A
morada da morte
“Como pensar a vida sem pensar a
morte? A felicidade, sem aceitar a infelicidade? A sabedoria, sem aceitar
sua loucura? (...)”
(p. 50)
(grifo meu)
Tão
logo me deparei com este trecho de Sponville, em Bom dia, angústia (2010), compreendi, por intuição iluminadora (em
inglês, insight), por que não me
acontece ponderar sobre a vida sem levar em conta o fato da morte. Pessoas há
que veem nessa minha disposição natural para o tratamento da morte em minha
fala ou escrita um sinal de dissabor, desespero ou de gosto pelo trágico. Mas
se esquecem de que a vida é trágica; a vida é decepcionante. Citarei as
palavras de Sponville, que nos ensina a esse respeito. Por ora, noto que, entre
aquelas pessoas que evitam pensar na morte ou me censuram quando esta palavra visita
meus pensamentos ou freqüenta a cavidade de minha boca, está minha namorada.
Ela não compreende e ninguém nunca compreendeu. E essa compreensão não conta
com o serviço da razão; nada tem de racional. É pura emoção; é pura sensibilidade!
Sensibilidade à fragilidade da vida, por certo. Um legado do limiar de minha
existência. A razão, em si, não leva-nos à compreensão da relação visceral
entre vida e morte. Provam-nos as palavras seguintes de Sponville, ao
contar-nos sobre o comportamento de seus amigos, particularmente os
inteligentes:
“Alguns de meus amigos, mesmo inteligentes, garantem-me que na morte
eles nunca pensam, ou algumas vezes por ano quando muito. Quanto a sentir o
sabor dela... Outros, como eu, pensam nela todos os dias, e quase a toda hora
de cada dia... Este gosto, é ele o que melhor conhecemos. Como os morangos ao
lado nos parecem exóticos! Medo? Não demais, parece-me. Mas esse gosto de nada
em todas as coisas, carregar essa sombra do perecer... Não se morre uma vez,
afinal de contas, para acabar. Morre-se todos os dias, a cada instante de cada
dia. A criança que eu era está morta no adulto que sou, aquele que eu era está
morto hoje, ou se sobrevivem em mim é apenas na medida em que lhes sobrevivo,
cada qual tranporta seu cadáver consigo, e jamais retornarão os amores
antigos... A vida é pungente porque
morre, porque não para de morrer, aqui, à nossa frente, em nós, e o tempo é
pungência, essa morte em nós que avança, que escava, que espera, que ameaça...
Deve-se pensar nela? Deve-se esquecê-la? Questão de sensibilidade, pelo que
creio, mais do que de doutrina”.
(p. 51)
É de
sensibilidade de que se trata, decerto, sempre que levamos em conta a morte.
Pensar ou não na sua essência, que não é senão a perda. Enfrentar a angústia na
serenidade do pensamento. Que é a angústia? O que manifesta o nada, ensinará
Kierkegaard. É ela um pré-sentimento, segundo Lacan, porque destituída de
conteúdo específico. É um lugar algum,
segundo Heidegger, porque revela o fato de que o que nos ameaça não está
presente. A angústia diante da ideia da morte ou mesmo da morte como fato
constatado (quando velamos o corpo de um defunto) torna o ausente ameaçador.
Mas um ausente sempre presente, em potência. Por isso, escrevi, certa vez, todo ser humano é grávido da morte. A
morte está latente em nós. E isso me faz lembrar uma passagem de Pessoa, que
observa “somos defuntos adiados”. Escreverá Sponville ainda “(...) viver é
morrer; e por isso a vida é ainda mais bela, porque traz em si a morte amarga”
(p. 53).
Preciso
citá-lo novamente, quiçá, assim, se interesse o leitor em ler seu livro. Uma
leitura inquietante e agradável!
“(...) A verdade? Qual verdade? A de viver e de morrer. É a mesma, pois
que apenas os viventes morrem, e pois que morrem todos. O raciocínio não muda
nada. Não se morre por acidente, doença, velhice. Morre-se por ser mortal,
morre-se por viver, por ter vivido. A morte, ou a angústia da morte, ou a
certeza da morte, é o próprio sabor da vida, seu amargor essencial.”.
(p. 49)
Morre-se,
porque é necessário morrer. Porque não há vida sem morte; e, para morrer, é
preciso antes ter vivido. O leitor experiente não concluirá que Sponville lança
um olhar pessimista sobre a existência humana. Não se engane com esse trecho.
Para o autor, a vida comanda, embora também a morte o faça. Para ele, a vida
basta; tem ela “gosto de felicidade”, sem negar-lhe o gosto de desespero.
Leiamos atentamente este trecho, a fim de que nos torne mais clara a visão do
autor:
“Que a vida seja decepcionante, sempre decepcionante, no fundo é isso
que ela nos ensina de mais claro. Não, por certo, que nela não haja alegrias e
prazeres. Mas não os que esperávamos ou não da mesma forma, ou que não
poderiam, quando estão presentes, dar-nos a felicidade que deles esperávamos quando não estavam presentes, quando nos
faltavam”.
(p. 54)
A vida
nos ensina esta dura lição: a decepção, a desilusão: “o amor decepciona. O
trabalho decepciona. A filosofia decepciona” (id.ibid.). Que nos resta senão
amar verdadeiramente sem crer no amor, sem divinizá-lo, aceitando-o como ele é,
como tudo o mais, decepcionante?
