sexta-feira, 2 de outubro de 2015

"Eu não escrevi para publicar livros, senão para dar expressão à vida. O ato de escrever é uma perpétua busca de ti mesmo" (Cioran)

                    

         O princípio Dor: a marcha da carne consciente  


Amanhã estará à disposição dos leitores, neste e no outro blog, provavelmente o meu texto mais extenso e, talvez também, o mais esmeradamente projetado para ser publicado em meu blog. Este, no entanto, que agora se apresenta reúne retalhos de cadeias de pensamentos que encontrarão na presente tessitura uma totalidade coesa e coerente. Começo, pois, sem qualquer compromisso com a definição do tema. Deixo ao leitor o encargo de reconhecê-lo e explorá-lo à proporção que ele levar adiante a leitura.
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            Sartre foi o maior exemplo de intelectual global. Como filósofo, foi engajado politicamente; foi polêmico; não cessou de intervir no mundo das lutas sociais.



“Afinal de contas, é preciso (sobre) viver, dar-se um escopo, agarrar-se a uma fé qualquer, sem perder, porém, o charme da negatividade”.[1]

Trabalhar... Estar empregado: significa produzir a teia fina e débil de sentidos sobre a ausência abissal e infinda de fundamentos. Produzir no mundo absurdo é simplesmente tomar parte na marcha que, cotidiana e inconscientemente, reproduz o drama da existência. Estar empregado é empregar a obsoleta energia vital na reprodução dos horrores, do absurdo, da fragilidade a que os indivíduos e as multidões estão sujeitos.
Estar empregado é estar pregado na tábua dos inconsoláveis, dos aflitos que vivem na inconsciência de seu desespero, suportando suas dores, seus tormentos na esperança de um paraíso promitente.
Estar desempregado: é estar em privação; é estar condenado à esterilidade do absurdo; é viver à margem daquilo em virtude do qual todo indivíduo humano é gerado e domesticado para o mundo. No mundo do trabalho, ele é forçado a levar adiante a marcha absurda, não sem esforçar-se por produzir sentidos, no entanto, quebradiços, num mundo machado pela dor ingênita, pelo sofrimento estrutural e pela crueldade banal.
Homo faber: homem absurdo. O homem, o indivíduo humano, é posto no mundo para produzir e reproduzir-se; e produzindo e se reproduzindo, reproduz sua história de misérias até que venha a sucumbir ao Irremediável.
No Princípio, era a Dor. E a Dor se dilatou em explosões de uma singularidade agonizante. Desses processos terrificantes, a Dor se fez Tormento. E o Tormento se fez carne, ganhou forma e toldou o caos atormentado. E a carne, de agora em diante, ordenada se fez existência, esquecendo-se do caos primordial e constitutivo que a fez ser, por natureza, um acidente da Dor e do Tormento. Ainda hoje, a carne luta, em sua agonia lancinante, contra suas tendências ingênitas a iludir-se sobre sua origem enferma.
Mas esta carne, irremediavelmente destinada pela própria circunstância nefasta que a gerou a apodrecer e a extinguir-se, criou; ela é criadora: a filosofia foi, dentre todas, sua criação mais excelsa e astuciosa, porque só a filosofia pôde reconciliá-la com suas origens, sem condená-la ao martírio, à culpa. Com a filosofia, a carne assumiu-se como existente, a saber, como angústia.

Uma nota esclarecedora

Aos que creem numa fonte transcendente doadora de sentido,  pode parecer que repisar a ideia do absurdo da existência constitui um hábito por meio do qual não se faz nada mais do que inscrever numa estrutura linguística uma antítese, por si mesma desprovida de qualquer significado. Quando uma expressão linguística é usada ad nauseam, ela acaba por agastar-se semanticamente,  ela torna-se um truísmo, uma combinação sonora já cansada, ipso facto, incapaz de apelo fisiopsicológico na constituição integral do enunciatário.
Na filosofia existencialista, Kierkegaard, expoente moderno do existencialismo cristão, foi, sem dúvida, o pai do absurdo. Opondo-se ao hegelianismo, afirmou tanto a impossibilidade de apreender o indivíduo, enquanto subjetividade, num sistema racional quanto a necessidade de instaurar uma ética religiosa calcada sobre a crença numa transcendência inacessível. No existencialismo de Sartre, por seu turno, o absurdo recobre a impossibilidade de justificar racionalmente a existência das coisas e de lhes conferir um sentido. Absurdo é, pois, uma categoria negativa, já que ela descreve a negação de sentido ou de possibilidade de dar ou apreender sentido. Sartre, relacionando o absurdo à existência de Deus, definiu-o como a impossibilidade de o homem ser o fundamento de sua própria existência, definição que ganhou expressão na sua fórmula poética “o homem é uma paixão inútil”. Assim, o homem absurdo está destinado a “ek-sistir”, a saber, a ser para além de si mesmo como uma consciência, isto é, um nada. A consciência é o nada, porque não sendo (seguindo Hurssel) uma espécie de recipiente onde são armazenadas as imagens e representações dos objetos externos, ela se caracteriza fundamentalmente pela intencionalidade, isto é, por tender para fora de si. Daí Sartre extrai uma consequência: não sendo definida por qualquer ser, a consciência pode, porque é nada, transcender as circunstâncias imediatas, imaginar, fazer com que exista mundo.[2]
 Sendo um existente, o homem está “condenado a ser livre”, o que implica ser responsável por seu ser e por sua própria razão de ser. A categoria do absurdo subsume esses aspectos da condição humana, que fazem do homem o fundamento sem fundamento de sua própria existência.
Por fim, a partir de Camus e Kafka, o absurdo aparece com bastante frequência para designar o incompreensível, o desprovido de sentido e o sem finalidade, especialmente nos domínios da moral e da metafísica.
Na obra de Schopenhauer – arrisco-me a dizer -, também podemos encontrar descrições que nos dão a tonalidade do absurdo. Fiquemos com este trecho que, tendo sido obra de um gênio profundamente arguto e cirúrgico, faz alegrar-se minha fisiologia dada a frieza com que o absurdo é posto a descoberto:

“Tudo o que procuramos colher resiste-nos; tudo tem uma vontade hostil que é preciso vencer. Na vida dos povos, a história só nos aponta guerras e sedições: os anos de paz não passam de curtos intervalos de entreatos, uma vez por acaso. E, da mesma maneira, a vida do homem é um combate perpétuo, não só contra males abstratos, a miséria ou o aborrecimento, mas também contra os outros homens. Em toda parte, encontra-se um adversário: a vida é uma guerra sem trégua, e morre-se com as armas na mão”.[3]




[1] Emil Cioran e a Filosofia Negativa: Homenagem ao centenário de nascimento. Deyve Redyson (org.). Porto Alegre: Sulina, 2011.
[2] O leitor poderá encontrar uma exposição mais acurada deste e de outros pontos do sistema de Sartre em http://escritosdobar.blogspot.com.br/2013/12/o-homem-deve-ser-inventado-cada-dia.html
[3] Schopenhauer, Arthur. As dores do mundo. São Paulo: Edipro, 2014, p. 26.

sábado, 26 de setembro de 2015

"Conheci algumas poucas pessoas legais; mas não conheci ainda uma pessoa ilegal." (BAR)

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                                       Granjeio filosófico

Uma única chance para que eu pudesse contar-me, dizer-lhe a que venho – sou uma história ínfima na imensidão de um universo escuro e indiferente... Não tenho eu qualquer pretensão de ser lembrado pela História... A minha insignificante história já me é demasiado pesada... (por que quereria eu ser co-responsável pela marcha de tão terrível História?) Para o ser humano, a vida se decide no instante, pois todo instante reclama-lhe a liberdade, um ato (que pode ser seu último)... num instante, se descortina ou se eclipsa seu horizonte de possíveis... cada instante é, no entanto,  um novo horizonte de possíveis... Entre dois nadas – o passado e o futuro – se faz a vida em seu contínuo desfazimento; vida é desfazimento (quantas perdas! Quantos desenlaces! Quantas contínuas, pequenas e comuns mortes!); o real? É o próprio presente.

Disseram que você é uma pessoa legal, mas não foi por isso que decidi solicitar-lhe uma “amizade virtual” (que, em pouquíssimo tempo, se torna um número esquecido entre outros). Conheci algumas poucas pessoas legais; mas não conheci ainda uma pessoa ilegal. Os ilegais são os que vivem à margem das tendências sistemáticas, das forças domesticadoras, dos automatismos massificadores; são os que não se deixam arrastar pela marcha, com seus passos compassados em seu movimento sincronicamente arregimentado – marcha em que todos são como todos, em que todos ignoram a todos; marcha para a qual o único caminho é a congênita indiferença humana. Dizem que os ilegais são transgressores, conturbadores da ordem política, criminosos; tais como eu os entendo no presente contexto, porém, eles são criadores, tanto na esfera pública, quanto na privada; criam a si mesmos, criam como artistas a vida, assumindo-se como verdadeiramente livres, a despeito de, neste ato criador, aprofundarem sua solidão (e não é na solidão que se experiencia a verdadeira liberdade?).
A legalidade do amor condenou-o a este estado de entorpecimento contagioso de seus praticantes, que não se percebem como reprodutores de uma ordem à qual raramente fazem resistência. Não vê como se comportam os amantes? Eles se escorregam por seus corpos (amores líquidos, fluidos, escorregadios; gozos intensos, efêmeros, vadios). Todos os amantes começam a se amar na legalidade (seguem os mesmos scripts, as mesmas normas); mas rapidamente se cansam, se entediam um do outro. A legalidade os esteriliza; tornam-se infecundos e se apressam por buscar as mesmas formas de divertimentos conformadas com a legalidade. Todo amor, em seus tempos germinais, é legal; todos os amantes são legais; prometem um ao outro viver fielmente na legalidade pela qual se pauta a relação. Em pouco tempo, a legalidade os torna cansativos um para o outro. Amar na ilegalidade não é entregar-se a traições, a concupiscências; é dar à relação as condições para seus gestos espontâneos, é dar seu sentido de autonomia em declarada resistência à heteronomia pela qual as relações humanas são continuamente adestradas. Se quiser, um dia, amar profundamente e ser amada, deixe de crer no amor; não há nenhum sentido salvífico nele; nenhuma profundidade. Só podemos amar o amor não crendo mais nele, aliviando-o dos aguilhões das nossas fantasias; libertando-o – se preferir- dos grilhões das ilusões que sobre ele produzimos. Amá-lo na ilegalidade; só assim amaremos em sua fecundidade (se houver alguma...).


Não pode imaginar quão custoso me é escrever-lhe isto. Hoje, como de costume, fiquei ocupado com os livros. Mas a leitura não transcorria sem alguma inquietação. Pressinto o abismo mais próximo de mim. Apesar disso, tenho de escolher (estou, como todo ser humano sartreano, “condenado a ser livre”). Extravagâncias! Desmesuras! Excrescências! Ímpetos vãos! Hábitos comuns quando me deixo seduzir pela astúcia da linguagem e por sua irresistível nudez que me desregula os estados de espírito. A vaidade de todas as coisas humanas me assombra, embora me seja tão familiar. Sinto-me, agora, o mais tolo dos homens que se conservam sobre a terra; quiçá, esteja a rir-se de mim. Contudo, tendo ainda trinta e três anos, posso permitir-me ser pateticamente esquisito. Insisto nesta minha tolice íntima para perguntar-lhe se me daria o privilégio de conhecê-la pessoalmente. 

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

O caso da "superfluicidade" - considerações morfológicas

                      

                     


                            O uso e a gramática
                                  Desfazendo alguns equívocos

Ontem, numa aula de filosofia, por motivações discursivas, a professora fez uso, com manifesta hesitação, da forma “superfluidade”. Em certo momento de sua fala, ela se referia à “superfluidade da vida”. Imediatamente, um colega interveio para “resolver” a questão, que, àquela altura, poderia estorvar o curso normal da aula, por interessante que fosse (para mim, certamente!). O colega se apressou em reparar o “equívoco”, dizendo que “o “correto” é “superfluicidade”. Imediatamente estranhei, mas preferi manter-me calado, pois, afinal, a aula tinha de prosseguir. A professora deu-se por satisfeita, e o colega, depois de sentenciar sua profunda sabedoria linguística, pôde descansar em sua satisfação. Mas o que aprendi, nestes anos de dedicação aos estudos linguísticos e filosóficos, é que também os linguistas, tais como os filósofos, são indivíduos “insatisfeitos”, “irriquietos”; eles não se contentam com soluções simples, máxime quando claramente equivocadas. Cabe, então, considerar os fatos.
“A vida é supérflua”, dizia a professora. A certa altura, ela precisou formar um correlato morfológico a partir do adjetivo “supérfluo”. Lançando mão de seu conhecimento linguístico intuitivo, formou “superfluidade” a partir de “supérfluo”. É possível demonstrar que a forma “superfluidade” é a forma verdadeiramente usual e rejeitar como usual a forma “superfluicidade”, como recomendada pelo colega? Veremos que a resposta é “sim”.
A língua portuguesa dispõe do sufixo “-idade”, que entra na formação de substantivos abstratos que denotam qualidade ou estado a partir de adjetivos. São exemplos de formações em “-idade”: raridade, honestidade, sinceridade. Tais formas derivam, respectivamente, de “raro”, “honesto” e “sincero”. Esse padrão derivacional é extensivo à forma “supérfluo”, a partir da qual se forma “superfluidade”, pelo acréscimo do sufixo “-idade”. O acréscimo de “-idade”, nas formas consideradas, se acompanha de uma modificação morfofonêmica, já que a vogal temática “-o”é suprimida. Mas modificações desse tipo são  sistemáticas quando do acréscimo de sufixos. O que se dá com a formação “superfluicidade”? Em primeiro lugar, não cabe dizer que ela é “errada”. Também não se pode dizer que ela seja agramatical, porque o aparecimento do fonema /s/ (na escrita, marcado com “c”) é sistemático quando se anexa a certos adjetivos o sufixo “-idade”. Em que condições estruturais, é esta a questão que convém examinar.
Sem mais rodeios, as formas adjetivas terminadas em “-z”, quando recebem o sufixo “-idade”, sofrem alteração morfofonêmica na base. Fonologicamente, as formas “feliz”, “sagaz” e “capaz”, por exemplo, são transcritas como /feliS’/, /sagaS’/, /KapaS’/. Em final de sílaba, “z” tem som de /s/. Esse /s/ é uma fricativa alveolar surda. O fonema /s/ difere de /z/ pelo traço [sonoridade], presente em /z/, e ausente em /s/. Façamos o mesmo procedimento que fizemos com as formas anteriores: vamos anexar às formas “feliz”, “sagaz” e “capaz” o sufixo “-idade”. O resultado dessa operação é “felicidade”, “sagacidade”, “capacidade. Veja-se que, terminando o adjetivo em “-z”, o acréscimo do sufixo “-idade” produz uma forma terminada em “(c)idade”. Ora, a ocorrência da letra “c” é um fato de escrita, mas, fonologicamente, ela marca o fonema /s/, que vimos presente nas formas derivantes /feliS/, /sagaS/, /KapaS/. A alteração para “(c)idade” decorre da necessidade de preservar a sibilante surda /s/ presente nas formas derivantes. Posto isso, há uma condição fonológica para a formação em “-(c)idade”, a saber, a ocorrência de /z/ em sílaba final de palavra. Ora, o adjetivo “supérfluo”, como facilmente se vê, não atende a essa condição, donde não haver a necessidade de formar “superfluicidade” a partir de “supérfluo”.

