terça-feira, 3 de julho de 2012

"Não se começa a filosofar, se não se debruça seriamente sobre o problema da morte" (BAR)


A morada da morte




Como pensar a vida sem pensar a morte? A felicidade, sem aceitar a infelicidade? A sabedoria, sem aceitar sua loucura? (...)”



(p. 50)

(grifo meu)



Tão logo me deparei com este trecho de Sponville, em Bom dia, angústia (2010), compreendi, por intuição iluminadora (em inglês, insight), por que não me acontece ponderar sobre a vida sem levar em conta o fato da morte. Pessoas há que veem nessa minha disposição natural para o tratamento da morte em minha fala ou escrita um sinal de dissabor, desespero ou de gosto pelo trágico. Mas se esquecem de que a vida é trágica; a vida é decepcionante. Citarei as palavras de Sponville, que nos ensina a esse respeito. Por ora, noto que, entre aquelas pessoas que evitam pensar na morte ou me censuram quando esta palavra visita meus pensamentos ou freqüenta a cavidade de minha boca, está minha namorada. Ela não compreende e ninguém nunca compreendeu. E essa compreensão não conta com o serviço da razão; nada tem de racional. É pura emoção; é pura sensibilidade! Sensibilidade à fragilidade da vida, por certo. Um legado do limiar de minha existência. A razão, em si, não leva-nos à compreensão da relação visceral entre vida e morte. Provam-nos as palavras seguintes de Sponville, ao contar-nos sobre o comportamento de seus amigos, particularmente os inteligentes:



“Alguns de meus amigos, mesmo inteligentes, garantem-me que na morte eles nunca pensam, ou algumas vezes por ano quando muito. Quanto a sentir o sabor dela... Outros, como eu, pensam nela todos os dias, e quase a toda hora de cada dia... Este gosto, é ele o que melhor conhecemos. Como os morangos ao lado nos parecem exóticos! Medo? Não demais, parece-me. Mas esse gosto de nada em todas as coisas, carregar essa sombra do perecer... Não se morre uma vez, afinal de contas, para acabar. Morre-se todos os dias, a cada instante de cada dia. A criança que eu era está morta no adulto que sou, aquele que eu era está morto hoje, ou se sobrevivem em mim é apenas na medida em que lhes sobrevivo, cada qual tranporta seu cadáver consigo, e jamais retornarão os amores antigos... A vida é  pungente porque morre, porque não para de morrer, aqui, à nossa frente, em nós, e o tempo é pungência, essa morte em nós que avança, que escava, que espera, que ameaça... Deve-se pensar nela? Deve-se esquecê-la? Questão de sensibilidade, pelo que creio, mais do que de doutrina”.



                                                  (p. 51)




É de sensibilidade de que se trata, decerto, sempre que levamos em conta a morte. Pensar ou não na sua essência, que não é senão a perda. Enfrentar a angústia na serenidade do pensamento. Que é a angústia? O que manifesta o nada, ensinará Kierkegaard. É ela um pré-sentimento, segundo Lacan, porque destituída de conteúdo específico. É um lugar algum, segundo Heidegger, porque revela o fato de que o que nos ameaça não está presente. A angústia diante da ideia da morte ou mesmo da morte como fato constatado (quando velamos o corpo de um defunto) torna o ausente ameaçador. Mas um ausente sempre presente, em potência. Por isso, escrevi, certa vez, todo ser humano é grávido da morte. A morte está latente em nós. E isso me faz lembrar uma passagem de Pessoa, que observa “somos defuntos adiados”. Escreverá Sponville ainda “(...) viver é morrer; e por isso a vida é ainda mais bela, porque traz em si a morte amarga” (p. 53).

Preciso citá-lo novamente, quiçá, assim, se interesse o leitor em ler seu livro. Uma leitura inquietante e agradável!



“(...) A verdade? Qual verdade? A de viver e de morrer. É a mesma, pois que apenas os viventes morrem, e pois que morrem todos. O raciocínio não muda nada. Não se morre por acidente, doença, velhice. Morre-se por ser mortal, morre-se por viver, por ter vivido. A morte, ou a angústia da morte, ou a certeza da morte, é o próprio sabor da vida, seu amargor essencial.”.



                                                    (p. 49)



Morre-se, porque é necessário morrer. Porque não há vida sem morte; e, para morrer, é preciso antes ter vivido. O leitor experiente não concluirá que Sponville lança um olhar pessimista sobre a existência humana. Não se engane com esse trecho. Para o autor, a vida comanda, embora também a morte o faça. Para ele, a vida basta; tem ela “gosto de felicidade”, sem negar-lhe o gosto de desespero. Leiamos atentamente este trecho, a fim de que nos torne mais clara a visão do autor:



“Que a vida seja decepcionante, sempre decepcionante, no fundo é isso que ela nos ensina de mais claro. Não, por certo, que nela não haja alegrias e prazeres. Mas não os que esperávamos ou não da mesma forma, ou que não poderiam, quando estão presentes, dar-nos a felicidade que deles esperávamos  quando não estavam presentes, quando nos faltavam”.

                                          

                                                    (p. 54)



A vida nos ensina esta dura lição: a decepção, a desilusão: “o amor decepciona. O trabalho decepciona. A filosofia decepciona” (id.ibid.). Que nos resta senão amar verdadeiramente sem crer no amor, sem divinizá-lo, aceitando-o como ele é, como tudo o mais, decepcionante?



“Prefiro o alegre amargor do amor, do sofrimento, da desilusão, do combate, vitórias e derrotas, da resistência, da lucidez, da vida em ato e em verdade. Prefiro a realidade, e a dureza da realidade. Se a vida não corresponde às nossas esperanças que nos enganam, desde o início (desde a nostalgia primeira que as alimenta), e que a vida só possa desde então nos desenganar... Gosto azedo da decepção, do qual nada cura senão o desespero, se for possível, a sapidez muito acre e muito salutar do desespero. Toda esperança é decepcionada, sempre, só existe felicidade inesperada.”.



