Sartre, ouçamos falar nas influências que sobre nós exerce nosso código genético, tais influências não são fortes o bastante para suprimir nossa liberdade – diria um existencialista. É preciso dizer, contra os teóricos marxistas e outros partidários do determinismo, que a liberdade, na perspectiva sob a qual considera os existencialistas, em especial, Sartre, é um fato ontológico. Aos seus críticos, que entendiam que, em vários momentos da história, os homens precisam lutar pela sua liberdade, argumento este que suscita a ideia de que a liberdade é algo que o homem pode deixar de ter, porque, segundo esses críticos, ele nem sempre a possuiu (donde a necessidade de reconquistá-la em certos momentos da história), Sartre objeta que, se o homem não é originalmente livre, não poderíamos conceber o que é sua libertação. Demais, devemos notar, em favor da perspectiva de Sartre, e contra os partidários do determinismo, que o que caracteriza fundamentalmente a existência do homem é o poder quem ele tem de desnaturação, de desarrancamento em relação a qualquer instância limitadora fixada pela natureza. Sartre não poderia concordar com os freudianos na hipótese de que há uma estrutura de pulsões (inconsciente) a governar a totalidade da vida psíquica do homem, levando-os a agir à revelia deles.
Vou-me debruçar sobre o problema da liberdade, não sem antes acrescentar que, para Sartre, somente o homem existe, enquanto uma “pedra”, por exemplo, é. O homem é pura liberdade. O essencial a respeito do tema da liberdade, em Sartre, deve ser já anunciado: a liberdade, tal como a pensa Sartre, é “liberdade para”, e não liberdade de. Caso pensássemos a liberdade como “liberdade de”, poderíamos concluir que Sartre estaria ignorando as condições concretas em que vive o homem e que limitam suas possibilidades de escolha; mas tal conclusão seria equivocada, ao menos não seria fiel ao pensamento sartreano. Sartre não ignorava os limites impostos pelas condições sócio-históricas da existência humana, sobretudo se levarmos em conta o fato de que ele veio a se aproximar do marxismo, muito embora não o poupando de críticas no tocante a seu forte determinismo e materialismo.
Está claro que, para Sartre, o indivíduo, surge no mundo em dadas condições sócio-históricas. O homem está no mundo sempre em situação. Sua existência é uma tarefa que ele tem de levar a efeito num tempo e lugar determinados. Por isso, Sartre não ignorava que houvesse situações-limite, tais como guerra, o sofrimento, a morte, em face das quais o homem se conscientiza de seus próprios limites, das limitações impostas pela realidade à simples realização de sua existência. Sartre utilizou o conceito de facticidade para dar conta desse problema. A facticidade recobre o nosso passado, nossa constituição biológica, nossas posses, as condições sociais em que estamos inseridos, nossa língua, nossas aptidões, etc. Há, contudo, - cabe acrescentar - uma região semântica contígua, no conceito de facticidade, que compreende a presença absurda e constatada das coisas que estão aí sem necessidade. Assim, a minha consciência se apreende a si mesma como fato; ela é, em sua contingência, absurda, pois que carece de qualquer necessidade. As coisas estão aí sem necessidade e eu me encontro entre elas.
Insisto, contudo, que do reconhecimento do que Sartre designa como facticidade não resulta que o homem deixe de ser livre – e absolutamente livre, porquanto a radicalidade com que Sartre pensa o problema da existência humana consiste em tomar a liberdade como um pressuposto ontológico para qualquer projeto emancipador da humanidade. O homem não perde sua liberdade, enquanto sua condição ontológica, porque se vê ameaçado em momentos de crise. Sartre não admite que a liberdade seja algo a ser mensurado relativamente a tal ou qual circunstância; o homem é absolutamente livre. Essa absolutidade da liberdade se realiza como escolha que homem faz de si mesmo, isto é, ele escolhe aquilo que quer ser: um cidadão obediente ao Estado ditatorial ou um revolucionário aspirante ao regime democrático? A liberdade é absoluta porque o homem é o ente verdadeiramente existente, jamais predeterminado como um “em-si”, portanto, capaz de transcender a si mesmo. A liberdade capacita o homem a decidir sobre sua própria vida, escolhendo seu próprio modo de vivê-la e se responsabilizando por essa escolha. Sartre não ignorava o peso que tem sobre o homem a liberdade: ser verdadeiramente livre é ser totalmente responsável.
Na medida em que a liberdade tem caráter universal no homem, ao assumi-la, o indivíduo o faz para si e para todos os outros homens. Ao escolher para si, ele também está escolhendo para os demais homens. Em outras palavras, ao escolher um modo de ser, de viver, ao decidir sobre que curso de ação tomar, está escolhendo o que lhe parece universal, geral. A sua escolha modifica as condições em que o outro deverá fazer sua escolha. Ademais, quando escolhe, o indivíduo atribui ao mundo um significado que transcende um simples ato de uma decisão individual.
Se a liberdade se define como escolha, e se a liberdade é escolha, é o homem que escolhe todos os valores; é a liberdade o fundamento de todos os valores. O homem, em sua liberdade, é o fundamento sem fundamento de todos os valores. Nesse sentido, o existencialismo, segundo crê Sartre, promove a defesa do homem.


                                  PARTE II


4. O Existencialismo e as duas polêmicas

A seção que encabeça esta segunda parte dará início ao nosso estudo sobre a posição existencialista de Abbagnano, em seu livro Introdução ao Existencialismo (2006). Escusa dizer que uma proposta de leitura que pretendesse cobrir todo o trabalho de Abbagnano demandaria tempo e espaço maiores do que a já grande quantidade de tempo e espaço que o exercício de escritura deste texto tem exigido. O fio condutor que levou a efeito os encadeamentos de reflexões ao longo de todo este texto é o problema da questão do ser, agora posicionado como problematicidade originária da existência. Abbagnano, antes de lançar-se na discussão dessa problematicidade, identifica duas polêmicas a partir das quais o existencialismo se estabeleceu.
A primeira polêmica em que o existencialismo está implicado é contra o que Abbagnano chama consideração objetivista; a segunda polêmica é contra a consideração subjetivista. Vejamos no que consiste cada uma delas, começando pela polêmica contra a consideração objetivista.
Com ter assumido o existencialismo diversas formas, observa Abbagnano que todas elas se orientam por uma inspiração fundamental que lhes é comum, qual seja, todas elas mantêm que a existência é a busca do ser na qual o homem individual está diretamente engajado. Essa definição de existência implica uma concepção de filosofia que alija de seu domínio qualquer tentativa de reduzi-la a um sistema teórico de compreensão do mundo que se constitui e se mantém como tal, em uma indiferença à existência concreta de quem filosofa.

“A filosofia não é inquirição teórica sobre um ser ao qual a inquirição resulte indiferente e ao qual ela se mantenha alheia. A filosofia é a busca que o indivíduo faz do ser que lhe é próprio e é, por esse motivo e ao mesmo tempo, decisão a respeito desse ser”. (p. 41).


O excerto supracitado suscita duas considerações. Deve-se sublinhar, em primeiro lugar, que a filosofia deve ser uma experiência ou uma atividade na qual se engaja o indivíduo em sua existência concreta. Estando o indivíduo existencialmente engajado nessa atividade, tem ele em vista a tarefa de constituição de seu ser. Evidentemente, essa tarefa não se impõe ao indivíduo de fora, mas só pode realizar-se a partir de uma decisão dele mesmo. A filosofia como busca é incompatível com qualquer concepção dela como produto acabado de uma atividade – concepção esta estatizante, esterilizante. A filosofia não é aquilo que se fez e que se dá numa totalidade sistêmica completa, após um esforço reflexivo. A busca em que consiste a filosofia - por ser a busca do ser que é próprio ao indivíduo - jamais se completa, jamais se interrompe, enquanto o indivíduo se ocupa de sua tarefa de existir. A filosofia como busca é concebida em seu movimento incessante, em sua dinâmica, em seu trajeto ao longo do qual o indivíduo é o ente agentivo dessa busca.
A segunda consideração toca ao sentido do ser. Veremos, no decorrer desta segunda parte, que continuamos sem saber verdadeiramente o que é o ser; todavia, se relermos atentamente o trecho referido mais acima, parecer-nos-á lícito concluir que o ser de que se trata é o ser próprio do indivíduo, isto é, a essência do ente. Mas – lembremos – essa essência em vista de cuja constituição o indivíduo empreende uma busca, que é filosófica, não lhe está fixada de antemão, ideia esta suficientemente clara a partir das considerações alhures.
Abbagnano lembra o inconveniente que há em se pretender conhecer o homem e sua existência objetivamente “assim como se conhece qualquer uma das coisas do mundo” (ib.id.). A polêmica do existencialismo contra a consideração objetivista consiste na assunção dessa pretensão. Resulta daí um problema que consiste em ignorar o fato de que a busca de seu ser na qual o indivíduo está engajado não é suscetível de equivalência com a separação entre o eu e o mundo requerida pelo conhecimento. Se, no conhecimento, eu e mundo já estão constituídos em sua separação, tal não ocorre na busca do ser em que está engajado o indivíduo. Nessa busca, apresenta-se o problema de sua própria constituição. Assim, esclarece-nos Abbagnano,

“O conhecimento sempre apresenta uma situação polarizada na qual o objeto se distingue e se opõe ao sujeito; ele supõe a totalidade da qual sujeito e objeto fazem parte em sua polarização correlativa. Mas, por sua vez, essa totalidade – o mundo – não pode ser objeto de conhecimento. A razão de haver um mundo e de eu, no ato de conhecer, me enraizar nele -, é um problema ao qual o conhecimento dá origem, mas não pode resolver” (ib.id.)