Que os falantes nativos tenham a propensão a ser naturalmente linguistas é um fato inegavelmente atestado pelos verdadeiros linguistas, isto é, pelos que são linguistas de formação. Tanto aqueles quanto estes se valem de sua intuição linguística quando do uso de sua língua materna (no caso dos linguistas, essa  intuição está impregnada de pressupostos teóricos; é, não raro, iluminada por saberes explícitos sobre a estrutura e o funcionamento da linguagem). O recurso a essa forma de intuição é patente nos momentos em que há hesitação na escolha entre uma forma e outra, como no caso em que devemos escolher entre “preciso de fazer o trabalho” e “preciso fazer o trabalho”, ou ainda, quando a dúvida é mais tenaz, temos de escolher entre “supusesse” e “suposse”, num contexto sintático como “se ele____, (então)...”. No primeiro caso, o falante nativo, não sendo linguista, se valerá unicamente de sua intuição linguística calcada sobre a prática comum de sua língua num dado estado sincrônico, de modo que, provavelmente, escolherá a opção “preciso fazer o trabalho”, muito embora não haja nada no sistema gramatical da língua que desautorize o uso da preposição “de”, quando se articula o verbo “precisar” (ou “necessitar”) a um infinitivo. Notemos que as duas variantes são gramaticalmente aceitáveis, ou seja, são previstas pelo sistema de regras que governam os arranjos sintagmáticos da língua portuguesa, muito embora a ocorrência daquelas variantes pareça correlacionar-se com variáveis sociolinguísticas. No segundo caso, os falantes nativos, ao menos os mais escolarizados, poderão optar por “supusesse” com base no conhecimento, não necessariamente declarado, da constituição morfológica dessa forma, que tem na base a forma “pusesse” (pretérito imperfeito do subjuntivo) do verbo “pôr”. Aqui se impõe uma advertência que é ignorada pelos falantes nativos que não são linguistas de formação: a sistematicidade da língua é produto do uso. Dito de outro modo, a gramática, compreendida como ‘sistema de regras’, emerge do uso da língua, se constitui pelo uso - que é social - da língua. Trata-se, pois, de uma evidência que tem importantes implicações para o tratamento teórico da linguagem e para a lida intuitiva com ela no dia-a-dia. Mesmo não pretendendo enumerar tais implicações, é importante dizer que não há, como queria certa tradição linguística, de um lado a “estrutura da língua”; e, de outro lado, o uso da língua. Na verdade, a estrutura da língua é fixada pelo uso, o qual é sempre governado por regras, quer sejam elas gramaticais, quer sejam elas sociais. É o uso social e histórico da língua que produz as cristalizações que dão a evidência de que a língua é dotada de uma estrutura interna, isto é, de um sistema de unidades e de regras - uma gramática.
No entanto, é justamente porque esse uso é social, porque a língua é uma realidade social, que o uso não estabelece, de uma vez por todas, um sistema rígido ou inflexível de regras e unidades para a língua; esse sistema, que é produzido por força do uso social que fazemos da língua, é flexível, maleável, suscetível a reconfigurações, no entanto, previsíveis pela própria regularidade do uso. Ao produzir a gramática, ou seja, o sistema de regras e unidades da língua, o uso engendra, ao mesmo tempo, o domínio das atualidades e o das virtualidades. Antes de prosseguir, preciso sublinhar que, ao dizer que o uso “fixa a gramática”, não quero dizer que estabelece para além de si um sistema acabado cuja existência lhe é independente. A gramática, como já disse, emerge do uso, o que significa dizer que ela está em constante construção – a língua mesma está em constante construção, em constante fazer-se – no/pelo uso. Essa compreensão de gramática que se faz pela prática da língua é coextensiva à compreensão de que não existe língua fora do uso. Ora, a língua, enquanto sistema de signos abstrato, só tem lugar no trabalho teórico. A língua não se encontra nem nos dicionários (que só listam seus lexemas), nem nos manuais de gramática (que descrevem sua constituição e fixam seus padrões de uso). Também não se identifica com as frases que se tomam isoladamente para fins pedagógicos de análise de sua estruturação. A língua, portanto, é aquilo que os falantes fazem ao interagirem socialmente por meio de arranjos de signos de extensão e complexidade variáveis em contextos sociais determinados. A língua é uma atividade intersubjetiva, uma prática social governada por um conjunto variado de regras gramaticais e sociais.
Pois bem. Disse que o uso engendra os domínios das atualidades e das virtualidades. Cabe, agora, esclarecer o que significa isso. O uso fixa os padrões linguísticos. Tais padrões são atravessados pela tensão entre a flexibilidade e a inflexibilidade. A gramática, que emerge do uso, que é produto do uso, se constitui de domínios de regras, de padrões cuja flexibilidade se estende por um continuum em que é possível verificar os padrões inflexíveis, os quais constituiriam, por assim dizer, o “núcleo duro” da gramática, e os padrões claramente flexíveis. Entre esses dois extremos, há todo um espectro de padrões suscetíveis a restrições. Por exemplo, o falante nativo de português não dispõe da liberdade para usar o artigo depois do substantivo, como em “menino o”, tampouco pode usar a preposição “para” (ou outra qualquer), para introduzir o complemento verbal do verbo “gostar” (cf. * Eu gosto para chocolate). Ele também não pode suprimir a preposição “de” regida pelo verbo “gostar”, produzindo algo como “Eu gosto chocolate”. Esses padrões que não admitem variação, que não são flexíveis constituem, no entanto, parte do conhecimento intuitivo, quase inconsciente, que os falantes têm de sua língua materna. No extremo oposto, onde se situam os padrões variáveis, flexíveis, o falante nativo dispõe de alguma liberdade, senão vejamos. O falante de português pode escolher, tendo em vista influências contextuais, entre o uso de “Esse assunto é entre eu e você” e “Esse assunto é entre mim e você”. A tendência comum de coibir a variação inerente ao uso da língua não deixará de questionar a possibilidade de escolha – é verdade – formulando a pergunta: “Mas “entre eu e você” não é errado? (porque as gramáticas normativas nos ensinam que tal construção é errada; porque, na escola, o professor disse que é errada). A despeito disso, esse caso ilustra um padrão linguístico variável, flexível previsto pela gramática da língua que o uso fixou.
Os exemplos da posição do artigo e da regência do verbo “gostar” estão entre os casos de combinações que simplesmente não fazem parte da língua, o que significa dizer que não fazem parte do uso da língua, o que significa dizer que são simplesmente o tipo de coisa que nenhum falante nativo de português, independentemente do grau de escolarização, de sua classe socioeconômica faria, porque a anteposição do artigo ao substantivo (cf. o menino/ a bicicleta, a pipa) e o uso da preposição “de” com o verbo “gostar” (cf. gostar de chocolate) são já sabidos pelo falante nativo de português, são manifestações de sua competência linguística, de seu conhecimento intuitivo das regras de formação de enunciados do português. Ninguém ensina isso a ele.
O exemplo do “entre mim e você” e “entre eu e você” está entre os casos de padrões flexíveis. Eles se situam no domínio das atualidades do sistema. Os estudiosos - e os falantes nativos em geral - constatam a ocorrência de tais formas o tempo todo nas práticas de uso da língua.
Falta ainda apontar exemplos de padrões linguísticos que recobririam o domínio das virtualidades do sistema da língua, ou seja, daqueles padrões que, embora não sejam atualizados no uso, verificados no uso, não deixam de ser previstos pelo uso, ou pela gramática ou sistema de regras da língua. Os processos de formação de palavras fornecem bons exemplos de padrões que, embora constitucionalmente possíveis, não são usuais (o que não significa que, não havendo alguma restrição de ordem estrutural, não possam se tornar usuais). Vejamos alguns exemplos.
Tomem-se as formas “fixação” e “aleitamento”. Trata-se de formações usuais no português. Qualquer falante nativo as reconhece como bem-formadas. A descrição dessas formas se elucida como se segue. O sistema da língua dispõe dos sufixos “-ção” e “-mento” que servem à formação de substantivos nos quais se aproveita a noção de ação do verbo derivante na forma nominal derivada. Assim, com as formas “fixa-ção” e “aleita-mento”, categorizamos o evento ou processo verbal sem referência ao tempo, modo,  às pessoas envolvidas, etc. Importa ver que, em “fixação”, não há qualquer restrição estrutural que desautorize a ocorrência de “fixamento”. A única razão para que “fixamento” não ocorra é que já há disponível a forma “fixação” no uso da língua. A despeito de sua não-ocorrência, a forma “fixamento” constitui uma virtualidade do sistema da língua, ou seja, a forma “fixamento” é prevista pelo sistema de regras morfológicas do português. Temos também a forma “mapeamento” e, por isso, dispensamos o uso da forma “mapeação”, o que não significa dizer que “mapeação” não seja bem-formada e não esteja, por isso, prevista pelo sistema de regras. Mas a língua deve operar de modo a preservar sua dinamicidade e flexibilidade, evitando a sobrecarga da memória dos falantes. Por isso, exceto quando há especificidade estilística ou semântica de uso, quando dispomos de dois sufixos que satisfazem as condições de um mesmo processo de formação, a escolha por um deles implica a desnecessidade de uso do outro. Para “martelar”, temos as formas “martelagem” e “martelação”. Mas, em “martelagem”, o sufixo “-agem” especifica uma técnica da metalurgia; em “martelação”, forma comum nas variedades coloquiais, o sufixo “-ção” marca intensidade na repetição do ato de martelar. Os sufixos “-agem” e “-ção” se anexam a uma mesma base verbal, mas o que disso resulta comporta uma especificação semântica. Vejam-se também os casos de “jornalista” e “jornaleiro”.
Já, na forma “aleitamento”, a ocorrência do sufixo “-mento” é condicionada pelo processo de parassíntese que incidiu sobre a base. O radical primário é “leite”, do qual se derivou, por parassíntese, ou seja, pelo acréscimo simultâneo de um prefixo e um sufixo à base, a forma “aleitar”. Essa forma derivada constitui o radical secundário que dá origem à forma “aleitamento”. O sufixo “-mento” é a forma sistematicamente escolhida para as nominalizações a partir de bases formadas por parassíntese (cf. enobrecer/ enobrecimento; encarecer/encarecimento/ amolecer/amolecimento). Há, portanto, nesse caso, uma restrição estrutural: uma base previamente formada por parassíntese, que impede a anexação do sufixo “-ção”. Essa restrição estrutural é, em última instância, fixada pelo uso.
A título de conclusão, é bom desfazer alguns equívocos bastante comuns:

1o equívoco: supor que, pelo simples fato de uma forma não se verificar no uso da língua, deve-se considerá-la como não pertencente à língua, como inexistente. O próprio uso, ao fixar o sistema, produz também as condições de possibilidade de ocorrência de formas. Há, na língua, por isso, domínios de virtualidades. Formas como “livração” e “desfeliz” só  fere as sensibilidades porque o uso consagrou as correspondentes “livramento” e “infeliz”.

2o equívoco supor que os dicionários são autoridades soberanas no que diz respeito ao que é usual. Ora, os dicionários não registram todas as formas de uso da língua. A língua varia, muda, e os dicionários estão sempre atrasados em relação à produtividade lexical de uma língua, em relação à deriva da língua.

3o equívoco supor que os padrões que se situam no domínio das virtualidades não pertencem à língua. A rigor, isso não é verdade. O domínio morfológico-lexical das virtualidades recobre as formas que, embora não usadas, são previstas pelo sistema de regras – a gramática – da língua. Essas formas existem como virtualidades, porque se prestam a uso, atendem às exigências previstas pela gramática, a qual, como procurei argumentar, emerge do uso, é produto do uso. A língua, portanto, como sistema de signos, só pode ser abstraída do uso em condições teóricas.

Observação final



Outro equívoco eu ouvi a um professor que se referia ao fato de a Linguística pensar/trabalhar a palavra (o signo) sempre desvinculada do contexto de uso. Isso só é parcialmente verdadeiro, segundo uma reconstituição de sua história. Na verdade, já há muito não se admite fazer linguística com base no pressuposto de que a língua existe em si e por si mesma como um sistema de signos abstrato. A Linguística moderna surgiu, é verdade, com Saussure, a partir da publicação de seu Curso, em 1916, tendo como um de seus axiomas a existência formal da língua independente do contexto de uso; mas houve revoluções teórico-metodológicas no interior da Linguística desde então. 

