princípio metodológico
na compreensão da produção filosófica
Um confronto entre a teoria do conhecimento
de Kant e de Schopenhauer
Num encontro com uma
amiga, também doutora em Linguística, ela procurou saber se eu passaria a me
dedicar mais aos estudos filosóficos do que aos estudos da linguagem, dado o
entusiasmo manifesto ao contar-lhe sobre a lida diária com a filosofia na
graduação. Respondi que não via na dedicação à filosofia nenhum empecilho para
a tenacidade de meu empenho nos estudos da linguagem. Ajuntei que não via o
estudo filosófico como uma atividade incompatível com o estudo linguístico. Ao
contrário, entendo que minha vocação para o estudo da linguagem, para o ensino
de língua acompanha harmoniosamente meu pendor para as reflexões filosóficas.
Muito antes desta ocasião em que fui questionado sobre qual seria minha
preferência, apercebi-me de que o background
que adquiri como resultado destes mais de dez anos em que estive ocupado
com meu processo de formação continuada na área dos Estudos da Linguagem
iluminaria a estrada que então se me abria por ocasião de meu ingresso na
graduação em Filosofia. O estudo informal da filosofia vinha sendo feito desde
2005, nove anos antes de eu iniciar a graduação. Naquela época, eu estava
fazendo mestrado em Estudos da Linguagem; e, mesmo decididamente devotado aos
estudos desse curso, não deixava de visitar os filósofos.
Tendo em
vista o que expus até aqui, espero fique claro que não encontro razão para
preferir um estudo ao outro, para ocupar-me, com mais deleite, de um estudo em
prejuízo do outro. Vou-me esforçar por demonstrar que, não havendo qualquer
dissonância entre os estudos da linguagem e os estudos filosóficos, o que
entendo haver é justamente uma contribuição dos estudos da linguagem para o
desenvolvimento da compreensão filosófica. A tese basilar desta exposição se
acha no excerto abaixo, colhido de um trabalho desenvolvido por mim, no ano
passado, como requisito para a aprovação numa disciplina do curso de filosofia.
Nesse texto, pondero o seguinte:
Toda a filosofia se desenvolve e se constitui a partir de
uma outra.
Isso é verdade também para qualquer domínio discursivo: todo discurso se
desenvolve e se constitui na base de outros discursos. Conforme nos dá testemunho
Cossuta, “(...) cada filosofia pretende encontrar sua origem num começo
radical”; mas acrescenta “todo começo é apenas recomeço” (p. 33). Aqui nos
parece estar a especificidade do discurso filosófico, visto que os discursos
filosóficos jamais se superam uns aos outros (no sentido de que cada discurso
precisa constituir-se pela reelaboração, pelo retorno a e trabalho contínuo
sobre as proposições, as teses, os argumentos, a abordagem de outros
discursos). Toda a herança discursiva é,
a cada nova etapa de discurso, revitalizada, reanimada, reincorporada, ainda
que seja para dela se distanciar, para submetê-la ao impacto de um martelo nietzscheano.
Esse recomeço da filosofia, que não se dá senão por construção de discurso, é
ele o próprio exercício contínuo e ininterrupto do pensamento. É o pensamento
que, retomando o já pensado, o prolonga, o faz dizer o que até então havia
permanecido silenciado. Por isso, Platão nunca será superado, nem Santo
Agostinho, nem os que os precederam. É nesse recomeço que reside a vitalidade
do discurso filosófico – um discurso que, embora tenha no seu horizonte a
verdade, jamais pretende, por isso mesmo, alcançá-la definitivamente; e também,
por isso, se apresenta como um recomeço: é um discurso que, animado pela busca
da verdade, está sempre disposto a percorrer os mesmos caminhos, a retomar os
mesmos pontos de partida; pois o contentamento está não tanto na chegada, mas
nesse percorrer.
Se não há um discurso
inaugural, tampouco há um sujeito adâmico, também o discurso filosófico
engendrará suas formas na herança de enunciações filosóficas (daí o recomeço).O
filósofo mobiliza uma série de atitudes, de estratégias pelas quais essa
herança se faz presente em sua obra. Essa é uma questão que, no entanto, não
nos ocupará aqui, por limitações de tempo e espaço. (...)
À luz das considerações
desenvolvidas nesta subseção, cuidamos que se pode pensar toda a história da
filosofia como uma imensa cadeia de discursos que se relacionam entre si de
modos vários e complexos. Pensamos também que é tarefa do estudioso e estudante
de filosofia também o debruçar-se sobre a história do pensamento filosófico,
com vistas a investigar as formas como os discursos que compõem essa memória
discursiva se articulam, se constroem por assentimento ou refutação, por
retomadas, reelaborações, alusões, tendo sempre em vista o diálogo constante
que os atravessa, mesmo quando esse diálogo, paradoxalmente, assume formas de
silenciamentos. Aqui, vale lembrar uma lição cara aos analistas do discurso: em matéria de linguagem, as formas de
silêncio, o não-dito também significam, também dizem. (grifos meus).
Com base
na constatação de que todas as formas de produção filosófica (quer se apresentem
como sistemas, quer como tratados, ensaios, diálogos, etc.) “se desenvolvem e se
constituem a partir de uma outra [ou de outras]”, proponho como princípio
metodológico de estudo e compreensão da produção filosófica, ao longo da
história do desenvolvimento do pensamento Ocidental, o conceito de interdiscursividade que, gestado no interior
da Análise do Discurso,
aviva a percepção segundo a qual “toda a história da filosofia [pode ser
encarada] como uma imensa cadeia de discursos que se relacionam entre si de
modos vários e complexos”
. De modo
algum, proponho que se faça Análise do Discurso a partir de textos filosóficos.
Embora seja possível a realização de tal análise segundo o aparato
teórico-metodológico e os procedimentos fornecidos pela Análise do Discurso, quem
quer que pretendesse dedicar-se a uma empresa como esta estaria movimentando-se
num horizonte hermenêutico cujos objetivos divergiriam – talvez, radicalmente -
daqueles que, comumente, orientam a prática interpretativa dos comentadores. De
modo geral, os comentadores que se debruçam sobre a compreensão de um pensamento
filosófico procuram fornecer dele uma exegese que não está comprometida com os
pressupostos teóricos que dão corpo à Análise do Discurso. A Análise do
Discurso tem por interesse compreender o modo como um discurso produz sentido,
para o que ela leva em conta a língua, a História e o sujeito, em
funcionamento, com vistas a revelar a determinação histórica dos processos
semânticos e, consequentemente, a dispersão dos sentidos. A Análise do Discurso
se constitui pela inter-relação entre Linguística, História e Psicanálise, do
que resulta ser ela uma área transdisciplinar.
Há
que distinguir três campos teóricos com que a Análise do Discurso está em
constante diálogo. O primeiro campo é o do materialismo
histórico. No quadro da Análise do Discurso, o materialismo histórico é
compreendido como uma teoria das formações e transformações sociais. A Análise
do Discurso, articulando-se dialogicamente com o materialismo histórico,
manterá que as condições de produção do discurso só podem ser observadas na e
pela História. As condições de produção do discurso, sendo historicamente
determinadas, explicam o aparecimento de um dado enunciado em um tempo e lugar,
e não em outros. Da Linguística, a
Análise do Discurso aproveita as ferramentas necessárias ao trabalho com os elementos
linguísticos que tornam possível a materialização dos discursos. No horizonte
de investigação da Análise do Discurso, situa-se a inter-relação constitutiva
da linguagem e a sua exterioridade. Por fim, a Análise do Discurso precisa
elaborar uma teoria do discurso, à
luz da qual se desenvolverá o exame da determinação histórica dos processos de
significação. Nesse caso, está sob foco de investigação a produção dos sentidos
tomada como decorrente de fenômenos históricos.