Numa perspectiva existencialista, admite-se a absurdidade desse estado em que o eu encontra-se enraizado no mundo. Epistemologicamente, conhecer supõe a separação entre um sujeito cognoscente e o mundo cognoscível. Essa separação está pressuposta no ato de conhecer. Aquele que conhece sabe que conhece alguma coisa e, no ato de conhecer, intui que a coisa que conhece é algo fora de si, que lhe vem ao encontro. Mas a razão de existir um mundo e de eu, enquanto existente, encontrar-me nele não pode ser explicada no ato de conhecer. O conhecimento, portanto, é reconhecimento da alteridade entre o mundo e o eu, mas não dá conta do porquê há um mundo onde “eu” me enraízo.
Abbagnano conclui que o ser, a cuja busca se consagra o homem em sua existência, não é um objeto cuja natureza ele deve limitar-se a indagar e conhecer. O ser, ou melhor, a busca do ser é uma escolha por cuja realização o indivíduo se decide.
O homem que pretende conhecer objetivamente o ser é um homem indiferente à problematicidade da constituição do próprio problema; por outro lado, o homem que considera existencialmente o problema implicado na busca do ser é um homem interessado, que precisa decidir-se.
A segunda polêmica do existencialismo é contra a consideração subjetivista. O existencialismo também rejeita a consideração subjetivista do ser. De acordo com essa perspectiva, o ser é imanente ao sujeito.

“Por essa imanência, o sujeito se universaliza e se despersonaliza; um sujeito ao qual todo o ser seja imanente é uma razão ou um pensamento universal no qual está plenamente resolvida a existência do indivíduo concreto”. (p. 42).

O que se elimina, na consideração subjetivista do ser, é a individualidade particular e seu destino. Não ser uma pessoa é perder aquilo que nos individualiza, que nos torna singular; mais ainda, é nos desenraizar da problematicidade de nossa existência concreta. Se somos reduzidos a uma razão despersonalizada ou a um pensamento universal, deixamos de ser um existente. O problema do homem verdadeiramente existente é privado de todo o significado.
A questão o que é o ser? só vale para a existência e na existência do indivíduo. Ao subsumir o ser na racionalidade, suprime-se a possibilidade de um problema do ser. Ocorre que, conforme veremos mais adiante, a indeterminação fundamental da relação com o ser é marcada pela instabilidade. O ser reduzido à racionalidade anula essa instabilidade, porque o ser submetido à estrutura da razão é um ser visto como configuração rigorosa e necessária, atravessado por uma conexão obrigatória de determinações e momentos. Não só a questão sobre o ser deixa de ter lugar, nessa perspectiva, como também o próprio indivíduo perde sua consistência, dado que foi subsumido pelo pensamento universal. Com a pergunta sobre o ser, a consideração subjetivista suprime o fundamento de toda pergunta, de toda busca, de toda indeterminação, qual seja, toda a existência concreta.
O que se suprime é justamente a concretude de onde parte o existencialismo. O existencialismo começa sua investigação tendo como escopo o eu individualmente existente, eu mesmo enquanto busco e pergunto. À luz da perspectiva existencialista, filosofar é decisão que diz respeito à minha atitude, à minha relação real e concreta com o ser. O existencialismo rejeita a imanência do ser na subjetividade. O indivíduo só existe na medida em que transcende a si mesmo e move-se para o ser. Naturalmente, o mover-se para o ser implica a não imanência do ser à subjetividade que o indivíduo encarna.


4.1.  O que é a existência, segundo Abbagnano?

Cite-se Abbagnano:

A existência é, antes de tudo, a constituição de uma relação entre mim e o ser; mas essa relação se estabelece exatamente no ato no qual procedo para além de mim, no qual me limito para me ultrapassar” . (p. 43).


A universalidade não é a da imanência do ser à minha razão, do que resultaria uma razão universal. A universalidade é a da relação do eu concreto com o ser. Essa universalidade, então, funda a individualidade e não a suprime. Nas palavras de Abbagnano, “a universalidade é o alcance e a direção de meu movimento existencial, que busca o ser e se relaciona com ele: não é a imanência do ser à minha razão” (ib.id.).
Em ambas as perspectivas anteriormente examinadas, inviabiliza-se o problema do ser e, com a inviabilização desse problema, a concretude, a individualidade, a existência do homem são alijadas. Enfatize-se, com Abbagnano, que “a existência não pode receber luzes do conhecimento ou da razão, antes pode dar luzes a eles”.
Do que se expôs até aqui não se deve depreender que as considerações objetivista e subjetivista devam ser rejeitadas totalmente, porquanto isso significaria renunciar ao entendimento da existência, significaria privar “a realização da existência de toda referência ao conhecimento e ao pensamento”. (ib.id.). Ocorre que a existência autêntica só pode realizar-se na sua relação com o conhecimento e com o pensamento.
Consoante Abbagnano, um dos problemas da doutrina de Japers consiste em conservar a polaridade entre a razão e a existência, “mesmo que ele entenda por razão não a razão do idealismo, mas uma razão transcendente e esclarecedora do fundo escuro da existência” (p. 44).
Veremos qual será o caminho tomado por Abbagnano, em tempo. O problema começa, no entanto, a ganhar contornos de esclarecimento no momento em que ele nega que a razão possa ser um polo da existência. Ora, se é assim, o que significa verdadeiramente entender a existência, já que ela não dá guarida à razão?

“Entender a existência significa realizá-la autenticamente, e tal realização significa realização consigo mesma. O entendimento do existir que o filosofar exige e busca e que é justamente o filosofar, não se põe como um polo da existência, mas como o ato compreensivo e final da existência, como sua totalidade autêntica” (ib.id.).


Façamos um gesto de interpretação. Entender a existência não é um ato de intelecção, não é um ato que se faz com o concurso da razão discursiva que articula conceitos e proposições para dele extrair conclusões de acordo com princípios lógicos. Entender a existência é um ato compreensivo enquanto eu a realizo e a assumo em sua totalidade. Em face da existência, filosofar não é uma atividade que se vale de conceitos, articulados em juízos, que, por sua vez, se encadeiam em raciocínios destinados a apreendê-la. É claro que filosofar reclama o entendimento da existência, mas, segundo a interpretação de Abbagnano, esta não se presta a ser um objeto de exame racional segundo os quadros de uma lógica silogística. Se o entendimento não constitui uma dimensão da existência, a filosofia deve realizá-lo como ato compreensivo de um indivíduo totalmente engajado nessa realização.


4.2. As três posições do existencialismo

“Se a existência é relação com o ser, eu que existo devo enfrentar o problema do ser, devo buscar o ser. Existo enquanto tendo para o ser, sou enquanto me relaciono com o ser. Porque existo, saio do nada para mover-se rumo ao ser, mas se alcançasse o ser e fosse o ser, cessaria de existir, porque o existir é busca ou o problema do ser”. (p. 44).


O que Abbagnano expõe no excerto acima são “os pontos basilares de todo existencialismo”.(ib.id.). Ele passará à consideração das três vias que se abrem para a determinação da atitude existencialista. Uma dessas vias – a terceira apresentada – será a dele mesmo Abbagnano. Antes de dar a conhecer essas três posições, deter-nos-emos na significação do conceito de “ser” no trecho citado.
Em primeiro lugar, existir não é o mesmo que ser. Lembremos o que nos ensinam Heidegger e Sartre: eu nada sou de antemão. Eu não possuo o ser. A minha existência me retira do nada e enquanto estou existindo – esta é minha tarefa – movo-me rumo ao ser. Portanto, existindo, eu tenho em vista o ser; existir e ser, para o homem, não é a mesma coisa. Mas o problema do ser permanece – não sei o que é o ser. O próprio existir consiste em instaurar a minha relação com o problema do ser. Ou ainda, como lemos no fragmento há pouco citado, o existir é o problema do ser.
Concentremos nossa atenção no momento em que o autor nos diz que, se alcançássemos o ser, deixaríamos de existir. Talvez, se tomarmos como exemplo a condição de um cadáver, a incomensurabilidade entre ser e existir se torne clara, segundo a forma como eu compreendo a exposição de Abbagnano. Dizemos que a pessoa que morre deixa de existir, mas o que ainda resta na morte dela é alguma coisa – é um cadáver. Na condição de coisa, o cadáver “é”. A posse do ser, nesse sentido (sentido que parece autorizado pelo de Abbagnano), retira o indivíduo do tempo; ele deixa de existir, pois existir é busca do ser – uma busca à qual é inerente a incompletude enquanto busca. O existente que pretendesse possuir o ser suprimiria a incompletude que a caracteriza como tal; por isso deixaria de existir. Tornar-se um em-si é tornar-se encerrado em si mesmo, é tornar-se uma totalidade fechada, opaca. Uma existência plena, completa é uma antítese; porque existir é necessariamente estar fendido, incompleto sempre em vias de realização; existir é um projetar-se num “entre” que corta dois nada, num entre que separa duas infinidades por meio de um sucessão de instantes em cada um dos quais o indivíduo apreende-se como lançado na tarefa imperiosa de escolher ser a partir de uma indeterminação absoluta.  
Abbagnano apresentar-nos-á sua posição existencialista  em contraste com duas outras posições que tratará de rejeitar. Segundo autor, a primeira posição, atribuída a Heidegger, considera como fundamento do existir, entendido como relação com o ser, o fato de o ser separar-se do nada. Nesse horizonte hermenêutico, é a separação do nada ou o próprio nada que determina a natureza da existência. Para Abbagnano, a existência jamais se separa do nada simplesmente porque ela jamais se identifica com o ser, donde resulta que ela se definiria pela impossibilidade de não ser o nada. Ora, vê-se que, não podendo deixar de ser o nada, a definição do problema, qual seja, o da relação com o ser, se anula. A existência nunca poderá problematizar-se como relação com o ser, porquanto, em Heidegger, segundo a leitura de Abbagnano, ela desembocaria no nada inevitavelmente.
Na segunda posição, atribuída a Jaspers, o autor aponta para o problema da pretensão de a existência identificar-se com o ser. Ocorre que a existência jamais pode possuir o ser, de modo que também aqui se suprime o problema da relação da existência com o ser: a existência se definiria pela impossibilidade de ser a relação com o ser.
A terceira posição, que é a do próprio Abbagnano, mantém que a existência consiste na relação com o ser e se define pela possibilidade de ser a relação com o ser. Notemos que se conserva a relação como traço fundamental da existência: existir é relação com o ser. Nesse caso, eu, enquanto existente, preciso me confrontar com o problema do ser, devo projetar-me na busca do ser.
Acompanhemos Abbagnano na consolidação de sua perspectiva existencialista:

“Reposicionada sobre sua verdadeira base de possibilidade da relação com o ser, a existência encontra em si mesma seu significado positivo e auto-suficiente. Ela não se nega realizando-se, mas se afirma exatamente naquilo que é, ou seja, em sua essência ou natureza de relação. E a relação em que ela consiste é, no ato de sua realização, reconduzida a sua problematicidade fundamental. A problematicidade da relação com ser vem a consistir em si mesma e a insistir em si mesma, realizando-se como problematicidade, como pura possibilidade de uma relação possível” (p. 45).



A conservação da problematicidade da relação com o ser redunda, em última instância, na possibilidade de se pensar a indeterminação e a liberdade, então negadas nas duas outras posições criticadas por Abbagnano. Para o autor, as posições existencialistas de Heidegger e de Jaspers limitam a decisão e a escolha existenciais ao que já está decidido e escolhido. Elas tolhem de liberdade o compromisso existencial. O destino do homem e seu caráter de fidelidade livre são alijados em função da aceitação do fato. Finalmente, fica impossibilitada toda normatividade e toda avaliação.


4.3. A existência como relação com o ser

Escreve Abbagnano:

“A existência não tem outro modo de se realizar propriamente senão como possibilidade da relação com o ser, isto é, como problematicidade originária, transcendental dessa relação. A existência não é abandonada ou lançada rumo ao ser ou lançada rumo ao ser, de modo que ela não possa reconhecer senão a impossibilidade de ligar-se ao ser ou de separar-se do nada. A existência se põe na relação com o ser reconhecendo-se como pura possibilidade dessa relação e permanecendo fiel à problematicidade de sua estrutura”. (p. 46, grifo meu).


A existência não deve ter em seu horizonte o nada de onde parte. Ela deve ocupar-se de si mesma e realizar a relação consigo. Porque é relação com o ser, a existência só se reconhece como tal relação. A problematicidade dessa relação impede que a existência se projete para aquilo que não é ela mesma. Ademais, essa problematicidade confere à existência sua substância.
Na passagem abaixo, Abbagnano não só introduz a ideia de substância como problematicidade originária (tema que, no entanto, só desenvolverá adiante), como retoma o desacordo com as outras duas posições existencialistas por ele rejeitadas:

“(...) a substância da existência deve ser reconhecida em sua problematicidade originária como relação com o ser. E a substância a reconfirma em sua liberdade ineliminável, absoluta. Se a existência se define por referência ao nada [posição heideggeriana], todas as suas possibilidades são igualmente inconsistentes e insignificantes diante da única impossibilidade que a constitui propriamente: a impossibilidade de separar-se do nada. Se a existência se define com referência ao ser [posição Jaspersiana], todas as suas possibilidades são igualmente inconsistentes e insignificantes diante de sua única e própria impossibilidade: a de ligar-se ao ser. Em ambos os casos, as possibilidades nas quais ela se instaura são todas equivalentes em sua insignificância e lhe são oferecidas em sua indiferença; a tal indiferença também não se subtrai a única impossibilidade à qual a escolha se deve reduzir”. (p. 47).


Novamente, afirmando a superioridade de sua posição sobre as outras duas por ele consideradas, Abbagnano pretende fazer-nos compreender que definir a existência em sua relação com o ser tem a vantagem de reintroduzir no âmago da existência a normatividade e a avaliação inescapáveis ao existente. Em outros termos, porque é relação com o ser, a existência precisa fundar e consolidar essa relação; trata-se para ela de uma exigência que se inscreve em sua estrutura como norma de sua constituição. Ademais, porque é relação com o ser, a existência não pode escapar a exigência de avaliar as possibilidades que se põem diante de si. Com Abbagnano, “devo escolher aquilo que me consolida e me reforça em minha relação com o ser, isto é, com aquilo que garante a possibilidade dessa relação” (ib.id.). Eu escolho ser, portanto, a problematicidade originária dessa relação. E, ao escolhê-la, estou sendo fiel à substância de minha existência. A substância de minha existência é a relação com o ser em sua problematicidade originária. A substância que é a minha é problemática em sua origem e ela se torna a norma de minha decisão – norma que me permite transcender à indiferença e à equivalência das possibilidades, norma que se apresenta como princípio de avaliação. Reitere-se que a substância (essência) de minha existência, segundo Abbagnano, é a problematicidade originária da relação com o ser. Essa problematicidade é transcendental porquanto é condição de possibilidade daquela relação. Essa problematicidade escapa tanto à predeterminação quanto à indiferença perante a necessidade de valorar.

“No entanto, minha existência não depende propriamente nem do nada nem do ser, mas da possibilidade de ser na qual me constituo: sua substância é, exatamente, o fundamento transcendental, a condição de possibilidade, ou seja, a problematicidade pela qual ela é aquilo que é. E meu dever será garantir e reforçar a possibilidade de meu ser, consolidando-a em sua condição transcendental, realizando-a em sua problemática originária e última”. (p. 48).


Resta evidente que esse dever não me é imposto por qualquer outra instância que me transcenda, que sobre mim exerça seu domínio. O dever, que é meu, eu mesmo mo imponho. Trata-se de um dever, em última análise, que reconheço como exigência inevitável da substância da estrutura de minha existência, isto é, da problematicidade originária da relação com o ser.


4.4 O problema do ser e a indeterminação do ser

Reencontramos o problema do ser que toma forma na questão: o que é o ser? Não devemos nos apoquentar por nos vermos reconduzidos a ele, visto que esse problema é originário não só no desenvolvimento da filosofia, mas, sobretudo, na constituição do existir. Dado que existo, tenho de me defrontar com a questão do ser. O excerto que se seguirá patenteia-nos a medida da dívida de Abbagnano para com o pensamento de Heidegger. Observe-se que o que se define aí é justamente o estatuto privilegiado de um ente específico, o homem. Vou-me debruçar sobre o exame do fragmento, abaixo transcrito:


“O problema: o que é o ser já define um estado do ser. Que ele se instaure e encontre lugar no ser – e não poderia se instaurar e encontrar lugar senão no ser – implica que há algo do ser – um ente – que está em uma relação de instabilidade com o próprio ser. O ente, que suscita o problema e é enquanto aquele problema, certamente está em relação com o ser, mas em uma relação que exclui a totalidade e a necessidade de ele possuir o ser. Ele é enquanto instaura e se constitui a si mesmo no suscitar e no constituir o problema – por isso está em relação com o ser, mas, enquanto é como problema e no problema, sua relação com o ser é instável e precária e exclui a firmeza e a estabilidade da posse (...)”. (ib.id. grifo meu).