                                                 (p. 55)

                                               (grifo meu)





Felicidade episódica! Poderíamos amar sem acreditar no amor? Apressar-nos-íamos em responder negativamente. Necessário, contudo, se faz compreender a lógica de Sponville. Escreve o autor: “E como amar verdadeiramente, enquanto se acredita no amor, enquanto se faz dele uma religião, um absoluto, um sonho?” (id.ibid.). É que só podemos amar verdadeiramente quando nos desfazemos das ilusões do amor, quando abandonamos os ideais de amor, quando não mais o idealizamos! Desfazer-se das ilusões que construímos sobre os objetos de desejo é a única forma de viver para quem abandonou as ilusões da transcendência e as mentiras da religião. Eis o que me parece inegável:



“Aquele que só amasse a felicidade não amaria a vida, e com isso se proibiria de ser feliz. O erro é querer selecionar, como nas prateleiras do real. A vida não é um supermercado, cujos clientes seríamos nós. O universo nada tem para nos vender, e nada diferente para nos oferecer senão ele próprio – nada diferente para oferecer senão tudo.”



(p. 56)



Preciso ainda citar estas últimas palavras de Sponville, antes de levar a cabo este texto; principalmente, porque é preciso que se dissipe qualquer dúvida sobre o valor que o autor atribui ao amor na vida dos seres humanos. Não nos enganemos com aquele tom desalentado com que parece encarar o amor. Sponville nos brinda com estas belas palavras a seguir, trecho em que trata da solidão:



“Solidão da arte. Há também uma solidão da dor, e é a mesma. Solidão de viver. Solidão de morrer. Solidão: finitude. A amizade não adianta nada, e, além disso, temos tão poucos amigos... Gostaríamos de ser amados ainda mais, o que confirma simplesmente que de amor, de puro amor, nós mesmos somos muito pouco capazes. Solidão do amor, do amor imenso que esperamos, daquele – também imenso por vezes – que desejaríamos dar...Mas o amor não se dá, nem se possui. O amor é pura perda (...), e essa perda, essa puríssima perda de amar, é a única riqueza, como que uma luz sobre o mundo, como que uma pobreza radiosa, como que uma jóia de alegria e de doçura na infinita solidão dos viventes”.



(p. 54)



Como negar que a vida é uma corrida em direção à morte? E como negar que, ao pensar na morte, temos de lidar com a fragilidade da vida, mas também com o amor, a solidão, o desejo de felicidade e a convivência com a decepção? Como escapar à angústia? Evitando pensar sobre a morte? Para Kierkegaard, quanto menos espírito, menos angústia. Mas a angústia está entranhada na existência, no seu absurdo, para ser mais exato. Para Heidegger, as instituições sociais são o modo que os homens encontraram para se defenderem contra a angústia. Mas, o que é mesmo angústia? Uma forma de ansiedade superlativizada. Que é ansiedade? Um estado emocional desagradável suscitado em nós por um perigo suposto. Ele não está adiante. Angústia em face da morte não é senão o medo da morte. A ansiedade está na raiz de todos os mecanismos de defesa do ego.

Por que, então, pensar a morte? Porque é preciso enfrentá-la. É enfrentando-a na solidão do pensamento que podemos viver a alegre amargura da vida. À assunção de meu ateísmo seguiu-se o sentimento de libertação espiritual e intelectual que compartilho com Sponville. Sem a bengala da ilusão religiosa, vivo a fragilidade e fugacidade da vida. E a aceito, não sem pensá-la na sua relação visceral com a morte, condição final a que estamos destinados desde o nascimento. Entendidas estas palavras, o trecho abaixo não atormentará as noites solitárias do leitor:



“A morte não é terrível. Passa-se ao sono e o mundo desaparece – se tudo correr bem. Terrível pode ser a dor dos moribundos, terrível também a perda sofrida pelos vivos quando morre uma pessoa amada. Não há cura conhecida. Somos parte uns dos outros. Fantasias individuais e coletivas em torno da morte são frequentemente assustadoras. Como resultado, muitas pessoas, especialmente ao envelhecerem, vivem secreta ou abertamente em constante terror da morte. O sofrimento causado por essas fantasias e pelo medo da morte que engendram pode ser tão intenso quanto a dor física de um corpo em deterioração. Aplacar esses terrores, opor-lhes a simples realidade de uma vida finita, é uma tarefa que ainda temos que enfrentar”.



                      ( A solidão dos moribundos, 2001: 76-77)






segunda-feira, 2 de julho de 2012

"Nem sempre a vida me cai bem; mas nela vou-me apertando" (BAR)


Conciliado


Quero a vida como está

Nada dela espero

Nada ela há de me dar

Porque não necessito



Quero a vida do jeito que é

Instável

Dolorosamente suportável

Não tenho esperança

Deixo-a aos desesperados

Aos conformados



Quero a vida no seu lugar

Nem mais adiante

Onde não existo

Nem lá onde a memória mora

Quero a vida inteira

Não fragmentada



Quero a vida com sua crueza

Desvelada toda vez que a aproximo

Do pensamento

Quero-a nua e isenta de culpa

Doendo no absurdo

Com que me espanto!



Quero a vida apenas

Nada a ela acrescentar

Quero a vida como está

Imersa na minh’alma

Indiferente a mim!



(BAR)

domingo, 1 de julho de 2012

"O amor não cabe na palavra amor" (BAR)


Ao meu amor,







Assim se expressou Sponville, em seu Bom dia, angústia! (1997):





“As cartas de amor durarão mais tempo, muito amiúde, do que o amor. Elas sobreviverão a ele. Estarão ainda aqui, se se quiser, quando o amor estiver morto: atestarão o que tiver acontecido, o que eternamente continuará verdadeiro, mas que talvez, sem a escrita, teríamos esquecido ou perdido”.

(p. 39)



Perdi a conta das cartas que já compus, das que duraram mais que o amor. Cartas em que derramei minha alma, desnudei a emoção terna e fecunda do amor. Do amor primaveril, que se doa sem grandes consequências. Crescemos e desistimos de escrever cartas de amor. Elas testemunham uma ingenuidade que devemos superar, porque é parte de nosso crescimento. O amor da maturidade não se insufla de sonhos, mas ancora-se na solidez dos projetos. Todo amor aspira à eternidade, escrevi eu, certa vez; mas é necessário morrer. E nosso esforço é fazer com que a eternidade do amor caiba na finitude de nossa existência. Todo EU TE AMO, produzido na verdade de nosso coração, é um sopro de eternidade. Dizer EU TE AMO é a forma que encontramos para silenciar a angústia. Porque nada é eterno, nem mesmo o amor. Que se amem intensamente na brevidade da vida é o que desejam os amantes. Não nos cansamos de ouvir e dizer EU TE AMO; os apaixonados sabem disso. Querem ouvir todos os dias essa frase; querem pronunciá-la. Ao pronunciá-la, todos os dias, lembramos ao outro o compromisso; selamos nosso acordo. Por vezes, me esforcei por formular metáforas que captassem bem a densidade do amor que dediquei. Não careço mais delas, quando descubro que posso dizer alegremente EU TE AMO. Amor e reciprocidade são sinônimos; isso deveria ser evidente. Amor recíproco é redundância. Redundância do coração, que se doa, que se entrega, que se derrama. EU TE AMO, é o silêncio do amor que se impõe aos nossos corações. Isso é bastante, porque o amor é bastante.

