sexta-feira, 3 de maio de 2013

"A angústia é a disposição fundamental que nos coloca perante o nada." (Martin Heidegger)


                    


                        
                                    Há salvação para o homem?




Há, em nossa sociedade, onde o índice de analfabetismo está entre os maiores do mundo e onde o desenvolvimento em educação está entre os piores, um preconceito, infelizmente, bastante disseminado em relação à filosofia, segundo o qual filosofia não serve para nada, muito porque, segundo se crê, versa sobre questões que não tocam ao viver cotidiano do homem comum. É provável que essa má fama da filosofia entre nós se deva muito a sua redução à metafísica e, particularmente, a uma interpretação vulgar e equivocada da filosofia de Platão, que, propondo um realismo das ideias, chamou de real ao mundo inteligível ou das ideias, cuja existência acreditava ser independente do pensamento e do conhecimento. Em Platão, há uma subversão do modo comum como entendemos o mundo: o mundo dado à experiência sensível é um mundo das aparências (dos objetos, seres que vemos, tocamos); o mundo real e verdadeiro é o mundo das Formas ou Ideias perfeitas. Tradicionalmente, a metafísica é definida como a ciência das causas e princípios primeiros. É nela que se situa a grande questão com que a filosofia ficou marcada no imaginário popular, qual seja, a questão do ser. A metafísica encerra, portanto, a ontologia (estudo do ser), em cujo interior se pode situar uma doutrina do Ser Divino ou do Absoluto.
Surpreendentemente ou não, é possível encontrar, em obras de introdução à filosofia, o reconhecimento pelo autor da inutilidade da filosofia. Um caso ilustrativo disso está no trabalho de Roberto Rossi, intitulado de Introdução à filosofia – história e sistema (2004), em que o autor, embora reconheça a inutilidade da filosofia, vê nela uma vantagem:


“A própria inutilidade da filosofia é sua força, porque é ela que a torna livre. Se eu devesse pensar em função de alguma vantagem, de uma urgência, de um interesse, deveria dar só aquela resposta e somente aquela. Na verdade, a liberdade não existe na natureza. Pelo contrário, para ela é inútil e nociva” (p. 15)


Implícita aqui está a ideia de que a filosofia, enquanto prática racional pela qual o homem exercita sua liberdade e seu pensamento, a fim de compreender a si mesmo e o mundo em que vive, é uma forma de expressão de sua transcendência em relação à natureza. Essa ideia parece-me mais clara no passo a seguir:

“A liberdade é a essência do homem, precisamente porque o homem é capaz também de pensar sem a pressão das necessidades fisiológicas, sem se sujeitar apenas às obrigações práticas e ao utilitarismo funcional. (...) Atacar a filosofia, declarando-a inútil, significa, então, ter o mundo animal como padrão do homem, revelar cerda saudade da vida instintiva, cega, egoísta, da qual os animais representam a expressão máxima”. (pp. 15-16)

Quanto a mim, prefiro seguir a sugestão de Luc Ferry (2010) e ver na filosofia um caminho pelo qual o homem, com o concurso da razão, busca “salvar a si mesmo” – ou melhor, busca “salvar-se de si mesmo”. A minha experiência pessoal com a filosofia tem me ensinado que ela é, acima de tudo, uma atividade que se exerce por meio do pensamento reflexivo, através da qual domesticamos nosso próprio desconforto em face do mundo. A isso acrescente-se que é ela um caminho pelo qual aprendemos a lidar com a presença  percebida da morte no coração da vida. Nesse tocante, escreverá Ferry (2010):

“(...) é exatamente isso o que, num momento ou noutro, atormenta esse infeliz ser que é o homem, já que apenas ele tem consciência de que o tempo lhe é contado, que o irreparável não é uma ilusão, e que é preciso que ele reflita bem sobre o que deve fazer de sua curta vida”.
(p. 23)


Ensina o filósofo francês que a filosofia oferece ao homem meios de “salvar a própria pele”, não pelo caminho das ilusões, mas pelo caminho que o conduzirá à verdade sobre sua condição. O instrumento proposto pela filosofia é a razão. De posse dela, o homem pode trilhar esse caminho com suas próprias forças, o que supõe audácia e firmeza ( Ferry, 2010, p. 30).
Se quiséssemos provar quão equivocada é a crença na dissociabilidade entre filosofia e vida, sem que, para isso, precisássemos nos demorar em longos rodeios sobre a História da Filosofia, bastaria, referir, por exemplo, às contribuições dos estóicos, cuja sabedoria se aproxima claramente do budismo tibetano, ao propor que a esperança está entre as maiores adversidades da vida do homem. Ter esperança é colocar-se num estado de tensão que não se saciará, num estado de falta.
Diga-se, de passagem, que encontramos nos antigos gregos preciosas reflexões sobre como o passado e o futuro são prejudiciais à vida humana, ou seja, sobre como eles podem representar para os homens fonte de angústia, que os impede de viver a única forma real de vida: a do instante presente.
Aceita por uma grande parte de filósofos, quer sejam antigos, modernos ou contemporâneos, é a ideia de que o medo da morte impede o homem de viver. O medo da morte torna sua vida um tormento. Veremos, adiante, quando me ocupar, em linhas gerais, da filosofia de Martin Heidegger, que a angústia provocada pela consciência da finitude é intrinsecamente constitutiva do Dasein.
Para nós, modernos, que vivemos em condições marcadas por um ritmo de vida bastante acelerado, contentar-se em viver o instante presente pode parecer um modo de vida irrealizável, muito porque estamos continuamente projetando nossas vivências para além do aqui e agora, estamos traçando objetivos cuja realização se dará num futuro mais ou menos distante. Veremos, com Heidegger, que essa impossibilidade de o homem contentar-se em viver o instante presente se deve à própria constituição do Dasein, um ente que está sempre adiante de si, que se projeta para o futuro, que se autotranscende.
Sem mais delongas, façamos uma breve incursão na filosofia de Martin Heidegger (1889-1976), conhecido, na tradição da filosofia, como um dos maiores filósofos existencialistas da modernidade. Pouco importa aqui que seu projeto se distanciasse consideravelmente do de seus contemporâneos franceses. A sua principal obra Ser e o Tempo (1927) foi extremamente influente no movimento existencialista.
Um breve resumo de sua biografia não pode dispensar o fato de ter sido professor na Universidade de Freiburg (1916), onde se tornou aluno de Husserl.
Com a publicação de sua mais influente obra Ser e o Tempo (1927), Heidegger se afasta da fenomenologia de seu mestre, Husserl, e dá início ao seu empreendimento filosófico, cujo objetivo fundamental era investigar o sentido mais profundo da existência humana. Não se limitou a isso, no entanto. De sua agenda filosófica, fazia parte uma reflexão sobre as origens da metafísica e o significado de seu impacto sobre o pensamento ocidental.
Decerto, a preocupação basilar de Heidegger foi recolocar ou repensar a questão do ser que, na tradição do pensamento moderno, foi negligenciada em função da problemática do conhecimento e da ciência. Julgou necessário, assim, demolir a ontologia tradicional para trazer à cena do pensamento filosófico moderno o sentido original do ser. Heidegger propõe, então, que a existência só pode ser devidamente compreendida com base na análise do Dasein (traduzido como “ser-aí”). Há diferentes formas de definir e pensar o Dasein, conforme se verá. De um modo geral, no entanto, podemos pensá-lo como o ser humano que se abre à compreensão do ser.
Também figurou em sua agenda filosófica a reflexão sobre a questão da verdade, uma questão clássica na tradição filosófica. Nesse tocante, sua preocupação foi relacioná-la aos conceitos de ser e de conhecimento, com vistas a determinar sua gênese e seu sentido.