A
despeito do que se apresenta no parágrafo precedente, não intento propor que o
estudo da produção discursiva filosófica se transforme num trabalho de
interpretação e compreensão de textos segundo os pressupostos teóricos e
metodológicos e os objetivos da Análise do Discurso. O que proponho é que
possamos interpretar/compreender os textos filosóficos à luz da noção de interdiscursividade, a qual se
acompanhará de outros conceitos que serão definidos e que, uma vez reunidos,
contribuirão para fornecer um quadro sinótico elucidativo desse campo de estudo
recoberto pela designação Análise do Discurso.
Convém
salientar que os conceitos de interdiscursividade
e interdiscurso deverão, segundo
minha proposta, ser tomados como pressupostos orientadores do trabalho de
interpretação e compreensão dos textos filosóficos. Estes dois conceitos
resultam da compreensão de que todo discurso está calcado sobre outros
discursos que o antecedem ou o precedem. Os conceitos de língua, discurso, sujeito, formação discursiva, historicidade do texto,
formação ideológica e ideologia
serão definidos como condição para que se elucide as bases teóricas da Análise
do Discurso. No que diz respeito à formação
discursiva, farei uma tentativa rudimentar para torná-la operacional a
partir da elaboração compreensiva da produção discursiva do epicurismo e do
estoicismo. Evidentemente, uma análise que se pretendesse acurada teórica e
metodologicamente deveria prever um recorte dos discursos que constituiriam um arquivo
para a investigação, já que são vários os filósofos epicuristas e estóicos e
diversos, portanto, os discursos produzidos.
Este
texto divide-se em duas partes: na primeira, versarei sobre os pressupostos e
os referidos conceitos com os quais trabalha a Análise do Discurso, enfatizando
a relevância dos conceitos de interdiscursividade
e de interdiscurso. Na segunda
parte, com o intento de ilustrar de que modo esses conceitos contribuem para
que nos tornemos leitores mais competentes no trabalho de interpretação e
compreensão de textos filosóficos, abordarei, sem pretensão à exaustão, de modo
dialógico, as teorias do conhecimento elaboradas por Kant e Schopenhauer.
1.
A Análise do
Discurso: pressupostos e conceitos
“A
filosofia – define Epicuro- é uma atividade que, por discursos e raciocínios,
nos proporciona uma vida feliz”. Seja-me permitido, então, destacar este
truísmo: a filosofia não é possível senão
pela produção de discursos. Ao destacar deste passo de Epicuro tal truísmo,
ciente estou de que deixo à margem de minhas considerações o vínculo necessário
entre filosofia e vida feliz, de que dá testemunho não só Epicuro mas toda a
tradição grega.
Epicuro
lembra-nos que a atividade da filosofia se realiza pela produção de discursos.
Definir os conceitos de discurso e de
língua à luz do quadro teórico da
Análise do Discurso se me impõe como uma pré-condição para que se esclareçam os
demais conceitos, já referidos, que contribuirão, por sua vez, para a
elucidação da complexidade do objeto teórico da Análise do Discurso.
1.2. Discurso e Língua
Discurso
não se identifica com a fala, nem com a língua. O discurso, tal como definido
pela Análise do Discurso, é um
acontecimento sócio-histórico; é, segundo Orlandi (2007), efeito de sentidos entre interlocutores. Tanto o locutor quanto o
interlocutor, participantes da atividade discursiva, estão sempre afetados pelo
simbólico. Esses efeitos de sentidos são consequência das relações entre
sujeitos simbólicos que participam do discurso, em condições sócio-históricas
dadas. Os efeitos de sentidos se realizam como consequência do fato de esses
sujeitos serem situados sócio-historicamente e de serem afetados pelas suas memórias discursivas, as quais, por sua
vez, são memórias sociais. As memórias discursivas fundam um espaço que se
apresenta como condição de possibilidade do funcionamento do discurso. Esse
espaço constitui um corpo sócio-histórico-cultural. (Fernandes, 2007, p.
59-60). O conceito de memória discursiva
será definido quando eu me debruçar sobre o conceito de interdiscurso. Desde
já, noto que memória discursiva e interdiscurso são conceitos correlatos,
sinônimos.
A
língua não é meramente um código
entre outros. Não há separação entre emissor e receptor, como postula uma
clássica Teoria da Comunicação. Tampouco a língua é mero instrumento de
comunicação. Ao usarmos a língua, não só comunicamos, como também não
comunicamos. A língua é, fundamentalmente, uma prática social, e os participantes dessa prática social atuam
interacionalmente na produção de significados. O que eles fazem, quando
envolvidos nas práticas linguísticas, é produzir discurso. Portanto, o
funcionamento da linguagem põe em relação sujeitos e sentidos afetados pela
língua e pela História, num complexo processo de constituição desses sujeitos e
de produção de sentidos.
No
que tange ao texto, é ele um objeto linguístico-histórico. Não carece fazer uma
distinção entre texto e discurso aqui. Texto e discurso são atravessados pela
incompletude. O texto não é, assim, uma unidade fechada, embora, na prática de
análise, possamos compreendê-lo como uma unidade inteira em relação com outros
textos existentes, possíveis ou imaginários (intertextualidade), com suas
condições de produção (os sujeitos e a situação), com sua exterioridade
constitutiva (o interdiscurso, a memória discursiva).
O
texto é caracterizado por sua historicidade.
Falar em historicidade do texto é
apreender seu acontecimento como discurso, seu funcionamento, o trabalho de
sentidos que ocorre nele. Trata-se de pensar a temporalidade interna do texto,
ou seja, sua relação com a exterioridade
constitutiva, segundo o modo como ela se inscreve no texto. Essa
exterioridade não é a exterioridade histórica da qual o texto é um produto;
essa exterioridade determina o texto internamente. Não é algo que está lá fora
e que se reflete no texto. Não se vai da História (acontecimentos, eventos)
para analisar o texto, mas se parte do texto enquanto materialidade histórica, com suas marcas. Destarte, compreender a
materialidade do texto é compreender como a matéria textual (historicidade do
texto) produz sentidos.
Não
se está negando que há uma relação entre a História fora do texto e a
historicidade do texto, que é a trama de sentidos nele, mas essa relação não é
direta, nem imediata, nem de causa e efeito. Essa relação é complexa e demanda,
a fim de que possa ser explorada, a compreensão do funcionamento do texto.
1.3. Sujeito
Desde
já, é necessário rechaçar um possível equívoco: o sujeito de que trata a Análise do Discurso não é o sujeito
cartesiano, ou seja, como uma consciência unitária e transparente a si mesma, e
suposta como existente independentemente do corpo. Esse sujeito cartesiano é um
“eu” a-histórico, senhor de si, cuja existência é postulado pelo pensamento. O
sujeito de que trata a Análise do Discurso é um sujeito sócio-histórico. Este sujeito não se confunde nem com o
autor nem com o indivíduo empírico que produz um texto. Trata-se de uma posição-sujeito ou forma-sujeito constituída na relação com o simbólico na História. O
sujeito é discursivo e descentrado (não é a origem do seu dizer), porquanto
afetado pelo real da língua e pelo real da história. Ele não exerce controle
sobre o modo como língua e História o afetam. Por isso, o sujeito funciona pelo
inconsciente e pela ideologia.