terça-feira, 26 de junho de 2012

"Que seja amena a sorte na brevidade da vida!" (BAR)


                      Temporada


Desfiz a mala de projetos. Devolvi-os às gavetas. Recomeçar. É preciso. Apenas a companhia da solidão de meus passos. O não-ser como ventre de possibilidades, potência que a vida, por mais monótona, não cala. Estou seguro como nunca dantes estive. Amores e desamores vêm e vão como as ondas que o mar faz deitar sobre nossos pés. A vida, apenas, e o devir de Heráclito. Fluindo, na alternância dos opostos. E já posso ouvir a canção ‘nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia tudo passa tudo passará...’  A vida tem sido, para mim, um exercício de solidão. Não da solidão superficial que preenche o vazio deixado pela falta de entretenimento circunstancial. Mas da solidão que se entranha na alma, que nos aparta do mundo. É certo que, há tempos, sou eu que comando, não ela. Valho-me dela como um homem errante se vale de uma cabana abandonada. É meu lugar de refúgio, longe do qual mantenho o estrupido do cotidiano. Para suportá-la, deito a alma nas páginas de livros. E me demoro a saboreá-las com o espírito. Que é a leitura senão a alimentação diária da alma? É certo que viverei, ainda por muito tempo, anonimamente no coração alheio. E viverei serenamente à espera de ser descoberto. Quem sabe o amor um dia volte a adejar suas asas e redescubra em meu seio um bom lugar para se aninhar? Despeço-me como um retirante que precisa deixar sua terra natal. Embora saudoso, é improvável que a ela regresse. Assim deve ser, como o fora antes. A vida flui; as memórias, com o tempo, se embaçam. Que seja breve ou não a estiagem do amor. Por ora, quero apenas estar só, absorto. Que as estações da vida sejam amenas!

domingo, 24 de junho de 2012

Poemas para a saudade





A poesia de outrora


Queria a poesia de outrora
Talhada na dor e na melancolia
E ver de novo a alma como agora
Saudosa da mortalha da alegria

Os versos de antanho que bendiziam
O amor das horas solitárias
Que em minha alma morriam
Em veladas noites funerárias

Não é mais a poesia dor fremente
Monumento de paixões temerárias
É um motivo para compor tão somente

Mas não tendo mais a dor pulsante em mim
Que me animava a alma e a poesia
Morre-me a saudade de amar sem fim!


(BAR)





Imersão

Quero uma imersão duradoura
A poesia de outrora caducou
Repleta antes de rimas e melancolia
Metricamente esculpida no ventre da alma
O encanto se esfacelou!

O espelho me lembra quem não sou mais
O jovem que em versos exaltava o amor
Erigia ao sofrimento templos de culto!
Porque dele se nutriam os versos

Quero uma imersão mais duradoura!
Uma comunhão de espíritos desconformados
Afinidade nas letras do descontentamento
Amantes da labuta do pensamento
E do romance que arrebata noites comuns!

Quero uma imersão mais duradoura!
Que outrora punha o mundo entre parênteses
Para só o amor ocupar-nos os pensamentos!
Quero uma imersão mais duradoura!
Porque viver à margem é atar a alma ao desalento

Mas a margem é preferível quando o meio é raso
Margeio as vivências superficiais como o marinheiro
Que deseja navegar por águas profundas
Lá onde a imersão é possível
E o que nos espera não sabemos!

(BAR)

sexta-feira, 22 de junho de 2012

"Mais um ano longe de ser criança? Isso não me parece ser o mesmo que crescer." (Richard Bach)


                             Sobre o crescimento humano

  

Uma pessoa só cresce (e refiro-me a crescimento espiritual, à maturidade), quando capaz de reconhecer que o mundo não se dobra em face de seus desejos. Somos seres desejantes, e não há como deixar de sê-lo. O desejo nos impulsiona a viver; calado o desejo, resta a apatia, a melancolia. O desejo está no princípio; a ação vem depois. Nem sempre agimos segundo desejamos, a experiência no-lo prova. E não podemos ter tudo que desejamos. É preciso domar o desejo (e não me refiro ao que pode nos levar à ruína, mas ao desejo que visa a algum benefício). Para isso, há a cultura e seu produto psíquico, o superego – que comanda e censura, impedindo a plenitude da satisfação dos desejos. Há uma compensação à castração do desejo - o princípio de realidade, que nos impele a buscar para o desejo objetos  substitutivos, cuja fruição  esteja adequado às exigências do superego; afinal, é ele quem comanda.

Dei passos largos e me perdi. Volto ao que me interessa. Não o desejo que transgride às exigências do superego (que é o juiz social em nossa mente); mas o desejo realizável, embora limitado por pressões externas. Portanto, é do desejo frustrável que se trata. Amadurecemos quando nos damos conta de que entre o desejo e a realização há uma série de condições adversas que devemos nos esforçar por superar, embora, não raro, a superação não esteja ao nosso alcance. Não é raro que, nesses casos, o desejo nos conduza à utopia (que nada mais é do que o “não-lugar, o lugar nenhum). Mas, então, me lembro do poema de Eduardo Galeano, cujos versos finais nos ensinam que devemos caminhar:  “Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”. Transcrevo-o abaixo na íntegra:



A utopia está lá no horizonte

Me aproximo dois passos,

Ela se afasta dos passos.

Caminho dez passos

E o horizonte corre dez passos

Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei.

Para que serve a utopia?

Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar.