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

"(...) a minha "humanidade" consiste não em simpatizar com os outros homens, mas em suportar sua proximidade...A minha humanidade é uma vitória contínua sobre mim mesmo" (Nietzsche - Por que sou tão sábio)

         
                      Resultado de imagem para Nietzsche e o ressentimento



            O ressentimento no pensamento de Nietzsche
                                
                            Apontamentos para pesquisa


Esta é uma das poucas vezes em que compus um texto teórico tão rápido. A brevidade deste texto atende ao objetivo principal para cuja satisfação ele foi escrito: fornecer apontamentos sobre a significação do conceito de ressentimento no pensamento de Nietzsche. Ao reunir, aqui, estes apontamentos, espero contribuir para minhas próprias pesquisas futuras e para as de estudantes de filosofia interessados em se tornar legítimos leitores de Nietzsche, a saber, leitores capazes de ter a mesma experiência que a dele, condição esta para a compreensão do modo de ser do filósofo que, aliás, queria leitores pensantes, autônomos e livres e tinha horror a angariar discípulos.

Na filosofia de Nietzsche, o ressentimento corresponde a um problema fisiológico, a saber, à falta de forças de um organismo cansado para reagir às intempéries da vida e que não consegue digerir os sentimentos ruins que produz. Da fraqueza que gera tais sentimentos e da presença deles no interior desse organismo resulta uma desordem psíquica que o impede de viver efetivamente o presente. Justamente por acarretar uma desordem psíquica, o ressentimento é, a rigor, um fenômeno fisiopsicológico, tendo em conta o fato de que, em Nietzsche, psicologia não recobre um domínio estranho ao corpo.
Embora se apresente como um fenômeno fisiopsicológico, o ressentimento não está desvinculado de momentos fundamentais da filosofia de Nietzsche, em que ele desenvolve sua crítica à cultura, à moral ou às configurações políticas de seu tempo, tais como a democracia, o socialismo ou o anarquismo.
É necessário atentar para os diferentes acentos de significação com que se apresenta o conceito de ressentimento nos diversos trabalhos nietzschianos. Por exemplo, em Crepúsculo dos Ídolos, o ressentimento é entendido como vingança e é relacionado à justiça, à semelhança da forma como se apresentara em A Genealogia da Moral. Na primeira obra referida, os cristãos, os socialistas e os anarquistas são considerados como representantes do espírito de vingança, mormente porque seus ideais de justiça e sociedade se fundamentam na noção de “direitos iguais”, e porque também esses ideais envolvem a ideia de culpa, expressa na forma do enunciado “alguém tem de ser culpado pelo fato de o sofredor sentir-se mal”. Destarte, a justiça equivale à vingança contra todo aquele que faz (o sofredor) sofrer.
Em Ecce Homo, por seu turno, Nietzsche retoma o ressentimento ressaltando os seus aspectos fisiológicos e pessoais. Aqui o ressentimento é o próprio “estar doente”; é uma doença. Lê-se, nessa obra, no capítulo Por que sou tão sábio “o ressentimento é a coisa proibida por excelência a todo doente, aquilo que lhe faz mais mal; desgraçadamente, é também aquilo para o qual mais naturalmente se inclina” (2007, p. 45)
Em A Genealogia da Moral, o ressentimento assume dois significados claros, que discrimino abaixo:

1o signficado:  O ressentimento é compreendido como um problema do homem individual, fraco, incapaz de reagir em face das adversidades da vida e de digerir o veneno produzido pela sua vingança não realizada;

2o signficado: O ressentimento se apresenta como um problema social, porque toca a uma concepção de justiça e a um modo de intervenção social. Nesse caso, situado no domínio da moral, o ressentimento corresponde a uma vontade de poder, que opera em vista do domínio sobre as demais vontades de poder e que efetivamente se tornou vitoriosa na cultura ocidental.

Por fim, levando a cabo estes apontamentos, na terceira dissertação de A Genealogia da Moral, o ressentimento se liga ao sofrimento interior do homem e sua causa envolve fatores fisiológicos. Consoante Nietzsche, é o sacerdote ascético o responsável por modificar “a direção do ressentimento”. O sacerdote lança mão da concepção segundo a qual o sofrimento humano é uma espécie de punição para conter o rebanho e mantê-lo amansado. È o ideal ascético, portanto, que aparece como o modus operandi da moral do ressentimento, de acordo com a qual o próprio sofredor apresenta-se como culpado de seu sofrimento, disso resultando ser ele – o próprio sofredor – o alvo de sua própria sede de vingança. Ressalte-se que é o sacerdote ascético que se vale de estratégias destinadas a impedir que o ressentimento (o sofrimento) se amplie – pois que seu aumento poderia redundar na perda de seu rebanho, ou, num sentido diverso, o aumento da tensão no interior do homem poderia levá-lo a elevar-se através de sua doença, circunstâncias estas que, segundo Nietzsche, não interessam à interpretação religiosa. Ora, deve-se ficar claro que a interpretação religiosa pretende que aquele tipo de homem fraco, totalmente oposto ao ideal nietzschiano de homem suficientemente forte para superar o ressentimento, permaneça incapaz de tornar-se forte o suficiente para superar tal estado de envenenamento (isto é, o ressentimento).



terça-feira, 22 de setembro de 2015

Poema - "... Em nenhum amor, existe repouso" (Nietzsche)


                                                 


Profanação do amor


Não poder amar-te como outrora
A isto chamo a verdadeira saúde!
Oh! Prímula de minha primavera doente!
Meu ser é pleno de filosofia!
“...E há quem ainda acredite na profundidade da filosofia”
“Pouco a pouco nos enfadamos do que
possuímos seguramente...”

Minha lucidez é um cemitério
Onde em covas fundas ignotos jazem
os amores meus de asas cortadas
“(...) nem a mais bela paisagem estará certa
de nosso amor, após passarmos três meses nela”

Quão risíveis me parecem agora os amantes!
Quão vãs estas empresas engenhosas de Eros!
Faustas -  creem, posto que malfadadas!
Quão deploráveis as multidões de apaixonados!
- Suas marionetes.
Cobiçosos os amantes insaciáveis se cansam
E teimam em viver na ignorância das maquinações
Deste Intermediário, astuto a mendigar consolações

Eros quer possuir, subsiste da propriedade
Exímio capitalista! Engorda com o emagrecimento
de seus operários expropriados.
Mas a Lucidez – esta doença contagiosa (mal incurável)
A Lucidez – esta metamorfose demoníaca
que solapa a Inocência
A Lucidez – esta fissura fisiológica irrecuperável
Que nos desnuda a Dor inerente a Existir
A Lucidez, enfim, me despossuiu
Lúcido, pois, (en)fadado por (de) Eros
Curei-me dos estados doentios
Do ressentimento que me fazia desaprovar a Vida!
“Enfadar-se de uma posse é enfadar-se de si mesmo”
E enfadado de mim mesmo, cultivo a fecundidade
de minha terra-solidão – Meu Exílio,
onde sou verdadeiramente livre.
Onde Eros – filho da Intemperança
Primogênito da Loucura!
Não ousa mais combalir-me
Lançando suas perturbações

“(...) Em nenhum amor, existe repouso.”


(BAR)

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Quando considero a duração mínima da minha vida, absorvida pela eternidade precedente e seguinte, o espaço diminuto que ocupo, e mesmo o que vejo, abismado na infinita imensidade dos espaços que ignoro e me ignoram, assusto-me e assombro-me de me ver aqui e não lá. Quem me pôs aqui? Por ordem de quem me foram destinados este lugar e este espaço? (Blaise Pascal)

                         
                                 

                                      Nietzsche e a acosmia
                           Gnosticismo e niilismo moderno[1]
                            A resposta nietzschiana ao problema da acosmia

Cumpre-nos, nesta exposição, dar a saber de que modo Nietzsche resolveu o problema, prefigurado na tradição niilista do gnosticismo e radicalizado no niilismo moderno, que consiste no estado de alienação do homem em face do mundo. Essa alienação se expressa na forma de acosmia: o mundo é destituído de um horizonte realizador do homem. O homem não encontra medida de realização de si no universo. A acosmia revela a diluição da relação integrativa do homem com o cosmo. O homem não se percebe mais como uma parte harmoniosamente relacionada com o todo cósmico. Na tradição gnóstica, é a concepção grega do cosmo, em cujo seio o homem encontrava seu justo lugar e que servia de modelo para a sua conduta, que dá lugar à concepção de um mundo que é cárcere, um mundo onde não é possível ao homem nem conhecimento de si nem de Deus.
Com vistas a tornar mais clara a condição de estranhamento entre o homem e o mundo, segundo o modelo hermenêutico gnóstico, impõe-se-nos apresentar, em linhas gerais, a dimensão teológica da doutrina gnóstica. Embora tenham sido variadas as formas do gnosticismo, tal como diversos foram os cristianismos primitivos, pode-se dizer que os gnósticos acreditavam que nós não fomos criados para viver neste mundo. Na verdade, nós fomos aprisionados aqui pela divindade ignorante e inferior que o criou. Para escapar a essa prisão terrena, os gnósticos propunham que devemos conhecer quem somos, de onde viemos e o que nos tornamos. Segundo esses cristãos, nós viemos do reino de Deus. Os grupos gnósticos apelavam para a necessidade do autoconhecimento como um meio de alcançar a verdade. A salvação só se alcançaria pelo conhecimento (gnose), que, no entanto, era secreto e reservado a uma elite espiritual. A doutrina gnóstica se assenta sobre um dualismo entre o ser humano e o mundo e um dualismo entre o mundo e Deus. A primeira forma de dualismo acena com a ideia de que o homem não é mais uma parte em harmonia com o todo, senão um prisioneiro numa totalidade que não mais lhe pode servir de norma para seu comportamento. Na segunda forma de dualismo, por sua vez, sublinha-se a ideia de que aquele mundo, que é a contraparte de Deus, é o mundo material em que vivemos, mundo considerado um lugar mau, manchado pela corrupção, pelo sofrimento, pois que criado por um Deus inferior e ignorante. O Deus verdadeiro, revelado na pessoa de Cristo, é um Deus transmundano, jamais revelado por esse mundo material corrompido. Trata-se de um Deus desconhecido, porque não revelado pelo mundo; totalmente outro, porque jamais reconhecido por analogia com o mundo. Não obstante, os gnósticos acreditavam que detinham o conhecimento que lhes permitiria retornar ao reino divino do qual provieram e no qual viverão na presença de Deus. Cristo era, pois, o emissário divino desse reino situado no além-mundo.
Nesta breve apresentação da metafísica gnóstica, há um aspecto que nos interessa sublinhar, dada a sua importância para a compreensão da resposta nietzschiana ao problema supramencionado no limiar deste texto. O mundo gnóstico é hostil e demonizado. É um mundo desdivinizado, do qual é necessário se libertar. Esse mundo deve ser vencido, negado pela gnose que torna possível o acesso a uma transcendência que se apresenta como o horizonte antagônico e de salvação.  Não menos importante é notar que o niilismo gnóstico ainda se baseia na dicotomia metafísica entre o sensível e o suprassensível; situação radicalmente diversa é a do niilismo moderno. Esta forma de niilismo se caracteriza por uma condição desesperadora, a qual se expressa por um profundo desamparo do homem em face de uma natureza indiferente. O homem, em sua finitude e contingência, se vê só, pois que somente ele, e não a natureza, se preocupa. No horizonte deste homem abandonado na imensidão de um universo indiferente, não há senão a angustiante certeza de sua morte inevitável e o temor que acompanha a consciência da ausência de qualquer sentido objetivo para seus projetos.
Doravante, ocupar-nos-emos da apresentação da resposta nietzschiana ao problema suposto tanto no niilismo gnóstico quanto no niilismo moderno. Nietzsche é sobremaneira reconhecido como o filósofo que anunciou e tematizou o acontecimento histórico da “morte de Deus”, bem como o filósofo que se dedicou à elaboração de uma filosofia afirmadora da vida. Começaremos por elucidar o significado do primeiro grande momento da resposta nietzschiana que é o do anúncio da morte de Deus. Dados os limites desta exposição, limitar-nos-emos a notar que o acontecimento da morte de Deus abre um novo horizonte hermenêutico à luz do qual é possível ao homem existir segundo outros valores. A morte de Deus significa a derrocada da metafísica tradicional, a qual, assentada na dicotomia entre o sensível e o suprassensível, atribuía ao em-si um valor absoluto e norteador da existência e do conhecimento humanos. Com a morte de Deus, a existência humana perde seu esteio: descerra-se a impossibilidade de ter acesso ao absoluto; o em-si não serve mais de fundamento para os valores que, até então, dotavam de sentido a existência humana.
O acontecimento da morte de Deus, uma vez representando a dissolução da normatividade dos conceitos metafísicos, os quais se associavam aos sentidos existenciais, acentua o aspecto negativo do niilismo. No entanto, na medida em que o acontecimento da morte de Deus desvela o vínculo entre metafísica e constituição dos valores supremos, na medida em que nos patenteia que o em-si, na história do Ocidente, sempre representou o horizonte a partir do qual a existência humana se dotava de sentido, o niilismo que dele resulta passa a exibir uma dimensão positiva, porquanto “descerra um novo horizonte de interpretação do mundo”[2]. A transvaloração de todos os valores significa tanto a dissolução da metafísica quanto a abertura de um novo horizonte hermenêutico que fornece um novo princípio de refundamentação dos valores.
Com Nietzsche, cai por terra a dicotomia metafísica tradicional entre o sensível e o suprassensível. Não só não faz mais sentido referir-se a uma realidade suprassensível, como também à sua contraparte, o sensível, que derivava seu sentido daquela dicotomia. Não sendo mais seccionada a vida, ela mesma se revela como Vontade de Poder.
Escusa alongar-nos sobre a extensão da significatividade da Vontade de Poder; uma descrição acurada dessa extensão escapa aos nossos propósitos. Interessa-nos, contudo, salientar o modo como a Vontade de Poder dá corpo a uma filosofia que visa à afirmação do curso dionisíaco da vida. Dizer que a filosofia nietzschiana é uma filosofia da afirmação da vida é dizer que o que se afirma é um modo específico do viver. A vida não é objeto de afirmação. Há modos de conformação da vida que afirmam um modo específico do viver. Daí resulta que o amor fati é amar o modo como o mundo se destina, é amar o modo de ser do destinar-se da própria vida.
No tocante à Vontade de Poder, importa-nos distinguir nela dois sentidos: a Vontade de Poder ascendente e a Vontade de Poder decadente. Na primeira, o devir é abundância de ser: quanto mais devir, mais ser. O devir é o lugar da expansão da singularidade. Na segunda, por outro lado, o devir alija das formações a unidade. Nietzsche pensou a vida como Vontade de Poder, a qual se caracteriza pela pluralidade, pelo devir e pela unidade. A vida, enquanto unidade, resulta dos elementos relacionais. Nietzsche não pensou em termos dicotômicos a diversidade e a unidade, mas sustentou que a unidade não é possível senão na diversidade: quanto mais diversidade produz a unidade, mais plena é a vida. A unidade se perpetua por causa do devir. A Vontade de Poder conjuga o uno com o plural.
Tendo em conta os dois sentidos da Vontade de Poder, discriminados no parágrafo anterior, convém esclarecer que, por Vontade, Nietzsche entende o caráter autoafirmativo da força; e por Poder, entende “fazer”, “produzir”. Daí se segue que a Vontade de Poder é relação entre forças que produzem modos de ser específicos, que Nietzsche chamará “tipos”. Um tipo é o modo de ser de um arranjo vital. Todo modo de ser é singularizado; e a Vontade de Poder assumirá sentidos distintos segundo o tipo vital a que ela se relaciona. Dois tipos vitais designados por Nietzsche como Dionísio e o Crucificado evidenciam modos de configuração distintos da vida.
Dionísio, porque é a imagem religiosa da Vontade de Poder, que aparece a um tipo de vida que é afirmador (o tipo pagão), torna possível transformar o devir, o sofrimento, a aniquilação em mais ser. Nietzsche lembra que o pagão afirma a vida no sofrimento; para ele, o sofrimento não é motivo para a acusação da vida. Ao contrário, para o tipo crucificado, o sofrimento é motivo para acusação da vida. Para o crucificado, a dor é funcional; o lugar do “para quê” situa-se além da vida. Para o tipo dionisíaco, todavia, a vida é santa demais para necessitar de uma outra instância (o em si, o suprassensível) que a justifique. Para esse tipo, o sofrimento apresenta-se como promessa de mais vida.
O tipo crucificado vê o devir como corrupção; o devir corrói a vida. Para o tipo dionisíaco, por outro lado, o devir carreia fecundidade; o devir gera abundância: quanto mais abundância mais intensificação de vida. Para o tipo forte, o devir torna-se potencialização de ser. Se a vida é desfazimento, para o tipo dionisíaco, a dor de se refazer serve para acrescentar algo em seu ser. Dionísio torna possível a divinização da vida, pois evidencia o processo de aparição do divino segundo o processo de acréscimo de ser. Dionísio redime a finitude, ao passo que o Crucificado a acusa.
Um aspecto da Vontade de Poder que não se poderia silenciar é que ela, na medida em que é relações de forças, revela também que essas forças constituem quem somos. Quanto mais forças atuarem, mais a vida se torna coesa. A unidade da Vontade é resultante do modo como se articulam as forças. Cada força é, em si, uma Vontade de Poder; e o meu ser é formado por milhares de forças, isto é, minha subjetividade é um amálgama de forças.
 No que tange à relação eu-mundo, Nietzsche nos faz entender que tudo é força e que as forças integram a singularidade que eu sou. A Vontade de Poder permite reinterpretar a relação entre o eu e o mundo, que, no horizonte hermenêutico gnóstico, era caracterizada pela alienação do homem relativamente ao mundo, de modo tal, que o eu se constitui com o mundo; o mundo integra o eu. O meu corpo é integrado por muitas forças. É da interação das forças que se produz o corpo, que é unidade vital, que é arranjo. Vida é, para Nietzsche, ganhar corpo, é corporalizar. A unidade desse arranjo, que é a vida, não se realiza senão no devir. O devir é o lugar de reintegração: não só do homem ao mundo, mas também do ser no próprio devir.
Por fim, não se pode perder de vista que, na interpretação de Nietzsche, todo Deus metafísico é produto de uma vida degenerada, ao mesmo tempo em que fomenta uma vida degenerada. Disso não se segue que não possamos experimentar o divino. A experiência do divino, no entanto, não supõe a oposição entre temporalidade e eternidade. O divino nietzschiano, que é Dionísio, deve nos reconduzir à temporalidade. E o lugar em que se dá Dionísio é o Eterno Retorno, que é a reinscrição do eterno no tempo. No Eterno Retorno, tudo retorna identicamente, e o instante se apresenta como o lugar da reconciliação da temporalidade com a nossa plenitude. O instante é, assim, o lugar de reintegração da totalidade temporal; é também o lugar de reintegração do que eu sou, isto é, o meu passado com a minha tarefa, que é o futuro.
Poder-se-ia dizer, a título de conclusão, que o gnóstico, para Nietzsche, se identificaria com o tipo decadente, que precisa negar o devir para preservar a unidade. Para o gnóstico, o devir é corrupção. O gnosticismo necessita do absoluto para manter o finito. Sua doutrina se sustenta sob o postulado da desarticulação das partes com o todo (décadence): o homem, o mundo e Deus são grandezas contrárias. Jamais há relação de proporcionalidade com o todo.