Dasein

Heidegger assumirá que o Dasein é um ente muito particular que permitirá o acesso à compreensão do ser. O Dasein é o único ente que coloca seu ser em questão, que está envolvido com o próprio ser e para quem a existência constitui um problema. É na relação de compreensão do Dasein sobre o mundo que se pode ter algum acesso ao ser dos entes. É somente através do Dasein que as coisas se revelam.
Heidegger propõe que o Dasein não se define por uma essência ou natureza previamente dada. Essa visão, decerto, motivou Sartre a escrever, posteriormente, a fórmula “no homem a existência precede a essência”. O Dasein é entendido também como um ser-no-mundo, ou seja, um ser-com-outros, um ser que assume uma situação no mundo. Todavia, ele não está completamente imerso no mundo. O Dasein é ser que se interpreta a si mesmo.
Como ser-no-mundo, somente o Dasein pode não ser si-mesmo, caso em que se encontra na condição de inautenticidade. Dela trataremos adiante. Heidegger atribui ao Dasein a propriedade existencial. Com base nela, o Dasein se difere dos demais entes, que se definem por categorias, que são suas propriedades essenciais.
É preciso compreender melhor a ideia de ser-no-mundo. Com ela, Heidegger quer dizer que o Dasein está essencialmente no mundo e que dele é inseparável. O Dasein está imerso no dia-a-dia da vida no mundo. Ele se interessa em explicar o que torna o mundo sua casa ou sua morada. O seu mundo é um mundo em contexto ao qual ele associa projetos e significados. O Dasein é “o que não é”. Ele sempre se projeta para possibilidades futuras.

Disposições

Sem perder de vista a importância do conceito de Dasein no trabalho de compreensão do sentido profundo do ser, levado a efeito por Heidegger, considero, agora, o conceito de disposições. São elas existenciais fundamentais do Dasein. Não devem ser vistas como fraquezas ou desvios da racionalidade. Na verdade, as disposições é que levam o Dasein (o impulsionam) a se defrontar com um enigma para cuja compreensão a razão se lhe demonstra insuficiente. Dentre as disposições mais importantes para a razão, a compreensão e conhecimento, destacam-se as paixões e os desejos. Heidegger entende que o ser se revela sem impedimento nas disposições. São disposições, além das duas referidas, a culpa, a ansiedade, o tédio e o medo.

À-mão

Por à-mão, Heidegger entende a forma como o Dasein se relaciona com as coisas. Essa noção envolve a ideia de praticidade e imediaticidade na forma como essa relação se dá. As coisas estão disponíveis para o uso pelo Dasein.
Tanto o conceito de ser-no-mundo quanto o conceito de à-mão apontam para o fato de que a filosofia de Heidegger visa a compreender o homem em sua existência concreta, da qual se destaca a importância de sua vida cotidiana. Heidegger ensinará que as coisas úteis estão necessariamente em uma situação e estão sempre relacionadas com outras coisas úteis numa rede de associações. A essa rede de associações em que as coisas estão dispostas potencialmente para uso, Heidegger chama totalidade instrumental.
A filosofia deve, então, voltar-se para a cotidianidade onde melhor nos situamos para apreender o ser, embora sempre de modo limitado. O mundo, em Heidegger, é o mundo prático da vida diária. O ser-no-mundo, portanto, envolve o manuseio das coisas e implica sua vinculação à prática. Importa entender que, para Heidegger, pressuposta em nossa percepção do mundo há sempre uma compreensão. Toda percepção envolve uma interpretação. O mundo existe de modo prático para a percepção de modo já significado na interpretação ou na suposição.

Estar-lançado

O estar-lançado é o aí contingente, é o fato de estarmos entregues a uma situação (aí) e de reconhecermos essa situação como contingente, de tal modo que essa situação poderia ter sido diferente do que é. Pense-se no fato de que você, leitor, nasceu, sem qualquer razão, numa família de classe média do Rio Grande do Sul, dela recebeu um nome e através dela desenvolveu sua individualidade. Mas poderia ter se dado que você nascesse entre aborígines da Nova Guiné. Portanto, o estar-lançado recobre o fato de que estamos entregues à contingência sem qualquer razão. É o que entendo como “ser arremessado à existência”. Está claro aqui que a filosofia de Heidegger nega a possibilidade de existir um Ser Superior que determinaria nossa situação no mundo.