(Eduardo Galeano)



Vemos, assim, que a utopia, embora, por definição, infactível, ajuda-nos a avançar. Nesse sentido, ela nos leva a resistir à apatia. Ela nos move para frente e é possível que, durante o percurso tenhamos razões para nos contentar. Se nosso crescimento, eu dizia, depende de que reconheçamos, como cantava Cazuza, que aquele garoto que pretendia mudar o mundo agora está deitado num divã, não se segue daí que devemos concordar plenamente com ele; afinal, se queremos resistir ao conformismo, não podemos deixar o tal garoto em cima do muro, como mero espectador no teatro da existência, um coadjuvante no palco da vida. O Dasein pressupõe a transcendência do homem no mundo. A apatia é o efeito das frustrações que experimentamos por força das coerções sociais. A vida precisa superá-las. Para viver, precisamos resistir a elas. Digo às frustrações, é claro.

Tendo já a maturidade limado as suntuosas estruturas de nossos desejos de primavera, o que nos resta, no final das contas? O que, afinal, importa? Ter nosso cantinho, nosso cônjuge, possivelmente filhos, um carrinho na garagem e um emprego (porque é preciso, não há como viver sem trabalhar, embora o desejemos, nos lembra Sponville). E, a esta altura, quero fazer eco a Sponville – e me perdoem a pequena digressão (mas se verá que ela não perturba o itinerário deste comboio de palavras). Lê-se, na página 26, de seu livro Bom-dia, angústia (2010), o seguinte:



“O trabalho é um esforço, um sofrimento, uma fadiga. A riqueza, um luxo e um descanso. “O dinheiro não traz felicidade”, dizem, e isso é muito claro pois que nada o traz. Mas que luxo, porém, a preguiça, e que prazer o luxo!”.





Permita-me o leitor que eu me detenha um pouco nesse trecho. Percebo coisas interessantes nele, e quero trazê-las à sua consciência. O uso das aspas destacando o enunciado “O dinheiro não traz felicidade” serve de índice do que se costuma chamar, em Análise do Discurso, de “heterogeneidade mostrada”. Trata-se da recuperação explícita de outro discurso. Apreende-se, pelos recursos da linguagem, a presença do Outro (que é fundante de todo ato de linguagem). Esse discurso é atribuído a um enunciador genérico, que chamarei, seguindo a tradição desse campo, de “Vox populi”. É a voz popular que o diz, e o autor adere a esse discurso (e à perspectiva que se enuncia). E justifica sua adesão evocando Freud. Não explicitamente, é claro, mas quem leu O mal-estar na cultura (2010) sabe que, nessa obra, Freud advoga ser a felicidade inalcançável ao homem, dadas as condições repressivas da cultura. Na verdade, para Freud “nossas possibilidades de felicidade já são limitadas pela nossa constituição” (p. 63). Entenda-se tanto a constituição física quanto psíquica. Citando esses breves excertos de Freud, ocorre-me que a leitura daquela obra é extremamente importante para a compreensão da natureza humana. Contemplamos nela a dimensão visceral de nosso sofrimento. Nela, o drama nu de nossa condição!

Eu dizia que, se, no final das contas, desejamos ter uma família, uma moradia e um emprego (e um carro na garagem, talvez), haverá ainda espaço para o desejo? Se o trabalho é uma obrigação enfadonha, da qual não podemos escapar, se quisermos sobreviver, resta ainda espaço para um desejo que vai além de uma melhor remuneração? Devemos lembrar, e para tanto me apoio na argumentação de Sponville, que o valor do trabalho se acha fora dele. Ou seja, se acha na sua recompensa, qual seja, no dinheiro que se ganha, no salário que se recebe. Não me alongarei na discussão sobre o valor social do dinheiro, para a qual remeto o leitor à obra aqui referida de Sponville. Nela, se topa um capítulo, intitulado de O dinheiro, do qual, aliás, extraí aquele excerto. Convém, desde já, alertar o leitor sobre o perigo do reducionismo, particularmente, em matéria de interpretação textual. Preciso ser mais claro: devemos ter o cuidado para não fragmentar o discurso do outro ao pretender evocá-lo ou explicitá-lo em nosso texto, visto que podemos  deturpar o pensamento do autor. Em todo caso, não há como evitar o fato de que sempre procedemos tentando adequar as passagens citadas ao curso argumentativo que tomamos, para, assim, validar nossas conclusões. Cuido que Sponville diz, a seguir. o essencial a respeito do trabalho, em seu livro A Vida Humana (2009). Atente-se para o excerto:



“Engana-se sobre o trabalho quem vê nele apenas um fim em si ou mesmo um valor moral. É o que provam as férias e o salário. Trabalhar? É bem preciso. Mas quem o faria de graça? Quem não prefere o repouso, o lazer, a liberdade? O trabalho, considerado em si mesmo, não vale nada. Por isso é pago. Ele desgasta. Por isso pede repouso. Não é um valor (moral); por isso tem um valor (mercantil). Não é um dever. Por isso tem um preço.”



(p. 58)



Note-se bem que, ao se perguntar “quem não prefere o repouso, o lazer e a liberdade?” ao trabalho, Sponville nos deixa entrever um questionamento: há possibilidade de alguma liberdade no trabalho? Liberdade é incompatível com trabalho? Talvez, ainda, uma questão prévia se nos imponha ao espírito: há alguma forma de experimentar liberdade na vida em sociedade? Em que medida somos verdadeiramente livres? Não pretendamos dar respostas definitivas; não é a isso que se propõe a filosofia. Não é essa a sua lição fundamental. Mais valem as questões do que as respostas. E estas, quando dadas, abrem oportunidade para novas questões. E a busca pela verdade é um movimento incessante! De fato, a liberdade no trabalho não é plena; por vezes, muito limitada, ou quase nenhuma. Poderá refutar-me o leitor, observando, estando o trabalhador reduzido ao cumprimento de suas obrigações, sem qualquer liberdade de ação divergente de tal condição, resta-lhe a liberdade de escolher deixar o emprego. Tão-logo, no entanto, atentamos mais de perto para o drama humano, reconhecemos que esse trabalhador terá sua liberdade ainda mais limitada pelas condições externas, pois que precisa sobreviver, precisa do dinheiro para sustentar a si e a sua família (caso a tenha). As contas ignoram nossa liberdade!