A primeira dentre as várias questões que se poderia ventilar a partir da consideração do passo supramencionado é o que significa dizer que a questão do ser define um estado do ser. Não se diz “estado de ser”, mas “estado do ser”. O ser, tal como vem sendo pensado em sua obscuridade conceitual, é a tarefa própria do homem. O ser se coloca no horizonte de uma busca pela qual se decide o homem enquanto existente. Essa busca se dá no mundo que é, para Abbagnano, “uma determinação fundamental da estrutura do homem” (p. 31). O mundo é a totalidade da qual faz parte o homem. O mundo, porque determina o modo fundamental da estrutura do homem, o transcende e, ao transcendê-lo, leva-o a instaurar-se numa relação necessária com o ser e com os demais homens.
Volvemos nossa atenção para a ideia de que o problema do ser define um estado do ser. Tendo-a em conta, recuperemos a ideia subsequente (veja-se a citação), segundo a qual o problema do ser não pode instaurar-se senão no ser. A metáfora do ser como domínio locativo (“encontre lugar no ser”) suscita-nos uma ambiguidade: trata-se do ser próprio do homem ou do ser mais abstrato e geral como horizonte de acontecimento da presença de tudo que existe? Trata-se da essência do homem ou do ser como única realidade verdadeira e fundamental? Se, agora, lermos  também o que se segue no fragmento citado – “há algo do ser – um ente que está em uma relação com o próprio ser”, forçosamente reconhecemos duas ocorrências do vocábulo “ser”. A primeira ocorrência dirime a dúvida suscitada pelas questões sobre o significado do ser logo acima. Se, afinal, é algo do ser (que pertence ao ser), esse ente, que é o homem, é parte de uma realidade mais abstrata e fundamental (e mais ampla). Essa realidade abstrata, porque isolada pelo pensamento e porque fundamental, porque condição de possibilidade de aparecimento dos entes, constitui a totalidade do ‘haver’ mundo da qual o ente humano é uma parte (não qualquer parte, não uma parte como as outras). Espanto em face do acontecimento do haver, que é uma totalidade que tudo abarca e que me escapa sem que eu possa dela (me) escapar, porque, ao afirmar que sou, compreendo-me como inteiramente absorvido no espanto de ‘haver mundo’.
Voltemos a dispensar atenção ao fragmento citado. Ao fazê-lo, encontramo-nos novamente na dificuldade de decidir sobre que sentido produzir para a ocorrência do vocábulo “ser”. Porque a ambiguidade do ser se instaura novamente. O ente que está numa relação de instabilidade com o próprio ser encontra-se numa relação com seu ser mesmo ou com o ser abstrato e fundamental? A questão se expõe aqui a título de provocação, pois que se nos dermos o trabalho de prosseguir com a leitura do restante do fragmento, podemos resolver a ambiguidade do “ser” admitindo que o ente que se coloca o problema do ser é ele mesmo o problema. Ao instaurar o problema e reconhecer-se como o próprio problema, esse ente não pode pretender alcançar a posse – de resto, impossível -, do ser. Ele não só se reconhece como um “sintoma” da presença plena, isto é, do ser, tampouco se reconhece simplesmente como parte do mundo, ele deve reconhecer-se como o problema mesmo da relação com o ser. Não há mundo sem homem.[1] Se só há homem com o mundo, no mundo, só há mundo com o homem.
Porque impossibilitado de possuir o ser, a relação com o ser, que é originária na estrutura da existência desse ente que é o homem é sempre instável e precária. É nessa precariedade e instabilidade, no entanto, que o ser permanece como a possibilidade existencial desse ente.
Para lançar luzes sobre qualquer sombra de dúvida acerca do que significa ser para o ente humano, convém lermos o que se segue, sem perder de vista a problematicidade dessa busca do ser:

“Dúvida e certeza, expectativa e temor, ação e desespero são todos modos singulares e concretos do problema do ser porque são todos eles determinados pela instabilidade da relação entre o ente e o ser. A felicidade de um reencontro e de uma posse, tanto mais preciosa quanto mais exposta ao risco da perda, o amargor de uma derrota, a angústia de uma impossibilidade, a vitória e o desastre encerram igualmente o sentido profundo e total do problema do ser, da instabilidade da relação na qual o ente é com o ser, da propriedade de sua posse, do risco que ele implica. O problema do ser está não mais no encapsulamento conceitual e verbal das doutrinas filosóficas, mas no próprio ser constitutivo do ente em sua vida temporal, em sua limitação, em destino”. (p. 49).


O que se topa, em destaque, no excerto acima, faz esvaecer qualquer dúvida acerca da significação do conceito de ser, de cuja problematicidade Abbagnano se ocupa. Definitivamente, não se trata do ser parmenidiano ou platônico, nem do ser plotiniano, ou hegeliano. Não se trata de um problema atinente à indeterminação de sua conceituação. O problema do ser é fundamental na medida em que constitui o problema originário da constituição da existência do ente. Mas, ipso facto, o ser é o ser constitutivo do ente “em sua vida temporal, em sua limitação, em seu destino” (ib.id.).
Ser, para o ente humano, é sempre um mover-se na instabilidade da relação com o ser; é sempre estar exposto ao risco de perdas, de desfazimentos. A relação com o ser é um problema concreto para o ente humano, ao mesmo tempo em que é profundo porque a todo instante expõe o homem à precariedade da sua existência, ao peso que consiste em ter de assumi-la como seu dever.
Portanto, não há possibilidade outra para o homem de reportar-se ao ser senão como problema. O homem não pode alcançar a paz e a segurança da posse do ser; só pode pretender alcançá-la sob o risco de perdê-la a qualquer momento. Eu posso ser um pai de família, mas sob o risco de deixar de sê-lo a qualquer momento. Num dia, posso ver-me como um empresário bem-sucedido; noutro posso encontrar-me arruinado. O homem pode revoltar-se contra toda determinação; pode esforçar-se por fugir dela e lograr êxito nessa empresa; mas não pode – porque impossível – rebelar-se contra o problema da relação com o ser. Não há escapatória. O trágico de sua condição é ver-se obrigado a assumir aquela relação na precariedade que lhe é inerente, sem qualquer forma de apelação, sem encontrar esteios que sustentem os significados que vai construindo na ocupação com sua tarefa. A precariedade da relação com o ser é a precariedade de sua própria existência, já que existir é relação com o ser.
A próxima subseção, que precede à das considerações finais, abre-nos o horizonte do problema fundamental da existência: a relação com a indeterminação originária. A questão que ocupa Abbagnano e sobre a qual me debruçarei está, pois, delineada no seguinte excerto:

“O estado do homem definido pelo problema do ser é a indeterminação. A indeterminação é a própria problematicidade da relação entre o homem e o ser. Pela indeterminação, o ser é uma possibilidade para o homem”. (p.50).

Se a condição do homem definida pela relação com o ser é a indeterminação, colhe-se daí que não há possibilidade de imanência do ser ao homem. O homem que se define como problema da relação com o ser jamais se encontra descansado no ser. O ser pode ser próprio do homem, mas nunca a título de estado de imobilidade. Nem o ser liga-se intimamente ao homem, nem este se deixa dominar pelo ser, porquanto há sempre a indeterminação constitutiva da relação entre o homem e o ser, de sorte que um e outro são sempre possibilidades efetivas, mas nunca realidades necessárias.
A indeterminação é a própria natureza do homem, porque e justamente porque o homem não tem natureza e porque a indeterminação é o problema da constituição da sua natureza.


4.5. A existência como relação com a indeterminação originária

É própria do homem a possibilidade de ser. Como possibilidade de ser, o homem encontra-se no estado de indeterminação. Só está nesse estado porque o homem foi indeterminação. Ele só se constitui na indeterminação, porquanto a indeterminação está no passado, já foi ultrapassada, transcendida.
Todavia, estar na indeterminação não é conservar-se na imobilidade; a indeterminação própria do homem supõe um movimento que consiste em um ir além dela. A ultrapassagem da indeterminação, o sair dela é o existir (existere). Novamente, a questão sobre o que é existir se impõe.

“O homem existe enquanto constituindo-se com o problema e no problema do ser, sai da indeterminação que ele implica e se desloca para reconhecê-la. O existir é o ato pelo qual o homem reconhece a indeterminação de sua natureza e, por isso, estabelece como sua natureza o problema do ser”. (p. 50).

Esse sair da indeterminação que define a essência do existir não é um lançar-se na indiferença a respeito dessa indeterminação originária. Existindo, isto é, ultrapassando a indeterminação, o homem reconhece-a como indeterminação de sua natureza e, por isso, pode estabelecer como sua natureza o problema da relação com o ser. Por conseguinte, “o existir só é uma ultrapassagem da indeterminação porque é um retorno a ela”. (ib.id.)
Transcender a indeterminação nunca é um “deixar para atrás”, um “negá-la absolutamente”. Ao existir, o homem instaura e constitui concretamente a indeterminação como ponto de onde parte e ponto a que chega. O existir é a instauração própria e autêntica do problema do ser, dado que é a constituição desse problema como natureza própria e originária do homem.
Da afirmação a indeterminação é a relação da problematicidade entre o homem e o ser segue-se que o existir é o fundamento dessa relação, sua problematicidade constitutiva. Como fundamento, existir fornece a razão de ser da relação. Da afirmação a indeterminação é o ser como possibilidade segue-se que o existir é o fundamento e a condição de tal possibilidade, é a possibilidade transcendental. Vê-se, pois, que a indeterminação e a possibilidade não são nada fora do existir, já que existir é o ato concreto de sua fundação, logo a condição necessária de seu ser mesmo. A indeterminação se realiza como tal somente no existir; só no existir ela se relaciona consigo. É também no existir que a problematicidade da relação entre o homem e o ser se relaciona consigo mesma. A existência constitui o homem em sua problematicidade originária.
A existência define o homem na indeterminação de sua natureza; e essa definição não se dá pela anulação dessa indeterminação. Ao instaurá-la, a existência a reconhece e a realiza até o fim.
Finalmente, devemos, então, remover qualquer embaraço que nos impeça de compreender claramente que, instaurando-se o problema do ser, a problematicidade originária, que é a indeterminação da natureza do homem, se realiza. Ela se realiza por um ato levado a efeito pelo homem. Ao realizá-la, o homem realiza-se a si mesmo, visto que, na origem, ele é aquela problematicidade.
A instauração do problema do ser nada mais é do que a própria constituição do homem. Insista-se em que a definição do problema do ser não é objeto de reflexão teórica, mas ato existencial, a saber, decisão. Sendo originariamente indeterminação, o homem escolhe ser si mesmo e se compromete em se realizar no horizonte de sua problematicidade originária, sendo nisso que consiste o ato existencial que instaurará a autenticidade da existência do próprio homem.