Compreensão

Este conceito inclui a ideia de que o Dasein, uma vez lançado em direção ao futuro, torna possível a sua liberdade. O Dasein está sempre consciente de suas possibilidades. O conceito de compreensão destaca as possibilidades do Dasein. Lembro que o Dasein é aquele que ainda não é, que se projeta para o futuro, não sem traçar objetivos e motivar-se por ambições. Ele é sempre uma possibilidade de ser.
Heidegger, no entanto, ao contrário de Sartre, entende que temos certas possibilidades definidas e que nossa compreensão dessas possibilidades está sempre, ainda que parcialmente, determinada pelo nosso passado e por nossas disposições. Para Sartre, há uma ruptura entre o passado e o presente ou entre o presente e o futuro.
Subjacente ao conceito de compreensão está também a convicção de Heidegger segundo a qual há sempre, na interpretação, uma pressuposição de alguma coisa que é apresentada a nós. Por exemplo, percebendo a natureza de um apito antecipamos, com base na experiência, a imagem de um trem que se aproxima. A percepção da natureza do som do apito evoca a pressuposição de que, no mundo em que vivemos, trens têm apito. Assim, interpretamos o som percebido como “o som do apito de um trem”.

Ser-para-a-morte

O Dasein se define também como um ser-para-a-morte. A perspectiva da morte lhe confere unidade e completude. É preciso, no entanto, reconhecer, com Heidegger, que o Daisen, que é ser-no-mundo, vive, em sua cotidianidade, como se fosse imortal. Isso torna sua existência uma existência inautêntica.
Para Heidegger, compreender, de fato, a inevitabilidade da nossa própria morte significa reconhecer uma verdade ontológica constitutiva do Dasein. Heidegger propõe que aceitemos nossa própria morte, que aceitemos que somos “entes-para-a-morte”. É só por meio dessa aceitação que o Dasein se torna autêntico. Existir autenticamente é compreender o significado do próprio existir.
O grande problema, aqui, segundo Heidegger, consiste na tendência de o Dasein evitar considerar a própria morte. Na verdade, nós agimos como se não fôssemos morrer. Tendemos, ao contrário, a ver a morte como um fato que atinge “todo mundo”. A morte é, assim, reconhecida como um acontecimento do qual ninguém escapa, mas não como uma possibilidade real para mim mesmo no agora.
Heidegger propõe, então, que “antecipemos a própria morte”, o que significa confrontar-se com a possibilidade da realidade de nossa própria morte. Não pensar na morte como um acontecimento que só implica os outros.
Heidegger reconhece que, em geral, o Dasein não leva em conta a perspectiva de sua própria morte. Para ele, há dois modos inautênticos de compreender a morte: o medo e indiferença. A indiferença se divide em dois tipos: um é a indiferença em relação à morte tal como expressa por Epicuro. Para Epicuro, quando estamos vivos, a morte não existe; e quando a morte existir, nós não estaremos mais aqui. Ao óbvio dessa formulação se prende o ensinamento segundo o qual não devemos nos afligir com a morte, já que não podemos experienciar a sensação de estar morto. Quando a morte ceifar nossa vida, não estaremos mais aqui para nos preocupar com ela. O segundo tipo de indiferença consiste em pensar que a morte é um acontecimento que envolverá a todos nós indiscriminadamente. Ou seja, a indiferença aqui é justamente a atitude em face do fato de que a morte chega para todos nós. Na perspectiva de Heidegger, a inautenticidade dessa atitude em face da morte consiste em considerar a morte como um acontecimento que atinge o outro. A pessoa, na inautenticidade, não considera a possibilidade de sua própria morte.
O medo é outro modo de inautenticidade diante da morte. No medo, o sujeito considera a morte objetivamente, mas não subjetivamente, não como “a sua possibilidade mais própria”. Nesse caso, a morte é encarada como uma realidade futura, projetada para o futuro. O Dasein, temendo a morte, mas tratando-a como realidade distante e objetiva, foge à sua finitude. Ter consciência da finitude é, para o Dasein, aceitar a possibilidade de sua própria morte, da morte como uma realidade possível, a qualquer momento, que é sua e apenas sua.
Em Existencialismo (2013), Jack Reinolds sintetiza a relação do  Dasein com a morte, nos seguintes termos:

“A morte é uma estrutura existencial que subjetividade humana, e isso significa que a possibilidade de morrer é parte da estrutura de nosso mundo à medida que o experienciamos agora, não apenas como alho que é adiado para mais tarde. Em uma linguagem mais filosófica, podemos dizer que a morte é uma possibilidade futura que é constitutiva do “agora”, do presente”.
(p. 68)


Lembremos aqui o trecho da canção Por enquanto da Legião Urbana: “o pra sempre sempre acaba”. Ou seja, o presente só é na medida em que o compreendo como finito, como um espaço de tempo que não prosseguirá para sempre.
Que benefício, se pudermos dizer assim, haveria em seguir a proposta de Heidegger de aceitação de nossa própria morte, ou melhor, de encarar a perspectiva de nossa própria morte como possibilidade do ‘agora’? Para Heidegger, é justamente esse reconhecimento da realidade de nossa própria morte, como sempre possível, que nos permite estruturar nossa vida significativamente. A consciência genuína de nossa finitude motiva-nos à realização de nossos projetos. Reconhecemos que a morte não dá aviso prévio; ela pode nos surpreender a cada um de nós a qualquer momento. Por isso, mobilizamos nossas disposições para perseguir nossos objetivos, no sentido de atingi-los. Insiste Heidegger também que a morte, sendo um impedimento em potencial para a realização de nossos projetos, é uma condição necessária para a nossa liberdade e individualidade. Conforme nota Reinolds (p. 69), “somente se estivermos conscientes de nossa própria finitude seremos impelidos a agir agora e com urgência”.
O modo como Heidegger desenvolve a questão do ser-para-a-morte leva-nos a concluir, corretamente, que qualquer crença na possibilidade de uma vida pós-morte é não só ignorar o significado da morte e da existência, como também viver na inautenticidade. Donde se conclui que todos os religiosos que creem numa vida pós-morte vivem inautenticamente.
Finalmente, quero considerar duas outras noções implicadas no ser-para-a-morte, quais sejam, a de ansiedade (ou angústia) e a de decadência.
Antes de considerá-las, cumpre salientar que, no momento em que reconheço que eu devo morrer, eu passo a me compreender como um indivíduo. O reconhecimento da possibilidade sempre aí de nossa própria morte me individua. Não sou mais um na multidão. Essa individuação que a consciência da possibilidade da própria morte engendra leva a que o indivíduo reconheça que o outro não pode morrer em seu lugar. Não devemos pensar o outro na condição de mártir (aquele que sacrifica a própria vida por um amigo). Dizer que o outro não pode morrer em nosso lugar é dizer que o outro não pode antecipar por mim a minha própria morte. Novamente, trago à cena as palavras de Reinolds, que observa:

“(...) Heidegger sugere que o si-mesmo-impessoal evita uma compreensão autêntica da morte manipulando a indefinição do momento da morte – nós não sabemos  quando ela acontecerá, e por isso não entendemos completamente que vamos morrer – mas ele também argumenta que isso é claramente um truque”.
(p.72)

A ansiedade pode ser tomada como sinônimo de angústia. Empregarei esse último termo. Em termos gerais, a angústia, em Heidegger, diz respeito ao sentimento de insegurança diante do nada. O sentimento de que fomos lançados ao mundo, sem qualquer razão, para morrer é fonte de angústia.
É preciso distinguir angústia do medo. Na angústia, não há um objeto real a nos causar apreensão ou aflição; ao contrário, o medo supõe a presença de alguma coisa que nos ameaça. Assim, a perspectiva da morte causa em nós o sentimento de angústia. Somos um ser-no-mundo destinados a morrer e nada podemos fazer contra isso. Mas Heidegger não está preocupado em considerar a morte como dado empírico, mas a relação da vida com a perspectiva da morte. Sua preocupação recai sobre a relação do Dasein como ser-no-mundo que reconhece a possibilidade se sua própria morte. Assim, argumentará Heidegger, contra Epicuro e Sartre, que não precisamos estar à beira da morte, não precisamos estar desenganados pelo médico, sentenciados para morrer, para que nos demos conta de que “caminhamos em direção à morte”. Somos ser-para-a-morte, o que significa reconhecer que a possibilidade da morte é constitutiva da estrutura do Dasein.
O que significa a decadência, então, segundo Heidegger? Consiste ela na convicção de que todos iremos morrer e, nesse caso, não levamos em conta a possibilidade mesma de nossa própria morte. Pensamo-nos como um na multidão.
A angústia nos faz sentir que o mundo não é mais nossa casa.  Mas uma compreensão autêntica da morte leva-nos a entender que os papéis sociais que assumimos, que nossa identidade que se vai construindo em nossas vivências sociais não são senão ilusões. A própria identidade que construímos para nós revela-nos que “não temos possibilidades necessárias”, ou seja, não é necessário que, em face de um conjunto de possíveis, eu seja professor e um pai de família, por exemplo. Disso se segue que o significado de nossa existência dependerá tão somente de nós. Aqueles papéis ou aquelas identidades não definem quem realmente somos. Daí a autotranscendência do Dasein, daí também a sua projeção para possibilidades futuras. O Dasein é ser-no-mundo, mas não está enraizado no mundo, não está completamente determinado num contexto sócio-histórico dado.
Estou ciente de que a descrição que fiz de uma parte da filosofia de Heidegger foi apressada. Espero, contudo, não ter cometidos grandes falhas. Deixo ao leitor a tarefa de tirar as consequências da perspectiva de Heidegger sobre condição humana para considerá-las como contributos ao esforço para “salvar-se de si”. Deveríamos considerar a filosofia de Heidegger como uma filosofia do desespero? Estaria ela imbuída de uma visão pessimista sobre a existência humana? Ou será que ela pode constituir um caminho para o bem viver?
Decerto, para tentar responder a essas questões, deveríamos nos aprofundar na filosofia de Heidegger a fim de compreendê-la mais satisfatoriamente. Não obstante, as perguntas aqui sugeridas – que não esgotam todas as questões possíveis – servem-nos como estímulo para estudos mais aturados e extensos.

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Vamos feminilizar o amor!



Para uma revolução feminina do amor


"O filósofo francês André Comte-Sponville escreveu, certa feita, algo como "foram as mulheres que inventaram o amor". Portanto, me parece que só elas podem livrar o amor da agonia a que ele sucumbiu entre nós, homens ocidentais do século XXI. Urge que se levante uma "revolução feminina do amor". Que as mulheres se reapropriem daquilo que lhes pertence por natureza: o amor. Amor que conheceram, desde que sentiu crescer em seu ventre um novo ser indefeso, tão dependente de seus cuidados. É nessa experiência de cuidados com este ser gerado em seu corpo que a mulher inventa o amor e proclama sua máxima: "AMAR É CUIDAR". Cuidar do que é nosso, cuidar dos que dependem de nós, cuidar para que a vida resista à sua tendência para a morte, dada a fragilidade que lhe é inerente. Não ignoro que o amor seja experiência de conflitos, de inseguranças e temores; mas, essencialmente, é experiência de cuidado, coisa de que as mulheres sabem bem, pois vivenciam isso, não só como mães, mas sempre que, olhando para o mundo com sua sensibilidade que lhe alarga o próprio olhar, se dão conta dos desprotegidos, dos miseráveis, dos desgraçados, dos indefesos, dos marginalizados; em suma, de toda sorte de desditosos que a ética masculina da dominação e da guerra de todos contra todos que se opõem a ela tratou de empilhar à margem do coração dos dominadores"


(BAR)

Eis o que me parece ser o amor perfeito (que se perfez)




"O amor é o palco mais elevado onde homens e mulheres encenam sua mais íntima contradição: a do desejo com a sua condição humana" (BAR)


                           