No magistério – quem é professor bem o sabe -, precisamos acalentar desejos e nos esforçar por realizá-los. Sabemos outrossim que as condições administrativas da instituição são adversas. Lembro-me de que, tendo apresentado um projeto de um curso de leitura na faculdade onde trabalhava, e a despeito do reconhecimento de sua qualidade e validade, o curso nunca fora implantado, por razões organizacionais (parece que o programa curricular não deixava margem à inserção de uma nova disciplina, reconhecidamente importante!). Na ocasião, argumentei, me respaldando na constatação da baixa qualidade da compreensão textual e produção escrita dos alunos nos cursos que ministrei, entre os quais os ministrados na cadeira de Letras, que era urgente que se oferecesse um curso destinado tão-só ao trabalho com leitura e compreensão textual (aí implicadas as atividades de produção escrita). Era preciso exercitar a prática de leitura crítica e o exercício da escrita contínua, dizia eu, como uma tentativa de amenizar um problema, certamente mais grave e anterior, a baixa qualificação escolar de nossos estudantes. Atrelado a esse difícil problema, havia outro, a saber, a admissão desses estudantes para os cursos superiores. Todos sabíamos (os professores que o digam!) que muitos estudantes que ali estavam não dispunham de uma competência textual e de leitura satisfatória para avançar no percurso de sua formação acadêmica. Culpá-los por isso é um erro, embora despercebido por alguns professores. São esses estudantes antes vítimas! Se uma instituição de ensino privado, como um mercado, precisa de lucro para se manter, não havendo alternativa senão admitir o maior número de estudantes possível (a quantidade faz o lucro!), resta aos profissionais diretamente ligados ao ensino (nós, professores), ou nivelar nossas aulas por baixo (para que não haja um grande índice de reprovação e possível evasão), ou esforçarmo-nos por oferecer um curso com um mínimo de qualidade, buscando angariar apoios daqueles que são responsáveis pela administração (coordenadores, diretor, reitor...). A nossa liberdade, como se vê, está limitada na própria constituição desse sistema hierárquico; acima de nós, o coordenador do curso; acima deste, o diretor de um departamento; e acima deste o sub-reitor; e acima deste o reitor...

Eis, então, algo que preciso aprender com a maturidade: a desenvolver o sentimento de comando numa escala hierárquica. Não lido bem com a condição de estar acima de outros, de comandar, de submeter decisões à minha aprovação. Não porque eu seja incapaz de exercer comando, mas porque prefiro o estreitamento de vínculos, o espírito de congregação, que é próprio da sala de aula. Não nego a hierarquia também nesse espaço, é claro. Não há como escapar a ela. Estruturas hierárquicas estão na base das vivências sociais. Isso é inegável! Mas, por outro lado, sabemos que a relação professor-aluno, em nossa cultura, é marcada não pelo distanciamento, mas pela proximidade. Por isso, o estudante se dirige ao professor empregando a forma “você”, em geral. E o professor não se aborrece com isso! O “você” é a forma não-marcada para a hierarquia. Com ela, estabelecemos uma relação de proximidade com o interlocutor.

Malgrado o fato de nunca ter podido ministrar o curso previsto em meu projeto, ainda acalento o desejo de reunir numa sala de aula leitores, cujo objeto de sua atenção serão os textos. Um trabalho que, necessitando recompensa, tendo um preço, traria prazer. E eis que a voz de Freud ecoa-me na alma: “há sempre a frustração do prazer! A infelicidade é mais gorda; a felicidade mais magra!” Mas aí me lembro de que há o desejo e a sua inevitabilidade; e também a utopia, que nos faz avançar.






segunda-feira, 18 de junho de 2012

"A morte não é nada para nós, pois, quando existimos, não existe a morte, e quando existe a morte, não existimos mais." (Epicuro)


                            
                                         Um ateu no divã

 - Doutor, o senhor precisa me ajudar! Estou a uma semana de completar setenta anos de vida. Chego a uma fase da vida em que a morte me parece muito atraente. Eu já posso vê-la; ela acena para mim com um sorriso de quem reencontra um velho amigo que não via há anos!



- Sou ateu. Para mim, não há nenhuma divindade na origem do Universo. Não há nada semelhante a um Pai providente e benévolo, interessado na felicidade de homens, mulheres e crianças deste mundo. O ateísmo ruge nas vísceras de minha alma! Diante da credulidade generalizada, minha razão ladra ferozmente! Olhemos para o mundo, doutor. Confrontemos o que se predica de Deus com os fatos. Eu li muito; entreguei-me aos livros durante longos anos e tive a humildade de reconhecer que as crenças que acalentei durante os anos de minha juventude estavam seriamente equivocadas.



- Entendo, senhor, Isaías. Mas o que não compreendo ainda é o que o trouxe aqui. Por favor, seja mais claro.



- Oh! Desculpe, doutor. Não vim aqui para falar de ateísmo. Mas sim do Mistério. A bem da verdade, da minha inquietação em face do Mistério. Coisa com que convivo desde de tenra idade, mas que, a esta altura da vida, alcançou o status de questão fundamental, dentre as inúmeras questões contra as quais meu espírito se acostumou a se debater.



- De que Mistério se trata?



- Do da Existência, doutor. O Mistério de Tudo que há. Não vê? Nosso cérebro evoluiu a ponto de nos condicionar a buscar padrões, quer em nossa vida interior, quer no mundo. E explicamos esses padrões por meio de relação de causalidade. Para todo efeito tendemos a buscar uma causa. Digo isso, doutor, porque li muito... sempre fui muito intelectualmente inquieto. E ainda o sou, a esta altura da vida. Me aventuro nos livros como a criança que se entretém com seus brinquedos. O cérebro criou o homem... aprendi lendo António Damásio... Um livro fascinante, chamado E o cérebro criou o homem. É porque somos dotados de um cérebro que foi capaz de produzir um self que estamos aqui pensando sobre o Mistério. A natureza de nossa consciência é que nos permitiu produzir literaturas, linguagem, cultura, artes, ciência, enfim... E, certamente, é graças a ela que podemos nos interrogar sobre o que chamo de Mistério.