O
sujeito deve sua instituição à interpelação ideológica (Althusser).
O sujeito não é o centro do seu dizer, de modo que ele se caracteriza por duas
formas de esquecimento: 1o esquecimento – o sujeito se constitui pelo esquecimento
da formação discursiva que o determina. Só há sujeito pela sua inscrição na
formação discursiva. É devido a esse esquecimento que o sujeito tem a ilusão de
ser a origem do que diz; 2o
esquecimento – o sujeito esquece que há outros sentidos possíveis. Nesse
caso, ao formular o seu dizer, vão-se construindo cadeias parafrásticas de tudo
aquilo que ele poderia dizer, mas não disse. Quanto mais operamos formulações
tanto mais silenciamentos se deixam vazar de nossas palavras. Esses
silenciamentos compreendem o domínio do formulável (eles também dizem). Esse
esquecimento segundo acarreta a ilusão da relação termo a termo entre o dizer,
o pensar e a realidade.
Retomando-se
a contribuição do materialismo histórico
para a constituição do campo de estudos da Análise do Discurso, deve-se reter
que há o real da História, de sorte que o homem faz história, mas ela não lhe é
transparente. Conjugando a língua com a História na produção de sentidos (os
sentidos são produto do trabalho de uma relação determinada do sujeito com a História),
os estudos do discurso se ocupam com a dinâmica da forma material, que é a
forma encarnada na história para produzir sentidos. Essa forma é de natureza
linguístico-histórica. Esclarecendo os elementos que estão em jogo no trabalho
do analista do discurso, cumpre sublinhar: a) o sentido não é o conteúdo semântico das palavras; b) a História não é um contexto, um
enquadramento de acontecimentos; c) o
sujeito não é a origem de si e nem está na origem do que diz. A Análise do
Discurso está, portanto, preocupada com a ordem do discurso, na qual o sujeito
se define por meio de sua relação com o sistema significante dotado de
sentidos, sua corporeidade, sua historicidade (Orlandi, 2007, p. 49). O sujeito
é, assim, sujeito significante (que significa), é sujeito histórico (ou seja,
material). Esse sujeito, conforme mostrei, é uma posição-sujeito, isto é, ele se define como “posição”, porque é um
sujeito atravessado por diferentes “vozes”, por diferentes discursos, numa
relação, submetida a regras, com a memória
discursiva (o interdiscurso). Esse sujeito só existe por sua relação com
uma formação discursiva, a qual, por sua vez, mantém relação com as demais
formações discursivas. Portanto, o sujeito de que se ocupa a Análise do
Discurso é um lugar de significação que se constitui historicamente, vale
dizer, pelo interdiscurso.
Uma
vez que não se separam forma e conteúdo, a Análise do Discurso visa a
compreender a língua não só como estrutura, mas, sobretudo, como um
acontecimento. Da reunião da estrutura e acontecimento, resulta que a forma
material (linguístico-histórica) é considerada como o acontecimento do
significante (língua) num sujeito afetado pela História. É importante destacar
que as palavras que usamos no trato cotidiano com a língua já nos chegam
carregadas de sentidos, dos quais ignoramos a origem de constituição. Não
obstante, elas significam em nós e para nós.
1.4. Formação discursiva e Ideologia
A
língua é a materialidade específica do discurso, e o discurso é a materialidade
específica da ideologia, de modo que não há ideologia fora do signo, do
discurso. Descerei a considerações sobre o conceito de formação discursiva, definindo, posteriormente, sem me estender
sobre o tema, o conceito de ideologia,
tal como compreendido pela vertente da Análise do Discurso de cuja apresentação
venho-me ocupando.
Todas
as formações discursivas são
constituídas de formações ideológicas
que as governam. O conceito de formação
discursiva foi cunhado por Foucault, em Arqueologia
do Saber (1969), para designar o domínio que, numa dada formação
ideológica, a partir de uma posição social numa conjuntura histórica dada,
determina o que se pode e deve-se dizer. É
da formação discursiva que as palavras e os enunciados recebem seus sentidos.
A formação discursiva refere-se ao que se pode dizer somente em determinada
época e espaço social, ao que tem lugar e realização a partir de condições de
produção específicas, historicamente definidas. A formação discursiva permite
explicitar como cada enunciado tem seu lugar e sua regra de aparição, e como as
estratégias que presidem à sua produção derivam de um mesmo jogo de relações;
em suma, como um dizer encontra espaço num determinado lugar e época.
Foucault
ensina que a formação discursiva torna possível a descrição, tendo em vista
certo número de enunciados, de um sistema de dispersão. Além disso, ela permite
definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições, funcionamentos,
transformações) relativamente a objetos, tipos de enunciação, conceitos e
escolhas temáticas. Uma formação discursiva não se limita a uma época apenas.
No seu interior, se acham elementos que existiram em diferentes espaços
sociais, e em outros momentos históricos, e que reaparecem sob novas condições
de produção, tornando-se parte constitutiva de um novo contexto histórico e,
consequentemente, possibilitando outros efeitos de sentido.
Tentarei,
de modo rudimentar, mostrar como se pode operar com o conceito de formação discursiva por meio da
consideração de duas escolas filosóficas que vicejaram no período helenista,
justamente numa época em que o homem grego via dissipar-se o horizonte único da
vida moral, a saber, a pólis. A
partir de então, Estado e política passaram a ser situados entre as coisas
moralmente indiferentes ou mesmo moralmente negativas. A fim de assinalar a
ruína espiritual experimentada pelo homem grego neste período, vale lembrar que,
na era clássica, a pólis era o lugar
sem o qual o homem não poderia conceber sua própria existência, nem
relativamente aos outros, nem em relação a si mesmo. Na pólis, homem e cidadão se identificavam quase completamente. É, por
outro lado, no período helenista, que o homem descobre-se indivíduo. Doravante, não podendo mais orientar-se pela Cidade, pelo
éthos do Estado e seus valores, a fim
de tornar plena de conteúdos sua própria vida, o homem, coagido pela força dos
acontecimentos, não teve alternativa senão encerrar-se em si mesmo. Com a
empresa revolucionária de Alexandre, a cultura passou a formar indivíduos.
Atentemos para o seguinte passo de Reale (2011, p. 11),
que nos esclarece sobre a grande transformação cultural e filosófica ocorrida
nesse período:
“Assim
como a cultura helênica, tornando-se helenística, perde o seu vigor originário
e a sua força primigênia, assim também a filosofia, em particular, perde
profundidade o que ganha em extensão. A perda se dá justamente na dimensão da
teoreticidade e, portanto, na força e no vigor especulativo. O ganho se dá no
número incomparavelmente superior de pessoas para as quais a filosofia,
transformada essencialmente em problema da vida, sabe comunicar uma mensagem
válida. A filosofia torna-se efetivamente a fonte da qual o homem helenístico
extrai os valores que antes extraía da polis
e da religião da polis; oferece
novos conteúdos de vida espiritual, ilumina as consciências, ajuda o homem a
viver e lhe ensina como ser feliz mesmo na época trágica em que vive na qual
todos os antigos valores parecem subvertidos”.