                                   Extrapolações matinais


A partir das 6 da manhã, a cama se me torna intolerável. Pensamentos vão-se-me empilhando na alma, produzindo um desconforto tal, que me expulsa do único estado em que me é possível esquecer a vida mesma para experienciar outras vivências, a que se segue, quase sempre, um sentimento de decepção, porquanto não sejam reais, num sentido forte. Sonhos compensam o estar vivo ou, como poderia dizer Freud (não exatamente com  estes termos), são as formas pelas quais o inconsciente se expressa ou se declara. E eu tenho sonhado bastante. Mas o pior sonho é aquele que sonhamos em vigília e do qual despertamos. Esse sonho em vigília, quase sempre, tem outra natureza: é uma ilusão.
O drama que se me encena na alma é agravado pelo fato de aos pensamentos perturbadores associarem-se altos níveis de ansiedade e frustração. Não confundamos ansiedade aqui com sofreguidão. Em psicologia, ansiedade não é sofreguidão. Refiro-me à ansiedade básica, que remonta à infância, e que inclui sentimento de solidão e impotência em face de um mundo hostil. É desse desconforto familiar no estar-no-mundo que se trata. Por frustração, também à luz da psicologia, entendo o estado emocional que resulta do impedimento, da decepção, de um interdito à realização de um desejo. E nossos amores modernos são celeiros fartos de frustrações.
A sabedoria antiga já rezava, muito antes da psicanálise surgir à cena no mundo ocidental, que a mulher é um enigma. Quase nunca se pode estar certo do que ela quer. Ela é um esconderijo que dissimula alguma coisa. Mas que coisa? Freud, seguido por Lacan, posteriormente, viria a endossar a tese de que só há um sexo: o falo, muito embora haja dois modos de gozo. A Lacan devemos uma frase que se tornou famosa: “A mulher não existe”. Freud insistirá ainda que a sexualidade feminina é, em essência, masculina, pois só há uma libido e essa libido é a masculina. Muitas feministas chiaram contra Freud (e contra Lacan?), por considerarem sua teoria da sexualidade feminina fruto de uma ideologia patriarcal predominante entre nós ainda. Especialistas em Freud já notara uma tendenciosidade masculina na abordagem da sexualidade feminina proposta por ele. 
Mas deixemos Freud, o que é ser mulher e a sexualidade de lado. O que aprendi, em minhas leituras de psicanálise, é que os homens (não sei se todos, mas alguns) buscam encontrar numa mulher a anima deles, ou seja, seu lado feminino. Esse “lado feminino” supõe que saibamos sua definição ou que essa definição descreva uma natureza feminina objetivamente. Mas deixarei a cargo do leitor os questionamentos. No amor romântico, há justamente essa busca: o homem deseja encontrar na amada sua anima. Alguns, ao contrário, não têm encontrado senão o silêncio do desconhecido, o escuro do desejo que não sabem por quê. Não livro nem homens nem mulheres da responsabilidade por seus infortúnios amorosos, pela sua desnutrição amorosa. Ah! Estes seres bípedes sempre insatisfeitos! Prisioneiros do desejo.  Gosto do trecho do texto Psicanálise, que consta da série O que é, em que o psicanalista Fabio Herrmann descreve a relação contraditória dos seres humanos com o desejo:

“(...) a casa que construíram, como a grande casa que a humanidade vem construindo para si, representa bem demais a realização de seu desejo. Ora, o problema é que nós não desejamos o que queremos, nem tampouco ficamos satisfeitos de encontrar o que desejamos. Na verdade, nós, humanos, não sabemos bem o que desejamos. Veja um exemplo. Antes de mais nada, nós somos aquilo que desejamos ser. É fácil entender, já que desejo é o nome daquilo que faz com que a gente pense, faça, seja. Ele parece vir de dentro da alma, mas é criado na vida social e biológica, de sorte que se pode dizer até que “somos desejados” desta ou daquela maneira. Somos desejados ativos ou entediados, cruéis ou compassivos, apavorados ou distraídos. Aliás, a humanidade deseja-se como é; e dizia, constrói-se o seu mundo de acordo com tal desejo. Só que não acredita que, de fato, se tenha desejado como é. Assim, tendo transformado o mundo a fim de lhe servir de casa, acha que não está ainda bem feito, que sobram muitas coisas desumanas a humanizar. O céu é muito alto, o tempo é longo demais, as guerras muito frequentes. Ora, se o tempo e o espaço são demais infinitos, é que os homens têm em si uma aspiração em desacordo com seu tamanho e duração de vida. Quanto às guerras, quem as faz?”
(pp. 54-55, grifo meu)


Como se vê, os homens são excesso e estão constantemente insatisfeitos, não porque o mundo criado por eles esteja em desacordo com o desejo (ao contrário, como sugere Herrmann, o mundo humano corresponde exatamente ao desejo humano). O homem constrói um mundo que reflete bem o seu desejo, tanto no que diz respeito àquilo que nele aprecia, quanto no que toca àquilo que nele odeia. Mas, ao olhar para a obra criada e para as coisas que nela odeia, o homem diz a si que não foi seu autor, que essas coisas precisam ser humanizadas. Sua insatisfação decorre do fato de acreditar que o mundo domesticado não corresponde ao que desejou. A insatisfação se nutre desse engano, encontra nele sua fonte. Daí a insistência com que culpa o mundo, a sociedade, a família, a cultura, esquecendo-se de que na origem de tudo isso se encontra o próprio excesso do homem e seu desejo criativo, mas tedioso.
Por ora, é o que temos para hoje. A satisfação, ao contrário do que sugere o mercado capitalista que engendra o consumismo, nunca está garantida. E sigamos como famintos (de amor?) pedindo socorro a que forças superiores desconhecemos, porque elas mesmas não são senão fumaças do incêndio de nosso desejo.

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Toda palavra é grávida de silêncio.


