domingo, 26 de agosto de 2012

"Existe um pouco de mim que teimo em não esquecer" (BAR)

Este poema deve fazer-se acompanhar de um pequeno prólogo.  

Trata-se de um poema antigo, que remonta a um tempo em que eu ainda não havia descoberto meu espírito ateu. Mas ele estava lá adormecido. Note nos versos. Note a voz de Nietzsche, um filósofo que sempre me acompanhou, desde que li o "Anticristo".... a minha fé sempre foi muito quebradiça, como uma folha seca. Expeirmente-a pegá-la sem a devida leveza e verá o que lhe acontece... ela se quebra. 





 
De mim um pouco

Existe um pouco de mim que se perde nas entranhas das palavras...
... um pouco de mim que se dilui nas vísceras do tempo
Um pouco de mim que se derrama sobre o Céu ao encalço das estrelas
Aqueles diamantes que reluzem no breu ultrajante de minha ignorância

Existem resíduos de mim no coração de algumas moças...
Imagens translúcidas de um coração acostumado a fugas
Existe uma dose de mim no olhar dessas ilusões encarnadas
Uma dose entorpecente que as faz indiferentes ao meu sacrifício
Existem pedaços de mim espalhados no santuário feminil lascivo e cândido
Onde alguns homens se concentram...

Existem sombras de mim na existência intrigante de Deus...
E uma cruz em meu caminho, ao pé da qual dormem meus sonhos...
Sonhos crucificados, por altivos e imensos...
Existe uma voz em mim que não cala, uma voz enlouquecida...
A que indaga de Deus acerca das qualidades que o tornam soberano
Onipresente, Onisciente e Onipotente – tudo rima com ausente...
E a ausência de Deus é um pedaço de mim que se esvai...
... Que se esvai nos abismos de minha alma endoidecida...
Como disse o eminente filósofo alemão, “Deus está morto”
E a morte de Deus é a morte da eterna esperança humana:
A esperança de compreender e recriar o Amor.

Se Deus está morto – ou sempre esteve morto,
... Existem lembranças de mim enterradas em corações
Que pulsam numa cova funda...
Existe de mim um pouco que se dissipa em cada instante
E minha respiração denuncia minha morte
E estar vivo é simplesmente conseqüência do nascimento
E Deus, a existência, o infinito, o sonho e o Amor...
São fantasmas que nos assombram durante o sono da morte
Existe um eu de mim no outro de cada um...

Mas em mim só existe o vácuo de um cosmo imaginário...
E se lanço olhares sobre a bela jovem que me oferta atenção,
São todos furtivos, retraídos, silentes...
Porque existe de mim um pouco que é indigno, que é sofrível
Existe em mim a morte e a vida, num enlace anímico
E minha alma exala aromas indecifráveis, incompreensíveis, imperceptíveis
... Aromas de um túmulo de vida
E no útero da morte jaz a visceral razão para viver:
O Amor sempre esteve antes do homem: é uma ausência que o preenche,
Existe de mim poeiras de uma plenitude indizível do amor,
E este Amor nunca nascera, foi abortado no ventre dos Céus;
E minha alma é um aborto de um Deus que é morto.

De mim existem palavras amordaçadas, vozes acuadas... sobreviventes
Da lança do destino...
Existe de mim um pouco que não me suporta
Ou que me ama me agredindo...
E me quer vivo.

(BAR)

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

pensamentos erráticos


                               


                                  Internato lírico

E o céu veste seu manto negro novamente. Ignoro se há estrelas difusas pelo céu. Este quarto em que me encontro mantém o movimento da vida a distância. Hoje foi mais um dia em que fiquei internado em mim, sem, contudo, poder contar com a assistência médica. Sou um interno  na companhia dos livros. Ainda não fui capaz de mensurar a gravidade disso. Há de haver algum malefício em entregar-se demais aos livros. A televisão só me ocupa nos pequenos intervalos entre uma leitura e outra, tempo em que me permito desafogar-me. Porque a leitura, se levada seriamente, convoca-nos à imersão psicológica, emocional e intelectual. Alguns livros me tumultuam a alma; outros mais me assombram. Tantos e tantos me extasiam; outros ainda me seduzem. Por vezes, um trecho me captura o espírito de tal modo que pressinto algo de grandioso e óbvio demais para ser notado. E de fato não o é.
Todos os meus livros são marcados com riscos do grafite de minha lapiseira. Longos trechos sublinhados ocupam páginas inteiras. Também costumo acomodar algumas palavras ou frases junto aos parágrafos. Normalmente, reescrevo uma frase que me chama atenção; outras vezes, assinalo minha anuência ou divergência, como se o autor pudesse sabê-lo.
Com a mesma seriedade e dedicação com que me envolvo na leitura, derramo-me na confecção de meus textos, se bem que, mesmo os tendo lido mais de uma vez, ainda encontro uma série de inconsistências. Por vezes, noto alguns equívocos. Um blog permite que possamos modificar o texto original. Quando percebo um torneio frasal mal formulado, apresso-me em consertá-lo. Se percebo uma palavra mal avizinhada, trato de bani-la, pondo-lhe no lugar outra que assente melhor e não gere conflitos. A semântica é uma senhora idosa que não suporta intrigas. É preciso respeitá-la. Devem-se evitar os abusos, os desvios.
Gosto de pensar a escrita como um artesanato, porque demanda trabalho manual guiado pelo intelecto; mas não só, evidentemente. Também porque demanda cuidado, atenção, paciência, treinamento e é sempre passível de aperfeiçoamento. Todo texto é um tecido (aliás, a palavra “texto” do latim “texere”, significa, originalmente, ‘tecer’). Tanto o texto quanto o tecido constitui-se de uma estrutura: no caso do texto, uma estruturação de unidades linguísticas; no caso do tecido, uma estruturação de fios (de algodão, lã, etc.). Normalmente, pensamos em texto como um todo demasiado complexo, constituído pelo encadeamento de muitos enunciados. Mas um único enunciado é um texto, desde que produzido com uma função comunicacional reconhecível e num dado contexto de interação. Esse enunciado ou texto pode ser apenas uma única palavra, como a palavra “cuidado”, produzida com entonação ascendente por alguém que alerta outra pessoa de um perigo atual ou iminente. A interjeição “ai!” é também um texto, quando produzida por alguém cujo pé foi pisado ou cujo dedo foi involuntariamente martelado, enquanto pregava um prego.
As melhores lembranças que tenho da sala de aula são aquelas em que me via trabalhando com a leitura. E me esforçava por fazer falar meus alunos, depois que eles liam algum texto que havia proposto. Frustrava-me algumas vezes, porque o silêncio inicial era bastante resistente às palavras; não o suficiente para me fazer esmorecer. A paixão me guiava o debate. Quando acabava a aula e já tendo notado no semblante dos alunos a expressão de satisfação de quem ficou seduzido, deixava a sala certo de que a felicidade estará sempre ao meu alcance. Regozijo-me com a docência. Deixava a sala com a certeza de que ensinar é minha vocação. E aprender continuamente é um privilégio que conquistei quando deixei as carteiras universitárias licenciado nas Letras. Letras de que são feitos os livros; palavras puxando palavras formando cadeias de mais e mais palavras que se vão acumulando na alma para provocar a magia... a magia do saber.



quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Aprender a viver








Ontem conversávamos sobre o ser ateu e você me contava de sua impaciência com pessoas que insistem em importuná-la, tentando  dissuadi-la de sua postura intelectual em face da existência. Querem fazê-la dobrar-se diante de uma verdade inabalável, indiscutível, insuspeitável e absoluta. Elas se cuidam porta-vozes da verdade atemporal ou eterna, que provém de um Ser transcendente ao qual a inteligência humana deve se submeter. Eis que lhes apresentamos, em confronto, a filosofia – ou, melhor seria, a atitude filosófica. A filósofa brasileira Marilena Chauí a define como uma recusa a aceitar o senso-comum, as crenças, opiniões e valores correntes da vida cotidiana, que se nos são apresentados como estabelecidos e inquestionáveis. A esse aspecto negativo na definição do termo, Chauí acrescenta um aspecto positivo, a saber, o fato de a atitude filosófica ser uma interrogação sobre o que são as coisas, os fatos, as ideias, os valores, sobre quem somos nós. Também – ensinará a filósofa – a atitude filosófica encerra, além da pergunta “o que é?”, as perguntas “por que é?, “como é?. E eu acrescentaria o “para que é?”. Em suma, o que apresentamos a essas pessoas que vivem confortavelmente no mundo, no colo de sua “verdade” salvífica é a capacidade legitimamente humana de questionar, de duvidar.
Durante nossa conversa, eu lhe contei de minha experiência recente quando me vi envolvido num debate intelectualmente árduo sobre Deus e a descrença nele com pessoas para as quais os livros são permanentemente um estranho. Em tais circunstâncias, argumentar torna-se uma tarefa de Sísifo. E você bem o sabe, amiga. Por isso, antes de dar-se o incômodo de defender suas posições, melhor será interrogar seu interlocutor sobre quantos e quais livros já leu. Do contrário, é como arar terras inférteis. Um debate só prospera quando há mentes que o impulsionem; em face de pessoas cujos espíritos parecem estar atrofiados ou paralisados, o debate, se não se torna impossível, torna-se, certamente, improdutivo.
Vou direto ao assunto deste texto. Antes, porém, preciso lembrá-la de que também lhe disse que me tornei ateu não porque meu nascimento me legara certa dose de sofrimento (do qual não tenho remota lembrança), mas porque descobri a filosofia. E essa descoberta exerceu um efeito psicológico em mim à guisa de uma Iluminação (intelectual). A filosofia me permitiu a revelação, nada semelhante à suposta revelação de Deus. Trata-se de uma revelação tangível, visceral, que me lançou uma lucidez sobre alma, ajudando-me a viver melhor. Não me precipito em afirmar que ela foi responsável por me desenterrar da cova da depressão onde eu jazia  ou - se preferir outra imagem que exprime bem o sofrimento que acomete uma pessoa deprimida – por me resgatar das regiões abissais onde eu estava me afogando.
Hoje, há pouco, encontrei num capítulo de um livro do filósofo e ex-ministro da França Luc Ferry uma exposição clara e didática (porque, segundo o próprio autor, destinada a leitores que pouco sabem de filosofia) sobre o lugar da filosofia na vida do ser humano. Lendo o texto, encontrei nele as razões por que a filosofia abriu-me o caminho de minha salvação. Em tempo, você verá com que sentido emprego esta palavra. Não se trata, evidentemente, de uma salvação no sentido que lhe dá a religião, porque ela não é suspeita ou incrível; ao contrário, ela pode ser bastante crível, porque tangível, porque real.
Espero que eu consiga não só dar a saber a você e aos possíveis leitores que se dispuserem a acompanhar-me na leitura destas linhas as razões pelas quais a filosofia provocou-me um terremoto nas estruturas cognitivas de minha mente, libertando-me dos esquemas rigorosos e herméticos com que eu, antes, ainda psicologicamente dependente da muleta religiosa, interpretava a realidade e vivia a vida, como também lhe estimule (e nos leitores) o irresistível interesse em ler o livro de Luc Ferry. Meu propósito é também compartilhar leitura, hábito que não abandono e que cuido seja humanamente profícuo. É quando se me insufla o espírito docente que me incita a aprender mais quando me envolvo em atividades que promovem o saber. Aprender em conjunto, aprender compartilhando... é disso que se trata.
O livro de Luc Ferry cujo primeiro capítulo há pouco li e que me orientará as reflexões que doravante apresentarei é Aprender a viver – filosofia para os novos tempos (2010). O primeiro capítulo intitula-se de O que é a filosofia?. Nele, o autor procurará ensinar ao leitor incipiente em filosofia ou que quase nada dela sabe, o que é filosofia. Definir filosofia é já um grande e primeiro desafio para qualquer especialista na área e o autor o reconhece desde o início. É preciso, de antemão, suspeitar da validade do modo como modernamente a filosofia vem sendo definida, que, segundo o autor, é um modo reducionista. Nas palavras de Ferry:


“Uma das principais extravagâncias do período contemporâneo é reduzir a filosofia a uma simples “reflexão crítica” ou ainda a uma “teoria da argumentação”. A reflexão e a argumentação são, sem dúvida alguma, atividades altamente apreciáveis. É verdade que são mesmo indispensáveis à formação dos bons cidadãos, capazes de participar com alguma autonomia da vida da cidade. Mas trata-se aí apenas de meios para outros fins diferentes da filosofia – pois esta não é nem instrumento político nem muleta da moral”.
(p. 20)

O filósofo não nega que “reflexão crítica” e “um modo de argumentar” sejam partes indispensáveis a todo empreendimento filosófico. Melhor dizendo, é próprio da filosofia ser uma atividade de pensamento, que visa à reflexão crítica e que se fundamenta numa argumentação rigorosa. No entanto, segundo Ferry, - e isso ficará evidente adiante – não consistem essas etapas o cerne da filosofia, não são elas que a definem como um campo do saber específico. O que distingue a filosofia de outros campos do saber? Alguns dirão que são as questões que levanta. A filosofia ocupa-se com os fundamentos da realidade, visa a atingir o universal, representa ela um esforço para chegar às raízes dos problemas. Na filosofia, busca-se atingir a totalidade do sentido. Luc Ferry é mais claro, nesse tocante, aos nos patentear, afinal, a questão fundamental sobre a qual se constroem os diferentes sistemas filosóficos. Leiamos este passo:

“Ela [a filosofia] parte de uma consideração muito simples, mas na qual se encontra latente a interrogação central de toda filosofia: o ser humano, diferentemente de Deus – se é que ele existe – é mortal ou, para falar como os filósofos, é um “ser finito”, limitado no espaço e no tempo. Mas, diferentemente dos animais é o único que tem consciência de seus limites. Ele sabe que vai morrer e que seus próximos, aqueles a quem ama também. Ele não pode, portanto, evitar interrogar-se sobre essa situação que, a priori, é inquietante, até mesmo absurda e insuportável. Certamente é por isso que ele se volta de imediato para as religiões que lhe prometem a “salvação”.
(p. 21)

O homem está no centro das preocupações filosóficas. É a condição humana que demanda reflexão filosófica. Segundo Ferry, “a equação “mortalidade + consciência de ser mortal” é um coquetel que carrega em germe a fonte de todas as interrogações filosóficas” (p. 33).
Por limitações de tempo e espaço, preciso me ater ao que considero essencial no texto de Ferry e que melhor esclarecerá o benefício intelectual e psicológico que me acarretaram os estudos filosóficos. É na seção A finitude humana e a questão da salvação que seu discurso se reveste de um teor intelectualmente robusto.
Para Ferry, tanto quanto para muitos filósofos antigos, a filosofia ajuda-nos a viver melhor, a despeito de nossas angústias, a despeito da consciência de nossa finitude. Ela nos convoca a buscar uma “salvação” por nós mesmos, para o que sugere que façamos bom uso da razão. Assim, o autor determinará o lugar da filosofia em cotejo com o da religião. Ele definirá a filosofia em relação à religião. Para tanto, reconhecerá, de início, o que se segue:


