

Nietzsche e a acosmia
Gnosticismo e niilismo moderno[1]
Gnosticismo e niilismo moderno[1]
A resposta
nietzschiana ao problema da acosmia
Cumpre-nos, nesta exposição, dar a saber de que modo Nietzsche
resolveu o problema, prefigurado na tradição niilista do gnosticismo e
radicalizado no niilismo moderno, que consiste no estado de alienação do homem
em face do mundo. Essa alienação se expressa na forma de acosmia: o mundo é destituído de um horizonte
realizador do homem. O homem não encontra medida de realização de si no
universo. A acosmia revela a diluição da relação integrativa do homem com o
cosmo. O homem não se percebe mais como uma parte harmoniosamente relacionada
com o todo cósmico. Na tradição gnóstica, é a concepção grega do cosmo, em cujo
seio o homem encontrava seu justo lugar e que servia de modelo para a sua
conduta, que dá lugar à concepção de um mundo que é cárcere, um mundo onde não
é possível ao homem nem conhecimento de si nem de Deus.
Com vistas a tornar mais
clara a condição de estranhamento entre o homem e o mundo, segundo o modelo
hermenêutico gnóstico, impõe-se-nos apresentar, em linhas gerais, a dimensão
teológica da doutrina gnóstica. Embora tenham sido variadas as formas do
gnosticismo, tal como diversos foram os cristianismos primitivos, pode-se dizer
que os gnósticos acreditavam que
nós não fomos criados para viver neste mundo. Na verdade, nós fomos
aprisionados aqui pela divindade ignorante e inferior que o criou. Para escapar
a essa prisão terrena, os gnósticos propunham que devemos conhecer quem somos,
de onde viemos e o que nos tornamos. Segundo esses cristãos, nós viemos do
reino de Deus. Os grupos gnósticos apelavam para a necessidade do
autoconhecimento como um meio de alcançar a verdade. A salvação só se
alcançaria pelo conhecimento (gnose), que, no entanto, era secreto e
reservado a uma elite espiritual. A doutrina gnóstica se assenta sobre um
dualismo entre o ser humano e o mundo e um dualismo entre o mundo e Deus. A
primeira forma de dualismo acena com a ideia de que o homem não é mais uma
parte em harmonia com o todo, senão um prisioneiro numa totalidade que não mais
lhe pode servir de norma para seu comportamento. Na segunda forma de dualismo,
por sua vez, sublinha-se a ideia de que aquele mundo, que é a contraparte de
Deus, é o mundo material em que vivemos, mundo considerado um lugar mau,
manchado pela corrupção, pelo sofrimento, pois que criado por um Deus inferior
e ignorante. O Deus verdadeiro, revelado na pessoa de Cristo, é um Deus
transmundano, jamais revelado por esse mundo material corrompido. Trata-se de
um Deus desconhecido, porque não revelado pelo mundo; totalmente outro, porque
jamais reconhecido por analogia com o mundo. Não obstante, os gnósticos
acreditavam que detinham o conhecimento que lhes permitiria retornar ao reino
divino do qual provieram e no qual viverão na presença de Deus. Cristo era,
pois, o emissário divino desse reino situado no além-mundo.
Nesta breve apresentação da metafísica gnóstica, há um aspecto que nos
interessa sublinhar, dada a sua importância para a compreensão da resposta
nietzschiana ao problema supramencionado no limiar deste texto. O mundo
gnóstico é hostil e demonizado. É um mundo desdivinizado, do qual é necessário
se libertar. Esse mundo deve ser vencido, negado pela gnose que torna possível
o acesso a uma transcendência que se apresenta como o horizonte antagônico e de
salvação. Não menos importante é notar
que o niilismo gnóstico ainda se baseia na dicotomia metafísica entre o
sensível e o suprassensível; situação radicalmente diversa é a do niilismo
moderno. Esta forma de niilismo se caracteriza por uma condição desesperadora,
a qual se expressa por um profundo desamparo do homem em face de uma natureza
indiferente. O homem, em sua finitude e contingência, se vê só, pois que
somente ele, e não a natureza, se preocupa. No horizonte deste homem abandonado
na imensidão de um universo indiferente, não há senão a angustiante certeza de
sua morte inevitável e o temor que acompanha a consciência da ausência de
qualquer sentido objetivo para seus projetos.
Doravante, ocupar-nos-emos da apresentação da resposta nietzschiana ao
problema suposto tanto no niilismo gnóstico quanto no niilismo moderno.