- Então, doutor, é do Mistério que se trata. Tanto a ciência moderna quanto certas filosofias advogam que não há razão para estarmos aqui no mundo. A existência é contingente. Concluo, assim, que não há razão para que eu seja filho do homem e da mulher que chamo de pais. De um homem e uma mulher que me amaram desde de que nasci e que me tornaram possíveis as condições adequadas ao meu desenvolvimento humano. Se não há razão para a minha situação neste mundo, então devo dizer que tive muita sorte. Mas eu poderia, de acordo com a premissa ‘a existência é contingente’, ter nascido em um meio sócio-familiar muito carente. Poderia eu, desde o limiar da vida, ter experimentado as agruras da pobreza, da carência emocional-afetiva, da carência de oportunidades para uma escolarização plena. Poderia eu estar entre os milhões de miseráveis do capitalismo predatório. Poderia eu estar entre as crianças que padecem de fome nas áridas terras da África subsaariana. Mas também poderia eu ter sido beneficiado com um nascimento projetado para a prosperidade socioeconômica. Eu poderia ter sido filho de pais abastados em um país como a Noruega, onde os índices de desenvolvimento humano são os maiores do mundo. Ou PODERIA EU SEQUER TER NASCIDO!!!



- Perceba ainda, doutor, como cantava Tim Maia, um nasce pra sofrer enquanto o outro ri. Parece-me correto admitir que o sofrimento tece as malhas da existência; provavelmente, todos os seres humanos (também os outros seres vivos) sofrem; mas também é certo que uns experimentam sofrimento mais atroz que outros. Há verdade na lição budista, segundo a qual “nascer é sofrer, viver é sofrer e morrer é sofrer”.



- Até o momento, falei apenas de uma extremidade do Mistério. Falei do Início, cujas causas o nosso sentimento, a nossa subjetividade desconhece. Agora, pensemos na outra extremidade: na morte. Ao longo da vida, vamos desenvolvendo uma consciência bastante elaborada do mundo. Os bebês já demonstram sinais dela, desde muito cedo. Mas é quando despertamos para o acontecimento da morte (por exemplo, quando perdemos um ente querido), que aprendemos com nossos pais que todos com quem convivemos e a quem amamos irão morrer, deixarão de estar conosco, de conversar conosco, de rir conosco, de experimentar conosco todas as sensações da vida. Uma lição dura, dolorosa! De um lado, a contingência da existência; do outro, a necessidade da morte. E nós, no meio, sempre buscando um sentido... Estamos fadados a buscar sentidos...



- Como já disse, doutor, li muito e aprendi bastante. A aprendizagem é uma graça concedida pela seleção natural. E dela depende nossa sobrevivência. A ciência foi o melhor que pudemos produzir; e devemos muito à empresa científica. Contudo, o homem comum, ainda que experimentado nos mais variados discursos científicos, ainda que convencido de suas verdades, ainda que disposto a admitir nada mais do que fenômenos, do que o tangível, o mensurável, o experimentável, não é somente dotado de razão, mas de sentimento, de subjetividade. É esse sentimento de ser, é essa subjetividade, que o torna único em face dos outros, que o leva a acreditar na transcendência. Ele é único, insubstituível, mas, como todo ser humano, sabe que vai morrer. E sabe que os mortos não retornam à vida. Esse mesmo homem, que se orienta pelos imperativos da razão, sabe que espíritos não existem, que fantasmas não surgem para nos assombrar, que demônios não se apossam de nossos corpos. Esse homem rejeita toda e qualquer suposta manifestação do sobrenatural. Para ele, não há nada mais do que a matéria, do que a Natureza. Mas esse homem, embora saiba que, morrendo, não poderá mais dar testemunho de si, embora saiba que não terá mais um corpo e uma consciência, desconhece a experiência da morte, única! Não se morre duas vezes. Morremos definitivamente! Quer tenhamos sido estúpidos, intelectuais, pobres, ricos, capitalista ganancioso, socialista inveterado, da direita ou da esquerda... Morremos na ignorância sobre o Mistério. Por isso, doutor, devemos ter em conta que estamos imersos no Mistério. Estamos atolados na ignorância sobre ele. Sim, podemos aceitar a teoria do Big Bang, podemos aprender sobre teorias alternativas, como a que ensina que o universo é eterno. Mas, para nós, que não somos astrofísicos, que não nos ocupamos com cálculos e equações físicas, que muito ignoramos sobre os métodos empregados na busca das respostas que chegam até nós (pelos livros, pela imprensa), as explicações científicas não nos livram de estar visceralmente ligados ao Mistério.



- Sr. Isaías, e o Mistério te desespera?



- Não, doutor, de modo algum. Estar demasiadamente consciente dele me fez rever minhas prioridades. Casei-me com a mulher que ainda tanto amo, tive dois filhos, netos. Experienciei o amor em sua plenitude, seus prazeres e dissabores. Fui bem-sucedido em minha profissão, sem nunca ter acumulado riqueza. Mas gozei da maior delas, certamente. A do amor! Mas também fui intelectualmente rico. A filosofia me curou! Erigiu-me a alma, depois de algumas quedas!



- Então, o senhor se sente uma pessoa realizada, não é mesmo?



- É isso. É de realização pessoal que se trata.



- E quanto aos que não tiveram o mesmo privilégio? E quanto aos que morrem em tenra idade? E quanto aos que nasceram em condições sócio-familiares desfavoráveis?



- ... (silêncio) Aos que sobrevivem, há a ação política, há a luta por uma sociedade mais justa, há ainda a luta por maior liberdade (pelo menos nas sociedades democráticas como a nossa). Estamos destinados a viver em comunidades.... e a nos importar com elas...



- E quanto aos que não se importam?



- Entre estes, há os que se importam! A realidade é fundamentalmente contraditória.



- Sim, e a convivência social se funda em contradições. E nós é que as produzimos...



- Sim. De fato. Somos nós quem as produzimos. Mas, doutor, a que isso nos levará?



- A que você perceba que fomos da transcendência à imanência. As questões que o senhor levantou, no limiar de seu discurso, são, certamente, questões fundamentais, mas que nos transcendem. É possível que a vida não tenha nenhum sentido transcendente, que não haja um propósito sobrenatural para estarmos aqui. Mas há sentido imanente e devemos construí-lo. O senhor me falava de sua realização pessoal, me falava do amor à sua esposa, a seus filhos e netos. Me falava de sua dedicação aos livros, da riqueza intelectual que tanto aprecia. O senhor encontrou um sentido para a sua vida. O sentido não estava em Deus, na esperança da vida eterna. O sentido reside nos objetos que ama: no amor aos que te amam e no amor a uma vida dedicada aos livros. O amor e o conhecimento - me parecem - são seus maiores valores. As pessoas precisam de valores para viver, e o senhor encontrou naqueles o sentido para a vida.



- Compreendeu bem, doutor. Não podemos levar o mundo nas costas...