“A filosofia – todas as filosofias, por mais divergentes que às vezes sejam nas respostas que tentam oferecer – promete também que podemos escapar dos medos primitivos. Ela tem, pois, em comum com as religiões, pelo menos na origem, a convicção de que a angústia impede de viver bem, ela nos impede não apenas de ser felizes, mas também de ser livres. Temos aí, como eu já lhe havia sugerido com alguns exemplos, um tema onipresente entre os primeiros filósofos gregos: não se pode pensar ou agir livremente quando se está paralisado pela surda inquietação que gera, mesmo quando se tornou inconsciente, o temor do irreversível. Trata-se, pois, de chamar os homens à “salvação”.”
(p. 29)

A “salvação”  oferecida pela filosofia é intransferível, ou seja, não é dependente de um Outro que nos transcende, mas depende de nossa própria iniciativa e de nosso esforço racional. Antes de trazer à consciência do leitor passagens extremamente importantes para a fundamentação de meus propósitos, preciso fazer ver que a filosofia, quando situada em oposição à religião, acaba por ser desprestigiada na perspectiva teológica cristã. Assim é que, para muitos teólogos – exceto para os que se esforçaram por tornar a filosofia uma adenda da teologia, como São Tomás e Santo Agostinho – a filosofia se confunde com o diabólico, justamente pela ruptura que faz com o discurso dogmático que pretende subsidiar a fé. Observa Ferry que a palavra diabo significa, em grego, “aquele que separa”. Mas não se trata de qualquer separação; trata-se da separação da relação vertical do homem com Deus.


“Para um teólogo dogmático, a filosofia – salvo, é claro, se ela se submete completamente à religião e se põe inteiramente a seu serviço (mas então ela não é mais verdadeiramente filosofia.) – é por excelência obra do diabo, pois, ao instigar o homem a se voltar contra as crenças para fazer uso da razão, do espírito crítico, ela o arrasta insensivelmente para o terreno da dúvida, que é o primeiro passo para longe da tutela divina”.

(pp. 28-29)

Esse trecho de Ferry merece alguma consideração. Quero destacar o que se segue: 1o) ao contrário do que nos sugere a imagística teológica, construída com base na bíblia, uma leitura secularista nos permitiria dizer que o diabo não é aquele que desvia o homem do caminho que leva a Deus, mas aquele que esclarece o homem, instiga-o a lançar mão do expediente da dúvida, do questionamento (ora, nada mais humano do que duvidar, do que desejar saber; 2o) Ao ensinar a confiança cega (fé) como virtude, a religião não abre concessão à dúvida. É preciso resistir às tentações do diabo, que quer inculcar-nos a dúvida e conservar-nos na obediência inquestionável a Deus.


“Por não acreditar num Deus salvador, o filósofo é antes de tudo aquele que pensa que  se conhecemos o mundo, compreendendo a nós mesmos e compreendendo os outros, tanto quanto nossa inteligência o permite, vamos conseguir, pela lucidez e não por uma fé cega, vencer nossos medos”.

(p. 24)


Não é custoso concluir pela incompatibilidade entre as duas atitudes em face da realidade: a religiosa e a filosófica. Trata-se de duas vias que tomam direções opostas, por vezes, conflitantes: uma propõe-nos a salvação pela fé; a outra, a “salvação” pela razão, que culmina na sabedoria, estado a que chegamos quando conseguimos viver mais felizes e livres, porque reconciliado com a vida, porque não mais perturbado com a inevitabilidade da morte, nem confortáveis na esperança de que se cumpra uma promessa cujo único fiador é um Outro que nos transcende e de cuja existência não podemos ter certeza.
Ferry nos lança a seguinte questão: “Toda filosofia estaria destinada a ser ateia?” (p. 30), ao que ele não apresenta uma resposta, pelo menos não diretamente. Preferirá, contudo, no decorrer do texto, nos mostrar que a filosofia é preferível porque somente ela nos abre o caminho da liberdade de pensamento e o caminho  para a lucidez. Assim, escreverá:


“Filosofar, mais que acreditar, é, no fundo, - pelo menos do ponto de vista dos filósofos – já que o dos crentes é, com certeza, diferente -, preferir a lucidez ao conforto, a liberdade à fé. Trata-se, em certo sentido, é verdade, de “salvar a pele”, mas não a qualquer preço”.

(p. 31)


Por que não se submeter a uma doutrina de salvação cujo único caminho é Deus? Outra questão que nos levanta Ferry. E a resposta dada pelo filósofo merece ser aqui reproduzida na íntegra. Ele nos apresenta duas razões, a primeira das quais lemos a seguir:

“Primeiramente – e antes de tudo – porque a promessa que as religiões nos fazem para acalmar as angústias da morte, a saber, aquela segundo a qual somos imortais e vamos reencontrar depois da morte biológica os que amamos, é, como se diz, boa demais para ser verdadeira. Boa demais e muito pouco crível a imagem de um Deus que seria como um pai para os filhos. Como conciliá-la com a insuportável repetição dos massacres e das desgraças que se abatem sobre a humanidade: que pai deixaria seus filhos no inferno de Auschwitz, de Ruanda, do Camboja? Um crente dirá, sem dúvida, que é o preço da liberdade, que Deus fez os homens livres e que o mal lhes deve ser imputado. O que dizer, porém, dos inocentes? O que dizer dos milhares de criancinhas martirizadas durante esse crimes ignóbeis contra a humanidade? Um filósofo acaba duvidando de que as respostas religiosas bastam. De alguma forma, ele acaba sempre pensando que a crença em Deus, que surge como por reação à guisa de consolo, nos faz talvez perder mais em lucidez do que ganhar em serenidade. Ele respeita os crentes, é claro. Ele não supõe necessariamente que eles estejam errados, que sua fé seja absurda, ainda menos que a existência de Deus seja certa. Como, verdade seja dita, se poderia provar que Deus não existe? (...)”.

(pp.30-31)


Não sou tão condescendente quanto o autor ao nos fazer acreditar que os filósofos não podem supor que os crentes estão errados. Alguns parecem supor. Também não entendo por que seria necessário provar a inexistência de Deus tanto quanto seria a inexistência de duende, fadas e Papai Noel. Na falta de evidências para a existência de tais seres, não vemos razão para acreditar nela. E eu diria que se a questão da existência x inexistência de Deus fosse investigada em termos de probabilidade, não tenho dúvidas de que a argumentação orientada para a maior probabilidade da inexistência sobrepujaria o esforço argumentativo em sentido contrário. Para mim, “provar a inexistência de Deus” é um falso problema. Ninguém se insurge contra quem não se dá o trabalho de tentar provar a inexistência de Papai Noel. O problema, eu o reconheço, é que a ideia de Deus é um estratagema com que uma poderosa instituição ideológica milenar tenta dar por encerrado os dois maiores problemas humanos: o do sentido da vida e o da morte. Enquanto permanecer o mistério, Deus continuará a ser a única resposta para milhões de pessoas incapazes de se livrar dos grilhões psicológicos da religião para experimentar um dos maiores benefícios da filosofia – a autonomia de pensar, porque a resposta que conforta, que consola, a despeito do sofrimento, a despeito da injustiça, a despeito dos argumentos que possamos oferecer em favor da inexistência de um ser de tal magnitude. Não é aqui o lugar para levar adiante meu esforço argumentativo nessa matéria.
Em favor da filosofia, Ferry acrescenta:

“O bem-estar não é o único ideal sobre a Terra. A liberdade também é um ideal. E se a religião acalma as angústias, fazendo da morte uma ilusão, corre o risco de fazê-lo ao preço da liberdade de pensamento. Porque, de certa forma, ela sempre exige em troca da serenidade que pretende oferecer que, num momento ou noutro, a razão seja abandonada para dar lugar a fé, que se ponha termo ao espírito crítico para que se aceite acreditar. Ela quer que sejamos, diante de Deus, como crianças, não adultos em quem ela não vê, afinal, senão arrogantes raciocinadores”.