[1] Trabalho elaborado como requisito para a aprovação na disciplina Filosofia da Religião no curso de Filosofia da UERJ. Este texto foi avaliado com a nota máxima.
[2] CABRAL, Alexandre Marques. Niilismo e Hierofania: Nietzsche, Heidegger e a tradição cristã – Nietzsche, cristianismo e o deus não-cristão, vol. 1. Rio de Janeiro: Mauad, Faperj, 2014, p. 129.

terça-feira, 25 de agosto de 2015

A formação da subjetividade cristã





A formação do sujeito cristão à luz do pensamento 
de Clemente de Alexandria e de Justino[1]


É com base na tese de Pierre Hadot, segundo a qual a filosofia antiga é exercício espiritual, visto que se destina a cunhar modos de ser, que nos cumpre elucidar a formação do sujeito cristão à luz do pensamento de Clemente de Alexandria e de Justino.
É impreterível dizer, de início, que Clemente, contrariamente ao costume, em sua época, de rejeição à filosofia, esforçou-se por mostrar que a filosofia era um bem e que aqueles que a ela se dedicavam estavam cumprindo a vontade do próprio Deus. À filosofia antiga cumpria a tarefa pedagógica de conduzir os gentios para Cristo, tal como a antiga Lei servia para encaminhar os judeus a Deus. A filosofia, portanto, é útil, segundo Clemente, também para aqueles que professam a fé cristã. É a filosofia que instrumentaliza os cristãos para a defesa de sua fé. Todavia, a fim de que ela cumpra satisfatoriamente sua função no cristianismo, faz-se mister que se circunscreva ao domínio de sua competência. A filosofia deve ser uma serva da fé; sua função é, pois, auxiliar a fé. Decerto, a filosofia continua a lançar luzes sobre o caminho dos que se convertem ao cristianismo, conduzindo-os a Cristo, com a ajuda de argumentos racionais; mas é Cristo, o Lógos divino, que se apresenta na qualidade de condutor, de Pedagogo, interpelando cada indivíduo em sua singularidade.
A formação de si, no cristianismo, não pode ser compreendida, sem que antes esclareçamos de que modo o cristianismo se apropriou e reinterpretou o lógos grego. O Lógos cristão é o Verbo que se fez carne; é um princípio metafísico e prático, porquanto pessoal e fundador de uma relação interpeladora (o sujeito cristão se faz sujeito na interpelação por esse Lógos). O Lógos é o Pedagogo (Cristo), que conduz cada indivíduo humano à Salvação.
A formação do sujeito cristão se dá, por conseguinte, mediante a pessoalização do princípio, que é o Lógos. Esse Lógos, que é Cristo, que é Deus que se fez carne, condiciona-nos, de sorte que não é possível ao homem viver uma vida virtuosa e justa senão pela obediência ao Pedagogo.
É importante notar que, na tradição cristã, o homem é um composto de razão e paixões. Estas formam sua corporeidade, sua carnalidade, sob cujo jugo a razão cai facilmente. É na articulação do lógos humano com o lógos divino que pode o homem viver uma vida virtuosa. No entanto, é tão somente pela condução do Pedagogo que o homem pode articular sua razão à razão divina. O Verbo divino se doa na pessoa do Pedagogo. Saliente-se que a condição de possibilidade daquela articulação consiste no fato de que o lógos humano é análogo ao lógos divino.
O poder “firme, venerável, consolador e salvador” do Pedagogo possibilita ao sujeito cristão a perseverança na fé, que é um hábito firme e constante; é o lugar do viver racional, a própria vida razoável. Na perseverança na fé, o sujeito cristão, conduzido pelo Pedagogo, não só conhece a Verdade, a cuja busca se lançou a filosofia pagã, mas a vive, porque a Verdade, identificada com Cristo, é agora uma pessoa; a Verdade é, para o cristão, um modo próprio de existência, é a realização plena de sua subjetividade, que deve sua constituição ao princípio (O Verbo), o qual é o horizonte pelo qual se devem pautar os comportamentos humanos.
Chamado por Tertuliano de filósofo e mártir, Justino encontrou na fé cristã a verdadeira filosofia. Embora admitisse que os filósofos gregos, como Platão e os estóicos, porque se dedicaram a conhecer e praticar a verdade, tomaram parte do Lógos, razão por que foram considerados cristãos anteriores a Cristo, não o possuíram integralmente, senão em gérmen. Ora, Justino sustentou que a integralidade do Lógos só aparece em Cristo, para cujo conhecimento pleno é indispensável a fé cristã.
Justino acreditava que o Lógos é odiado pelos demônios, contra os quais Ele trava uma luta incessante. Todos aqueles que vivem consoante o Lógos e se afastam dos vícios compartilham o mesmo destino doloroso. Este destino não é extensivo apenas aos cristãos, mas também a filósofos como Sócrates e Heráclito que, conquanto não participassem inteiramente do Lógos, tomaram parte desse destino doloroso dos cristãos. Os antigos filósofos foram considerados por Justino como irmãos, porquanto teriam aspirado à vida cristã.
Tendo em conta o exposto, a subjetividade cristã, segundo Justino, se constitui e se afirma como vida e força em Cristo. Somente os cristãos participam da integralidade do Lógos; e também somente eles conhecem os tormentos do fogo. O martírio é o lugar da afirmação da transparência do sujeito cristão; é na fé cristã que o sujeito cristão afirma sua autenticidade.
Justino acreditava que a Providência se pronuncia mediante o martírio. No martírio, os cristãos não só afirmam sua fidelidade à Verdade que lhes foi revelada, mas também se elevam ao status de co-responsáveis pela conservação da Criação. É a fé cristã que a conserva: se não fossem os cristãos, perseverantes, sem temor, no anúncio da verdade que viram, Deus teria destruído tudo que existe.




[1] Trabalho final da disciplina História da Filosofia Medieval I (UERJ). Este texto foi avaliado com a nota máxima. 

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Interdiscursividade e filosofia - "Toda a filosofia se desenvolve e se constitui a partir de uma outra" (BAR)


                          



 princípio metodológico
na compreensão da produção filosófica
Um confronto entre a teoria do conhecimento
de Kant e de Schopenhauer


Num encontro com uma amiga, também doutora em Linguística, ela procurou saber se eu passaria a me dedicar mais aos estudos filosóficos do que aos estudos da linguagem, dado o entusiasmo manifesto ao contar-lhe sobre a lida diária com a filosofia na graduação. Respondi que não via na dedicação à filosofia nenhum empecilho para a tenacidade de meu empenho nos estudos da linguagem. Ajuntei que não via o estudo filosófico como uma atividade incompatível com o estudo linguístico. Ao contrário, entendo que minha vocação para o estudo da linguagem, para o ensino de língua acompanha harmoniosamente meu pendor para as reflexões filosóficas. Muito antes desta ocasião em que fui questionado sobre qual seria minha preferência, apercebi-me de que o background que adquiri como resultado destes mais de dez anos em que estive ocupado com meu processo de formação continuada na área dos Estudos da Linguagem iluminaria a estrada que então se me abria por ocasião de meu ingresso na graduação em Filosofia. O estudo informal da filosofia vinha sendo feito desde 2005, nove anos antes de eu iniciar a graduação. Naquela época, eu estava fazendo mestrado em Estudos da Linguagem; e, mesmo decididamente devotado aos estudos desse curso, não deixava de visitar os filósofos.
Tendo em vista o que expus até aqui, espero fique claro que não encontro razão para preferir um estudo ao outro, para ocupar-me, com mais deleite, de um estudo em prejuízo do outro. Vou-me esforçar por demonstrar que, não havendo qualquer dissonância entre os estudos da linguagem e os estudos filosóficos, o que entendo haver é justamente uma contribuição dos estudos da linguagem para o desenvolvimento da compreensão filosófica. A tese basilar desta exposição se acha no excerto abaixo, colhido de um trabalho desenvolvido por mim, no ano passado, como requisito para a aprovação numa disciplina do curso de filosofia. Nesse texto, pondero o seguinte:

Toda a filosofia se desenvolve e se constitui a partir de uma outra. Isso é verdade também para qualquer domínio discursivo: todo discurso se desenvolve e se constitui na base de outros discursos. Conforme nos dá testemunho Cossuta, “(...) cada filosofia pretende encontrar sua origem num começo radical”; mas acrescenta “todo começo é apenas recomeço” (p. 33). Aqui nos parece estar a especificidade do discurso filosófico, visto que os discursos filosóficos jamais se superam uns aos outros (no sentido de que cada discurso precisa constituir-se pela reelaboração, pelo retorno a e trabalho contínuo sobre as proposições, as teses, os argumentos, a abordagem de outros discursos). Toda a herança discursiva é, a cada nova etapa de discurso, revitalizada, reanimada, reincorporada, ainda que seja para dela se distanciar, para submetê-la ao impacto de um martelo nietzscheano. Esse recomeço da filosofia, que não se dá senão por construção de discurso, é ele o próprio exercício contínuo e ininterrupto do pensamento. É o pensamento que, retomando o já pensado, o prolonga, o faz dizer o que até então havia permanecido silenciado. Por isso, Platão nunca será superado, nem Santo Agostinho, nem os que os precederam. É nesse recomeço que reside a vitalidade do discurso filosófico – um discurso que, embora tenha no seu horizonte a verdade, jamais pretende, por isso mesmo, alcançá-la definitivamente; e também, por isso, se apresenta como um recomeço: é um discurso que, animado pela busca da verdade, está sempre disposto a percorrer os mesmos caminhos, a retomar os mesmos pontos de partida; pois o contentamento está não tanto na chegada, mas nesse percorrer.
Se não há um discurso inaugural, tampouco há um sujeito adâmico, também o discurso filosófico engendrará suas formas na herança de enunciações filosóficas (daí o recomeço).O filósofo mobiliza uma série de atitudes, de estratégias pelas quais essa herança se faz presente em sua obra. Essa é uma questão que, no entanto, não nos ocupará aqui, por limitações de tempo e espaço. (...)
À luz das considerações desenvolvidas nesta subseção, cuidamos que se pode pensar toda a história da filosofia como uma imensa cadeia de discursos que se relacionam entre si de modos vários e complexos. Pensamos também que é tarefa do estudioso e estudante de filosofia também o debruçar-se sobre a história do pensamento filosófico, com vistas a investigar as formas como os discursos que compõem essa memória discursiva se articulam, se constroem por assentimento ou refutação, por retomadas, reelaborações, alusões, tendo sempre em vista o diálogo constante que os atravessa, mesmo quando esse diálogo, paradoxalmente, assume formas de silenciamentos. Aqui, vale lembrar uma lição cara aos analistas do discurso: em matéria de linguagem, as formas de silêncio, o não-dito também significam, também dizem. (grifos meus).