“Prefiro o alegre amargor do amor, do sofrimento, da desilusão, do
combate, vitórias e derrotas, da resistência, da lucidez, da vida em ato e em
verdade. Prefiro a realidade, e a dureza da realidade. Se a vida não
corresponde às nossas esperanças que nos enganam, desde o início (desde a
nostalgia primeira que as alimenta), e que a vida só possa desde então nos
desenganar... Gosto azedo da decepção, do qual nada cura senão o desespero, se
for possível, a sapidez muito acre e muito salutar do desespero. Toda esperança
é decepcionada, sempre, só existe felicidade inesperada.”.
(p. 55)
(grifo meu)
Felicidade
episódica! Poderíamos amar sem acreditar no amor? Apressar-nos-íamos em
responder negativamente. Necessário, contudo, se faz compreender a lógica de
Sponville. Escreve o autor: “E como amar verdadeiramente, enquanto se acredita
no amor, enquanto se faz dele uma religião, um absoluto, um sonho?” (id.ibid.).
É que só podemos amar verdadeiramente quando nos desfazemos das ilusões do
amor, quando abandonamos os ideais de amor, quando não mais o idealizamos!
Desfazer-se das ilusões que construímos sobre os objetos de desejo é a única forma
de viver para quem abandonou as ilusões da transcendência e as mentiras da
religião. Eis o que me parece inegável:
“Aquele que só amasse a felicidade não amaria a vida, e com isso se
proibiria de ser feliz. O erro é querer selecionar, como nas prateleiras do
real. A vida não é um supermercado, cujos clientes seríamos nós. O universo
nada tem para nos vender, e nada diferente para nos oferecer senão ele próprio
– nada diferente para oferecer senão tudo.”
(p. 56)
Preciso
ainda citar estas últimas palavras de Sponville, antes de levar a cabo este
texto; principalmente, porque é preciso que se dissipe qualquer dúvida sobre o
valor que o autor atribui ao amor na vida dos seres humanos. Não nos enganemos
com aquele tom desalentado com que parece encarar o amor. Sponville nos brinda
com estas belas palavras a seguir, trecho em que trata da solidão:
“Solidão da arte. Há também uma solidão da dor, e é a mesma. Solidão de
viver. Solidão de morrer. Solidão: finitude. A amizade não adianta nada, e,
além disso, temos tão poucos amigos... Gostaríamos de ser amados ainda mais, o
que confirma simplesmente que de amor, de puro amor, nós mesmos somos muito
pouco capazes. Solidão do amor, do amor imenso que esperamos, daquele – também
imenso por vezes – que desejaríamos dar...Mas o amor não se dá, nem se possui.
O amor é pura perda (...), e essa perda, essa puríssima perda de amar, é a
única riqueza, como que uma luz sobre o mundo, como que uma pobreza radiosa,
como que uma jóia de alegria e de doçura na infinita solidão dos viventes”.
(p. 54)
Como
negar que a vida é uma corrida em direção à morte? E como negar que, ao pensar
na morte, temos de lidar com a fragilidade da vida, mas também com o amor, a
solidão, o desejo de felicidade e a convivência com a decepção? Como escapar à
angústia? Evitando pensar sobre a morte? Para Kierkegaard, quanto menos
espírito, menos angústia. Mas a angústia está entranhada na existência, no seu
absurdo, para ser mais exato. Para Heidegger, as instituições sociais são o
modo que os homens encontraram para se defenderem contra a angústia. Mas, o que
é mesmo angústia? Uma forma de ansiedade superlativizada. Que é ansiedade? Um
estado emocional desagradável suscitado em nós por um perigo suposto. Ele não
está adiante. Angústia em face da morte não é senão o medo da morte. A
ansiedade está na raiz de todos os mecanismos de defesa do ego.
Por
que, então, pensar a morte? Porque é preciso enfrentá-la. É enfrentando-a na
solidão do pensamento que podemos viver a alegre amargura da vida. À assunção
de meu ateísmo seguiu-se o sentimento de libertação espiritual e intelectual
que compartilho com Sponville. Sem a bengala da ilusão religiosa, vivo a
fragilidade e fugacidade da vida. E a aceito, não sem pensá-la na sua relação
visceral com a morte, condição final a que estamos destinados desde o
nascimento. Entendidas estas palavras, o trecho abaixo não atormentará as
noites solitárias do leitor:
“A morte não é terrível. Passa-se ao sono e o mundo desaparece – se tudo
correr bem. Terrível pode ser a dor dos moribundos, terrível também a perda
sofrida pelos vivos quando morre uma pessoa amada. Não há cura conhecida. Somos
parte uns dos outros. Fantasias individuais e coletivas em torno da morte são
frequentemente assustadoras. Como resultado, muitas pessoas, especialmente ao
envelhecerem, vivem secreta ou abertamente em constante terror da morte. O
sofrimento causado por essas fantasias e pelo medo da morte que engendram pode
ser tão intenso quanto a dor física de um corpo em deterioração. Aplacar esses
terrores, opor-lhes a simples realidade de uma vida finita, é uma tarefa que
ainda temos que enfrentar”.
( A solidão dos moribundos, 2001: 76-77)