Não
se pode negar que as novas condições sócio-históricas da era helenística vão ser
determinantes do aparecimento de discursos assentados numa orientação
ideológica diversa, redefinida em relação aos discursos produzidos no período
clássico. No entanto, nos quadros da Análise do Discurso, não se parte da
exterioridade histórica para examinar os textos; a atenção se concentra na
exterioridade constitutiva (interdiscurso, memória) que atravessa o texto e o
determina do interior. Vou-me ater ao conceito de formação discursiva, a fim de lhe externar a operacionalidade.
Sabe-se que Epicuro apregoou ser o prazer
o soberano bem. O prazer, para ele, é o começo e o princípio da vida feliz.
Foi justamente por fundar sua moral no prazer que Epicuro foi acusado por seus
contemporâneos e pela posteridade de defensor da volúpia.
No entanto, o próprio Epicuro não descurou de advertir que se deve buscar os
prazeres moderados, afastando aqueles que não são nem naturais nem necessários.
A título de ilustração, vamos considerar como a palavra prazer recebe seu sentido pela inscrição dos sujeitos epicuristas e
estóicos em formações discursivas diversas. O epicurismo subordinou a virtude
ao prazer: a virtude era um meio para
alcançar o prazer. Um estóico como Zenão, o fundador do estoicismo, não
poderia concordar com Epicuro. A ética estóica se assenta no seguinte preceito
estruturado em consequências: deve-se
viver segundo a natureza, que significa viver
segundo a razão, que, por sua vez, coincide com viver segundo a virtude. Para o estóico, a virtude é, ela mesma, a felicidade;
por conseguinte, viver segundo a virtude deve ser desejado. Vivendo segundo a
virtude, o estóico conquista a autarquia;
por isso, não tem necessidade de prazeres. Segundo a opinião estóica, os
prazeres não concorrem para aperfeiçoar a natureza humana; são tão-só fenômenos
que acompanham o aperfeiçoamento, mas não estão totalmente sob o poder do
indivíduo.
Há
que se ver, pois, o confronto entre duas formações
discursivas, que fazem com que os sujeitos e a palavra “prazer” signifiquem
de modo diverso. As condições sócio-históricas do helenismo favorecem o
aparecimento de discursos filosóficos nos quais há uma preocupação com a orientação
moral ou ética dos indivíduos, conforme nota Reale (ib.id.): “os filósofos da
era helenística são substancialmente moralistas, grandes moralistas; são
pregadores de um credo ético; são, a seu modo, apóstolos e missionários”.
Malgrado sejam mobilizados por um interesse ético em comum, os filósofos
epicuristas e estóicos se inscrevem como sujeitos em formações discursivas e
ideológicas diferentes. Essas formações discursivas deixam transparecer temas
que atravessaram outras formações discursivas em outras épocas e lugares. Por
exemplo, naturalmente, o tratamento dispensado ao prazer pelo epicurista e pelo
estóico se faz num movimento de redefinição/re-produção de efeitos de sentido
produzidos em outro lugar e época, como, por exemplo, na época de Platão, em Filebo. Aqui, já se entrevê a
importância da memória discursiva ou interdiscurso como condição de
possibilidade de existência do próprio discurso, pois o discurso de epicuristas
e estóicos só é possível pela intervenção dessa memória coletiva, que é a
memória discursiva. Os discursos, portanto, se imbricam e se relacionam com
outras formações discursivas anteriores e exteriores, e que atravessam o
discurso de um sujeito. Escapa aos propósitos deste texto uma demonstração
acurada da operacionalidade do conceito de formação
discursiva, para cuja tarefa supõe-se a constituição de um corpus discursivo ou arquivo que se conclui apenas no fim do
procedimento analítico.
Tomando-se,
agora, o conceito de ideologia, será
suficiente dizer que, no quadro teórico a que remetem minhas considerações, a
ideologia não é uma forma de ocultamento de conteúdos, mas um mecanismo de
produção de uma interpretação necessária que atribui sentidos fixos às
palavras. Por isso, o mecanismo ideológico não envolve uma falta, mas um
excesso (Orlandi, 2007, p. 66). A ideologia representa a saturação do sentido,
o efeito de completude, o qual, por sua vez, é responsável pelo efeito de
evidência (do sentido).
1.5. Interdiscursividade e
Interdiscurso (memória discursiva)
A
interdiscursividade recobre o
entrecruzamento de diferentes discursos, produzidos em diferentes momentos na
História e a partir de diferentes lugares sociais. Todo discurso é constituído
de diferentes enunciados que o antecedem e o sucedem, e que integram outros discursos.
Correlato ao fenômeno da interdiscursividade, o interdiscurso ou memória
discursiva é a instância da repetição histórica, porque inscreve o dizer no
repetível (interpretável) enquanto memória constitutiva (interdiscurso). Esta
memória é uma rede de filiações de dizeres que faz a língua significar.
Destarte, sentido, memória e História se entrecruzam no interdiscurso.
O
interdiscurso é aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente da
formulação de um discurso dado. É a memória discursiva, o saber discursivo que
torna possível todo dizer e que retorna sob a forma de pré-construído,
o já-dito que está na base do dizível e que dá suporte a toda tomada da
palavra. O interdiscurso põe em movimento dizeres que afetam o modo como o
sujeito significa em uma situação discursiva dada.
Tendo
ficado claro que o interdiscurso é o próprio espaço de inscrição da memória de
dizeres, que a memória discursiva expressa a inscrição da língua na História,
passo, na próxima seção, a dissertar sobre a teoria do conhecimento em Kant e
em Schopenhauer, procurando assinalar como nossa experiência com a filosofia se
beneficia da compreensão do modus
operandi dos conceitos de interdiscursividade
e interdiscurso. Levando a termo esta
seção, refiro as palavras de Orlandi (2010, p.18), que definindo o
interdiscurso, sublinha a relação deste com a formação discursiva:
“O interdiscurso determina a formação
discursiva. E o próprio da formação discursiva é dissimular na
transparência do sentido, a objetividade material contraditória do
interdiscurso que a determina. Essa objetividade material contraditória reside
no fato de que algo fala sempre antes em outro lugar e independentemente. O interdiscurso é irrepresentável. Ele é constituído de todo dizer já-dito.
Ele é o saber, a memória discursiva. Aquilo que preside todo dizer. É ele que
fornece a cada sujeito sua realidade enquanto sistema de evidências e de
significações percebidas, experimentadas. E é pelo funcionamento do
interdiscurso que o sujeito não pode reconhecer sua subordinação-assujeitamento
ao Outro, pois, pelo efeito de transparência, esse assujeitamento aparece sob a
forma de autonomia”. (grifos meus).
2. Kant e Schopenhauer: uma leitura com base no princípio da
interdiscursividade
Quando
no livro 1 de O mundo, Schopenhauer
desenvolve sua concepção do mundo como representação,
são repostos vários elementos já presentes no desenvolvimento do criticismo
kantiano. Decerto, essa reposição não consiste em mera apropriação, mas é
expressão de uma ressignificação desses elementos num movimento que articula
assentimento e divergência. Mobilizando os conceitos já trabalhados por Kant e
reinscrevendo-os num novo horizonte hermenêutico, Schopenhauer permite-nos
acompanhar o percurso pelo qual o interdiscurso irrompe em seu discurso – na
forma de intertextualidade - como condição de possibilidade para a sua própria
construção. Ao dizer, o sujeito schopenhaueriano deixa ressoar um já-dito produzido
em outro lugar e época de modo independente. Todo discurso é constituído de diversas
formações discursivas. É, por isso, de esperar que o discurso schopenhaueriano
seja atravessado por formações discursivas várias. Não obstante, estou
interessado em mostrar, a partir da perspectiva da interdiscursividade, por que tem razão Schopenhauer quando
considerou a si próprio um herdeiro do kantismo. Para levar a efeito esta
empresa, precisarei, em primeiro lugar, dispensar atenção sobre a teoria do
conhecimento de Kant. Posteriormente, debruçar-me-ei sobre o desenvolvimento da
concepção do mundo como representação
de Schopenhauer na tentativa de mostrar a intervenção do interdiscurso que traz
o registro, especialmente, da voz kantiana.