Com base na constatação de que todas as formas de produção filosófica (quer se apresentem como sistemas, quer como tratados, ensaios, diálogos, etc.) “se desenvolvem e se constituem a partir de uma outra [ou de outras]”, proponho como princípio metodológico de estudo e compreensão da produção filosófica, ao longo da história do desenvolvimento do pensamento Ocidental, o conceito de interdiscursividade que, gestado no interior da Análise do Discurso[1], aviva a percepção segundo a qual “toda a história da filosofia [pode ser encarada] como uma imensa cadeia de discursos que se relacionam entre si de modos vários e complexos. De modo algum, proponho que se faça Análise do Discurso a partir de textos filosóficos. Embora seja possível a realização de tal análise segundo o aparato teórico-metodológico e os procedimentos fornecidos pela Análise do Discurso, quem quer que pretendesse dedicar-se a uma empresa como esta estaria movimentando-se num horizonte hermenêutico cujos objetivos divergiriam – talvez, radicalmente - daqueles que, comumente, orientam a prática interpretativa dos comentadores. De modo geral, os comentadores que se debruçam sobre a compreensão de um pensamento filosófico procuram fornecer dele uma exegese que não está comprometida com os pressupostos teóricos que dão corpo à Análise do Discurso. A Análise do Discurso tem por interesse compreender o modo como um discurso produz sentido, para o que ela leva em conta a língua, a História e o sujeito, em funcionamento, com vistas a revelar a determinação histórica dos processos semânticos e, consequentemente, a dispersão dos sentidos. A Análise do Discurso se constitui pela inter-relação entre Linguística, História e Psicanálise, do que resulta ser ela uma área transdisciplinar.
Há que distinguir três campos teóricos com que a Análise do Discurso está em constante diálogo. O primeiro campo é o do materialismo histórico. No quadro da Análise do Discurso, o materialismo histórico é compreendido como uma teoria das formações e transformações sociais. A Análise do Discurso, articulando-se dialogicamente com o materialismo histórico, manterá que as condições de produção do discurso só podem ser observadas na e pela História. As condições de produção do discurso, sendo historicamente determinadas, explicam o aparecimento de um dado enunciado em um tempo e lugar, e não em outros. Da Linguística, a Análise do Discurso aproveita as ferramentas necessárias ao trabalho com os elementos linguísticos que tornam possível a materialização dos discursos. No horizonte de investigação da Análise do Discurso, situa-se a inter-relação constitutiva da linguagem e a sua exterioridade. Por fim, a Análise do Discurso precisa elaborar uma teoria do discurso, à luz da qual se desenvolverá o exame da determinação histórica dos processos de significação. Nesse caso, está sob foco de investigação a produção dos sentidos tomada como decorrente de fenômenos históricos.
A despeito do que se apresenta no parágrafo precedente, não intento propor que o estudo da produção discursiva filosófica se transforme num trabalho de interpretação e compreensão de textos segundo os pressupostos teóricos e metodológicos e os objetivos da Análise do Discurso. O que proponho é que possamos interpretar/compreender os textos filosóficos à luz da noção de interdiscursividade, a qual se acompanhará de outros conceitos que serão definidos e que, uma vez reunidos, contribuirão para fornecer um quadro sinótico elucidativo desse campo de estudo recoberto pela designação Análise do Discurso.
Convém salientar que os conceitos de interdiscursividade e interdiscurso deverão, segundo minha proposta, ser tomados como pressupostos orientadores do trabalho de interpretação e compreensão dos textos filosóficos. Estes dois conceitos resultam da compreensão de que todo discurso está calcado sobre outros discursos que o antecedem ou o precedem. Os conceitos de língua, discurso, sujeito, formação discursiva, historicidade do texto, formação ideológica e ideologia serão definidos como condição para que se elucide as bases teóricas da Análise do Discurso. No que diz respeito à formação discursiva, farei uma tentativa rudimentar para torná-la operacional a partir da elaboração compreensiva da produção discursiva do epicurismo e do estoicismo. Evidentemente, uma análise que se pretendesse acurada teórica e metodologicamente deveria prever um recorte dos discursos que constituiriam um arquivo[2] para a investigação, já que são vários os filósofos epicuristas e estóicos e diversos, portanto, os discursos produzidos.
Este texto divide-se em duas partes: na primeira, versarei sobre os pressupostos e os referidos conceitos com os quais trabalha a Análise do Discurso, enfatizando a relevância dos conceitos de interdiscursividade e de interdiscurso. Na segunda parte, com o intento de ilustrar de que modo esses conceitos contribuem para que nos tornemos leitores mais competentes no trabalho de interpretação e compreensão de textos filosóficos, abordarei, sem pretensão à exaustão, de modo dialógico, as teorias do conhecimento elaboradas por Kant e Schopenhauer.

1. A Análise do Discurso: pressupostos e conceitos


“A filosofia – define Epicuro- é uma atividade que, por discursos e raciocínios, nos proporciona uma vida feliz”. Seja-me permitido, então, destacar este truísmo: a filosofia não é possível senão pela produção de discursos. Ao destacar deste passo de Epicuro tal truísmo, ciente estou de que deixo à margem de minhas considerações o vínculo necessário entre filosofia e vida feliz, de que dá testemunho não só Epicuro mas toda a tradição grega.
Epicuro lembra-nos que a atividade da filosofia se realiza pela produção de discursos. Definir os conceitos de discurso e de língua à luz do quadro teórico da Análise do Discurso se me impõe como uma pré-condição para que se esclareçam os demais conceitos, já referidos, que contribuirão, por sua vez, para a elucidação da complexidade do objeto teórico da Análise do Discurso.

1.2. Discurso e Língua

Discurso não se identifica com a fala, nem com a língua. O discurso, tal como definido pela Análise do Discurso, é um acontecimento sócio-histórico; é, segundo Orlandi (2007), efeito de sentidos entre interlocutores. Tanto o locutor quanto o interlocutor, participantes da atividade discursiva, estão sempre afetados pelo simbólico. Esses efeitos de sentidos são consequência das relações entre sujeitos simbólicos que participam do discurso, em condições sócio-históricas dadas. Os efeitos de sentidos se realizam como consequência do fato de esses sujeitos serem situados sócio-historicamente e de serem afetados pelas suas memórias discursivas, as quais, por sua vez, são memórias sociais. As memórias discursivas fundam um espaço que se apresenta como condição de possibilidade do funcionamento do discurso. Esse espaço constitui um corpo sócio-histórico-cultural. (Fernandes, 2007, p. 59-60). O conceito de memória discursiva será definido quando eu me debruçar sobre o conceito de interdiscurso. Desde já, noto que memória discursiva e interdiscurso são conceitos correlatos, sinônimos.
A língua não é meramente um código entre outros. Não há separação entre emissor e receptor, como postula uma clássica Teoria da Comunicação. Tampouco a língua é mero instrumento de comunicação. Ao usarmos a língua, não só comunicamos, como também não comunicamos. A língua é, fundamentalmente, uma prática social, e os participantes dessa prática social atuam interacionalmente na produção de significados. O que eles fazem, quando envolvidos nas práticas linguísticas, é produzir discurso. Portanto, o funcionamento da linguagem põe em relação sujeitos e sentidos afetados pela língua e pela História, num complexo processo de constituição desses sujeitos e de produção de sentidos.
No que tange ao texto, é ele um objeto linguístico-histórico. Não carece fazer uma distinção entre texto e discurso aqui. Texto e discurso são atravessados pela incompletude. O texto não é, assim, uma unidade fechada, embora, na prática de análise, possamos compreendê-lo como uma unidade inteira em relação com outros textos existentes, possíveis ou imaginários (intertextualidade), com suas condições de produção (os sujeitos e a situação), com sua exterioridade constitutiva (o interdiscurso, a memória discursiva).
O texto é caracterizado por sua historicidade. Falar em historicidade do texto é apreender seu acontecimento como discurso, seu funcionamento, o trabalho de sentidos que ocorre nele. Trata-se de pensar a temporalidade interna do texto, ou seja, sua relação com a exterioridade constitutiva, segundo o modo como ela se inscreve no texto. Essa exterioridade não é a exterioridade histórica da qual o texto é um produto; essa exterioridade determina o texto internamente. Não é algo que está lá fora e que se reflete no texto. Não se vai da História (acontecimentos, eventos) para analisar o texto, mas se parte do texto enquanto materialidade histórica, com suas marcas. Destarte, compreender a materialidade do texto é compreender como a matéria textual (historicidade do texto) produz sentidos.
Não se está negando que há uma relação entre a História fora do texto e a historicidade do texto, que é a trama de sentidos nele, mas essa relação não é direta, nem imediata, nem de causa e efeito. Essa relação é complexa e demanda, a fim de que possa ser explorada, a compreensão do funcionamento do texto.

1.3. Sujeito

Desde já, é necessário rechaçar um possível equívoco: o sujeito de que trata a Análise do Discurso não é o sujeito cartesiano, ou seja, como uma consciência unitária e transparente a si mesma, e suposta como existente independentemente do corpo. Esse sujeito cartesiano é um “eu” a-histórico, senhor de si, cuja existência é postulado pelo pensamento. O sujeito de que trata a Análise do Discurso é um sujeito sócio-histórico. Este sujeito não se confunde nem com o autor nem com o indivíduo empírico que produz um texto. Trata-se de uma posição-sujeito ou forma-sujeito constituída na relação com o simbólico na História. O sujeito é discursivo e descentrado (não é a origem do seu dizer), porquanto afetado pelo real da língua e pelo real da história. Ele não exerce controle sobre o modo como língua e História o afetam. Por isso, o sujeito funciona pelo inconsciente e pela ideologia.
O sujeito deve sua instituição à interpelação ideológica (Althusser)[3]. O sujeito não é o centro do seu dizer, de modo que ele se caracteriza por duas formas de esquecimento: 1o esquecimento – o sujeito se constitui pelo esquecimento da formação discursiva que o determina. Só há sujeito pela sua inscrição na formação discursiva. É devido a esse esquecimento que o sujeito tem a ilusão de ser a origem do que diz; 2o esquecimento – o sujeito esquece que há outros sentidos possíveis. Nesse caso, ao formular o seu dizer, vão-se construindo cadeias parafrásticas de tudo aquilo que ele poderia dizer, mas não disse. Quanto mais operamos formulações tanto mais silenciamentos se deixam vazar de nossas palavras. Esses silenciamentos compreendem o domínio do formulável (eles também dizem). Esse esquecimento segundo acarreta a ilusão da relação termo a termo entre o dizer, o pensar e a realidade.
Retomando-se a contribuição do materialismo histórico para a constituição do campo de estudos da Análise do Discurso, deve-se reter que há o real da História, de sorte que o homem faz história, mas ela não lhe é transparente. Conjugando a língua com a História na produção de sentidos (os sentidos são produto do trabalho de uma relação determinada do sujeito com a História), os estudos do discurso se ocupam com a dinâmica da forma material, que é a forma encarnada na história para produzir sentidos. Essa forma é de natureza linguístico-histórica. Esclarecendo os elementos que estão em jogo no trabalho do analista do discurso, cumpre sublinhar: a) o sentido não é o conteúdo semântico das palavras; b) a História não é um contexto, um enquadramento de acontecimentos; c) o sujeito não é a origem de si e nem está na origem do que diz. A Análise do Discurso está, portanto, preocupada com a ordem do discurso, na qual o sujeito se define por meio de sua relação com o sistema significante dotado de sentidos, sua corporeidade, sua historicidade (Orlandi, 2007, p. 49). O sujeito é, assim, sujeito significante (que significa), é sujeito histórico (ou seja, material). Esse sujeito, conforme mostrei, é uma posição-sujeito, isto é, ele se define como “posição”, porque é um sujeito atravessado por diferentes “vozes”, por diferentes discursos, numa relação, submetida a regras, com a memória discursiva (o interdiscurso). Esse sujeito só existe por sua relação com uma formação discursiva, a qual, por sua vez, mantém relação com as demais formações discursivas. Portanto, o sujeito de que se ocupa a Análise do Discurso é um lugar de significação que se constitui historicamente, vale dizer, pelo interdiscurso.
Uma vez que não se separam forma e conteúdo, a Análise do Discurso visa a compreender a língua não só como estrutura, mas, sobretudo, como um acontecimento. Da reunião da estrutura e acontecimento, resulta que a forma material (linguístico-histórica) é considerada como o acontecimento do significante (língua) num sujeito afetado pela História. É importante destacar que as palavras que usamos no trato cotidiano com a língua já nos chegam carregadas de sentidos, dos quais ignoramos a origem de constituição. Não obstante, elas significam em nós e para nós.