Nietzsche é sobremaneira reconhecido como o filósofo que anunciou e tematizou o
acontecimento histórico da “morte de Deus”, bem como o filósofo que se dedicou
à elaboração de uma filosofia afirmadora da vida. Começaremos por elucidar o
significado do primeiro grande momento da resposta nietzschiana que é o do
anúncio da morte de Deus. Dados os limites desta exposição, limitar-nos-emos a
notar que o acontecimento da morte de Deus abre um novo horizonte hermenêutico
à luz do qual é possível ao homem existir segundo outros valores. A morte de
Deus significa a derrocada da metafísica tradicional, a qual, assentada na
dicotomia entre o sensível e o suprassensível, atribuía ao em-si um valor
absoluto e norteador da existência e do conhecimento humanos. Com a morte de
Deus, a existência humana perde seu esteio: descerra-se a impossibilidade de
ter acesso ao absoluto; o em-si não serve mais de fundamento para os valores
que, até então, dotavam de sentido a existência humana.
O acontecimento da morte de Deus, uma vez representando a dissolução da
normatividade dos conceitos metafísicos, os quais se associavam aos sentidos
existenciais, acentua o aspecto negativo do niilismo. No entanto, na medida em
que o acontecimento da morte de Deus desvela o vínculo entre metafísica e
constituição dos valores supremos, na medida em que nos patenteia que o em-si,
na história do Ocidente, sempre representou o horizonte a partir do qual a
existência humana se dotava de sentido, o niilismo que dele resulta passa a exibir
uma dimensão positiva, porquanto “descerra um novo horizonte de interpretação
do mundo”[2].
A transvaloração de todos os valores significa tanto a dissolução da metafísica
quanto a abertura de um novo horizonte hermenêutico que fornece um novo princípio
de refundamentação dos valores.
Com Nietzsche, cai por terra a dicotomia metafísica tradicional entre o
sensível e o suprassensível. Não só não faz mais sentido referir-se a uma
realidade suprassensível, como também à sua contraparte, o sensível, que derivava
seu sentido daquela dicotomia. Não sendo mais seccionada a vida, ela mesma se
revela como Vontade de Poder.
Escusa alongar-nos sobre a extensão da significatividade da Vontade de
Poder; uma descrição acurada dessa extensão escapa aos nossos propósitos.
Interessa-nos, contudo, salientar o modo como a Vontade de Poder dá corpo a uma
filosofia que visa à afirmação do curso dionisíaco da vida. Dizer que a
filosofia nietzschiana é uma filosofia da afirmação da vida é dizer que o que
se afirma é um modo específico do viver. A vida não é objeto de afirmação. Há
modos de conformação da vida que afirmam um modo específico do viver. Daí
resulta que o amor fati é amar o modo
como o mundo se destina, é amar o modo de ser do destinar-se da própria vida.
No tocante à Vontade de Poder, importa-nos distinguir nela dois
sentidos: a Vontade de Poder ascendente
e a Vontade de Poder decadente. Na
primeira, o devir é abundância de ser: quanto mais devir, mais ser. O devir é o
lugar da expansão da singularidade. Na segunda, por outro lado, o devir alija
das formações a unidade. Nietzsche pensou a vida como Vontade de Poder, a qual
se caracteriza pela pluralidade, pelo devir e pela unidade. A vida, enquanto
unidade, resulta dos elementos relacionais. Nietzsche não pensou em termos
dicotômicos a diversidade e a unidade, mas sustentou que a unidade não é
possível senão na diversidade: quanto mais diversidade produz a unidade, mais
plena é a vida. A unidade se perpetua por causa do devir. A Vontade de Poder
conjuga o uno com o plural.
Tendo em conta os dois sentidos da Vontade de Poder, discriminados no
parágrafo anterior, convém esclarecer que, por Vontade, Nietzsche entende o caráter autoafirmativo da força; e por
Poder, entende “fazer”, “produzir”.
Daí se segue que a Vontade de Poder é relação entre forças que produzem modos
de ser específicos, que Nietzsche chamará “tipos”. Um tipo é o modo de ser de
um arranjo vital. Todo modo de ser é singularizado; e a Vontade de Poder
assumirá sentidos distintos segundo o tipo vital a que ela se relaciona. Dois
tipos vitais designados por Nietzsche como Dionísio
e o Crucificado evidenciam modos
de configuração distintos da vida.