                                             



                                                 Indo além do texto


Este texto é mais um testemunho de minha obstinação docente no trabalho com o ensino da leitura. A confecção deste texto assenta no pressuposto de que a eficiência do processo de produção da leitura depende muito da capacidade de o leitor atuar cognitivamente nas camadas de sentidos subjacentes à superfície textual. Ademais, nesta exposição, assumo que o texto é um evento sociocognitivo-interacional complexo para o qual convergem diversas competências e/ou estratégias que são ativadas ou mobilizadas tanto pelo produtor, por ocasião da atualização do seu projeto de dizer, quanto pelo interpretante, por ocasião da interpretação/compreensão dos enunciados então produzidos.
O leitor experiente é aquele suficientemente habilitado a ir além da superfície do texto, no processo de interpretação, que visa à compreensão dos atos de linguagem.
Como eu esteja preocupado com a questão da leitura, limito a noção de texto à modalidade escrita, muito embora ‘texto’ seja toda e qualquer entidade linguística produzida num contexto determinado e preenchendo funções sociocomunicativas determinadas. Todo texto é, assim, uma unidade de comunicação, de modo que os enunciados produzidos na fala nada mais são do que textos.
Tendo em vista o exposto, meu objetivo será mostrar como o leitor pode se tornar mais competente, ao conseguir, com base no processo de inferenciação (processo básico e indispensável a toda prática linguageira) reconhecer pressupostos e produzir subentendidos. Além disso, também será minha preocupação aqui oferecer uma proposta de leitura de alguns trechos do texto de Sponville, em Amor à solidão (2006), orientada por um método que pode ser enunciado com as seguintes formas performativas:

1) Preste atenção nas palavras;
2) Vá além das aparências.

Bem sei que, tal como os formulei, os enunciados não esclarecem muito sobre como deve proceder o leitor. Vou então desenvolver um pouco esses dois comandos metodológicos. Em 1), solicita-se que o leitor atente para certas palavras que ativam processos de inferenciação. Essas palavras podem também estabelecer relações significativas importantes para a compreensão do texto como um todo. Elas podem sugerir associações com outras palavras num mesmo campo semântico. Grosso modo, podem ser palavras que “lançam” o leitor para fora do texto, num movimento cognitivo que, tendo início no texto, envolve a ativação de saberes de ordem vária que ele tem armazenados em sua memória. Muitas palavras servem como marcadores de pressuposição, ou seja, são índices que sinalizam para conteúdos não explícitos nos enunciados, embora intrinsecamente ligados a eles. Acredito que o princípio 1) ficará claro quando da análise dos textos de Sponville.
Em 2), pede-se que o leitor não se prenda à significação produzida na superfície textual. Nesse caso, está implícita a ideia de que, ao falarmos, ao produzir um discurso, instauramos, consciente ou inconscientemente, silêncios. O silêncio é sempre fundante dos sentidos. Não há sentidos sem o silêncio. Pelas palavras vazam silêncios. O silêncio é constitutivo da linguagem, porque a linguagem é insuficiente (ela não diz tudo). Conforme ensina Orlandi, em As formas do silêncio (2007):

“Com efeito, a linguagem é passagem incessante das palavras ao silêncio e do silêncio às palavras (p. 70)”.


Há, portanto, um jogo constante entre palavras e silêncios nas atividades linguísticas. É mister dizer, no entanto, que por silêncio não devemos entender ausência de palavras. O silêncio é onde se pode significar. As palavras transpiram silêncios; o silêncio está nas palavras, e não na ausência delas. Porque a linguagem não diz tudo, ao  se dizer fica sempre algo por ser dito, domínio este do silêncio, do possível, do múltiplo. É aí que o sentido faz sentido.
Para efeito de análise, em minha proposta de leitura dos textos de Sponville, levarei em conta os conceitos de pressuposto e subentendido, que passo a definir doravante. Ambos os conteúdos são implícitos. No entanto, há diferenças entre eles, como veremos.
O pressuposto está envolvido no processo de pressuposição, que é o processo através do qual o interpretante, por meio de inferência, e levando em conta uma base de conhecimento comum (com seu interlocutor), recupera um ou mais conteúdos implícitos, mas inscritos no enunciado. O pressuposto é, portanto, uma informação implícita que, não estando presente no enunciado, é dele dependente. Todo enunciado deve ser visto, nesta perspectiva, como constituído de dois níveis de sentido: o posto, que é o conteúdo proposicional, por exemplo, em “Maria ainda não chegou”, “põe-se” ‘Maria não chegou’; e o pressuposto, que é o conteúdo não explícito, mas inscrito no enunciado – o que significa dizer que pode ser recuperado com base numa palavra que o sinaliza ou o marca (marcador de pressuposição). No enunciado em tela, é a palavra “ainda” que marca a pressuposição, ou seja, que indica o pressuposto, inferido pelo interpretante, com base no enunciado, ‘Maria vai chegar’. Em outros termos, é o “ainda” que me permite inferir ‘Maria vai chegar’ (pressuposto).
Duas observações são fundamentais sobre o pressuposto: em primeiro lugar, o pressuposto é imposto, ou seja, é um conteúdo veiculado pelo enunciado, de modo implícito, evidentemente, para ser aceito. O pressuposto é assumido como inquestionável e, nesse sentido, da sua aceitação depende a continuação do discurso. Disso não se segue que não se possa questioná-lo, mas isso acarretaria sérias consequências para a interação. Num caso extremo, quando os pressupostos não são aceitos, o discurso pode ser interrompido (não há acordo sobre a validade dos pressupostos). Por exemplo, se alguém ousasse dizer algo como “Só a Grécia antiga produziu grandes filósofos”, provavelmente atrairia a objeção do seu interlocutor ao conteúdo pressuposto segundo o qual ‘em nenhum outro lugar se produziram grandes filósofos’. Evidentemente, nesse caso, o locutor não foi bem sucedido, já que pretendeu “impor” um pressuposto frágil, facilmente refutável por quem quer que conheça um pouco sobre a história da filosofia. Claro é que esse é um exemplo extremo; há situações que gerará controvérsias. De qualquer modo, importa entender que todo conteúdo pressuposto é colocado à margem da argumentação, de tal modo não que se  encadeia sobre ele, ou seja, os enunciados subsequentes não se relacionam ao pressuposto. Vejamos um exemplo:
(1) Meu pai ainda não chegou, mas minha mãe está em casa.