1.4. Formação discursiva e Ideologia

A língua é a materialidade específica do discurso, e o discurso é a materialidade específica da ideologia, de modo que não há ideologia fora do signo, do discurso. Descerei a considerações sobre o conceito de formação discursiva, definindo, posteriormente, sem me estender sobre o tema, o conceito de ideologia, tal como compreendido pela vertente da Análise do Discurso de cuja apresentação venho-me ocupando.
Todas as formações discursivas são constituídas de formações ideológicas[4] que as governam. O conceito de formação discursiva foi cunhado por Foucault, em Arqueologia do Saber (1969), para designar o domínio que, numa dada formação ideológica, a partir de uma posição social numa conjuntura histórica dada, determina o que se pode e deve-se dizer. É da formação discursiva que as palavras e os enunciados recebem seus sentidos. A formação discursiva refere-se ao que se pode dizer somente em determinada época e espaço social, ao que tem lugar e realização a partir de condições de produção específicas, historicamente definidas. A formação discursiva permite explicitar como cada enunciado tem seu lugar e sua regra de aparição, e como as estratégias que presidem à sua produção derivam de um mesmo jogo de relações; em suma, como um dizer encontra espaço num determinado lugar e época.
Foucault ensina que a formação discursiva torna possível a descrição, tendo em vista certo número de enunciados, de um sistema de dispersão. Além disso, ela permite definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições, funcionamentos, transformações) relativamente a objetos, tipos de enunciação, conceitos e escolhas temáticas. Uma formação discursiva não se limita a uma época apenas. No seu interior, se acham elementos que existiram em diferentes espaços sociais, e em outros momentos históricos, e que reaparecem sob novas condições de produção, tornando-se parte constitutiva de um novo contexto histórico e, consequentemente, possibilitando outros efeitos de sentido.
Tentarei, de modo rudimentar, mostrar como se pode operar com o conceito de formação discursiva por meio da consideração de duas escolas filosóficas que vicejaram no período helenista, justamente numa época em que o homem grego via dissipar-se o horizonte único da vida moral, a saber, a pólis. A partir de então, Estado e política passaram a ser situados entre as coisas moralmente indiferentes ou mesmo moralmente negativas. A fim de assinalar a ruína espiritual experimentada pelo homem grego neste período, vale lembrar que, na era clássica, a pólis era o lugar sem o qual o homem não poderia conceber sua própria existência, nem relativamente aos outros, nem em relação a si mesmo. Na pólis, homem e cidadão se identificavam quase completamente. É, por outro lado, no período helenista, que o homem descobre-se indivíduo. Doravante, não podendo mais orientar-se pela Cidade, pelo éthos do Estado e seus valores, a fim de tornar plena de conteúdos sua própria vida, o homem, coagido pela força dos acontecimentos, não teve alternativa senão encerrar-se em si mesmo. Com a empresa revolucionária de Alexandre, a cultura passou a formar indivíduos. Atentemos para o seguinte passo de Reale (2011, p. 11)[5], que nos esclarece sobre a grande transformação cultural e filosófica ocorrida nesse período:

“Assim como a cultura helênica, tornando-se helenística, perde o seu vigor originário e a sua força primigênia, assim também a filosofia, em particular, perde profundidade o que ganha em extensão. A perda se dá justamente na dimensão da teoreticidade e, portanto, na força e no vigor especulativo. O ganho se dá no número incomparavelmente superior de pessoas para as quais a filosofia, transformada essencialmente em problema da vida, sabe comunicar uma mensagem válida. A filosofia torna-se efetivamente a fonte da qual o homem helenístico extrai os valores que antes extraía da polis e da religião da polis; oferece novos conteúdos de vida espiritual, ilumina as consciências, ajuda o homem a viver e lhe ensina como ser feliz mesmo na época trágica em que vive na qual todos os antigos valores parecem subvertidos”.


Não se pode negar que as novas condições sócio-históricas da era helenística vão ser determinantes do aparecimento de discursos assentados numa orientação ideológica diversa, redefinida em relação aos discursos produzidos no período clássico. No entanto, nos quadros da Análise do Discurso, não se parte da exterioridade histórica para examinar os textos; a atenção se concentra na exterioridade constitutiva (interdiscurso, memória) que atravessa o texto e o determina do interior. Vou-me ater ao conceito de formação discursiva, a fim de lhe externar a operacionalidade. Sabe-se que Epicuro apregoou ser o prazer o soberano bem. O prazer, para ele, é o começo e o princípio da vida feliz. Foi justamente por fundar sua moral no prazer que Epicuro foi acusado por seus contemporâneos e pela posteridade de defensor da volúpia[6]. No entanto, o próprio Epicuro não descurou de advertir que se deve buscar os prazeres moderados, afastando aqueles que não são nem naturais nem necessários. A título de ilustração, vamos considerar como a palavra prazer recebe seu sentido pela inscrição dos sujeitos epicuristas e estóicos em formações discursivas diversas. O epicurismo subordinou a virtude ao prazer: a virtude era um meio para alcançar o prazer. Um estóico como Zenão, o fundador do estoicismo, não poderia concordar com Epicuro. A ética estóica se assenta no seguinte preceito estruturado em consequências: deve-se viver segundo a natureza, que significa viver segundo a razão, que, por sua vez, coincide com viver segundo a virtude. Para o estóico, a virtude é, ela mesma, a felicidade; por conseguinte, viver segundo a virtude deve ser desejado. Vivendo segundo a virtude, o estóico conquista a autarquia; por isso, não tem necessidade de prazeres. Segundo a opinião estóica, os prazeres não concorrem para aperfeiçoar a natureza humana; são tão-só fenômenos que acompanham o aperfeiçoamento, mas não estão totalmente sob o poder do indivíduo.
Há que se ver, pois, o confronto entre duas formações discursivas, que fazem com que os sujeitos e a palavra “prazer” signifiquem de modo diverso. As condições sócio-históricas do helenismo favorecem o aparecimento de discursos filosóficos nos quais há uma preocupação com a orientação moral ou ética dos indivíduos, conforme nota Reale (ib.id.): “os filósofos da era helenística são substancialmente moralistas, grandes moralistas; são pregadores de um credo ético; são, a seu modo, apóstolos e missionários”. Malgrado sejam mobilizados por um interesse ético em comum, os filósofos epicuristas e estóicos se inscrevem como sujeitos em formações discursivas e ideológicas diferentes. Essas formações discursivas deixam transparecer temas que atravessaram outras formações discursivas em outras épocas e lugares. Por exemplo, naturalmente, o tratamento dispensado ao prazer pelo epicurista e pelo estóico se faz num movimento de redefinição/re-produção de efeitos de sentido produzidos em outro lugar e época, como, por exemplo, na época de Platão, em Filebo. Aqui, já se entrevê a importância da memória discursiva ou interdiscurso como condição de possibilidade de existência do próprio discurso, pois o discurso de epicuristas e estóicos só é possível pela intervenção dessa memória coletiva, que é a memória discursiva. Os discursos, portanto, se imbricam e se relacionam com outras formações discursivas anteriores e exteriores, e que atravessam o discurso de um sujeito. Escapa aos propósitos deste texto uma demonstração acurada da operacionalidade do conceito de formação discursiva, para cuja tarefa supõe-se a constituição de um corpus discursivo ou arquivo que se conclui apenas no fim do procedimento analítico.
Tomando-se, agora, o conceito de ideologia, será suficiente dizer que, no quadro teórico a que remetem minhas considerações, a ideologia não é uma forma de ocultamento de conteúdos, mas um mecanismo de produção de uma interpretação necessária que atribui sentidos fixos às palavras. Por isso, o mecanismo ideológico não envolve uma falta, mas um excesso (Orlandi, 2007, p. 66). A ideologia representa a saturação do sentido, o efeito de completude, o qual, por sua vez, é responsável pelo efeito de evidência (do sentido).


1.5. Interdiscursividade e Interdiscurso (memória discursiva)

A interdiscursividade recobre o entrecruzamento de diferentes discursos, produzidos em diferentes momentos na História e a partir de diferentes lugares sociais. Todo discurso é constituído de diferentes enunciados que o antecedem e o sucedem, e que integram outros discursos. Correlato ao fenômeno da interdiscursividade, o interdiscurso ou memória discursiva é a instância da repetição histórica, porque inscreve o dizer no repetível (interpretável) enquanto memória constitutiva (interdiscurso). Esta memória é uma rede de filiações de dizeres que faz a língua significar. Destarte, sentido, memória e História se entrecruzam no interdiscurso.
O interdiscurso é aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente da formulação de um discurso dado. É a memória discursiva, o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma de pré-construído[7], o já-dito que está na base do dizível e que dá suporte a toda tomada da palavra. O interdiscurso põe em movimento dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva dada.
Tendo ficado claro que o interdiscurso é o próprio espaço de inscrição da memória de dizeres, que a memória discursiva expressa a inscrição da língua na História, passo, na próxima seção, a dissertar sobre a teoria do conhecimento em Kant e em Schopenhauer, procurando assinalar como nossa experiência com a filosofia se beneficia da compreensão do modus operandi dos conceitos de interdiscursividade e interdiscurso. Levando a termo esta seção, refiro as palavras de Orlandi (2010, p.18), que definindo o interdiscurso, sublinha a relação deste com a formação discursiva:

O interdiscurso determina a formação discursiva. E o próprio da formação discursiva é dissimular na transparência do sentido, a objetividade material contraditória do interdiscurso que a determina. Essa objetividade material contraditória reside no fato de que algo fala sempre antes em outro lugar e independentemente. O interdiscurso é irrepresentável. Ele é constituído de todo dizer já-dito. Ele é o saber, a memória discursiva. Aquilo que preside todo dizer. É ele que fornece a cada sujeito sua realidade enquanto sistema de evidências e de significações percebidas, experimentadas. E é pelo funcionamento do interdiscurso que o sujeito não pode reconhecer sua subordinação-assujeitamento ao Outro, pois, pelo efeito de transparência, esse assujeitamento aparece sob a forma de autonomia”. (grifos meus).



2. Kant e Schopenhauer: uma leitura com base no princípio da interdiscursividade


Quando no livro 1 de O mundo, Schopenhauer desenvolve sua concepção do mundo como representação, são repostos vários elementos já presentes no desenvolvimento do criticismo kantiano. Decerto, essa reposição não consiste em mera apropriação, mas é expressão de uma ressignificação desses elementos num movimento que articula assentimento e divergência. Mobilizando os conceitos já trabalhados por Kant e reinscrevendo-os num novo horizonte hermenêutico, Schopenhauer permite-nos acompanhar o percurso pelo qual o interdiscurso irrompe em seu discurso – na forma de intertextualidade - como condição de possibilidade para a sua própria construção. Ao dizer, o sujeito schopenhaueriano deixa ressoar um já-dito produzido em outro lugar e época de modo independente. Todo discurso é constituído de diversas formações discursivas. É, por isso, de esperar que o discurso schopenhaueriano seja atravessado por formações discursivas várias. Não obstante, estou interessado em mostrar, a partir da perspectiva da interdiscursividade, por que tem razão Schopenhauer quando considerou a si próprio um herdeiro do kantismo. Para levar a efeito esta empresa, precisarei, em primeiro lugar, dispensar atenção sobre a teoria do conhecimento de Kant. Posteriormente, debruçar-me-ei sobre o desenvolvimento da concepção do mundo como representação de Schopenhauer na tentativa de mostrar a intervenção do interdiscurso que traz o registro, especialmente, da voz kantiana.