(p. 31)

Por fim, é forçoso  concluir que escolher pela filosofia é um ato que requer coragem, justamente porque a filosofia, ao contrário da religião, não promete aquilo de cujo cumprimento não pode ter certeza. Religiosos ou não, filósofos ou não, sabemos que vamos morrer. Sabemos que nossa vida está desde o nascimento limitada a certa duração. Nenhum de nós, religioso ou não, filósofo ou não, sabe o que há depois da morte. Todos sabemos, contudo, que a morte é o retorno ao inorgânico. Sabemos disso ao ver um cadáver. A morte põe fim à vida consciente. Sabemos que os que morreram não retornam mais à vida. Sabemos que as pessoas falecidas que amamos não poderão mais estar conosco. Assim, o filósofo lhe propõe: em face da inevitabilidade da morte e conscientes de nossa finitude, vamos enfrentá-la pelo exercício da reflexão que leva a uma compreensão mais clara e verdadeira dessa condição, a fim de que possamos alcançar um estado de sabedoria, indispensável para viver feliz e livremente. Ao contrário, o religioso propõe: não se preocupe, a morte é uma ilusão, toda pessoa que viver segundo a vontade de Deus terá o benefício da salvação, ou seja, da imortalidade.
A morte nunca me atormentou. Não tenho medo de morrer. Quiçá, esse destemor encontre raízes na aurora de minha existência, já que meu nascimento manteve um longo namoro com a morte. Encontrei na filosofia uma forma poderosa de enfrentar o sofrimento, mais do que nunca dantes encontrara na religião, que aliás nos ensina a suportá-lo com resignação. Sofrer, por vezes, é inevitável. Muitos sofrem (pessoas e animais). A vida nos dá testemunho do sofrimento todos os dias. Mas não posso aceitar a crença de que sofrer é necessário. Sofrer não o é. E é claro que buscamos o prazer e desejamos não sofrer. Ao contrário do que nos sugere a teologia cristã, que personifica em Jesus a virtude do sofrimento, um modelo a ser seguido  para todo crente que sofre, aquele que se beneficia da filosofia começa a recusar a ideia de que sacrificar-se, como ocorrera com o “cordeiro de Deus”, em favor de uma ilusão, possa ser considerado uma virtude. No tocante ao martírio sobre o qual se estabeleceu a Igreja, Marcelo Da Luz nos ensina:


"A Igreja nasceu sob o estigma do martírio de Jesus. Do alto da cruz, o Cristo personifica a reivindicação da religião sobre os corpos dos fiéis. Desde o princípio, os máximos valores cristãos - o perdão dos pecados e a vida eterna - foram associados à autoimulação. A aceitação do sofrimento enquanto exigência ao cumprimento dos insondáveis planos divinos conduz o crente a desvalorização de si e consequente resignação à dor.
(...)"

(Onde a Religião Termina: 2011, p. 145)


Fiquemos, então, com este trecho de Ferry, com o qual ponho termo a este texto, convencido de que a filosofia não só pavimentou o caminho que me levou a aderir ao ateísmo, mas também, sobretudo, me permitiu a reconciliação com a vida e com o humano em mim.


“Se a filosofia, assim como as religiões, encontra sua fonte mais profunda numa reflexão sobre a “finitude” humana, no fato de que para nós, mortais, o tempo é realmente contado e de que somos os únicos seres neste mundo a ter disso plena consciência, então, é evidente que a questão de saber o que vamos fazer da duração limitada não pode ser escamoteada”.

(p. 33)

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

"Minha alma é um embrulho difícil de abrir" (BAR)


 

 
                                                               (Des)embrulhando-se




Em mim, aprisionado um sentir-se deslocado. A serenidade enjaulada na presença do desespero. Trago na alma algo desesperante que asfixio para sobreviver. Há dias se me aconchegou a vacilação e o temor. ‘É preciso escolher!’ Brada-me a sensatez. E o sentir-se só aperta-me mais o seio do ser. A ansiedade me inunda. Em vão, varro a angústia para debaixo do entulho recalcado. Apenas as pessoas psicologicamente densas precisam de psiquiatra. Os imbecis não necessitam, nem aqueles que raramente se ocupam de si mesmos. Estes vivem segundo as flutuações rasas do humor e costumam ver sol na iminência de uma tempestade. Tenho-me esforçado por sustentar a conciliação entre mim e o desejo. Em mim, reside um profundo desentendimento entre o existir e o desejo. Há tempo matei a esperança em favor da autonomia. Deleguei à ação o poder de autoridade sobre minha inclinação à apatia. Os clichês do amor já se me tornaram intoleráveis. Alieno de mim todos eles. Precisei vestir esta couraça da indiferença por força das circunstâncias adversas ou das escolhas precipitadas – o que dá no mesmo, quando consideradas as consequências. Viver é equilibrar-se na alternância entre os aclives e declives do espírito. Toda constância de alma é, para mim, suspeita. É a forma mais robusta de neurose. Os psicanalistas o confirmam.


“Dizem os psicanalistas que aqueles que estão “bem-demais-em-sua-pele” podem estar em estado de perigo, pois a normalidade elevada ao plano de um ideal não é senão a loucura bem-compensada, que poderá explodir a qualquer momento que houver descompensação”.

(p. 14)

(O que é neurose, São Paulo: Ed. Brasiliense, 2004)


Esse enfrentamento íntimo que travo entre mim e o comigo é que produz em minha alma o gosto acre de desconforto. Eu mesmo me incomodo.

 “Muitas vezes são os homens retos e puros, espontâneos e autênticos, corajosos, criativos e rebeldes que são considerados “anormais” por uma sociedade que, no fundo, teme as mudanças que eles possam provocar”.

(p. 15)

(O que é neurose, São Paulo: Ed. Brasiliense, 2004)

Lamento ser o leitor inapto para a compreensão da profundidade semântica deste texto que põe a descoberto o abismo de minha emoção. E não o culpo porque o íntimo, sempre inescrutável, é inapreensível pela linguagem ordinária. Ficar-lhe-á apenas a sensação de meia compreensão – o que me é bastante.

sábado, 18 de agosto de 2012

ser feliz apesar da vida...








A essência do amor


A vida pesa-me na alma
Como um pedregulho
Arranha-me o corpo
Como uma lixa
E mesmo assim a desejo
Mais e mais
Como os apaixonados
Um ao outro

(BAR)

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

"E de repente este EU saltou-me da consciência" (BAR)


                 