2.1. Kant e sua teoria do conhecimento
A
distinção estabelecida por Kant entre sensibilidade
e entendimento inspirou-se na
clássica distinção dos antigos entre objetos sensíveis (aisthèta) e objetos inteligíveis (noètá). A sensibilidade recobre
a faculdade das intuições; e o entendimento
encerra a faculdade dos conceitos.
De
modo geral, por intuição, entende-se
a visão direta e imediata de um objeto apresentado ao espírito e apreendido em
sua realidade individual. Portanto, só há intuição quando um objeto nos é dado
ao espírito. Na medida em que objetos que nos são dados são aqueles que nos
afetam o espírito, as intuições serão recobertas pela faculdade da
sensibilidade, a qual se caracteriza por receber as representações. Segundo Kant, para o homem, só há intuições sensíveis.
Sublinhe-se
que a sensibilidade é a faculdade que tem nosso espírito de ser afetado por objetos.
É a sensibilidade, assim, que nos fornece as intuições, e somente ela.
Por
outro lado, o entendimento
encarrega-se de pensar os objetos fornecidos pela sensibilidade. Trata-se de
uma faculdade não sensível de conhecer. O entendimento se caracteriza pela espontaneidade. Ao entendimento cumpre
produzir representações. As representações do entendimento são os conceitos. Destarte, de acordo com Kant,
o entendimento humano produz um conhecimento por conceitos. Não sendo,
portanto, um conhecimento intuitivo, esse conhecimento é discursivo.
Cuido
indispensável esclarecer, a esta altura, o que é representação. A representação é a operação pela qual a mente tem
presente a si mesma uma imagem mental, uma ideia ou conceito correspondente a
um objeto externo. Toda representação é uma re-apresentação da realidade
externa à consciência, de sorte que a realidade
re-apresentada se torna um objeto da consciência. É o signo (a palavra)
o elemento responsável por permitir a relação entre a consciência e o real na
representação.
Volvendo
olhares para a contribuição kantiana, encontramos na Crítica da Razão Pura (2013, p. 45), logo de início na Introdução, o primeiro registro do interdiscurso, que se
depreende da passagem em que Kant dá seu assentimento a um tese empirista, da
qual Hume foi um representante que influenciou decisivamente o pensamento
kantiano, tanto mais que o próprio Kant viu nele o filósofo responsável por
tê-lo despertado de seu sono dogmático: “não
há dúvida de que todo o nosso conhecimento começa com a experiência”. Esse
trecho se acompanha, no entanto, da observação do próprio Kant de que o
conhecimento não se reduz à experiência. O conhecimento, portanto, começa com a
experiência, no que está de acordo com a tese básica do empirismo, mas não se
reduz a ela. Minha atenção recairá apenas sobre o fato de a experiência
ser o domínio responsável por dar início
ao conhecimento, vale dizer, por torná-lo possível. Se o ponto de partida para
o conhecimento é a experiência, pode-se dizer que, para Kant, o conhecimento
tem como base a sensação. A sensação
é a impressão produzida por um objeto na sensibilidade. Por meio da sensação,
dá-se a intuição empírica. O objeto dessa intuição empírica é o fenômeno.
A
experiência é um conhecimento real e empírico, que resulta da interação entre a
sensibilidade e o entendimento. A experiência se constitui pela ligação de
percepções, operada pelo entendimento, na forma de conceitos. A experiência
envolve dados empíricos e elementos a
priori. Segue-se daí que o conhecimento se realiza cabalmente no momento em
que percepções e conceitos são relacionados sob a forma de um juízo. Só no nível do juízo é que se
constituirão objetos, pois, antes do juízo, não há qualquer determinação.
Ao
se ocupar da análise da sensibilidade e do entendimento, Kant se aproveitará da
distinção escolástica entre forma e matéria. Destarte, com vistas a explicar
de que modo operam a sensibilidade e o entendimento no conhecimento dos
fenômenos, Kant propõe que pensemos tanto o fenômeno quanto o conhecimento como
algo constituído de forma e matéria. A matéria do conhecimento
depende do próprio objeto; a forma do conhecimento, por sua vez, depende do
sujeito. O ato de conhecer é, portanto, o ato de dar forma a uma matéria dada.
Todo conhecimento – eis um ponto importante – implica uma correlação entre um
sujeito e um objeto. Os dados objetos são configurados pelo modo com que a
sensibilidade e o entendimento os apreendem.
A
matéria é a posteriori, isto é,
depende da experiência. A matéria do conhecimento é variável de um objeto para
outro, visto que dele depende. A forma, por outro lado, como seja imposta pelo
sujeito ao objeto, será reencontrada invariavelmente por todos os sujeitos em
todos os objetos.
Tanto
a sensibilidade quanto o entendimento apresentam formas que lhes são próprias.
As formas puras da sensibilidade são
o espaço e o tempo. As formas se dizem puras porque estão a priori no espírito, isto é, não pertencem à sensação ou à
experiência. As formas a priori do
entendimento são os conceitos ou categorias do entendimento. Antes de
apresentá-las, convém enfatizar que sensibilidade e entendimento são
inseparáveis para atingirmos conhecimento: por um lado, o conhecimento requer
que os conceitos (pensados pelo entendimento) se tornem sensíveis, caso em que a
eles articulamos um objeto dado na intuição; por outro lado, as intuições só se
tornam inteligíveis, quando se subordinam a conceitos. Não menos importante é
enfatizar que as categorias do entendimento constituem as condições subjetivas
do pensamento. Assim, ser-nos-ia impossível pensar, isto é, julgar, se não nos
fosse possível submeter os dados da intuição sensível às formas a priori do entendimento. Kant distingue
entre doze categorias, segundo quatro pontos de vista ou domínios: 1) no
domínio da quantidade, se acham a unidade, a pluralidade e
a totalidade; 2) no domínio da qualidade, se topam a realidade, a negação e a limitação; 3) no domínio da relação, situam-se a substância (e acidente), a causa (e efeito), a reciprocidade; 4) no domínio da modalidade, se encontram a possibilidade,
a existência e a necessidade.
Retomemos
as formas puras da sensibilidade,
quais sejam, o espaço e o tempo, para observar que Kant as entendia unicamente
dependentes da forma de nossa intuição, a saber, da constituição de nosso
espírito. O espaço não é um ser real, um conceito empírico derivado de nossas
experiências exteriores. Não há isto que chamamos "espaço" como instância ontológica
que nosso espírito apreende. Para Kant, o espaço é a priori, porque a sua representação constitui a condição de
possibilidade dos fenômenos. Assim também, o tempo é um dado a priori; é a condição de todo
vir-a-ser. O tempo não existe nas coisas, tampouco é uma coisa externa à nossa
consciência. O tempo é a forma da intuição de nós mesmos e de nosso estado
interior. O tempo é a condição formal a
priori de todos os fenômenos. Não estando interessado em descer a
pormenores sobre as formas da sensibilidade, cinjo-me a lembrar que a intuição
só pode nos fornecer os fenômenos e jamais a coisa-em-si (númeno). Essa
limitação do conhecimento aos fenômenos terá um impacto significativo na
própria compreensão que o homem moderno terá de si mesmo: só posso conhecer
quem sou conhecendo alguma coisa. Só podemos apreender nosso eu apenas como
fenômeno e não como coisa em si. É a metafísica tradicional, com sua pretensão
a fornecer algum conhecimento, que é rejeitada: não podemos conhecer coisa alguma para além da experiência. O homem
só pode conhecer aquilo que lhe é dado na intuição.