Considerações finais

Na medida em que pensa o homem concreto em sua problematicidade originária como indeterminação de sua própria natureza, o existencialismo põe-se, filosoficamente, a serviço do trabalho existencial, levado a efeito pelo próprio homem, de constituição de um modo de ser que lhe é próprio. O viver concreto, o envolvimento do homem com a lida cotidiana não ocupa uma instância apartada do discurso filosófico, já que a própria filosofia não é senão uma escolha existencial, um ato pelo qual se decide o homem que tem de assumir autenticamente o seu modo próprio de ser, a saber, como indeterminação originária. Que esse ato de conquista de si seja profundamente marcado pela instabilidade e precariedade não é razão suficiente para o dispensar fazê-lo com algumas luzes, donde a necessidade de o homem apropriar-se da filosofia como uma busca ao longo da qual se vai esclarecendo o fundo escuro de sua existência.






[1] O leitor poderá encontrar uma discussão sobre a inexistência do mundo sem o homem em http://escritosdobar.blogspot.com.br/2014/04/a-linguagem-e-o-lugar-de.html

                            

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

"Eu não escrevi para publicar livros, senão para dar expressão à vida. O ato de escrever é uma perpétua busca de ti mesmo" (Cioran)

                    

         O princípio Dor: a marcha da carne consciente  


Amanhã estará à disposição dos leitores, neste e no outro blog, provavelmente o meu texto mais extenso e, talvez também, o mais esmeradamente projetado para ser publicado em meu blog. Este, no entanto, que agora se apresenta reúne retalhos de cadeias de pensamentos que encontrarão na presente tessitura uma totalidade coesa e coerente. Começo, pois, sem qualquer compromisso com a definição do tema. Deixo ao leitor o encargo de reconhecê-lo e explorá-lo à proporção que ele levar adiante a leitura.
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            Sartre foi o maior exemplo de intelectual global. Como filósofo, foi engajado politicamente; foi polêmico; não cessou de intervir no mundo das lutas sociais.



“Afinal de contas, é preciso (sobre) viver, dar-se um escopo, agarrar-se a uma fé qualquer, sem perder, porém, o charme da negatividade”.[1]

Trabalhar... Estar empregado: significa produzir a teia fina e débil de sentidos sobre a ausência abissal e infinda de fundamentos. Produzir no mundo absurdo é simplesmente tomar parte na marcha que, cotidiana e inconscientemente, reproduz o drama da existência. Estar empregado é empregar a obsoleta energia vital na reprodução dos horrores, do absurdo, da fragilidade a que os indivíduos e as multidões estão sujeitos.
Estar empregado é estar pregado na tábua dos inconsoláveis, dos aflitos que vivem na inconsciência de seu desespero, suportando suas dores, seus tormentos na esperança de um paraíso promitente.
Estar desempregado: é estar em privação; é estar condenado à esterilidade do absurdo; é viver à margem daquilo em virtude do qual todo indivíduo humano é gerado e domesticado para o mundo. No mundo do trabalho, ele é forçado a levar adiante a marcha absurda, não sem esforçar-se por produzir sentidos, no entanto, quebradiços, num mundo machado pela dor ingênita, pelo sofrimento estrutural e pela crueldade banal.
Homo faber: homem absurdo. O homem, o indivíduo humano, é posto no mundo para produzir e reproduzir-se; e produzindo e se reproduzindo, reproduz sua história de misérias até que venha a sucumbir ao Irremediável.
No Princípio, era a Dor. E a Dor se dilatou em explosões de uma singularidade agonizante. Desses processos terrificantes, a Dor se fez Tormento. E o Tormento se fez carne, ganhou forma e toldou o caos atormentado. E a carne, de agora em diante, ordenada se fez existência, esquecendo-se do caos primordial e constitutivo que a fez ser, por natureza, um acidente da Dor e do Tormento. Ainda hoje, a carne luta, em sua agonia lancinante, contra suas tendências ingênitas a iludir-se sobre sua origem enferma.
Mas esta carne, irremediavelmente destinada pela própria circunstância nefasta que a gerou a apodrecer e a extinguir-se, criou; ela é criadora: a filosofia foi, dentre todas, sua criação mais excelsa e astuciosa, porque só a filosofia pôde reconciliá-la com suas origens, sem condená-la ao martírio, à culpa. Com a filosofia, a carne assumiu-se como existente, a saber, como angústia.

Uma nota esclarecedora

Aos que creem numa fonte transcendente doadora de sentido,  pode parecer que repisar a ideia do absurdo da existência constitui um hábito por meio do qual não se faz nada mais do que inscrever numa estrutura linguística uma antítese, por si mesma desprovida de qualquer significado. Quando uma expressão linguística é usada ad nauseam, ela acaba por agastar-se semanticamente,  ela torna-se um truísmo, uma combinação sonora já cansada, ipso facto, incapaz de apelo fisiopsicológico na constituição integral do enunciatário.
Na filosofia existencialista, Kierkegaard, expoente moderno do existencialismo cristão, foi, sem dúvida, o pai do absurdo. Opondo-se ao hegelianismo, afirmou tanto a impossibilidade de apreender o indivíduo, enquanto subjetividade, num sistema racional quanto a necessidade de instaurar uma ética religiosa calcada sobre a crença numa transcendência inacessível. No existencialismo de Sartre, por seu turno, o absurdo recobre a impossibilidade de justificar racionalmente a existência das coisas e de lhes conferir um sentido. Absurdo é, pois, uma categoria negativa, já que ela descreve a negação de sentido ou de possibilidade de dar ou apreender sentido. Sartre, relacionando o absurdo à existência de Deus, definiu-o como a impossibilidade de o homem ser o fundamento de sua própria existência, definição que ganhou expressão na sua fórmula poética “o homem é uma paixão inútil”. Assim, o homem absurdo está destinado a “ek-sistir”, a saber, a ser para além de si mesmo como uma consciência, isto é, um nada. A consciência é o nada, porque não sendo (seguindo Hurssel) uma espécie de recipiente onde são armazenadas as imagens e representações dos objetos externos, ela se caracteriza fundamentalmente pela intencionalidade, isto é, por tender para fora de si. Daí Sartre extrai uma consequência: não sendo definida por qualquer ser, a consciência pode, porque é nada, transcender as circunstâncias imediatas, imaginar, fazer com que exista mundo.[2]
 Sendo um existente, o homem está “condenado a ser livre”, o que implica ser responsável por seu ser e por sua própria razão de ser. A categoria do absurdo subsume esses aspectos da condição humana, que fazem do homem o fundamento sem fundamento de sua própria existência.
Por fim, a partir de Camus e Kafka, o absurdo aparece com bastante frequência para designar o incompreensível, o desprovido de sentido e o sem finalidade, especialmente nos domínios da moral e da metafísica.
Na obra de Schopenhauer – arrisco-me a dizer -, também podemos encontrar descrições que nos dão a tonalidade do absurdo. Fiquemos com este trecho que, tendo sido obra de um gênio profundamente arguto e cirúrgico, faz alegrar-se minha fisiologia dada a frieza com que o absurdo é posto a descoberto:

“Tudo o que procuramos colher resiste-nos; tudo tem uma vontade hostil que é preciso vencer. Na vida dos povos, a história só nos aponta guerras e sedições: os anos de paz não passam de curtos intervalos de entreatos, uma vez por acaso. E, da mesma maneira, a vida do homem é um combate perpétuo, não só contra males abstratos, a miséria ou o aborrecimento, mas também contra os outros homens. Em toda parte, encontra-se um adversário: a vida é uma guerra sem trégua, e morre-se com as armas na mão”.[3]




[1] Emil Cioran e a Filosofia Negativa: Homenagem ao centenário de nascimento. Deyve Redyson (org.). Porto Alegre: Sulina, 2011.
[2] O leitor poderá encontrar uma exposição mais acurada deste e de outros pontos do sistema de Sartre em http://escritosdobar.blogspot.com.br/2013/12/o-homem-deve-ser-inventado-cada-dia.html
[3] Schopenhauer, Arthur. As dores do mundo. São Paulo: Edipro, 2014, p. 26.

sábado, 26 de setembro de 2015

"Conheci algumas poucas pessoas legais; mas não conheci ainda uma pessoa ilegal." (BAR)

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                                       Granjeio filosófico

Uma única chance para que eu pudesse contar-me, dizer-lhe a que venho – sou uma história ínfima na imensidão de um universo escuro e indiferente... Não tenho eu qualquer pretensão de ser lembrado pela História... A minha insignificante história já me é demasiado pesada... (por que quereria eu ser co-responsável pela marcha de tão terrível História?) Para o ser humano, a vida se decide no instante, pois todo instante reclama-lhe a liberdade, um ato (que pode ser seu último)... num instante, se descortina ou se eclipsa seu horizonte de possíveis... cada instante é, no entanto,  um novo horizonte de possíveis... Entre dois nadas – o passado e o futuro – se faz a vida em seu contínuo desfazimento; vida é desfazimento (quantas perdas! Quantos desenlaces! Quantas contínuas, pequenas e comuns mortes!); o real? É o próprio presente.