                       Questionamentos viscerais
           

tempo aguardo que me irrompa da consciência uma avalanche de pensamentos portentosos. Quem me dera fosse surpreendido por uma enchente de ideias efusivas, que lançassem meu espírito às páginas de minhas inquietudes! Nada semelhante me acontece. Tão só a insistência em escrever segundo as flutuações da alma. Meu esforço é prender a atenção do leitor nestas linhas o tempo necessário para que ele se convença de que não deixará estas linhas aborrecido.
Darei um tom intimista a este texto e desatarei a escrever sobre minhas impressões, percepções, sensações... Começarei então... Eu sou atormentado por pensamentos, especialmente quando vou me deitar para dormir... por vezes, acordo de madrugada e eles não me deixam retornar aos braços de Morfeu...Eles me sobrevêm à alma com a força de uma enxurrada... e eu, por vezes, me afogo... E não são pensamentos banais, que nos lembram os afazeres do dia seguinte... são pensamentos transcendentes, destes que tocam na ferida da angústia, que lançam questões infindáveis sobre a existência... De repente, o assombro! Eu estava ali deitado, Eu mesmo, essa pessoa única (como o é cada um de nós) e o estar vivo inundando-me. Eu, que sou plena consciência de mim e do que me cerca. Um instante “em que a qualidade de sentir assoma como um lampejo, e é como se nossa consciência e o universo inteiro não fossem, naquele lapso de instante, senão uma pura qualidade do sentir” (O que é semiótica, p. 70). A Vida que excede nossa compressão, toda ela inundada em mim e minha consciência se encheu dela. Desculpe-me leitor porque não conseguirei dar à tinta a dimensão exata desse sentir. Só sei dizer que me assombrou a possibilidade de a morte não me permitir experimentar a vida novamente. Ao contrário do que advoga certa corrente de materialistas dogmáticos, não tenho certeza de que a morte é pura e simplesmente um retorno ao não-ser. Eu não posso ser tão categórico assim, a despeito de eu ser ateu. A diferença, nesse tocante, entre mim e um religioso é que eu me contento com o Mistério, não tenho necessidade de alimentar esperança e me apoiar na sedução da fantasia.
É verdade que, muitas vezes, a fantasia é preferível à realidade, desde que a fantasia seja recompensadora. Mas a fantasia nega a realidade; a realidade comanda; e a recompensa da fantasia, se houver, é intangível e enganosa..
Assisto à novela Amor eterno Amor e me agrado do amor transexistencial das personagens Rodrigo e Miriam, que noutra vida se chamavam Salvador e Alice. Pudera cada um de nós ter um amor predestinado! Que lindo, exclama o coração! O espiritismo (ou kardecismo, como ficou conhecido entre nós) ao menos tenta oferecer uma justificativa para o sofrimento que atinge as pessoas, muito embora sua teologia continue a ser calcada na teologia cristã. A mensagem do Cristo e a representação do Deus cristão permanecem a mesma, embora a identidade do Messias seja outra; na teologia espírita, Jesus era um médium.
O não-crer não me impede de me maravilhar com a imaginação que nos leva a desejar que, no final, tudo seja justificado e “todos os justos viverão felizes por toda a eternidade” (eventualmente, retornando para prestar algum serviço a Deus). Os espíritos mais evoluídos não precisarão retornar (pelo menos, não sem sua vontade). Afinal, tal como na teologia cristã, no Espiritismo, o mundo também é um lugar de sofrimento. Na doutrina espírita, o mundo é um lugar de expiação. Estamos aqui para expiar nossas faltas de existências anteriores. O sofrimento do inocente – da criança que acabara de nascer, imaculada – é justo, porque o espírito nela encarnado cometeu injustiças, crimes, faltas em outra existência, muito embora ela não tenha consciência disso, o que é uma dificuldade para a aceitação dessa doutrina. Condenar quem sequer tem consciência das razões por que está sendo punido? Como pode?
Tenho, contudo, de reconhecer entre os espíritas um avanço: eles não pretendem evangelizar ninguém. Não fazem proselitismo.
As pessoas, em geral, se esquivam de pensar sobre tudo isso, sobre o estar aí, no mundo. Tendem a negar a morte, mesmo que inconscientemente. Triste a condição humana: somos conscientes de nossa finitude e nada podemos fazer para evitá-la. Que alternativa nos resta senão aceitar a morte e desejar mais vida? Porque é disso que se trata: religiosos ou não, cristãos, mulçumanos, judeus ou ateus, nós desejamos, de algum modo, experimentar a vida sem fim. Que cada existência seja um ciclo é o que desejamos, eu e você! O espiritismo nos ensina que cada nova existência nos impõe o esquecimento. Devemos esquecer a existência anterior enquanto existimos novamente, mas restituímos a lembrança de nossas vidas passadas quando desencarnamos e retornamos ao mundo dos espíritos. Com que propósito precisamos submeter-nos a uma série de encarnações? Para nos aproximar de Deus. É claro, é preciso haver um sentido no ter de retornar à Terra várias vezes. E  o que acontecerá quando alcançarmos a condição de espíritos puros, libertos das paixões terrenas? Não sabemos, uma vida tal é inimaginável; não havendo temporalidade, que nos sobra de consciência? Que nos resta para fazer? Pelo menos, não ficaríamos entediados, porque não haveria o tempo. Uma vida sem temporalidade é impensável para nós. Tente imaginá-la! Não conseguirá; sem tempo, não há ação, consciência, desejo... não há vida.  Parece que retornamos ao absurdo. A existência é absurda, já dizia Sartre. Existir transcende-nos a consciência. Sou apenas um produto biológico, resultante da fusão de um espermatozóide com um óvulo determinado? Poderia Eu não ter existido? Por que você, que me lê, nasceu em tal meio familiar e não em outro? Por que você tem gozado de uma vida confortável junto de pessoas que o/a amam, enquanto outros não gozam de semelhante privilégio? Por que seu nascimento foi ileso enquanto outras milhares de crianças nasceram sofrendo? Penso nos bebês que nascem com alguma doença congênita... Penso nos que não sobreviveram a ela? A explicação espírita para o fato de um bebê ou uma criança morrer prematuramente é que cumpriram o pouco que lhes restava para cumprir. É como se ainda lhes faltasse uma pequena etapa de sua expiação. Então, o espírito nasce para logo morrer. Podemos supor que as consequências para os pais possam ser terríveis, dolorosas... Mas um espírita encontraria nesse caso um propósito benévolo, porque, afinal, tudo provém de Deus e a ele retorna... Mesmo o sofrimento mais atroz faz parte do plano misterioso de Deus (talvez os pais da criança ainda precisassem sofrer por suas próprias faltas, porque, segundo essa lógica, sofrer edifica, fortalece, melhora). Assim pensam os cristãos: é necessário sofrer para crescer na fé. Felizmente, o homo sapiens, por mais estúpido que seja, criou a ciência para amenizar o sofrimento, para lutar contra ele. A medicina é a expressão da luta dos seres humanos contra o sofrimento e a favor da vida. Felizmente, quando sentimos dor sabemos precisar de um médico e não de um padre ou pastor.
Enquanto escrevo, ouço uma vizinha evangélica que vive a berrar com suas filhas... o alvo do destempero da cristã é sua filha mais nova agora... Parece que a igreja não tem contribuído para torná-la uma pessoa mais serena e paciente, uma mãe disposta a educar sem precisar recorrer a extremismos vociferantes...
De um lado, o Mistério; de outro a crença em Deus e todas as implicações dificultosas que ela envolve. Quando alargamos nosso olhar, tomamos consciência de que o perigo ronda-nos sobre a cabeça (o espaço abriga corpos que podem dizimar nosso planeta). E mesmo aqui encontramos uma série de perigos à vida. Não preciso elencá-los... Definitivamente, a natureza não é perfeita, o mundo nem sempre é tão hospitaleiro. Sempre podemos imaginar um mundo melhor...
Há tempo me apercebi de que a fé pode nos cegar para o mundo, ou melhor, para a compreensão de como o mundo realmente é. Dou apenas um exemplo disso. Os que, por razões religiosas, condenam o homossexualismo, porque simplesmente se trata de um comportamento contrário à vontade de Deus (que determinou (?) que todos sejam heterossexuais), ignora o fato de que práticas homossexuais são muito comuns entre outras espécies de animais também. Um fato biológico, uma evidência incontestável. Ou aceitamos que a evolução tenha programado certos organismos para a experiência sexual entre membros do mesmo sexo, ou os crentes devem repensar o que julgam saber sobre Deus, porque, afinal, Deus criou o mundo, inclusive animais propensos à prática homossexual. Parece que Deus não se importa muito com isso!
Fico pensando também quão difícil é sustentar um propósito divino quando nos damos conta de que existiram pessoas como Adolf Hitler, Mussolini e Ozama Bin Laden. Esses homens perpetraram atrocidade, causaram sofrimento a milhares de seres humanos. E Deus sabia, desde o nascimento deles, que eles se comportariam dessa forma, porque, afinal, Deus é onisciente. O Holocausto levou à morte 6 milhões de judeus (e os judeus creem-se o povo eleito de Deus). Já ouço o eco dos defensores do livre-arbítrio... eles sempre julgam a questão de modo simplista e incontroversa... Vejamos, então, como seria um diálogo entre Deus e Hitler, depois de morto:

- O que você fez? Como pode cometer tanto mal?
- Ora, o senhor me deu a liberdade de escolher entre o bem e o mal... O senhor não deveria saber que rumo eu tomaria... ?
- Sim, eu sabia desde sempre...
- Então, por que não evitou que eu fizesse tanto mal?
- Porque eu não posso coagi-lo... Você é livre...
- Bem, as coisas não são bem assim... lá embaixo não há liberdade absoluta...
Mas, em todo caso, apesar de sua ignorância, por que o senhor não fez nada para me impedir? Só por que não pode me coagir... Se o senhor tem poder ilimitado e é infinitamente bom, ao ver que um espírito criado pelo senhor mesmo cometia maldades, por que não interveio, pondo um fim a sua vida? Devo lembrar que o senhor me criou? O pessoal lá deseja um mundo melhor, alguns até se esforçam para sustentar a paz por um longo período, ainda que a guerra tenha atravessado a História desde os primórdios da humanidade... O senhor não tem contribuído para a realização daquele desejo, enviando para lá embaixo homens como eu, tão inclinados às paixões egoístas, megalomaníacas e tirânicas... Deveria caprichar mais...
- Pois é... não sei onde tenho estado com a cabeça...
- Deveria ter feito melhor.... Olha, lá embaixo, há muitos espíritos maléficos...
- E há também os bons e caridosos...
- Ah! Sim... é verdade... é preciso manter o equilíbrio... o bem e o mal... o senhor os criou, né? Para que os homens pudessem exercer sua liberdade...
- Agora, você deve ir para o lugar onde passará toda a eternidade: o Inferno!
- Tudo bem. Só me responde uma coisa: por que o Senhor, que é infinitamente bom e poderoso, não matou logo o diabo? Diz aí... vocês têm um pacto, né? Nunca entendi essa afinidade...

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

amores






Nossos amores

O tempo arrastou meus amores
para um fundo imperscrutável
Indiscerníveis entre tantas
as memórias que não somos
Assim devem ser os amores
Poeiras do tempo...

Amores descobrem amores
E o ciclo recomeça
O amor é nosso caminho
Apesar dos humores, dos dissabores
Apesar da vida que mata
Apesar do tempo impiedoso

Da velhice que degrada
Da morte a que estamos condenados
Dos homens e mulheres
Que outrora amaram
Itinerantes do amor eterno
Que sempre acaba

Afinal,
Como a vida.

(BAR)

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Um poema de outrora








Enlace Onírico

Oh! Amo as manhãs álgidas e cinéreas
Quando deito em teus cabelos camélias
E libo em teu regaço a ambrosia,
Ah! Beijar-te a boca, nua, eu podia.

De noite, teus olhos de ouro contemplava,
Recôndito impávido de meu lasso,
Sob lençóis alvos, na alcova, eu te chamava
Fazias-me dormir com teu afago.

Tu te levantavas, Encarnada Candura!
Teu doce olor a face minha perfumava,
Ao arrebol emprestava íntima ternura.

Chamaste-me, a voz serena me despertava
Ouvindo-te, do ventre onírico emergia
Ó beijar-te a boca tua não mais podia!


(BAR)

domingo, 5 de agosto de 2012

"O objetivo de viver é viver" (Sponville)


                  

                                O paradoxo da felicidade

Ainda é viva em mim a lembrança das aulas em que eu pude estimular meus alunos ao debate sobre a leitura de textos. Nessas ocasiões, regozijava-me! De certo modo, reexperiencio essa grande satisfação, sempre que componho meus textos e os divulgo aqui neste espaço.
Meu intento – como de costume – é convidar o leitor que me acompanha a ler mais – e a ler o livro A Mais Bela História da Felicidade: a recuperação da existência humana diante da desordem do mundo (2010), que reúne André Comte-Sponville, filósofo, Jean Delumeau, especialista em história das mentalidades religiosas e Arlette Farge, historiadora especializada no século XVIII. O livro se estrutura em entrevistas feitas aos estudiosos. Eu vou-me ocupar com a exposição da terceira parte da entrevista a André Comte-Sponville, intitulada de O paradoxo dos filósofos. O tema de todas as entrevistas é a felicidade. Sponville irá considerá-la na história da filosofia, desde os gregos até os modernos. A terceira parte é dedicada à reflexão sobre como o homem comum pode ser feliz e sobre o papel que a filosofia desempenha na experiência de felicidade.
Já tive a oportunidade de escrever sobre a felicidade, ocasião em que sustentei a tese de que a felicidade não pode limitar-se ao acúmulo de riqueza, tampouco pode ser pensada sem que consideremos a satisfação de condições básicas de sobrevivência. Não me limitarei a apresentar os argumentos do autor; esforçar-me-ei por me posicionar em face de sua argumentação, o que implica nem sempre estar de acordo com ele. Urge, contudo, dialogar com o autor, entender a perspectiva com que ele trata do tema. Lembro que Sponville é ateu, de modo que, como veremos, falar em ‘sentido da vida’ só faz realmente sentido quando abandonamos a ideia de transcendência e nos situamos no âmbito da imanência. Para ele, o sentido da vida é viver a vida. Em tempo, teremos a oportunidade de compreender melhor sua posição, nesse tocante. Mas o leitor, se for cristão, poderá estar certo de que o autor não faz ataque à religião, apenas sua compreensão do sentido da vida é que diverge da compreensão religiosa. De resto, a mensagem de Sponville é a do amor – do amor à vida mesma, à verdade e ao saber.

1. A ausência de infelicidade

A tese de Sponville é a seguinte: viver a vida na esperança de ser feliz é uma forma de ser infeliz. Segundo o autor, para encontrar a felicidade, não precisamos procurar por ela. A experiência de ser feliz não depende da satisfação de todos os nossos desejos, já que eles são “indefinidos, flutuantes e sempre renovados” (p. 56). A insaciabilidade do desejo impede-nos de alcançar a felicidade. Se entendemos, com Platão, que desejo é falta e que, portanto, desejamos aquilo que não temos, experienciaremos o vazio, a frustração. Nem todo desejo é falta, entretanto.

“(...) desejar aquele ou aquela que existe, que se entrega e com quem fazemos amor, é experimentar a presença, a força natural, a plenitude”.
(p. 66)

O que entende o autor por felicidade? Num primeiro momento, pensa a felicidade como ausência de infelicidade. Nós buscamos afastar a infelicidade. Freud nos ensinava que nós buscamos incessantemente o prazer e desejamos permanecer nele. No entanto, a própria cultura impede-nos que experienciemos esse estado por muito tempo. Mas não só ela: “nossas possibilidades de felicidade já são limitadas pela nossa constituição” (Freud – O mal-estar na cultura, p. 63). Consciente de que a definição de felicidade apresentada é ainda insuficiente para compreender essa experiência, o autor reconhece que ser feliz não implica a ausência de inquietudes, de preocupações. É possível experienciar uma felicidade ordinária, episódica, apesar da aridez da vida. Não convém, segundo o autor, querer entender a felicidade como uma alegria perene, porque a alegria é movimento, é flutuante.
Sabemos – e Sponville também o reconhece – que a felicidade não está sempre presente, mas ele acredita que a alegria é sempre possível. A felicidade está na realidade, em potência.

“Se a felicidade existe quando não se é infeliz, ela também existe, sobretudo, quando a alegria parece imediatamente possível, e a fortiori, real. A felicidade não está sempre presente, ela vai e vem, mas não existe nada insuperável que nos separe dela (...)”.