- Nem esmorecer em face do Mistério, nem fugir a ele! Precisamos conviver... Estamos destinados a isso...



- É, doutor, esse é outro problema que me ocupa a alma há anos...

terça-feira, 5 de junho de 2012

"A identidade entre ser e dizer: eis meu desafio" (BAR)






“O mundo não é dado a principio.

Ele se faz através da estratégia humana de significação”.
                                          

                                                                                                                                         (Patrick Charaudeau)



                           

                             Os saberes das Letras





Eis o essencial:


 

A linguagem é própria do homem. Desde a Antiguidade que os filósofos o repetem, o que vem sendo confirmado pelas ciências sociais através de suas análises e experimentos.

É a linguagem que permite ao homem pensar e agir. Pois não há ação sem pensamento, nem pensamento sem linguagem. É também a linguagem que permite ao homem viver em sociedade. Sem a linguagem ele não saberia como entrar em contato com os outros, como estabelecer vínculos psicológicos e sociais com esse outro que é, ao mesmo tempo, semelhante e diferente. Da mesma forma, ele não saberia como constituir comunidades de indivíduos em torno de um “desejo de viver junto”. A linguagem é um poder, talvez o primeiro poder do homem.

Mas esse poder da linguagem não cai do céu. São os homens que o constroem, que o amoldam através de suas trocas, seus contatos ao longo da história dos povos. Assim, é forçoso considerar que a linguagem é um fenômeno complexo que não se reduz ao simples manejo das regras de gramática e das palavras do dicionário, como tendem a fazer crer a escola e o senso comum. A linguagem é uma atividade humana que se desdobra no teatro da vida social e cuja encenação resulta de vários componentes, cada um exigindo um “savoir-faire”, o que é chamado de competência”.



(Patrick Charaudeau – p. 7)



Estamos na linguagem e a linguagem está em nós. É disto que se trata: de paixão. Do que sofremos e do que diante do qual nossa vontade se cala. É de passividade que se trata, portanto da paixão, do que se sofre e do que faz sofrer. Na filosofia aristotélica, a paixão inclui-se entre as categorias primeiras do ser, a saber, a quantidade, a qualidade, a relação, o tempo, o lugar, a situação, a ação e a posse. Nela, paixão pressupõe a ideia de passividade (“ ser queimado”, “ser ferido”). É também da paixão romântica que se trata, que não é senão desejo, exaltação, sentimento impetuoso, devastador. Da paixão que nos arrebata e nos impele a agir segundo o desejado. Para o bem ou para o mal, a paixão nos move. Seu valor depende do objeto do desejo. Se o álcool ou entorpecentes, paixões destrutivas; se o amor à verdade, paixão nobre. É da paixão nobre que se trata, portanto. Porque do amor à linguagem, do amor ao ensino pela/sobre a linguagem. Não é da paixão, contudo, que trata este texto, visto que ela é antes o que anima meu espírito a escrevê-lo.

Pensamentos são lampejos do espírito; aparições intangíveis que nos despertam. Por vezes, é preciso estampá-los numa folha de papel para que o essencial deles não se nos perca. Receio não tive o devido cuidado ultimamente, pois que deixei escapar pensamentos grávidos de reflexões. É vão tentar recordá-los agora. Outros pensamentos se fazem necessários ao desenvolvimento deste texto; possível é que guardem certa afinidade com aqueles que me esqueceram.

Absorto em leitura variada, tendo a alma abarrotada de questões, luto cotidianamente contra o excesso de consciência e persevero na busca por podar a excrescência. De tantos temas que me sabem ao espírito, quais me são mais interessantes ou urgentes, para fins de verbalização? Eis outra questão com a qual me debato. Decerto, a linguagem está entre essas questões mais interessantes; no entanto, tão-logo me aproxime dela, avulta-me à consciência sua fascinante complexidade e, ao invés de me deter a explicitá-la, deixo-me admirá-la com meus pensamentos (silenciados, é claro). Receio que eu não tenha podido despertar meus alunos para o maravilhoso universo da linguagem. Queria ter podido dar-lhes a conhecer outras tantas coisas que sei (porque aprendi, lendo) sobre a linguagem e que eles ignoram. Talvez, seja chegada a hora de tratar um pouco dessa complexidade. Elenquei alguns temas que poderiam engendrar reflexões futuramente. Sete temas que me parecem sobremaneira interessantes. A diversidade que eles parecem evocar ao espírito é apenas aparente, porque, de resto, todos tocam ao âmbito da linguagem, uns mais diretamente; outros menos. Mas – insisto – todos dizem respeito à linguagem, esse maravilhoso fenômeno psíquico-biológico e sócio-histórico que a tudo perpassa e que nos constitui enquanto seres humanos, homo loquens.



Tema 1 – A fabricação do real



De fato, um tema essencial. O que é isso que chamamos realidade? Ela existe independentemente de nós? Que relação tem ela com a linguagem? Como estar certos de que vivemos num mundo real e não virtual? Que relação há entre a realidade e o nosso cérebro? Que papel desempenha a cultura em relação à realidade? E as questões podem ser multiplicadas...



Tema 2 – A questão da verdade e da teoria



O que é a verdade? Como a ciência estabelece o que é verdade? Que relação há entre verdade e realidade? Ou entre verdade e teoria? Ou entre teoria e realidade? Eis no que é preciso pensar e repensar: a relação entre verdade, realidade (impensável sem a linguagem) e teoria? A verdade é relativa ou absoluta? O que significa dizer que uma proposição como “Está chovendo agora” é verdadeira? A verdade é um valor? O que nos impede de atribuir valor de verdade a enunciados como “Talvez, chova mais tarde” ou “Eu espero viajar no mês que vem”? Que relação há entre verdade e linguagem? Questões para a filosofia, é claro!



Tema 3 – A questão da identidade



Outra questão que me move a alma. O que é identidade? Depende do campo teórico em que nos situamos (da filosofia, da psicologia, das ciências sociais ou das ciências linguísticas). As identidades são construídas na e pela linguagem. Não há identidades fora de seus quadros. É no interior do discurso que elas são construídas e reconstruídas continuamente. Daí podermos falar, com Charaudeau, em identidade discursiva, indissociável da identidade social. Aprecio, especialmente, a forma como o autor francês expõe o paradoxo subjacente à construção da identidade, que em si mesmo, nos estimula a aventurar-nos nesse terreno: “cada um precisa do outro em sua diferença para tomar consciência de sua existência, mas ao mesmo tempo desconfia deste outro e sente necessidade ou de rejeitá-lo, ou de torná-lo semelhante para eliminar a diferença. O risco está no fato de que, ao torná-lo semelhante, perca um pouco de sua consciência identitária, visto que esta só se concebe na diferenciação”.