Dionísio, porque é a imagem religiosa da Vontade de Poder, que aparece a
um tipo de vida que é afirmador (o tipo pagão), torna possível transformar o
devir, o sofrimento, a aniquilação em mais ser. Nietzsche lembra que o pagão
afirma a vida no sofrimento; para ele, o sofrimento não é motivo para a
acusação da vida. Ao contrário, para o tipo crucificado, o sofrimento é motivo
para acusação da vida. Para o crucificado, a dor é funcional; o lugar do “para
quê” situa-se além da vida. Para o tipo dionisíaco, todavia, a vida é santa
demais para necessitar de uma outra instância (o em si, o suprassensível) que a
justifique. Para esse tipo, o sofrimento apresenta-se como promessa de mais
vida.
O tipo crucificado vê o devir como corrupção; o devir corrói a vida.
Para o tipo dionisíaco, por outro lado, o devir carreia fecundidade; o devir
gera abundância: quanto mais abundância mais intensificação de vida. Para o
tipo forte, o devir torna-se potencialização de ser. Se a vida é desfazimento,
para o tipo dionisíaco, a dor de se refazer serve para acrescentar algo em seu
ser. Dionísio torna possível a divinização da vida, pois evidencia o processo
de aparição do divino segundo o processo de acréscimo de ser. Dionísio redime a
finitude, ao passo que o Crucificado a acusa.
Um aspecto da Vontade de Poder que não se poderia silenciar é que ela,
na medida em que é relações de forças, revela também que essas forças
constituem quem somos. Quanto mais forças atuarem, mais a vida se torna coesa.
A unidade da Vontade é resultante do modo como se articulam as forças. Cada
força é, em si, uma Vontade de Poder; e o meu ser é formado por milhares de
forças, isto é, minha subjetividade é um amálgama de forças.
No que tange à relação eu-mundo,
Nietzsche nos faz entender que tudo é força e que as forças integram a
singularidade que eu sou. A Vontade de Poder permite reinterpretar a relação
entre o eu e o mundo, que, no horizonte hermenêutico gnóstico, era
caracterizada pela alienação do homem relativamente ao mundo, de modo tal, que
o eu se constitui com o mundo; o mundo integra o eu. O meu corpo é integrado
por muitas forças. É da interação das forças que se produz o corpo, que é
unidade vital, que é arranjo. Vida é, para Nietzsche, ganhar corpo, é
corporalizar. A unidade desse arranjo, que é a vida, não se realiza senão no
devir. O devir é o lugar de reintegração: não só do homem ao mundo, mas também
do ser no próprio devir.
Por fim, não se pode perder de vista que, na interpretação de Nietzsche,
todo Deus metafísico é produto de uma vida degenerada, ao mesmo tempo em que
fomenta uma vida degenerada. Disso não se segue que não possamos experimentar o
divino. A experiência do divino, no entanto, não supõe a oposição entre
temporalidade e eternidade. O divino nietzschiano, que é Dionísio, deve nos
reconduzir à temporalidade. E o lugar em que se dá Dionísio é o Eterno Retorno,
que é a reinscrição do eterno no tempo. No Eterno Retorno, tudo retorna
identicamente, e o instante se apresenta como o lugar da reconciliação da
temporalidade com a nossa plenitude. O instante é, assim, o lugar de
reintegração da totalidade temporal; é também o lugar de reintegração do que eu
sou, isto é, o meu passado com a minha tarefa, que é o futuro.
Poder-se-ia dizer, a título de conclusão, que o gnóstico, para
Nietzsche, se identificaria com o tipo decadente, que precisa negar o devir
para preservar a unidade. Para o gnóstico, o devir é corrupção. O gnosticismo
necessita do absoluto para manter o finito. Sua doutrina se sustenta sob o
postulado da desarticulação das partes com o todo (décadence): o homem, o mundo e Deus são grandezas contrárias.
Jamais há relação de proporcionalidade com o todo.
[1]
Trabalho elaborado como requisito para a aprovação na disciplina Filosofia da
Religião no curso de Filosofia da UERJ. Este texto foi avaliado com a nota
máxima.
[2] CABRAL,
Alexandre Marques. Niilismo e
Hierofania: Nietzsche, Heidegger e a tradição cristã – Nietzsche, cristianismo
e o deus não-cristão, vol. 1. Rio de Janeiro: Mauad, Faperj, 2014, p. 129.
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