Disseram que você é uma pessoa legal, mas não foi por isso que decidi solicitar-lhe uma “amizade virtual” (que, em pouquíssimo tempo, se torna um número esquecido entre outros). Conheci algumas poucas pessoas legais; mas não conheci ainda uma pessoa ilegal. Os ilegais são os que vivem à margem das tendências sistemáticas, das forças domesticadoras, dos automatismos massificadores; são os que não se deixam arrastar pela marcha, com seus passos compassados em seu movimento sincronicamente arregimentado – marcha em que todos são como todos, em que todos ignoram a todos; marcha para a qual o único caminho é a congênita indiferença humana. Dizem que os ilegais são transgressores, conturbadores da ordem política, criminosos; tais como eu os entendo no presente contexto, porém, eles são criadores, tanto na esfera pública, quanto na privada; criam a si mesmos, criam como artistas a vida, assumindo-se como verdadeiramente livres, a despeito de, neste ato criador, aprofundarem sua solidão (e não é na solidão que se experiencia a verdadeira liberdade?).
A legalidade do amor condenou-o a este estado de entorpecimento contagioso de seus praticantes, que não se percebem como reprodutores de uma ordem à qual raramente fazem resistência. Não vê como se comportam os amantes? Eles se escorregam por seus corpos (amores líquidos, fluidos, escorregadios; gozos intensos, efêmeros, vadios). Todos os amantes começam a se amar na legalidade (seguem os mesmos scripts, as mesmas normas); mas rapidamente se cansam, se entediam um do outro. A legalidade os esteriliza; tornam-se infecundos e se apressam por buscar as mesmas formas de divertimentos conformadas com a legalidade. Todo amor, em seus tempos germinais, é legal; todos os amantes são legais; prometem um ao outro viver fielmente na legalidade pela qual se pauta a relação. Em pouco tempo, a legalidade os torna cansativos um para o outro. Amar na ilegalidade não é entregar-se a traições, a concupiscências; é dar à relação as condições para seus gestos espontâneos, é dar seu sentido de autonomia em declarada resistência à heteronomia pela qual as relações humanas são continuamente adestradas. Se quiser, um dia, amar profundamente e ser amada, deixe de crer no amor; não há nenhum sentido salvífico nele; nenhuma profundidade. Só podemos amar o amor não crendo mais nele, aliviando-o dos aguilhões das nossas fantasias; libertando-o – se preferir- dos grilhões das ilusões que sobre ele produzimos. Amá-lo na ilegalidade; só assim amaremos em sua fecundidade (se houver alguma...).


Não pode imaginar quão custoso me é escrever-lhe isto. Hoje, como de costume, fiquei ocupado com os livros. Mas a leitura não transcorria sem alguma inquietação. Pressinto o abismo mais próximo de mim. Apesar disso, tenho de escolher (estou, como todo ser humano sartreano, “condenado a ser livre”). Extravagâncias! Desmesuras! Excrescências! Ímpetos vãos! Hábitos comuns quando me deixo seduzir pela astúcia da linguagem e por sua irresistível nudez que me desregula os estados de espírito. A vaidade de todas as coisas humanas me assombra, embora me seja tão familiar. Sinto-me, agora, o mais tolo dos homens que se conservam sobre a terra; quiçá, esteja a rir-se de mim. Contudo, tendo ainda trinta e três anos, posso permitir-me ser pateticamente esquisito. Insisto nesta minha tolice íntima para perguntar-lhe se me daria o privilégio de conhecê-la pessoalmente. 

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

O caso da "superfluicidade" - considerações morfológicas

                      

                     


                            O uso e a gramática
                                  Desfazendo alguns equívocos

Ontem, numa aula de filosofia, por motivações discursivas, a professora fez uso, com manifesta hesitação, da forma “superfluidade”. Em certo momento de sua fala, ela se referia à “superfluidade da vida”. Imediatamente, um colega interveio para “resolver” a questão, que, àquela altura, poderia estorvar o curso normal da aula, por interessante que fosse (para mim, certamente!). O colega se apressou em reparar o “equívoco”, dizendo que “o “correto” é “superfluicidade”. Imediatamente estranhei, mas preferi manter-me calado, pois, afinal, a aula tinha de prosseguir. A professora deu-se por satisfeita, e o colega, depois de sentenciar sua profunda sabedoria linguística, pôde descansar em sua satisfação. Mas o que aprendi, nestes anos de dedicação aos estudos linguísticos e filosóficos, é que também os linguistas, tais como os filósofos, são indivíduos “insatisfeitos”, “irriquietos”; eles não se contentam com soluções simples, máxime quando claramente equivocadas. Cabe, então, considerar os fatos.
“A vida é supérflua”, dizia a professora. A certa altura, ela precisou formar um correlato morfológico a partir do adjetivo “supérfluo”. Lançando mão de seu conhecimento linguístico intuitivo, formou “superfluidade” a partir de “supérfluo”. É possível demonstrar que a forma “superfluidade” é a forma verdadeiramente usual e rejeitar como usual a forma “superfluicidade”, como recomendada pelo colega? Veremos que a resposta é “sim”.
A língua portuguesa dispõe do sufixo “-idade”, que entra na formação de substantivos abstratos que denotam qualidade ou estado a partir de adjetivos. São exemplos de formações em “-idade”: raridade, honestidade, sinceridade. Tais formas derivam, respectivamente, de “raro”, “honesto” e “sincero”. Esse padrão derivacional é extensivo à forma “supérfluo”, a partir da qual se forma “superfluidade”, pelo acréscimo do sufixo “-idade”. O acréscimo de “-idade”, nas formas consideradas, se acompanha de uma modificação morfofonêmica, já que a vogal temática “-o”é suprimida. Mas modificações desse tipo são  sistemáticas quando do acréscimo de sufixos. O que se dá com a formação “superfluicidade”? Em primeiro lugar, não cabe dizer que ela é “errada”. Também não se pode dizer que ela seja agramatical, porque o aparecimento do fonema /s/ (na escrita, marcado com “c”) é sistemático quando se anexa a certos adjetivos o sufixo “-idade”. Em que condições estruturais, é esta a questão que convém examinar.
Sem mais rodeios, as formas adjetivas terminadas em “-z”, quando recebem o sufixo “-idade”, sofrem alteração morfofonêmica na base. Fonologicamente, as formas “feliz”, “sagaz” e “capaz”, por exemplo, são transcritas como /feliS’/, /sagaS’/, /KapaS’/. Em final de sílaba, “z” tem som de /s/. Esse /s/ é uma fricativa alveolar surda. O fonema /s/ difere de /z/ pelo traço [sonoridade], presente em /z/, e ausente em /s/. Façamos o mesmo procedimento que fizemos com as formas anteriores: vamos anexar às formas “feliz”, “sagaz” e “capaz” o sufixo “-idade”. O resultado dessa operação é “felicidade”, “sagacidade”, “capacidade. Veja-se que, terminando o adjetivo em “-z”, o acréscimo do sufixo “-idade” produz uma forma terminada em “(c)idade”. Ora, a ocorrência da letra “c” é um fato de escrita, mas, fonologicamente, ela marca o fonema /s/, que vimos presente nas formas derivantes /feliS/, /sagaS/, /KapaS/. A alteração para “(c)idade” decorre da necessidade de preservar a sibilante surda /s/ presente nas formas derivantes. Posto isso, há uma condição fonológica para a formação em “-(c)idade”, a saber, a ocorrência de /z/ em sílaba final de palavra. Ora, o adjetivo “supérfluo”, como facilmente se vê, não atende a essa condição, donde não haver a necessidade de formar “superfluicidade” a partir de “supérfluo”.