A
coisa-em-si ou o númeno é incognoscível. Portanto, só conhecemos o ser das coisas na
medida em que elas nos são dadas enquanto fenômenos.
2.1.2. A Razão, segundo Kant
Para
além da experiência, não há conhecimento possível. Com este postulado, Kant
nega ser possível à razão demonstrar a imortalidade da alma, a liberdade do
homem ou a existência de Deus. Ademais, para o filósofo de Königsberg, não se
pode provar nem que a alma é mortal, nem que o homem não é livre, nem que Deus
não existe. Para além da experiência – é preciso acrescentar -, não podemos
conhecer a existência e a não-existência.
Kant
reconhece que a razão tem uma tendência a ultrapassar os limites do
conhecimento, já que tem em mira o incondicionado. Tal pretensão da razão
leva-a a uma antinomia, isto é, a um modo de proceder no qual ela, a razão,
instaura um conflito interno cuja solução se lhe torna impossível. A antinomia
se estrutura pela articulação de uma tese com uma antítese. A tentativa de
provar tanto um aspecto quanto outro é vã, porque os argumentos a que recorre
para tanto são meramente especulativos e, portanto, incapazes de oferecer uma
prova empírica.
Kant
confere à razão, então duas novas funções. Ela não pode mais presumir a dedução
da existência de objetos como Deus, alma, mundo, por si transcendentes, de
simples ideias, de sorte a transformar a lógica formal em órgão de
conhecimento. Uma vez consciente de seus próprios limites, a razão se torna
crítica. Kant estava ciente de que a razão não cessaria de fracassar, caso
continuasse a se aventurar em conhecer objetos que só pode conhecer por
conceitos, os quais por si mesmos são insuficientes para determinar um objeto
real correspondente. Ora, do que expusemos até aqui, é possível depreender que
o conhecimento é produto da interação complexa entre duas faculdades; ele é o
resultado de uma síntese operada pela sensibilidade e pelo entendimento. São as
seguintes as novas funções que Kant fixou para a Razão: a) tornar as ideias especulativas instrumentos metodológicos que sevem à
avaliação do progresso da experiência. Essas ideias foram chamadas de Ideias
Regulativas; b) negar o caráter contraditório de ideias cosmológicas como a de
liberdade e a de necessidade mediante a ressignificação do conceito de objeto,
que passa a ser entendido como fenômeno e como coisa-em-si (númeno). Desse
modo, as ideias de liberdade e necessidade tornam-se pressupostos da prática
moral.
Não
devemos perder de vista o fato de que, para Kant, Razão não é o mesmo que
entendimento. A razão ultrapassa o entendimento. A razão é a faculdade responsável
por operar uma síntese, dando aos conhecimentos múltiplos uma unidade a priori por meio de conceitos. Vale
notar que o entendimento, assentado em conceitos, reduz à unidade a
multiplicidade dada na intuição. O entendimento opera segundo certas regras. A
razão, por sua vez, referindo-se ao entendimento, parte das regras para atingir
uma unidade mais elevada, que é a unidade dos princípios.
A
razão se diz pura, porque busca o
incondicionado, que é a condição última de todas as condições. É no uso lógico
da razão que melhor apreendemos essa busca da unidade mais elevada. Quando
raciocinamos, compreendemos uma proposição particular sob uma condição geral
que a contém, juntamente com outras condições.
Por
fim, acrescente-se que o conceito é produto do entendimento; e a ideia é obra
da razão. A Ideia ultrapassa a experiência fenomênica. Mas a ideia é um
conceito necessário da razão, muito embora a ideia não encontre um objeto
correspondente nos sentidos. A razão exige que se represente o universo como uma
totalidade acabada.
Tendo
revisitado brevemente a teoria do conhecimento kantiana, espero que se ilumine,
doravante, a relevância da interdiscursividade
como princípio metodológico à medida que eu for passando revista à compreensão
schopenhaueriana do mundo como
representação.
2.2. Schopenhauer: o mundo como
representação
No
limiar do livro 1 de O mundo como Vontade
e Representação (2001), Schopenhauer aduz a tese em torno da qual
desenvolverá sua teoria do conhecimento, a qual constitui uma etapa (a
primeira) da sua compreensão totalizante do homem e do real. Antes de referir o
passo em que destacarei em negrito, essa tese, cumpre dizer que Schopenhauer se
notabilizou por seu espírito profundamente triste e pessimista, que foi
empregado na produção de uma obra de cunho existencialista. A verdade
pretendida por sua filosofia consiste em demonstrar ser a existência um mal, do
qual só podemos escapar pela renúncia a ou pela negação da Vontade.
De
minha parte, entendo que uma obra filosófica deve resultar de um esforço por
dar testemunho de uma existência, de um temperamento. Isso, ao menos, parece
ser verdade no caso de Schopenhauer. Sua existência amargurada, seu
temperamento mórbido, sua solidão trágica constituem as forças produtoras de
sua filosofia, que encontrou imensa repercussão na alma do homem contemporâneo.
A par de Kierkegaard, Schopenhauer soube bem exprimir a sensação de angústia
que encontra morada na alma humana.
Neste
texto, no entanto, pretendo apenas pontuar em que medida a filosofia de Schopenhauer,
particularmente na etapa em que ele propõe o primeiro ponto de vista sobre o
mundo, é tributária do pensamento de Kant. Destarte, aceno para a necessidade de se
debruçar sobre toda produção filosófica tendo sempre em conta o princípio da
interdiscursividade. Leia-se, então, o fragmento em que Schopenhauer expõe,
logo de início, a primeira tese de seu tratado:
“O mundo é minha representação – essa
proposição é uma verdade para todo ser vivo e pensante, embora só no homem
chegue a transformar-se em conhecimento abstrato e refletido. A partir do
momento em que é capaz de o levar a este estado, pode dizer-se que nasceu nele
o espírito filosófico (...)”. (2001, p. 9).
Consoante
notei anteriormente, “o mundo como representação” é o primeiro ponto de vista sob
o qual Schopenhauer considerará o mundo. O outro ponto de vista consiste em
afirmar que “o mundo é a minha vontade”. Portanto, “o mundo como representação”
e “o mundo como Vontade” são dois aspectos sob os quais Schopenhauer
compreenderá o mundo. Estas minhas considerações se estenderão prioritariamente
sobre o primeiro aspecto; todavia, não silenciarei sobre o segundo aspecto.
Desde
já, observo que o nome de Kant é referido por Schopenhauer algumas vezes ao
longo do texto, sinal suficiente para atestar que sua filosofia se constituiu
em diálogo com o pensamento do filósofo de Königsberg. Devemos, no entanto, acompanhar de que modo esse diálogo
se desenvolveu, apontando as convergências e as divergências entre os dois
pensamentos.