(p. 58)

A definição de felicidade proposta por Sponville é bastante modesta. O autor entende que, se pretendemos que todos os nossos desejos sejam plenamente satisfeitos, para sermos felizes, então nunca conseguiremos sê-lo. A felicidade não é algo absoluto – e estou de acordo. Para ele, trata-se de “uma modalidade da existência, com altos e baixos” (p. 59). Não ser infeliz já é razão para sermos mais ou menos felizes.

“Uma das coisas que a vida me ensinou, e que, apesar de tudo, me propiciou uma forma de sabedoria, foi o seguinte: ser quase feliz já é uma felicidade”.
(p. 59)
(grifo no original)

Retomemos Freud, em O mal-estar na cultura. Nesse trabalho, Freud defenderá que, ao invés de viabilizar a fruição do prazer – sempre perseguido pelos seres humanos – a cultura, por eles criada, tende sempre a frustrá-los, decepcioná-los, afastando-os de seu objetivo. Os obstáculos para a experiência da felicidade são, segundo o autor de O Mal-estar na cultura, maiores. Ser feliz, para Freud, é experienciar intensas sensações de prazer, experiência esta inatingível aos seres humanos, no atual estágio da cultura. Neste trecho, Freud indaga-se sobre qual seria o propósito da vida das pessoas, e ele não hesita em responder ser a felicidade. Sponville – me parece – não concordaria com Freud, se entendemos por propósito a ideia de ‘sentido da vida’:

“(...) o que os próprios seres humanos, através de seu comportamento, revelam ser a finalidade e o propósito de suas vidas? O que exigem da vida, o que nela querem alcançar? É difícil errar a resposta: eles aspiram à felicidade, querem se tornar felizes e assim permanecer. Essa aspiração tem dois lados, uma meta positiva e outra negativa: por um lado, a ausência de dor e desprazer; por outro, a vivência de sensações intensas de prazer. Em seu sentido literal mais estrito, “felicidade” refere-se apenas à segunda”.
(p. 62)

De fato, Sponville está de acordo com Freud, no tocante ao fato de os homens aspirarem à felicidade e de desejarem permanecer nessa condição por longo tempo. Ambos também concordam que tal caso não é possível, porque a felicidade plena é um ideal. Para o pai da psicanálise, a própria forma como a cultura se organiza – essencialmente repressora – impede a fruição permanente do prazer (felicidade). Também para Freud a impossibilidade de experienciar uma felicidade duradoura se deve ao modo como a psique humana se estrutura. Entanto, ao contrário de Freud, Sponville já considera o afastamento do desprazer uma forma de felicidade. A pessoa que não sofre, que não experimenta dor e infelicidade já deve considerar-se uma pessoa feliz. Lembro que a quase felicidade é já felicidade, para o filósofo francês.
Sponville também não parece estar de acordo com Freud ao supor que o propósito da vida humana seja a felicidade. Se entendermos por propósito da vida a ideia de ‘sentido da vida’, certamente, Sponville não comunga da perspectiva freudiana. Veremos, mais adiante, o porquê.  Claro está que, se tomarmos por objetivo da vida ser apenas felizes, se acreditarmos que, sem a felicidade, a vida não faz sentido, muito frustrante será viver, já que a felicidade não é perene e nosso desejo é caracterizado pela insaciabilidade (sempre renovado, dirá Sponville).
A concepção de felicidade de Sponville difere da concepção freudiana. Isso é bem claro. Para o primeiro, a felicidade é um estado de alegria sempre passível de ser experimentado nas circunstâncias comuns da vida; ela pode ser uma experiência débil, difusa. Para Freud, ao contrário felicidade é “vivência de sensações intensas de prazer”. Só há felicidade onde há intenso prazer. Só há felicidade onde há profunda sensação de bem-estar. Como a cultura nos impede de experienciar esse profundo bem-estar (a felicidade), só nos resta a sublimação, ou seja, recorrer a outras formas de experienciar algum grau de felicidade (como a alegria experimentada pelo artista em sua atividade). É que, para Freud, a intensidade do prazer se aufere na satisfação de nossos instintos mais grosseiros (p. 69).


2. O sentido da vida

Ao ser perguntado sobre o sentido da vida, Sponville é bastante claro: a questão do sentido da vida não se coloca no momento em que a felicidade está presente. De fato, não nos preocupamos com o sentido da existência quando estamos envolvidos em sensações de felicidade.

“(...) nossos momentos de felicidade intensa (em que a alegria não é apenas possível, mas real, deslumbrante, espantosa) são aqueles nos quais a questão do sentido da vida não se coloca. Por que teríamos descoberto ou alcançado esse sentido? Por motivo nenhum, simplesmente porque aqui e agora a vida é suficiente para nos completar”.

(p.60)

O trecho em negrito é indispensável para a correta compreensão da posição do autor. Sponville, em nenhum momento, dissocia a felicidade da vida real; não a projeta para um além-morte, para outra vida. Mas, convém, por ora, nos deter no significado da palavra “sentido”. Para tanto, é necessário falar um pouco sobre semiologia. Sponville acredita que a palavra sentido encerra uma noção difícil, porque inclui tanto a ideia de “significado de uma frase” quanto a ideia de “direção ou propósito”. Nas duas acepções, segundo o autor, o sentido remete a alguma coisa que não ele mesmo. Isso fica claro quando pensamos na natureza de todo signo. O signo é signo de outra coisa, um signo está no lugar de outra coisa. Assim, ao nos depararmos com uma placa em que se avisa sobre um acidente a duzentos metros, essa sinal (signo) está “no lugar da coisa” (acidente) a que ele remete. Graças às palavras, que são signos lingüísticos, podemos falar de coisas que não estão presentes em nosso campo observacional. Não é necessário que haja diante de mim uma baleia para que eu fale dela. A palavra “baleia” evoca em minha mente a imagem desse animal (o seu significante). O sentido da palavra “baleia” não é a palavra “baleia”, mas a representação mental desse mamífero que vive no mar. O sentido é, pois, “outra coisa”. Falar em sentido é falar de algo que está fora de nós. Escreverá Sponville “o sentido encontra-se sempre fora e nós estamos sempre aqui” (p. 60). É interessante pensar no emprego do advérbio “aqui”, que é dêitico e que, portanto, em um de seus usos, refere-se ao “lugar onde se acha o falante”. É claro que a palavra “aqui”, nesse caso, não tem como escopo o lugar onde estava o autor. Ela se refere ao “estar no mundo”, à existência mesma. Por isso,  é forçoso concluir:

“O sentido da vida só pode ser uma outra vida (esse é o sentido que as religiões oferecem) ou uma vida diferente (a que se espera)”.
(p. 61)

Para o filósofo, a experiência de felicidade depende de que o objetivo de viver seja a própria vida, depende de que aceitemos a vida, com suas inconstâncias, com seus bons e maus momentos. Não seremos felizes, se nosso objetivo é outro que não a vida real. Citarei a seguir um trecho que torna a argumentação do autor um pouco confusa. Senão, vejamos:

“Os que são felizes não precisam procurar outra coisa além de sua própria vida tal como ela é, como ela passa, como se inventa e se transforma por si mesma a cada instante. Essa é a razão pela qual a experiência de felicidade não é uma experiência do sentido; ela é uma experiência do presente, da realidade, da verdade atualmente disponível”.