Que os falantes nativos tenham a propensão a ser naturalmente linguistas é um fato inegavelmente atestado pelos verdadeiros linguistas, isto é, pelos que são linguistas de formação. Tanto aqueles quanto estes se valem de sua intuição linguística quando do uso de sua língua materna (no caso dos linguistas, essa  intuição está impregnada de pressupostos teóricos; é, não raro, iluminada por saberes explícitos sobre a estrutura e o funcionamento da linguagem). O recurso a essa forma de intuição é patente nos momentos em que há hesitação na escolha entre uma forma e outra, como no caso em que devemos escolher entre “preciso de fazer o trabalho” e “preciso fazer o trabalho”, ou ainda, quando a dúvida é mais tenaz, temos de escolher entre “supusesse” e “suposse”, num contexto sintático como “se ele____, (então)...”. No primeiro caso, o falante nativo, não sendo linguista, se valerá unicamente de sua intuição linguística calcada sobre a prática comum de sua língua num dado estado sincrônico, de modo que, provavelmente, escolherá a opção “preciso fazer o trabalho”, muito embora não haja nada no sistema gramatical da língua que desautorize o uso da preposição “de”, quando se articula o verbo “precisar” (ou “necessitar”) a um infinitivo. Notemos que as duas variantes são gramaticalmente aceitáveis, ou seja, são previstas pelo sistema de regras que governam os arranjos sintagmáticos da língua portuguesa, muito embora a ocorrência daquelas variantes pareça correlacionar-se com variáveis sociolinguísticas. No segundo caso, os falantes nativos, ao menos os mais escolarizados, poderão optar por “supusesse” com base no conhecimento, não necessariamente declarado, da constituição morfológica dessa forma, que tem na base a forma “pusesse” (pretérito imperfeito do subjuntivo) do verbo “pôr”. Aqui se impõe uma advertência que é ignorada pelos falantes nativos que não são linguistas de formação: a sistematicidade da língua é produto do uso. Dito de outro modo, a gramática, compreendida como ‘sistema de regras’, emerge do uso da língua, se constitui pelo uso - que é social - da língua. Trata-se, pois, de uma evidência que tem importantes implicações para o tratamento teórico da linguagem e para a lida intuitiva com ela no dia-a-dia. Mesmo não pretendendo enumerar tais implicações, é importante dizer que não há, como queria certa tradição linguística, de um lado a “estrutura da língua”; e, de outro lado, o uso da língua. Na verdade, a estrutura da língua é fixada pelo uso, o qual é sempre governado por regras, quer sejam elas gramaticais, quer sejam elas sociais. É o uso social e histórico da língua que produz as cristalizações que dão a evidência de que a língua é dotada de uma estrutura interna, isto é, de um sistema de unidades e de regras - uma gramática.
No entanto, é justamente porque esse uso é social, porque a língua é uma realidade social, que o uso não estabelece, de uma vez por todas, um sistema rígido ou inflexível de regras e unidades para a língua; esse sistema, que é produzido por força do uso social que fazemos da língua, é flexível, maleável, suscetível a reconfigurações, no entanto, previsíveis pela própria regularidade do uso. Ao produzir a gramática, ou seja, o sistema de regras e unidades da língua, o uso engendra, ao mesmo tempo, o domínio das atualidades e o das virtualidades. Antes de prosseguir, preciso sublinhar que, ao dizer que o uso “fixa a gramática”, não quero dizer que estabelece para além de si um sistema acabado cuja existência lhe é independente. A gramática, como já disse, emerge do uso, o que significa dizer que ela está em constante construção – a língua mesma está em constante construção, em constante fazer-se – no/pelo uso. Essa compreensão de gramática que se faz pela prática da língua é coextensiva à compreensão de que não existe língua fora do uso. Ora, a língua, enquanto sistema de signos abstrato, só tem lugar no trabalho teórico. A língua não se encontra nem nos dicionários (que só listam seus lexemas), nem nos manuais de gramática (que descrevem sua constituição e fixam seus padrões de uso). Também não se identifica com as frases que se tomam isoladamente para fins pedagógicos de análise de sua estruturação. A língua, portanto, é aquilo que os falantes fazem ao interagirem socialmente por meio de arranjos de signos de extensão e complexidade variáveis em contextos sociais determinados. A língua é uma atividade intersubjetiva, uma prática social governada por um conjunto variado de regras gramaticais e sociais.
Pois bem. Disse que o uso engendra os domínios das atualidades e das virtualidades. Cabe, agora, esclarecer o que significa isso. O uso fixa os padrões linguísticos. Tais padrões são atravessados pela tensão entre a flexibilidade e a inflexibilidade. A gramática, que emerge do uso, que é produto do uso, se constitui de domínios de regras, de padrões cuja flexibilidade se estende por um continuum em que é possível verificar os padrões inflexíveis, os quais constituiriam, por assim dizer, o “núcleo duro” da gramática, e os padrões claramente flexíveis. Entre esses dois extremos, há todo um espectro de padrões suscetíveis a restrições. Por exemplo, o falante nativo de português não dispõe da liberdade para usar o artigo depois do substantivo, como em “menino o”, tampouco pode usar a preposição “para” (ou outra qualquer), para introduzir o complemento verbal do verbo “gostar” (cf. * Eu gosto para chocolate). Ele também não pode suprimir a preposição “de” regida pelo verbo “gostar”, produzindo algo como “Eu gosto chocolate”. Esses padrões que não admitem variação, que não são flexíveis constituem, no entanto, parte do conhecimento intuitivo, quase inconsciente, que os falantes têm de sua língua materna. No extremo oposto, onde se situam os padrões variáveis, flexíveis, o falante nativo dispõe de alguma liberdade, senão vejamos. O falante de português pode escolher, tendo em vista influências contextuais, entre o uso de “Esse assunto é entre eu e você” e “Esse assunto é entre mim e você”. A tendência comum de coibir a variação inerente ao uso da língua não deixará de questionar a possibilidade de escolha – é verdade – formulando a pergunta: “Mas “entre eu e você” não é errado? (porque as gramáticas normativas nos ensinam que tal construção é errada; porque, na escola, o professor disse que é errada). A despeito disso, esse caso ilustra um padrão linguístico variável, flexível previsto pela gramática da língua que o uso fixou.
Os exemplos da posição do artigo e da regência do verbo “gostar” estão entre os casos de combinações que simplesmente não fazem parte da língua, o que significa dizer que não fazem parte do uso da língua, o que significa dizer que são simplesmente o tipo de coisa que nenhum falante nativo de português, independentemente do grau de escolarização, de sua classe socioeconômica faria, porque a anteposição do artigo ao substantivo (cf. o menino/ a bicicleta, a pipa) e o uso da preposição “de” com o verbo “gostar” (cf. gostar de chocolate) são já sabidos pelo falante nativo de português, são manifestações de sua competência linguística, de seu conhecimento intuitivo das regras de formação de enunciados do português. Ninguém ensina isso a ele.
O exemplo do “entre mim e você” e “entre eu e você” está entre os casos de padrões flexíveis. Eles se situam no domínio das atualidades do sistema. Os estudiosos - e os falantes nativos em geral - constatam a ocorrência de tais formas o tempo todo nas práticas de uso da língua.
Falta ainda apontar exemplos de padrões linguísticos que recobririam o domínio das virtualidades do sistema da língua, ou seja, daqueles padrões que, embora não sejam atualizados no uso, verificados no uso, não deixam de ser previstos pelo uso, ou pela gramática ou sistema de regras da língua. Os processos de formação de palavras fornecem bons exemplos de padrões que, embora constitucionalmente possíveis, não são usuais (o que não significa que, não havendo alguma restrição de ordem estrutural, não possam se tornar usuais). Vejamos alguns exemplos.
Tomem-se as formas “fixação” e “aleitamento”. Trata-se de formações usuais no português. Qualquer falante nativo as reconhece como bem-formadas. A descrição dessas formas se elucida como se segue. O sistema da língua dispõe dos sufixos “-ção” e “-mento” que servem à formação de substantivos nos quais se aproveita a noção de ação do verbo derivante na forma nominal derivada. Assim, com as formas “fixa-ção” e “aleita-mento”, categorizamos o evento ou processo verbal sem referência ao tempo, modo,  às pessoas envolvidas, etc. Importa ver que, em “fixação”, não há qualquer restrição estrutural que desautorize a ocorrência de “fixamento”. A única razão para que “fixamento” não ocorra é que já há disponível a forma “fixação” no uso da língua. A despeito de sua não-ocorrência, a forma “fixamento” constitui uma virtualidade do sistema da língua, ou seja, a forma “fixamento” é prevista pelo sistema de regras morfológicas do português. Temos também a forma “mapeamento” e, por isso, dispensamos o uso da forma “mapeação”, o que não significa dizer que “mapeação” não seja bem-formada e não esteja, por isso, prevista pelo sistema de regras. Mas a língua deve operar de modo a preservar sua dinamicidade e flexibilidade, evitando a sobrecarga da memória dos falantes. Por isso, exceto quando há especificidade estilística ou semântica de uso, quando dispomos de dois sufixos que satisfazem as condições de um mesmo processo de formação, a escolha por um deles implica a desnecessidade de uso do outro. Para “martelar”, temos as formas “martelagem” e “martelação”. Mas, em “martelagem”, o sufixo “-agem” especifica uma técnica da metalurgia; em “martelação”, forma comum nas variedades coloquiais, o sufixo “-ção” marca intensidade na repetição do ato de martelar. Os sufixos “-agem” e “-ção” se anexam a uma mesma base verbal, mas o que disso resulta comporta uma especificação semântica. Vejam-se também os casos de “jornalista” e “jornaleiro”.
Já, na forma “aleitamento”, a ocorrência do sufixo “-mento” é condicionada pelo processo de parassíntese que incidiu sobre a base. O radical primário é “leite”, do qual se derivou, por parassíntese, ou seja, pelo acréscimo simultâneo de um prefixo e um sufixo à base, a forma “aleitar”. Essa forma derivada constitui o radical secundário que dá origem à forma “aleitamento”. O sufixo “-mento” é a forma sistematicamente escolhida para as nominalizações a partir de bases formadas por parassíntese (cf. enobrecer/ enobrecimento; encarecer/encarecimento/ amolecer/amolecimento). Há, portanto, nesse caso, uma restrição estrutural: uma base previamente formada por parassíntese, que impede a anexação do sufixo “-ção”. Essa restrição estrutural é, em última instância, fixada pelo uso.
A título de conclusão, é bom desfazer alguns equívocos bastante comuns:

1o equívoco: supor que, pelo simples fato de uma forma não se verificar no uso da língua, deve-se considerá-la como não pertencente à língua, como inexistente. O próprio uso, ao fixar o sistema, produz também as condições de possibilidade de ocorrência de formas. Há, na língua, por isso, domínios de virtualidades. Formas como “livração” e “desfeliz” só  fere as sensibilidades porque o uso consagrou as correspondentes “livramento” e “infeliz”.