A
tese “o mundo é minha representação” assenta sobre um postulado que já se
encontra em Kant: o conhecimento supõe
uma relação necessária entre o objeto e o sujeito cognoscente. Levando
adiante as consequências do idealismo de Kant e recuperando explicitamente a
fórmula de Berkeley que inaugura o idealismo propriamente dito – o mundo é minha representação -,
Schopenhauer sustentará que o mundo só existe na sua relação com um ser que
percebe, ser que é o próprio homem. Assim,
“Nenhuma
verdade é, portanto, mais certa, mais absoluta, mais evidente do que esta: tudo
o que existe, existe para o pensamento, isto é, o universo inteiro apenas é
objeto em relação a um sujeito, percepção apenas, em relação a um espírito que
percebe. Em uma palavra, é pura representação”. (ibid.id.).
Para
Schopenhauer, tudo que há no mundo ou que pode haver está numa relação
necessária com o sujeito “e apenas existe para o sujeito”. Não obstante ter
sido um grande admirador de Kant, Schopenhauer não deixou de censurá-lo por não
ter reconhecido aquela verdade que “constitui já a essência das considerações
céticas de onde procede a filosofia de Descartes”.
Deve-se
frisar que, segundo Schopenhauer, o mundo existe absolutamente, segundo o
primeiro ponto de vista, como representação;
e, segundo o outro ponto de vista, como vontade.
O mundo como Vontade (com maiúscula
para precisar que não se trata da “vontade subjetiva”) é o mundo da
coisa-em-si. A Vontade de
Schopenhauer é correspondente à coisa-em-si kantiana, se bem que de modo
ressignificado. Schopenhauer submeterá à reflexão justamente aquilo que Kant
apenas postulou. Notável, para os meus propósitos, é assinalar a insatisfação
schopenhaueriana com a forma como Kant introduziu em seu sistema a sua
coisa-em-si. Para Schopenhauer, o mundo não se reduz nem à representação, nem à
Vontade. A representação é um aspecto sob o qual o mundo existe; e a Vontade é
o outro aspecto sob o qual o mundo existe. A Vontade, escreve Schopenhauer, “é
um objeto em si” (p. 11). O em-si schopenhaueriano – a Vontade – é a essência do
mundo, de sorte que esse “em-si”, sendo um princípio metafísico de explicação
da configuração existencial do mundo, não deixa por isso – apesar de ser uma
Vontade cega e sem propósito – de servir para demonstrar a ordem ou a natureza
do mundo. O em-si kantiano, ao contrário, compreende, em sua teoria do
conhecimento, o domínio do incognoscível, daquilo que é imperscrutável ao
entendimento e a razão humanos. A Vontade pode ser conhecida pelo homem – levar
o homem a se tornar consciente das maquinações da Vontade é o objetivo
fundamental a que se destina a filosofia de Schopenhauer.
A
problemática da coisa-em-si em Schopenhauer e em Kant não deve nos ocupar
demais, por conseguinte passo a assinalar os momentos em que a teoria do
conhecimento de Schopenhauer vai-se desenvolvendo em claro contraste com a de
Kant. No tocante à essência do sujeito,
escreve Schopenhauer:
“Aquele
que conhece o resto, sem ser ele mesmo conhecido, é o sujeito. Por conseguinte,
o sujeito é o substractum do mundo,
condição invariável, sempre subentendida de todo fenômeno, de todo objeto,
visto que tudo o que existe, existe apenas para o sujeito”. (p. 11).
Ao
nos determos no excerto acima, encontramos novamente o postulado básico segundo
o qual “tudo o que existe, existe apenas para o sujeito”. Ora, afirmar que o
mundo é representação é assumir que ele existe para o sujeito que conhece. Sem
o sujeito, não há mundo. Por isso, o sujeito é o substractum (essência) do mundo como representação. É importante
reter que, para Schopenhauer, o sujeito não é objeto de conhecimento. O sujeito
em si não é uma representação; ele é seu pressuposto. Aqui é preciso reconhecer
a divergência que há entre o projeto schopenhaueriano e o kantiano. Kant, ao se
ocupar das condições de possibilidade do conhecimento e dos limites da razão,
tomou para objeto de conhecimento o próprio sujeito em sua forma ideal. Para
Schopenhauer, que está interessado em investigar a natureza do mundo, o sujeito
é pensado como “princípio que conhece sem ser conhecido”. (ib.id.). De certo
modo, o sujeito é incognoscível para si mesmo – “é ele que conhece em toda
parte em que há conhecimento”.
Outra
diferença notável em relação à abordagem de Kant consiste no fato de
Schopenhauer pensar as formas do espaço
e do tempo relativamente ao objeto, e
não, como pensou Kant, ao sujeito. Para Schopenhauer, o sujeito é uno e
indivisível, conforme lemos a seguir:
“O
mundo, considerado como representação, único ponto de vista que aqui nos ocupa
compreende duas metades essenciais, necessárias e inseparáveis. A primeira é o objeto que tem por forma o
espaço e o tempo, e, por conseguinte, a pluralidade; a segunda é o sujeito que escapa à dupla lei do tempo e do espaço,
sendo sempre uno e indivisível em cada ser que percebe”. (ib.id., grifos meus).
Afirma-se
a idealidade radical do sujeito: ele escapa à lei do tempo e do espaço; não
sofre as modificações do devir – é uno e indivisível. A condição para existir o
mundo como representação é que haja um objeto e um sujeito que percebe. No
entanto, se esse único sujeito desaparece, com ele desaparece o mundo concebido
como representação. É necessário ponderar que Schopenhauer não rejeita a
possibilidade de se deduzir do sujeito as formas essenciais a qualquer objeto –
a saber, o tempo, o espaço e a causalidade. Essa possibilidade de dedução
explica, segundo Schopenhauer, por que Kant as considerou formas a priori da consciência. Schopenhauer
não deixa, contudo, de reconhecer o mérito de Kant: “De todos os serviços prestados por Kant à filosofia, o maior reside
talvez nesta descoberta”. (p. 12).
No
tangente à compreensão do estatuto da causalidade, Schopenhauer coloca-se em
evidente oposição a Hume. Já que minha preocupação básica é demonstrar a
verdade do princípio da discursividade como condição de todo discurso e de
demonstrar sua pertinência à compreensão da história da filosofia, é oportuno
recordar o modo como Hume pensava a causalidade. Para ele, a causalidade não é
um princípio ontológico. Ela resulta de associações operadas pela mente humana
por força do hábito. É porque na experiência percebemos, repetidas vezes, um
objeto ser precedido de outro, que julgamos haver entre eles uma relação
natural de causa e efeito.
Para
Hume, nossos raciocínios de causa e efeito fundamentam-se na experiência e, todos
os raciocínios experimentais se apoiam na suposição de que o curso da natureza
permanecerá regular. Por isso, somos levados à conclusão de que as mesmas
causas, em situações iguais, sempre produzirão os mesmos efeitos. É o espírito
humano, pelo concurso da experiência, que concebe qualquer efeito como
resultante de uma causa.
Lembra
Hume Adão só poderia concluir que, dadas duas bolas, uma das quais lançada em
direção a outra, que uma delas se movimentaria como efeito do choque da outra,
se somente tivesse a experiência anterior do efeito que resulta do impulso
daquelas duas bolas. Adão deveria ter visto vários casos anteriores em que uma
bola chocou-se contra outra, fazendo esta se movimentar. Vendo um número
suficiente de casos semelhantes, estaria certo de que a segunda bola se
movimentaria todas as vezes que outra bola se chocasse contra ela. Para Hume, é
a experiência que engendra a noção a noção de causa e efeito: é porque estamos
habituados a ver um fenômeno Y seguir-se a um fenômeno X que temos a expectativa
de que, ocorrendo X, seguir-se-á Y. Essa nossa expectativa, fundada no hábito,
se traduz na fórmula: X é a causa de Y.