2.1. Kant e sua teoria do conhecimento

A distinção estabelecida por Kant entre sensibilidade e entendimento inspirou-se na clássica distinção dos antigos entre objetos sensíveis (aisthèta) e objetos inteligíveis (noètá). A sensibilidade recobre a faculdade das intuições; e o entendimento encerra a faculdade dos conceitos.
De modo geral, por intuição, entende-se a visão direta e imediata de um objeto apresentado ao espírito e apreendido em sua realidade individual. Portanto, só há intuição quando um objeto nos é dado ao espírito. Na medida em que objetos que nos são dados são aqueles que nos afetam o espírito, as intuições serão recobertas pela faculdade da sensibilidade, a qual se caracteriza por receber as representações. Segundo Kant, para o homem, só há intuições sensíveis.
Sublinhe-se que a sensibilidade é a faculdade que tem nosso espírito de ser afetado por objetos. É a sensibilidade, assim, que nos fornece as intuições, e somente ela.
Por outro lado, o entendimento encarrega-se de pensar os objetos fornecidos pela sensibilidade. Trata-se de uma faculdade não sensível de conhecer. O entendimento se caracteriza pela espontaneidade. Ao entendimento cumpre produzir representações. As representações do entendimento são os conceitos. Destarte, de acordo com Kant, o entendimento humano produz um conhecimento por conceitos. Não sendo, portanto, um conhecimento intuitivo, esse conhecimento é discursivo.
Cuido indispensável esclarecer, a esta altura, o que é representação. A representação é a operação pela qual a mente tem presente a si mesma uma imagem mental, uma ideia ou conceito correspondente a um objeto externo. Toda representação é uma re-apresentação da realidade externa à consciência, de sorte que a realidade  re-apresentada se torna um objeto da consciência. É o signo (a palavra) o elemento responsável por permitir a relação entre a consciência e o real na representação.
Volvendo olhares para a contribuição kantiana, encontramos na Crítica da Razão Pura (2013, p. 45), logo de início na Introdução,  o primeiro registro do interdiscurso, que se depreende da passagem em que Kant dá seu assentimento a um tese empirista, da qual Hume foi um representante que influenciou decisivamente o pensamento kantiano, tanto mais que o próprio Kant viu nele o filósofo responsável por tê-lo despertado de seu sono dogmático: “não há dúvida de que todo o nosso conhecimento começa com a experiência”. Esse trecho se acompanha, no entanto, da observação do próprio Kant de que o conhecimento não se reduz à experiência. O conhecimento, portanto, começa com a experiência, no que está de acordo com a tese básica do empirismo, mas não se reduz a ela. Minha atenção recairá apenas sobre o fato de a experiência ser  o domínio responsável por dar início ao conhecimento, vale dizer, por torná-lo possível. Se o ponto de partida para o conhecimento é a experiência, pode-se dizer que, para Kant, o conhecimento tem como base a sensação. A sensação é a impressão produzida por um objeto na sensibilidade. Por meio da sensação, dá-se a intuição empírica. O objeto dessa intuição empírica é o fenômeno.
A experiência é um conhecimento real e empírico, que resulta da interação entre a sensibilidade e o entendimento. A experiência se constitui pela ligação de percepções, operada pelo entendimento, na forma de conceitos. A experiência envolve dados empíricos e elementos a priori. Segue-se daí que o conhecimento se realiza cabalmente no momento em que percepções e conceitos são relacionados sob a forma de um juízo. Só no nível do juízo é que se constituirão objetos, pois, antes do juízo, não há qualquer determinação.
Ao se ocupar da análise da sensibilidade e do entendimento, Kant se aproveitará da distinção escolástica entre forma e matéria. Destarte, com vistas a explicar de que modo operam a sensibilidade e o entendimento no conhecimento dos fenômenos, Kant propõe que pensemos tanto o fenômeno quanto o conhecimento como algo constituído de forma e matéria. A matéria do conhecimento depende do próprio objeto; a forma do conhecimento, por sua vez, depende do sujeito. O ato de conhecer é, portanto, o ato de dar forma a uma matéria dada. Todo conhecimento – eis um ponto importante – implica uma correlação entre um sujeito e um objeto. Os dados objetos são configurados pelo modo com que a sensibilidade e o entendimento os apreendem.
A matéria é a posteriori, isto é, depende da experiência. A matéria do conhecimento é variável de um objeto para outro, visto que dele depende. A forma, por outro lado, como seja imposta pelo sujeito ao objeto, será reencontrada invariavelmente por todos os sujeitos em todos os objetos.
Tanto a sensibilidade quanto o entendimento apresentam formas que lhes são próprias. As formas puras da sensibilidade são o espaço e o tempo. As formas se dizem puras porque estão a priori no espírito, isto é, não pertencem à sensação ou à experiência. As formas a priori do entendimento são os conceitos ou categorias do entendimento. Antes de apresentá-las, convém enfatizar que sensibilidade e entendimento são inseparáveis para atingirmos conhecimento: por um lado, o conhecimento requer que os conceitos (pensados pelo entendimento) se tornem sensíveis, caso em que a eles articulamos um objeto dado na intuição; por outro lado, as intuições só se tornam inteligíveis, quando se subordinam a conceitos. Não menos importante é enfatizar que as categorias do entendimento constituem as condições subjetivas do pensamento. Assim, ser-nos-ia impossível pensar, isto é, julgar, se não nos fosse possível submeter os dados da intuição sensível às formas a priori do entendimento. Kant distingue entre doze categorias, segundo quatro pontos de vista ou domínios: 1) no domínio da quantidade,  se acham a unidade, a pluralidade e a totalidade; 2) no domínio da qualidade, se topam a realidade, a negação  e a limitação; 3) no domínio da relação, situam-se a substância (e acidente), a causa (e efeito), a reciprocidade; 4) no domínio da modalidade, se encontram a possibilidade, a existência e a necessidade.
Retomemos as formas puras da sensibilidade, quais sejam, o espaço e o tempo, para observar que Kant as entendia unicamente dependentes da forma de nossa intuição, a saber, da constituição de nosso espírito. O espaço não é um ser real, um conceito empírico derivado de nossas experiências exteriores. Não há isto que chamamos "espaço" como  instância ontológica que nosso espírito apreende. Para Kant, o espaço é a priori, porque a sua representação constitui a condição de possibilidade dos fenômenos. Assim também, o tempo é um dado a priori; é a condição de todo vir-a-ser. O tempo não existe nas coisas, tampouco é uma coisa externa à nossa consciência. O tempo é a forma da intuição de nós mesmos e de nosso estado interior. O tempo é a condição formal a priori de todos os fenômenos. Não estando interessado em descer a pormenores sobre as formas da sensibilidade, cinjo-me a lembrar que a intuição só pode nos fornecer os fenômenos e jamais a coisa-em-si (númeno). Essa limitação do conhecimento aos fenômenos terá um impacto significativo na própria compreensão que o homem moderno terá de si mesmo: só posso conhecer quem sou conhecendo alguma coisa. Só podemos apreender nosso eu apenas como fenômeno e não como coisa em si. É a metafísica tradicional, com sua pretensão a fornecer algum conhecimento, que é rejeitada: não podemos conhecer coisa alguma para além da experiência. O homem só pode conhecer aquilo que lhe é dado na intuição.
A coisa-em-si ou o númeno é incognoscível. Portanto, só conhecemos o ser das coisas na medida em que elas nos são dadas enquanto fenômenos.

2.1.2. A Razão, segundo Kant

Para além da experiência, não há conhecimento possível. Com este postulado, Kant nega ser possível à razão demonstrar a imortalidade da alma, a liberdade do homem ou a existência de Deus. Ademais, para o filósofo de Königsberg, não se pode provar nem que a alma é mortal, nem que o homem não é livre, nem que Deus não existe. Para além da experiência – é preciso acrescentar -, não podemos conhecer a existência e a não-existência.
Kant reconhece que a razão tem uma tendência a ultrapassar os limites do conhecimento, já que tem em mira o incondicionado. Tal pretensão da razão leva-a a uma antinomia, isto é, a um modo de proceder no qual ela, a razão, instaura um conflito interno cuja solução se lhe torna impossível. A antinomia se estrutura pela articulação de uma tese com uma antítese. A tentativa de provar tanto um aspecto quanto outro é vã, porque os argumentos a que recorre para tanto são meramente especulativos e, portanto, incapazes de oferecer uma prova empírica.
Kant confere à razão, então duas novas funções. Ela não pode mais presumir a dedução da existência de objetos como Deus, alma, mundo, por si transcendentes, de simples ideias, de sorte a transformar a lógica formal em órgão de conhecimento. Uma vez consciente de seus próprios limites, a razão se torna crítica. Kant estava ciente de que a razão não cessaria de fracassar, caso continuasse a se aventurar em conhecer objetos que só pode conhecer por conceitos, os quais por si mesmos são insuficientes para determinar um objeto real correspondente. Ora, do que expusemos até aqui, é possível depreender que o conhecimento é produto da interação complexa entre duas faculdades; ele é o resultado de uma síntese operada pela sensibilidade e pelo entendimento. São as seguintes as novas funções que Kant fixou para a Razão: a) tornar as ideias especulativas instrumentos metodológicos que sevem à avaliação do progresso da experiência. Essas ideias foram chamadas de Ideias Regulativas; b) negar o caráter contraditório de ideias cosmológicas como a de liberdade e a de necessidade mediante a ressignificação do conceito de objeto, que passa a ser entendido como fenômeno e como coisa-em-si (númeno). Desse modo, as ideias de liberdade e necessidade tornam-se pressupostos da prática moral.
Não devemos perder de vista o fato de que, para Kant, Razão não é o mesmo que entendimento. A razão ultrapassa o entendimento. A razão é a faculdade responsável por operar uma síntese, dando aos conhecimentos múltiplos uma unidade a priori por meio de conceitos. Vale notar que o entendimento, assentado em conceitos, reduz à unidade a multiplicidade dada na intuição. O entendimento opera segundo certas regras. A razão, por sua vez, referindo-se ao entendimento, parte das regras para atingir uma unidade mais elevada, que é a unidade dos princípios.
A razão se diz pura, porque busca o incondicionado, que é a condição última de todas as condições. É no uso lógico da razão que melhor apreendemos essa busca da unidade mais elevada. Quando raciocinamos, compreendemos uma proposição particular sob uma condição geral que a contém, juntamente com outras condições.
Por fim, acrescente-se que o conceito é produto do entendimento; e a ideia é obra da razão. A Ideia ultrapassa a experiência fenomênica. Mas a ideia é um conceito necessário da razão, muito embora a ideia não encontre um objeto correspondente nos sentidos. A razão exige que se represente o universo como uma totalidade acabada.
Tendo revisitado brevemente a teoria do conhecimento kantiana, espero que se ilumine, doravante, a relevância da interdiscursividade como princípio metodológico à medida que eu for passando revista à compreensão schopenhaueriana do mundo como representação.

2.2. Schopenhauer: o mundo como representação

No limiar do livro 1 de O mundo como Vontade e Representação (2001), Schopenhauer aduz a tese em torno da qual desenvolverá sua teoria do conhecimento, a qual constitui uma etapa (a primeira) da sua compreensão totalizante do homem e do real. Antes de referir o passo em que destacarei em negrito, essa tese, cumpre dizer que Schopenhauer se notabilizou por seu espírito profundamente triste e pessimista, que foi empregado na produção de uma obra de cunho existencialista. A verdade pretendida por sua filosofia consiste em demonstrar ser a existência um mal, do qual só podemos escapar pela renúncia a ou pela negação da Vontade.
De minha parte, entendo que uma obra filosófica deve resultar de um esforço por dar testemunho de uma existência, de um temperamento. Isso, ao menos, parece ser verdade no caso de Schopenhauer. Sua existência amargurada, seu temperamento mórbido, sua solidão trágica constituem as forças produtoras de sua filosofia, que encontrou imensa repercussão na alma do homem contemporâneo. A par de Kierkegaard, Schopenhauer soube bem exprimir a sensação de angústia que encontra morada na alma humana.
Neste texto, no entanto, pretendo apenas pontuar em que medida a filosofia de Schopenhauer, particularmente na etapa em que ele propõe o primeiro ponto de vista sobre o mundo, é tributária do pensamento de Kant. Destarte, aceno para a necessidade de se debruçar sobre  toda produção filosófica tendo sempre em conta o princípio da interdiscursividade. Leia-se, então, o fragmento em que Schopenhauer expõe, logo de início, a primeira tese de seu tratado:

O mundo é minha representação – essa proposição é uma verdade para todo ser vivo e pensante, embora só no homem chegue a transformar-se em conhecimento abstrato e refletido. A partir do momento em que é capaz de o levar a este estado, pode dizer-se que nasceu nele o espírito filosófico (...)”. (2001, p. 9).

Consoante notei anteriormente, “o mundo como representação” é o primeiro ponto de vista sob o qual Schopenhauer considerará o mundo. O outro ponto de vista consiste em afirmar que “o mundo é a minha vontade”. Portanto, “o mundo como representação” e “o mundo como Vontade” são dois aspectos sob os quais Schopenhauer compreenderá o mundo. Estas minhas considerações se estenderão prioritariamente sobre o primeiro aspecto; todavia, não silenciarei sobre o segundo aspecto.
Desde já, observo que o nome de Kant é referido por Schopenhauer algumas vezes ao longo do texto, sinal suficiente para atestar que sua filosofia se constituiu em diálogo com o pensamento do filósofo de Königsberg. Devemos, no  entanto, acompanhar de que modo esse diálogo se desenvolveu, apontando as convergências e as divergências entre os dois pensamentos.
A tese “o mundo é minha representação” assenta sobre um postulado que já se encontra em Kant: o conhecimento supõe uma relação necessária entre o objeto e o sujeito cognoscente. Levando adiante as consequências do idealismo de Kant e recuperando explicitamente a fórmula de Berkeley que inaugura o idealismo propriamente dito – o mundo é minha representação -, Schopenhauer sustentará que o mundo só existe na sua relação com um ser que percebe, ser que é o próprio homem. Assim,

“Nenhuma verdade é, portanto, mais certa, mais absoluta, mais evidente do que esta: tudo o que existe, existe para o pensamento, isto é, o universo inteiro apenas é objeto em relação a um sujeito, percepção apenas, em relação a um espírito que percebe. Em uma palavra, é pura representação”. (ibid.id.).


Para Schopenhauer, tudo que há no mundo ou que pode haver está numa relação necessária com o sujeito “e apenas existe para o sujeito”. Não obstante ter sido um grande admirador de Kant, Schopenhauer não deixou de censurá-lo por não ter reconhecido aquela verdade que “constitui já a essência das considerações céticas de onde procede a filosofia de Descartes”.[8]
Deve-se frisar que, segundo Schopenhauer, o mundo existe absolutamente, segundo o primeiro ponto de vista, como representação; e, segundo o outro ponto de vista, como vontade. O mundo como Vontade (com maiúscula para precisar que não se trata da “vontade subjetiva”) é o mundo da coisa-em-si. A Vontade de Schopenhauer é correspondente à coisa-em-si kantiana, se bem que de modo ressignificado. Schopenhauer submeterá à reflexão justamente aquilo que Kant apenas postulou. Notável, para os meus propósitos, é assinalar a insatisfação schopenhaueriana com a forma como Kant introduziu em seu sistema a sua coisa-em-si. Para Schopenhauer, o mundo não se reduz nem à representação, nem à Vontade. A representação é um aspecto sob o qual o mundo existe; e a Vontade é o outro aspecto sob o qual o mundo existe. A Vontade, escreve Schopenhauer, “é um objeto em si” (p. 11). O em-si schopenhaueriano – a Vontade – é a essência do mundo, de sorte que esse “em-si”, sendo um princípio metafísico de explicação da configuração existencial do mundo, não deixa por isso – apesar de ser uma Vontade cega e sem propósito – de servir para demonstrar a ordem ou a natureza do mundo. O em-si kantiano, ao contrário, compreende, em sua teoria do conhecimento, o domínio do incognoscível, daquilo que é imperscrutável ao entendimento e a razão humanos. A Vontade pode ser conhecida pelo homem – levar o homem a se tornar consciente das maquinações da Vontade é o objetivo fundamental a que se destina a filosofia de Schopenhauer.
A problemática da coisa-em-si em Schopenhauer e em Kant não deve nos ocupar demais, por conseguinte passo a assinalar os momentos em que a teoria do conhecimento de Schopenhauer vai-se desenvolvendo em claro contraste com a de Kant.  No tocante à essência do sujeito, escreve Schopenhauer:

“Aquele que conhece o resto, sem ser ele mesmo conhecido, é o sujeito. Por conseguinte, o sujeito é o substractum do mundo, condição invariável, sempre subentendida de todo fenômeno, de todo objeto, visto que tudo o que existe, existe apenas para o sujeito”. (p. 11).