2o equívoco supor que os dicionários são autoridades soberanas no que diz respeito ao que é usual. Ora, os dicionários não registram todas as formas de uso da língua. A língua varia, muda, e os dicionários estão sempre atrasados em relação à produtividade lexical de uma língua, em relação à deriva da língua.

3o equívoco supor que os padrões que se situam no domínio das virtualidades não pertencem à língua. A rigor, isso não é verdade. O domínio morfológico-lexical das virtualidades recobre as formas que, embora não usadas, são previstas pelo sistema de regras – a gramática – da língua. Essas formas existem como virtualidades, porque se prestam a uso, atendem às exigências previstas pela gramática, a qual, como procurei argumentar, emerge do uso, é produto do uso. A língua, portanto, como sistema de signos, só pode ser abstraída do uso em condições teóricas.

Observação final



Outro equívoco eu ouvi a um professor que se referia ao fato de a Linguística pensar/trabalhar a palavra (o signo) sempre desvinculada do contexto de uso. Isso só é parcialmente verdadeiro, segundo uma reconstituição de sua história. Na verdade, já há muito não se admite fazer linguística com base no pressuposto de que a língua existe em si e por si mesma como um sistema de signos abstrato. A Linguística moderna surgiu, é verdade, com Saussure, a partir da publicação de seu Curso, em 1916, tendo como um de seus axiomas a existência formal da língua independente do contexto de uso; mas houve revoluções teórico-metodológicas no interior da Linguística desde então. 

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

"(...) a minha "humanidade" consiste não em simpatizar com os outros homens, mas em suportar sua proximidade...A minha humanidade é uma vitória contínua sobre mim mesmo" (Nietzsche - Por que sou tão sábio)

         
                      Resultado de imagem para Nietzsche e o ressentimento



            O ressentimento no pensamento de Nietzsche
                                
                            Apontamentos para pesquisa


Esta é uma das poucas vezes em que compus um texto teórico tão rápido. A brevidade deste texto atende ao objetivo principal para cuja satisfação ele foi escrito: fornecer apontamentos sobre a significação do conceito de ressentimento no pensamento de Nietzsche. Ao reunir, aqui, estes apontamentos, espero contribuir para minhas próprias pesquisas futuras e para as de estudantes de filosofia interessados em se tornar legítimos leitores de Nietzsche, a saber, leitores capazes de ter a mesma experiência que a dele, condição esta para a compreensão do modo de ser do filósofo que, aliás, queria leitores pensantes, autônomos e livres e tinha horror a angariar discípulos.

Na filosofia de Nietzsche, o ressentimento corresponde a um problema fisiológico, a saber, à falta de forças de um organismo cansado para reagir às intempéries da vida e que não consegue digerir os sentimentos ruins que produz. Da fraqueza que gera tais sentimentos e da presença deles no interior desse organismo resulta uma desordem psíquica que o impede de viver efetivamente o presente. Justamente por acarretar uma desordem psíquica, o ressentimento é, a rigor, um fenômeno fisiopsicológico, tendo em conta o fato de que, em Nietzsche, psicologia não recobre um domínio estranho ao corpo.
Embora se apresente como um fenômeno fisiopsicológico, o ressentimento não está desvinculado de momentos fundamentais da filosofia de Nietzsche, em que ele desenvolve sua crítica à cultura, à moral ou às configurações políticas de seu tempo, tais como a democracia, o socialismo ou o anarquismo.
É necessário atentar para os diferentes acentos de significação com que se apresenta o conceito de ressentimento nos diversos trabalhos nietzschianos. Por exemplo, em Crepúsculo dos Ídolos, o ressentimento é entendido como vingança e é relacionado à justiça, à semelhança da forma como se apresentara em A Genealogia da Moral. Na primeira obra referida, os cristãos, os socialistas e os anarquistas são considerados como representantes do espírito de vingança, mormente porque seus ideais de justiça e sociedade se fundamentam na noção de “direitos iguais”, e porque também esses ideais envolvem a ideia de culpa, expressa na forma do enunciado “alguém tem de ser culpado pelo fato de o sofredor sentir-se mal”. Destarte, a justiça equivale à vingança contra todo aquele que faz (o sofredor) sofrer.
Em Ecce Homo, por seu turno, Nietzsche retoma o ressentimento ressaltando os seus aspectos fisiológicos e pessoais. Aqui o ressentimento é o próprio “estar doente”; é uma doença. Lê-se, nessa obra, no capítulo Por que sou tão sábio “o ressentimento é a coisa proibida por excelência a todo doente, aquilo que lhe faz mais mal; desgraçadamente, é também aquilo para o qual mais naturalmente se inclina” (2007, p. 45)
Em A Genealogia da Moral, o ressentimento assume dois significados claros, que discrimino abaixo:

1o signficado:  O ressentimento é compreendido como um problema do homem individual, fraco, incapaz de reagir em face das adversidades da vida e de digerir o veneno produzido pela sua vingança não realizada;

2o signficado: O ressentimento se apresenta como um problema social, porque toca a uma concepção de justiça e a um modo de intervenção social. Nesse caso, situado no domínio da moral, o ressentimento corresponde a uma vontade de poder, que opera em vista do domínio sobre as demais vontades de poder e que efetivamente se tornou vitoriosa na cultura ocidental.

Por fim, levando a cabo estes apontamentos, na terceira dissertação de A Genealogia da Moral, o ressentimento se liga ao sofrimento interior do homem e sua causa envolve fatores fisiológicos. Consoante Nietzsche, é o sacerdote ascético o responsável por modificar “a direção do ressentimento”. O sacerdote lança mão da concepção segundo a qual o sofrimento humano é uma espécie de punição para conter o rebanho e mantê-lo amansado. È o ideal ascético, portanto, que aparece como o modus operandi da moral do ressentimento, de acordo com a qual o próprio sofredor apresenta-se como culpado de seu sofrimento, disso resultando ser ele – o próprio sofredor – o alvo de sua própria sede de vingança. Ressalte-se que é o sacerdote ascético que se vale de estratégias destinadas a impedir que o ressentimento (o sofrimento) se amplie – pois que seu aumento poderia redundar na perda de seu rebanho, ou, num sentido diverso, o aumento da tensão no interior do homem poderia levá-lo a elevar-se através de sua doença, circunstâncias estas que, segundo Nietzsche, não interessam à interpretação religiosa. Ora, deve-se ficar claro que a interpretação religiosa pretende que aquele tipo de homem fraco, totalmente oposto ao ideal nietzschiano de homem suficientemente forte para superar o ressentimento, permaneça incapaz de tornar-se forte o suficiente para superar tal estado de envenenamento (isto é, o ressentimento).



terça-feira, 22 de setembro de 2015

Poema - "... Em nenhum amor, existe repouso" (Nietzsche)


                                                 


Profanação do amor


Não poder amar-te como outrora
A isto chamo a verdadeira saúde!
Oh! Prímula de minha primavera doente!
Meu ser é pleno de filosofia!
“...E há quem ainda acredite na profundidade da filosofia”
“Pouco a pouco nos enfadamos do que
possuímos seguramente...”

Minha lucidez é um cemitério
Onde em covas fundas ignotos jazem
os amores meus de asas cortadas
“(...) nem a mais bela paisagem estará certa
de nosso amor, após passarmos três meses nela”

Quão risíveis me parecem agora os amantes!
Quão vãs estas empresas engenhosas de Eros!
Faustas -  creem, posto que malfadadas!
Quão deploráveis as multidões de apaixonados!
- Suas marionetes.
Cobiçosos os amantes insaciáveis se cansam
E teimam em viver na ignorância das maquinações
Deste Intermediário, astuto a mendigar consolações

Eros quer possuir, subsiste da propriedade
Exímio capitalista! Engorda com o emagrecimento
de seus operários expropriados.
Mas a Lucidez – esta doença contagiosa (mal incurável)
A Lucidez – esta metamorfose demoníaca
que solapa a Inocência
A Lucidez – esta fissura fisiológica irrecuperável
Que nos desnuda a Dor inerente a Existir
A Lucidez, enfim, me despossuiu
Lúcido, pois, (en)fadado por (de) Eros
Curei-me dos estados doentios
Do ressentimento que me fazia desaprovar a Vida!
“Enfadar-se de uma posse é enfadar-se de si mesmo”
E enfadado de mim mesmo, cultivo a fecundidade
de minha terra-solidão – Meu Exílio,
onde sou verdadeiramente livre.
Onde Eros – filho da Intemperança
Primogênito da Loucura!
Não ousa mais combalir-me
Lançando suas perturbações

“(...) Em nenhum amor, existe repouso.”


(BAR)