(p. 61)

Que fique bem claro. Para Sponville, o mais feliz dos homens é aquele que experiência a felicidade do momento. Projetar a felicidade para o futuro é também viver o vazio, a frustração, a falta, já que o futuro é o não-ser, não existe. Para o filósofo, “o objetivo de viver é viver”.
Certamente, se estamos felizes, estamos reconciliados com a vida e não precisamos nos apoiar na ilusão de serem felizes em outra vida. Para os que estão felizes, a vida é bastante. Todavia, sucede que, para Sponville, a felicidade depende de que estejamos conciliados com a própria vida, mesmo sabendo que ela está repleta também de dor e infelicidade. E o que dizer dos que não estão felizes? Como podem eles se satisfazer apenas com a vida? Como podem eles se regozijar dela?
Nem sempre a vida é suficiente, dirá o autor. Por isso, a necessidade da filosofia. Consoante o autor, há os que não precisam da filosofia, porque parecem possuir uma “sabedoria espontânea”. Tanto melhor, dirá. Mas há os que dela necessitam, porque “sem ela são incapazes de amar a vida tal como ela é”. A filosofia não é tão-só experiência de pensamento, mas também, mormente, experiência do bem viver. Ela nos ensina a viver mais e melhor. Ela nos ensina a enfrentar o sofrimento, porque é preciso aceitar a vida tal como ela é, mas também é preciso enfrentar as suas adversidades.
A função da filosofia é nos ensinar a viver, apesar do paradoxo diante do qual  a busca sempre urgente pela felicidade nos coloca:

“(...) somente aquele que deixou de buscar a felicidade pode ser feliz, somente aquele que ama a vida mais que a felicidade pode ser feliz”.
(p. 63)

No limiar do texto, disse que Sponville iria nos comunicar uma mensagem de amor. Ele a anuncia ao nos ensinar que devemos amar a vida mais do que a felicidade, e amá-la com seus reversos. A filosofia nos ensinará a regozijar-nos. O indivíduo que ama a felicidade não a alcançará, porque a vida se encarregará de evitar que ele a encontre. Assim, ensinará o filósofo:
“Trata-se de passar da esperança da felicidade ao amor pela vida, mesmo que nem sempre seja possível amá-la. E por que ela não seria amada? Não é o valor da vida que justifica o amor que lhe dedicamos; ao contrário, é o amor que lhe dedicamos que atribui valor à vida”.
(p. 63)

A lição de Spinoza é lembrada pelo filósofo: não é porque uma coisa é boa que a desejamos, é porque a desejamos que ela é boa. Logo, não devemos amar a vida por causa do seu valor, já que o valor advém do amor à vida. É porque a amamos que ela tem valor. O valor não está na vida em si, nem nas coisas. Quando o desejo se inclina a uma coisa, essa coisa passa a ter valor. O amor valoriza: “o amor não se submete ao valor do seu objeto: o amor é o criador do valor” (p. 63). Por isso, os valores que criamos depende da intensidade com que amamos. A verdade é um valor, porque a amamos; a honestidade é um valor, porque a amamos; a fidelidade é um valor, se a amamos. O amor é o fundador de todos os valores.
Mas volvemos à citação acima. Abandonar a esperança de felicidade, mas também a esperança como atitude diante da vida. É o que aprendi com Sponville. A esperança nos conforma na espera e nos imobiliza na experiência da ausência. Não se deve ter esperança de um dia ser feliz; é possível ser feliz no presente. Nisso estou de acordo com Sponville. Isso não significa que o presente sempre favorecerá a felicidade.

“Amar verdadeiramente a vida não é apenas amá-la apenas quando ela é feliz, mas amá-la em sua totalidade, seja ela constituída de felicidade ou infelicidade, de prazer, sofrimento, tristeza ou alegria”.
(p. 67)

O amor à vida é a força de que dispomos também para enfrentá-la. Só podemos enfrentar as adversidades da vida, se formos capazes de amá-la. O melancólico é aquele que perdeu a capacidade de amar – ou, ao menos, aquele cuja capacidade de amar se enfraqueceu. O suicida é aquele que perdeu o amor à vida.
Ao cabo da contribuição de Sponville, o autor concluirá – o que, para mim, sempre me pareceu bastante claro – que está no amor a maior fonte de felicidade.

“Como vimos, a alegria real ou possível é o verdadeiro conteúdo da felicidade. Isso quer dizer que não há felicidade a não ser no ato de amar. Trata-se, mais uma vez, de nossa experiência com todas as pessoas”.

(p.68)

Convém nos acautelar ao concluir que Sponville não nos dá margem a objeções. Parece que o autor não considera algumas circunstâncias dolorosas da vida real, ao defender a necessidade de amar a vida como condição para usufruir um pouco de felicidade. Penso nas crianças em cujos lares elas não conhecem o amor dos seus. Penso naqueles que nasceram em condições socioeconômicas muito precárias. Penso na grande quantidade de sofrimento que atinge milhões de pessoas em todo o mundo. Penso ainda que, apesar disso, uma vez vivo (porque não escolhemos nascer), podemos escolher viver... E não posso esquecer a lição de Marcel Conche, em A análise do amor (1998), ao se referir à felicidade do sábio:

O homem feliz de uma felicidade filosófica é o “sábio” – tanto quanto possível. O sábio não tem problema pessoal ou, pelo menos, tem força para enfrentá-los. Com isso, é tanto mais sensível aos problemas alheios. Falei do “privilégio da insensibilidade” do homem comum. O sábio, ao contrário, é tanto mais sensível aos problemas dos outros quanto menos se absorve com os seus. (...) Sua felicidade é um fato. Mas a felicidade não impede que possamos sofrer, como tampouco o sofrimento impede que possamos ser felizes. (...) Felicidade porque não se tem medo nem desejo, porque se está em paz consigo mesmo, em regra com a consciência de seu destino (entendo que sempre temos vivido na inteligência de si e na fidelidade a si), mas também tristeza porque o mundo é triste e não há o que fazer a esse respeito. Felicidade da potência sobre si, tristeza da impotência sobre o mundo”.
(p. 67)

Também Sponville nos fala da potência de gozar a vida cada vez mais. Também estou de acordo com Sponville no tocante ao fato de a felicidade ser, afinal de contas, apenas uma ideia. Existindo a palavra, precisamos nos valer dela. O problema, me parece, é quando enchemos a palavra felicidade de desejo, é quando insuflamos seu significado a tal ponto que ele nos parece difuso, pesado, inapreensível.
O que é a felicidade senão uma emoção de alegria, de satisfação? E o que é uma emoção, senão um padrão de reação, que nos impulsiona à experiência com o significado? Toda emoção envolve sentimentos, mas deles se diferencia por manter uma relação implícita ou explícita com o mundo. A emoção nos move, nos afeta o comportamento, tanto nos faz agir quanto nos faz estancar.
Uma pessoa pode sentir-se feliz, ao obter um emprego, ao ser promovida no trabalho, ou ao alcançar o corpo desejado (muito embora, nesses casos, o padrão de beleza estabelecido socialmente e reforçado pela mídia torna essa realização sempre inatingível, porque o desejo nunca é satisfeito; e sabemos que é provocando a insaciabilidade do desejo que o mercado lucra). Não podemos escapar ao desejo. Não é possível não desejar, mas é possível não se render a todos os seus apelos. A insaciabilidade do desejo torna-nos infelizes.
Ser feliz ou estar feliz? A felicidade tem a ver com um modo de estar no mundo, com um modo de agir, apesar do mundo. Sabemos que fazer atividade física, praticar esportes ter e fazer amigos, etc. torna as pessoas felizes. A felicidade não é um estado de alma; ela envolve todo o corpo. Por isso tem a ver com endorfina, dopamina, serotonina, noradrenalina; por isso também comer (especialmente chocolate, açúcar e lacticíneos), se apaixonar e  fazer sexo nos causa felicidade.
 A questão da felicidade é interminável, como tudo em filosofia... cujas questões nunca se fecham... apenas a vida tem de findar... enquanto houver vida, há a filosofia e a possibilidade de pensar em como ser feliz...