É
justamente essa compreensão de causalidade que Schopenhauer rejeita. Schopenhauer considera a causalidade como um
princípio da nossa experiência do real. Ora, na condição de princípio, a
causalidade (ou lei da causalidade) é pressuposta no modo como o mundo se nos
dá intuitivamente. Fique claro que Schopenhauer não está sustentando que a causalidade exista no mundo real independentemente do entendimento, o que o excerto abaixo é suficiente para rejeitar. O que Schopenhauer diz, contra Hume, é que a causalidade não é produto da força do hábito, mas uma lei que regula os fenômenos do mundo e que existe no e para o entendimento. Sem o entendimento, o mundo não seria nada, e lei alguma existiria.
“(...)
o mundo percebido pela intuição no espaço e no tempo, o mundo que se nos revela
na intuição como causalidade, é perfeitamente real e é absolutamente aquilo que
parece ser; ora, aquilo que ele pretende ser inteiramente e sem reserva é representação, e representação regulada pela lei da causalidade. Nisso consiste a sua realidade empírica. Mas, por outro lado, só há causalidade no e para o entendimento; assim, o mundo real, isto é, ativo, é sempre, como tal, condicionado pelo entendimento, sem o qual ele não seria nada” ( grifo meu, p. 21).
Como
se pode ver, no trecho acima, a causalidade não é um produto do hábito, como
pensava Hume; para Schopenhauer, é um princípio que existe no mundo que é
representação.
Com
não estar eu preocupado em desenvolver uma análise exaustiva que ilumine as
convergências e as divergências entre as teorias do conhecimento de
Schopenhauer e de Kant, vou limitar-me a notar que por entendimento Schopenhauer não entende o mesmo que Kant, tanto mais
que Schopenhauer diz o possuírem todos os animais, mesmo os mais imperfeitos. A
razão por que Schopenhauer estende o entendimento aos animais é que o
entendimento tem por essência o conhecimento pelas causas. Para Schopenhauer, o
entendimento limita-se a ser uma faculdade responsável por ligar o efeito à
causa ou a causa ao efeito. No entanto, no homem, a intensidade de ação e
extensão de sua esfera é maior.
No
que tange à razão, Schopenhauer
atribui a ela apenas a propriedade de classificar, fixar e combinar os
conhecimentos imediatos do entendimento, sem nunca produzir qualquer
conhecimento. Nesse tocante, Schopenhauer não se afasta muito de Kant. Ele
conserva a distinção kantiana entre razão e entendimento e destitui a razão do
poder de lograr um conhecimento teórico. No entanto, ao contrário de Kant,
Schopenhauer nega que a razão seja a faculdade do incondicionado. Para
Schopenhauer, a razão tem seu alcance reduzido à exploração dos dados imediatos
do entendimento, sem o qual ela permanece estéril. O entendimento, segundo essa
perspectiva, é a faculdade da representação. Ele é estruturado pelo princípio
da razão suficiente (espaço, tempo e causalidade). Kant, por sua vez, distingue
entre intuição, com suas formas a priori
(espaço e tempo) e entendimento, com suas doze categorias. Schopenhauer, por
seu turno, as funde numa única faculdade, a qual chama alternadamente de entendimento, intelecto ou intuição. A intuição, para Schopenhauer
– no que discorda de Kant – não é puramente sensível, mas intelectual. O que
vimos a respeito de Kant patenteia que, para ele, a intuição é sempre sensível.
Acerca da intuição, escreve Schopenhauer:
“(...)
a intuição não é de ordem puramente sensível, mas intelectual; pode-se dizer,
em outras palavras, que ela consiste no conhecimento da causa pelo efeito, por
meio do entendimento: pressupõe, pois, a lei da causalidade.” (p. 19).
Finalmente,
reitere-se que a lei da causalidade é condição de possibilidade para qualquer
intuição. Nisso Schopenhauer discorda de Hume, que pretendia deduzi-la da experiência
por força do hábito. Para Schopenhauer, a lei da causalidade é condição de
possibilidade para qualquer experiência.
Considerações finais
Como
espero tenha ficado claro, nenhum discurso vem ao mundo como criação de um
sujeito que está na origem do dizer. Todo discurso está calcado sobre discursos
que o precedem, ao mesmo tempo que projeta espaços de possibilidade de outras
enunciações. O interdiscurso é o já-dito que se situa em outro lugar; é
pré-condição para todo dizer, é a memória discursiva. Numa perspectiva
bakhtiniana, devemos reconhecer que o dialogismo está no cerne do funcionamento
da linguagem, visto que todos os enunciados se constituem a partir de outros.
Quando os comentadores nos ensinam sobre as influências sofridas por um filósofo,
como a que sofreu Schopenhauer de Kant, como a que Kant sofreu de Hume, por
exemplo, eles põem em evidência justamente o funcionamento do princípio de
interdiscursividade, ainda que não haja preocupação explícita de teorizar sobre
ele (tarefa esta que compete ao linguista, ao analista do discurso). Mas a
importância de tal princípio é irrecusável para um estudo tanto mais profundo
quanto satisfatório do pensamento filosófico em toda a sua complexidade e
extensão. Assim é que se vai costurando o tecido discursivo: Santo Agostinho
remete a Platão, que remete a Parmênides e a Heráclito, os quais dialogam com a
tradição anterior, ao mesmo tempo em que abrem espaços enunciativos
posteriores. Assim é que podemos ver um Marx retomar Hegel, para
reinterpretá-lo, para contestá-lo, etc. É pela interdiscursividade que podemos
melhor compreender as divergências que opõem, de um lado, racionalistas; de
outro, empiristas; é ela que nos permite, inclusive, pensar aquilo em razão do qual se opõem as duas
formas de idealismo, como o de Kant e o de Descartes. Racionalismo e Empirismo;
Idealismo e Realismo, etc. são designações que acenam para diferentes formações
discursivas e ideológicas. Fica, então, estabelecido que o estudo da linguagem,
mormente no que tem de contribuição para a compreensão do funcionamento textual
e discurso, antes de subtrair-se ao estudo da filosofia, vem-lhe em socorro
para torná-lo uma atividade ao longo da qual o agente vai-se transformando
profundamente pelo aprofundamento de sua compreensão dialógica do pensamento
que se põe sob foco de sua atenção por ocasião do estudo.
____________________________________
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FERNANDES,
Alves C. Análise do discurso: reflexões
introdutórias. São Carlos: Clara Luz, 2007.
KANT,
Immanuel. Crítica da Razão Pura.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
ORLANDI, Eni
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Eni P.; Rodrigues-Lagazzi, Suzy (orgs). Discurso
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________ Autoria, leitura e efeitos do trabalho
simbólico. São Paulo: Pontes, 2007.
PASCAL,
Georges. Compreender Kant.
Petrópolis, RJ: 2009.
SCHOPENHAUER,
Arthur. O mundo como Vontade e
Representação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.
O
caráter polifônico de todo discurso se deixa facilmente apreender quando, ao
longo do texto, Schopenhauer evoca também o nome de Berkeley, a quem foi
primeiro a formular aquela verdade.