Ao nos determos no excerto acima, encontramos novamente o postulado básico segundo o qual “tudo o que existe, existe apenas para o sujeito”. Ora, afirmar que o mundo é representação é assumir que ele existe para o sujeito que conhece. Sem o sujeito, não há mundo. Por isso, o sujeito é o substractum (essência) do mundo como representação. É importante reter que, para Schopenhauer, o sujeito não é objeto de conhecimento. O sujeito em si não é uma representação; ele é seu pressuposto. Aqui é preciso reconhecer a divergência que há entre o projeto schopenhaueriano e o kantiano. Kant, ao se ocupar das condições de possibilidade do conhecimento e dos limites da razão, tomou para objeto de conhecimento o próprio sujeito em sua forma ideal. Para Schopenhauer, que está interessado em investigar a natureza do mundo, o sujeito é pensado como “princípio que conhece sem ser conhecido”. (ib.id.). De certo modo, o sujeito é incognoscível para si mesmo – “é ele que conhece em toda parte em que há conhecimento”.
Outra diferença notável em relação à abordagem de Kant consiste no fato de Schopenhauer pensar as formas do espaço e do tempo relativamente ao objeto, e não, como pensou Kant, ao sujeito. Para Schopenhauer, o sujeito é uno e indivisível, conforme lemos a seguir:

“O mundo, considerado como representação, único ponto de vista que aqui nos ocupa compreende duas metades essenciais, necessárias e inseparáveis. A primeira é o objeto que tem por forma o espaço e o tempo, e, por conseguinte, a pluralidade; a segunda é o sujeito que escapa à dupla lei do tempo e do espaço, sendo sempre uno e indivisível em cada ser que percebe”. (ib.id., grifos meus).


Afirma-se a idealidade radical do sujeito: ele escapa à lei do tempo e do espaço; não sofre as modificações do devir – é uno e indivisível. A condição para existir o mundo como representação é que haja um objeto e um sujeito que percebe. No entanto, se esse único sujeito desaparece, com ele desaparece o mundo concebido como representação. É necessário ponderar que Schopenhauer não rejeita a possibilidade de se deduzir do sujeito as formas essenciais a qualquer objeto – a saber, o tempo, o espaço e a causalidade. Essa possibilidade de dedução explica, segundo Schopenhauer, por que Kant as considerou formas a priori da consciência. Schopenhauer não deixa, contudo, de reconhecer o mérito de Kant: “De todos os serviços prestados por Kant à filosofia, o maior reside talvez nesta descoberta”. (p. 12).
No tangente à compreensão do estatuto da causalidade, Schopenhauer coloca-se em evidente oposição a Hume. Já que minha preocupação básica é demonstrar a verdade do princípio da discursividade como condição de todo discurso e de demonstrar sua pertinência à compreensão da história da filosofia, é oportuno recordar o modo como Hume pensava a causalidade. Para ele, a causalidade não é um princípio ontológico. Ela resulta de associações operadas pela mente humana por força do hábito. É porque na experiência percebemos, repetidas vezes, um objeto ser precedido de outro, que julgamos haver entre eles uma relação natural de causa e efeito.
Para Hume, nossos raciocínios de causa e efeito fundamentam-se na experiência e, todos os raciocínios experimentais se apoiam na suposição de que o curso da natureza permanecerá regular. Por isso, somos levados à conclusão de que as mesmas causas, em situações iguais, sempre produzirão os mesmos efeitos. É o espírito humano, pelo concurso da experiência, que concebe qualquer efeito como resultante de uma causa.
Lembra Hume Adão só poderia concluir que, dadas duas bolas, uma das quais lançada em direção a outra, que uma delas se movimentaria como efeito do choque da outra, se somente tivesse a experiência anterior do efeito que resulta do impulso daquelas duas bolas. Adão deveria ter visto vários casos anteriores em que uma bola chocou-se contra outra, fazendo esta se movimentar. Vendo um número suficiente de casos semelhantes, estaria certo de que a segunda bola se movimentaria todas as vezes que outra bola se chocasse contra ela. Para Hume, é a experiência que engendra a noção a noção de causa e efeito: é porque estamos habituados a ver um fenômeno Y seguir-se a um fenômeno X que temos a expectativa de que, ocorrendo X, seguir-se-á Y. Essa nossa expectativa, fundada no hábito, se traduz na fórmula: X é a causa de Y.
É justamente essa compreensão de causalidade que Schopenhauer rejeita. Schopenhauer considera a causalidade como um princípio da nossa experiência do real. Ora, na condição de princípio, a causalidade (ou lei da causalidade) é pressuposta no modo como o mundo se nos dá intuitivamente. Fique claro que Schopenhauer não está sustentando que a causalidade exista no mundo real independentemente do entendimento, o que o excerto abaixo é suficiente para rejeitar. O que Schopenhauer diz, contra Hume, é que a causalidade não é produto da força do hábito, mas uma lei que regula os fenômenos do mundo e que existe no e para o entendimento. Sem o entendimento, o mundo não seria nada, e lei alguma existiria.

“(...) o mundo percebido pela intuição no espaço e no tempo, o mundo que se nos revela na intuição como causalidade, é perfeitamente real e é absolutamente aquilo que parece ser; ora, aquilo que ele pretende ser inteiramente e sem reserva é representação, e representação regulada pela lei da causalidade. Nisso consiste a sua realidade empírica. Mas, por outro lado, só há causalidade no e para o entendimento; assim, o mundo real, isto é, ativo, é sempre, como tal, condicionado pelo entendimento, sem o qual ele não seria nada” ( grifo meu, p. 21).


Como se pode ver, no trecho acima, a causalidade não é um produto do hábito, como pensava Hume; para Schopenhauer, é um princípio que existe no mundo que é representação.
Com não estar eu preocupado em desenvolver uma análise exaustiva que ilumine as convergências e as divergências entre as teorias do conhecimento de Schopenhauer e de Kant, vou limitar-me a notar que por entendimento Schopenhauer não entende o mesmo que Kant, tanto mais que Schopenhauer diz o possuírem todos os animais, mesmo os mais imperfeitos. A razão por que Schopenhauer estende o entendimento aos animais é que o entendimento tem por essência o conhecimento pelas causas. Para Schopenhauer, o entendimento limita-se a ser uma faculdade responsável por ligar o efeito à causa ou a causa ao efeito. No entanto, no homem, a intensidade de ação e extensão de sua esfera é maior.
No que tange à razão, Schopenhauer atribui a ela apenas a propriedade de classificar, fixar e combinar os conhecimentos imediatos do entendimento, sem nunca produzir qualquer conhecimento. Nesse tocante, Schopenhauer não se afasta muito de Kant. Ele conserva a distinção kantiana entre razão e entendimento e destitui a razão do poder de lograr um conhecimento teórico. No entanto, ao contrário de Kant, Schopenhauer nega que a razão seja a faculdade do incondicionado. Para Schopenhauer, a razão tem seu alcance reduzido à exploração dos dados imediatos do entendimento, sem o qual ela permanece estéril. O entendimento, segundo essa perspectiva, é a faculdade da representação. Ele é estruturado pelo princípio da razão suficiente (espaço, tempo e causalidade). Kant, por sua vez, distingue entre intuição, com suas formas a priori (espaço e tempo) e entendimento, com suas doze categorias. Schopenhauer, por seu turno, as funde numa única faculdade, a qual chama alternadamente de entendimento, intelecto ou intuição. A intuição, para Schopenhauer – no que discorda de Kant – não é puramente sensível, mas intelectual. O que vimos a respeito de Kant patenteia que, para ele, a intuição é sempre sensível. Acerca da intuição, escreve Schopenhauer:

“(...) a intuição não é de ordem puramente sensível, mas intelectual; pode-se dizer, em outras palavras, que ela consiste no conhecimento da causa pelo efeito, por meio do entendimento: pressupõe, pois, a lei da causalidade.” (p. 19).


Finalmente, reitere-se que a lei da causalidade é condição de possibilidade para qualquer intuição. Nisso Schopenhauer discorda de Hume, que pretendia deduzi-la da experiência por força do hábito. Para Schopenhauer, a lei da causalidade é condição de possibilidade para qualquer experiência.

Considerações finais

Como espero tenha ficado claro, nenhum discurso vem ao mundo como criação de um sujeito que está na origem do dizer. Todo discurso está calcado sobre discursos que o precedem, ao mesmo tempo que projeta espaços de possibilidade de outras enunciações. O interdiscurso é o já-dito que se situa em outro lugar; é pré-condição para todo dizer, é a memória discursiva. Numa perspectiva bakhtiniana, devemos reconhecer que o dialogismo está no cerne do funcionamento da linguagem, visto que todos os enunciados se constituem a partir de outros. Quando os comentadores nos ensinam sobre as influências sofridas por um filósofo, como a que sofreu Schopenhauer de Kant, como a que Kant sofreu de Hume, por exemplo, eles põem em evidência justamente o funcionamento do princípio de interdiscursividade, ainda que não haja preocupação explícita de teorizar sobre ele (tarefa esta que compete ao linguista, ao analista do discurso). Mas a importância de tal princípio é irrecusável para um estudo tanto mais profundo quanto satisfatório do pensamento filosófico em toda a sua complexidade e extensão. Assim é que se vai costurando o tecido discursivo: Santo Agostinho remete a Platão, que remete a Parmênides e a Heráclito, os quais dialogam com a tradição anterior, ao mesmo tempo em que abrem espaços enunciativos posteriores. Assim é que podemos ver um Marx retomar Hegel, para reinterpretá-lo, para contestá-lo, etc. É pela interdiscursividade que podemos melhor compreender as divergências que opõem, de um lado, racionalistas; de outro, empiristas;  é ela que nos permite, inclusive, pensar aquilo em razão do qual se opõem as duas formas de idealismo, como o de Kant e o de Descartes. Racionalismo e Empirismo; Idealismo e Realismo, etc. são designações que acenam para diferentes formações discursivas e ideológicas. Fica, então, estabelecido que o estudo da linguagem, mormente no que tem de contribuição para a compreensão do funcionamento textual e discurso, antes de subtrair-se ao estudo da filosofia, vem-lhe em socorro para torná-lo uma atividade ao longo da qual o agente vai-se transformando profundamente pelo aprofundamento de sua compreensão dialógica do pensamento que se põe sob foco de sua atenção por ocasião do estudo.




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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FERNANDES, Alves C. Análise do discurso: reflexões introdutórias. São Carlos: Clara Luz, 2007.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

ORLANDI, Eni P. Análise de Discurso. In: Orlandi, Eni P.; Rodrigues-Lagazzi, Suzy (orgs). Discurso e textualidade. São Paulo: Pontes, 2011, p. 13-31.
________ Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. São Paulo: Pontes, 2007.

PASCAL, Georges. Compreender Kant. Petrópolis, RJ: 2009.


SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como Vontade e Representação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.






[1] Neste trabalho, a expressão Análise do Discurso recobrirá a orientação dos estudos discursivos levada a efeito pela escola francesa, da qual, no Brasil, sua mais notável representante é a linguista e analista do discurso Eni P. Orlandi.
[2] Segundo Maingueneau (1991), o arquivo reúne enunciados provenientes de um mesmo posicionamento e inseparáveis de uma memória e de instituições que lhe conferem legitimidade. Para Foucualt, o arquivo permite pensar as práticas discursivas de uma sociedade.
[3] A expressão interpretação ideológica designa o processo pelo qual a ideologia age e funciona de modo a ‘recrutar’ sujeitos entre os indivíduos. Trata-se de um processo que transforma indivíduos em sujeitos. Na condição de sujeitos, os indivíduos se submetem ao Sujeito (sujeito-Ideologia). A distinção entre sujeito e Sujeito (com “S”) serve para destacar o caráter sobredeterminante da ideologia sobre os indivíduos já interpelados. Assim, a ideologia ou o Sujeito tem o poder de interpelar os indivíduos como sujeitos e de submetê-los às suas orientações valorativas. Por exemplo, a ideologia jurídica reza o respeito às leis e interpela os indivíduos como sujeitos (agentes) que devem seguir essa determinação.
[4] A formação ideológica constitui um conjunto complexo de atividades e representações, que não são nem individuais nem universais, mas que estão ligadas às posições de classes em conflito (Pêcheux & Fuchs 1990, p. 166. apud. Fernandes, 2013, p. 65). Os sentidos dependem do modo como as posições de sujeitos se inscrevem nas formações ideológicas.
[5] REALE, Giovanni. Filosofias helenísticas e Epicurismo. São Paulo: Loyola, 2011.
[6] Deve-se frisar que essa acusação já se inscreve noutra formação discursiva, a qual é determinada por uma formação ideológica diversa.
[7] O pré-construído é a marca da presença, num enunciado, de um discurso anterior. Por isso, esse discurso se opõe ao enunciado que é construído no momento da enunciação. Esse discurso consiste no “já-dito” e por nosso esquecimento sobre quem foi seu enunciador.
[8] O caráter polifônico de todo discurso se deixa facilmente apreender quando, ao longo do texto, Schopenhauer evoca também o nome de Berkeley, a quem foi primeiro a formular aquela verdade.