(http://www.patrick-charaudeau.com/spip.php?page=imprimir_articulo&id_article=243)



Tema 4 – A questão do ethos



Outra questão cujo desenvolvimento só é possível, se levamos em conta os atos de linguagem, porque do ethos, que é a imagem de si construída pela tomada da palavra pelo sujeito, nada se poderá dizer. Em todo ato de linguagem, quando o locutor toma a palavra constrói uma imagem de si mesmo, com vistas a garantir seu sucesso argumentativo; mas também constrói uma imagem de seu interlocutor; e este constrói uma imagem de si mesmo e do locutor (imagens recíprocas). Ambos, ao usarem a linguagem, fazem uma representação de sua pessoa e um da pessoa do outro. Daí para o conceito de faces, do sociólogo Erving Goffman, é um passo. A noção de ethos remonta à retórica, desenvolvida por Aristóteles e reinterpretadas por Cícero e Quintiliano, posteriormente. A noção de ethos, como imagem de si como produto do modo como se fala e, portanto, discursivamente construída, está relacionada à noção de identidade.



Tema 5 – A polifonia e a intertextualidade



Aqui, conviria apresentar uma proposta de interpretação e compreensão textual que fizesse ver como a polifonia e a intertextualidade estão na base de toda e qualquer manifestação de linguagem. É possível diferenciá-las? Se sim, o que as diferencia? As duas noções, que estão inter-relacionadas, nos chama atenção para o fato de que o nosso dizer se coloca numa cadeia de dizeres ou discursos e de que ela se estabelece sobre esses já-ditos. A fala primeira ou o sujeito adâmico são ilusões. Todo texto evoca outros textos; todo discurso é calcado sobre discursos prévios com os quais se relaciona de algum modo; mas também todo discurso projeta outros possíveis discursos-resposta. Falei em cadeias discursivas, mas, na verdade, melhor será dizer memória discursiva, que consiste no espaço da memória social que é condição para o funcionamento discursivo, já que é nela que o sujeito se inscreve. Ela encerra acontecimentos exteriores e anteriores ao texto, instaurando assim a interdiscursividade, que é constitutiva de toda prática de discurso.



Tema 6 – A questão da ideologia



Questão intrigante, por excelência. Complexa, por se prestar a diferentes enfoques, segundo as teorias no interior das quais ela é tratada. Tantos especialistas já trataram dela. Livros como O que é ideologia, de Marilena Chauí; Ideologia, de Terry Eagleton; A questão da ideologia, de Leandro Konder, bem como, Um mapa da ideologia, organizado por Slavos Zizek, nos ajudam a sobre ela pensar. E como não citar os clássicos Ideologia alemã e Manuscritos econômico-filosóficos, de Karl Marx. Mas será em Bakhtin que encontraremos a consideração da relação entre signo e ideologia. Como pensar em ideologia sem considerar as palavras, signos ideológicos por excelência? Interessante é a crítica que Terry faz a Marx nesse tocante.



Tema 7 – a questão da leitura



Todas as questões ventiladas aqui são inesgotáveis, porque demandam sempre novos olhares. E a questão da leitura não é diferente, especialmente quando, considerando-a com mais acuro, nos torna forçoso reconhecer que: a) a leitura é necessária ao aumento da quantidade de leitores-consumidores de livros, garantindo a lucratividade de um mercado do livro e da cultura; b) por outro lado, está ela na base da aprendizagem, tornando possível a elevação intelectual e o desenvolvimento da consciência crítica dos cidadãos. Do prisma do mercado, seu estímulo é interessante porque produz leitores para o consumo de livros; do ponto de vista da educação, é ela fomentadora da liberação do indivíduo, que se apropria do conhecimento e desenvolve sua consciência de cidadania.

Essa dualidade que se acha na base da questão da leitura nos leva a pensar sobre o papel da escola que, originalmente, (e ainda hoje, em nossa sociedade) esteve a serviço de uma pequena elite.



“(...) se as práticas econômicas encontram-se na origem da escrita, as práticas religiosas, a que se vinculam as literárias e as jurídicas, determinam a organização da escola, que se encarregará da difusão daquela ferramenta da linguagem verbal. A escola será dominada pelos religiosos, e seus freqüentadores comungarão os ideias sagrados de que a escrita igualmente se reveste entre seus usuários. A utilização da escrita supõe, em todos os casos, o domínio de seu código, porque não se trata apenas de produzir textos, mas de entendê-los”.



(Regina Ziberman, p. 18 – in: Escola e Leitura, velha crise, novas alternativas)



Eis tudo que eu queria dizer aqui, nas palavras de Antoine, em Como me tornei estúpido. Embora eu saiba que nunca dizemos tudo, só experimentamos a ilusão de tê-lo conseguido dizer:



“(...)Eu não consigo deter o meu cérebro, diminuir o seu ritmo. Sinto-me como uma locomotiva, uma velha locomotiva que se precipita nos trilhos e que não poderá jamais parar, porque o combustível que lhe dá a sua potência vertiginosa, o seu carvão, é o mundo. Tudo o que vejo, sinto, escuto se engolfa no forno do meu espírito e o impele e o faz funcionar em pleno vapor. Tentar compreender é um suicídio social, e isso significa já não desfrutar a vida sem sentir-se, a contragosto, e ao mesmo tempo, uma ave de rapina e um abutre que despedaça seus objetos de estudo”.



(p. 60)



Como deter a efervescência dos pensamentos que se vão acumulando na caldeira do espírito? A importância que os livros têm para mim pode ser expressa na seguinte frase: eles substituíram os brinquedos da infância. Hoje, na fase adulta, entretenho-me com os livros; é disso que se trata quando falo do espaço que os livros ocupam em minha vida. Na infância, era dos brinquedos e das brincadeiras que eu me ocupava; na adolescência, das meninas. Agora, os livros deram lugar aos brinquedos e às paixões primaveris. Pense na criança que ganha um brinquedo e se alegra em dispor dele segundo sua fértil imaginação e saberá como me sinto, ao debruçar-me sobre as páginas de um livro.