Imaginemos que (1) fosse produzido numa situação em que alguém estivesse procurando o meu pai e eu supusesse que essa pessoa poderia querer falar do que se trata com uma pessoa responsável. O pressuposto “contido” em “Meu pai ainda não chegou” não é “afetado” pelo encadeamento por meio de “mas...”. Portanto, ele está à margem do desenvolvimento da argumentação. No caso, eu reconheço que frustrei, inicialmente, o desejo do interlocutor de falar com meu pai, ao comunicar-lhe que ele não está em casa, mas tento evitar sua total frustração procurando sugerir que ele dê o recado à minha mãe, de modo que ela possa transmiti-lo a meu pai.
O subentendido, por outro lado, é particularmente dependente do contexto de comunicação e também supõe uma base de conhecimentos que se supõem partilhados pelos interlocutores. Mas difere fundamentalmente dos pressupostos porquanto é de inteira responsabilidade do interpretante. Aliás, o enunciador pode, inclusive, insistir com o enunciatário que não disse o que ele achou que disse. O enunciador, assim, não assume a responsabilidade pelo que disse (de fato, ele não disse), transferindo-a ao enunciatário. É este que, por inferência, com base no contexto de comunicação e no conhecimento partilhado, produz uma interpretação não prevista ou não desejada pelo enunciador. Veja-se o caso abaixo:

(2) A -  Você conhece esta música?
      B - Não é da minha época.
      A - Está me chamando de velha?

Em (2), a parte “está me chamando de velha?” não é de responsabilidade do enunciador B. Seu enunciado não permite ou não autoriza a suposição do enunciador A. De fato, o enunciador B não disse “você é velha”; foi o enunciador A que assim o inferiu. Ele faz uma interpretação, portanto, não autorizada pelo enunciado como ato de linguagem; no entanto, a interpretação do enunciador A é justificável com base num conjunto de hipóteses que ele formula. Essas hipóteses se baseiam em conhecimentos partilhados e pressupostos na situação de comunicação. Assim, quando pergunta “você conhece esta música?”, há a suposição por parte do interlocutor de que a música é antiga; e realmente é o que ele diz: “não conheço (está implícito), porque não é da minha época”, ou seja, “porque a música é antiga”. O conhecimento partilhado de que o enunciador A é uma pessoa mais velha do que o enunciador B favorece a produção do subentendido por A.
Chamo atenção para o fato de que o fenômeno dos implícitos (como o do pressuposto e do subentendido) ilustra a concepção de linguagem ou discurso como arena de conflitos. De fato, em muitos contextos, a produção de subentendido pode acarretar desentendimentos, discórdias ou mesmo brigas entre pessoas.
Um caso interessante de subentendido é o que envolve uma asserção em que um elemento de informação reconhecido como indiscutivelmente verdadeiro não é pertinente ao contexto, de modo que o interlocutor é levado a inferir a pertinência com base na informação veiculada. Para tanto, ele leva em conta o contexto.

(3)  A – Você gosta do presidente Lula?
       B – Cara, eu gosto do Brasil.

O enunciador A, reconhecendo que a resposta não é pertinente à pergunta, é levado a subentender que o enunciador B não gosta do Lula. É possível que A rejeite a inferência de B, e busque se explicar, o que desencadearia toda uma discussão subsequente sobre se faz algum sentido gostar de um país sem se preocupar em avaliar o trabalho do presidente.
Essa breve exposição e explicação dos fenômenos da pressuposição e do subentendido sugere a sua importância no processo de leitura, porque o torna mais criador e o leitor mais eficiente. Do reconhecimento do leitor dos pressupostos depende o seu sucesso interpretativo durante a atividade de leitura, na medida em que ele consegue atuar cognitivamente nas camadas subjacentes de sentido. Não menos importante, é claro, para o aperfeiçoamento da competência de leitura ou, para ser mais preciso, da competência comunicativa dos enunciadores, é a produção de subentendidos. Mas, nesse último caso, é necessário sensibilidade do enunciador para reconhecer quando a produção do subentendido é desejável e pertinente, sob pena de lhe trazer alguns prejuízos sociocomunicativos.
Tomarei, de agora em diante, para análise os textos de Comte-Sponville, a fim de produzir uma leitura que patenteie não só a importância dos conteúdos pressupostos para o processo mesmo de leitura, como também a importância de superar práticas que prendem o leitor à superfície do texto.

Quantos fogem da solidão, ao contrário, e são capazes de um verdadeiro encontro? Quem não sabe viver consigo, como saberia viver com outrem? Quem não sabe morar com sua própria solidão, como saberia atravessar a dos outros?” (p. 30).

Destaquei as formas “quantos “ e “quem” porque elas sinalizam conteúdos pressupostos. Elas levam o leitor a inferir informações que o enunciador supõe como indiscutíveis. Assim, o uso de “quantos” sugere que há pessoas que fogem da solidão, sugere que são muitas pessoas. A pergunta, como um todo, já prevê a resposta, ou seja, a resposta está pressuposta na pergunta. O enunciador já a pressupõe quando formula a pergunta. E a pergunta visa a suscitar a adesão do leitor à argumentação desenvolvida. A resposta esperada pelo enunciador é alguma coisa como “muitas” e o enunciador, ao formular de tal modo a pergunta, coloca o leitor numa posição de consentimento. O leitor não tem saída. O modelo de mundo proposto e suposto como partilhado leva o leitor a aceitar que “há muitas pessoas que assim se comportam”.
Em seguida, o enunciador, ao formular a pergunta encetada por “quem”, sugere que qualquer pessoa que não consiga viver bem consigo mesma dificilmente conseguirá conviver com alguém. O pressuposto aí é: quem são consegue viver bem consigo não conseguirá conviver com alguém.
O raciocínio elaborado até aqui vale para a última pergunta. Chamo atenção, no entanto, para a ocorrência da palavra “atravessar”, que suscita associação com “travessia” (“fazer a travessia”). Evidentemente, não devemos interpretar “atravessar” no texto com base no Núcleo metadiscursivo (Nmd) (Charaudeau, 2010, p. 35), isto é, com o significado sedimentado, constante e dicionarizado da palavra. Lembro que o sentido ou a significação é construída no discurso. O significado literal não existe. Charaudeau nos ensina sobre como se constrói o Núcleo metadiscursivo, ou seja, o que se chama comumente de “significado literal”:

“Tudo se passa como se o signo nascesse em um primeiro contexto – mas, é possível determinar um primeiro contexto? – e recebesse um primeiro emprego que tornasse esse signo dependente das circunstâncias que presidiram seu nascimento (a expectativa discursiva). Em seguida, este primeiro emprego seria explorado através de uma atividade de abstração que manteria certos componentes do primeiro emprego para reutilizá-los em um segundo emprego que dependeria de novas circunstâncias. A partir da existência desses dois empregos e de sua possível comparação, se construiria uma primeira sedimentação semântica que constituiria um primeiro saber metacultural sobre o funcionamento dos signos: isso nos levaria à determinação de um núcleo metadiscursivo. (p. 38)”

Em resumo, o uso é que vai cristalizando o significado, tornando-o um saber partilhado culturalmente.
Voltando à palavra “atravessar”, claro é que não ativamos o significado sedimentado ‘passar através de’ do domínio cognitivo ‘espacial’. Isso nos leva a operar associações com outras palavras ou expressões pertencentes ao campo semântico de “travessia” ou que guardem com ela alguma afinidade semântica. “Atravessar” ou “travessia” sugere a ideia de ‘movimento’, ‘esforço para ir além’, ‘ultrapassar’. Na travessia, há também o imprevisto, o contato com o desconhecido. A solidão do outro é o desconhecido para mim. E atravessá-la supõe que eu esteja disposto a aceitá-la, a conhecê-la, a aprender a lidar com ela. Portanto, a conviver com ela.
A conclusão que o texto de Sponville encaminha e quer que o leitor aceite é a de que viver bem com a nossa solidão é condição necessária para que nos relacionemos bem com o outro. Considerando-se a hipótese lacaniana segundo a qual o “eu é o lugar do desconhecimento”, o esforço dispensado na busca pelo autoconhecimento é indispensável para a construção de relacionamentos bem sucedidos. A experiência do desconhecido de si é precondição para a experiência do desconhecido do outro. Assim, propõe Sponville que é necessário aceitar a minha solidão, conviver bem com ela, para que eu consiga conviver bem com a solidão do outro.
Devo dizer que, em momentos anteriores, Sponville assume que a solidão é inerente à condição humana. Dirá ele que a solidão “ é o quinhão de todos nós” (p. 30). Na vida humana, segundo ele, “a solidão é a regra”.
Consideremos, finalmente, os dois excertos abaixo:

“(...) o amor, em sua verdade, é solidão”. (p. 30)

“O amor não é o contrário da solidão; é a solidão compartilhada, habitada, iluminada – e às vezes, ensombrecida – pela solidão do outro. O amor  é solidão sempre, não que toda solidão seja amante, longe disso, mas porque todo amor é solidão. (p. 31)”

As duas palavras importantes aqui são “amor” e “solidão”. Não há oposição entre eles. O amor supõe a solidão. Ou ainda, é solidão. E não poderia ser diferente, já que cada um de nós é ser de solidão. É claro que o amor supõe a relação com o outro; o amor pede-nos que aceitemos o outro em sua solidão, ou como solidão em si mesmo. No amor, há o encontro de solidões que desejam proteção mútua.
A palavra “solidão” sugere uma associação com “deserto”, não pela sua aridez, mas por não ser geralmente habitável. Lugar de solidão, portanto. E o amor é o encontro de dois desertos. O drama do amor consiste em desejar unir dois desertos formando um só deserto de solidões.
Chamo atenção para a ocorrência das palavras “habitada”, “compartilhada”, de um lado; e “iluminada” e “ensombrecida”, de outro. Todas são adjetivos que modificam “solidão”, mas a solidão do amor, a solidão que é amor. O amor supõe o milagre do encontro, especialmente se dermos razão a Sponville ao sugerir que a sociedade se estabelece sobre “ o dinheiro, o interesse, as relações de força e poder, o egoísmo e o narcisismo” (p. 32). O amor não é suficiente para construir uma sociedade. Para Sponville, e me parece que com ele está a razão, nas grandes cidades, predominam a indiferença e os egoísmos.
O amor é quando um mora no outro, ou ainda, quando um mora na solidão do outro. É o que nos sugere a palavra “habitada”. Interessante é o contraste sugerido pelas palavras “iluminada” e “ensombrecida”. No amor, a solidão de um pode iluminar a solidão do outro, mas também pode escurecê-la ou embaçá-la, o que supõe a insuficiência do amor para permitir a travessia da solidão do outro. Não raro, o que fica para o amante em sua solidão é o sentimento de não ser devidamente compreendido como ser de solidão pelo amado. Daí a sombra que o amor pode lançar sobre a solidão dos amantes. É a natureza antitética do amor: ele ilumina e ensombra. Ele não resolve completamente a solidão dos amantes, visto que não cabe ao outro resolvê-la. Cada qual deverá confrontar-se consigo mesmo em sua solidão, o que não exclui a partilha, a travessia dos dois pela solidão um do outro. Assim como o amor, a solidão é um latifúndio inalienável. 

domingo, 28 de abril de 2013

"A única eternidade possível ao ateu é o real" (BAR)


                       

                             
                    

                         O sentimento ateu



Desnecessário dizer que estive ocupado com os livros, durante toda esta manhã. Se o digo, no entanto, é apenas para abrir um caminho discursivo para que as palavras o percorram. O percurso inicia-se com uma citação de Comte-Sponville, em seu Amor à solidão (2006).



“(...) a sabedoria outra coisa não é que essa simplicidade de viver” (p. 20).



Sponville argumenta que o sábio é aquele que dispensa a filosofia para viver. Ele não precisa mais dela. Se um dia chegou a escrever livros, abandona-os como balsas à margem do rio. A simplicidade é, assim, consoante Sponville, livrar-se de tudo quanto nos atravanca e nos separa do real e da vida. Mas o que é o real? Ensinará Sponville:

“(...) O real é o que é, simplesmente, sem nenhuma lacuna (p. 24)”.


Se não há lacuna no real, concluiremos, com Spinoza, que o real é perfeito. Spinoza escreveu: “Por realidade e perfeição entendo a mesma coisa”. Identidade entre realidade e perfeição, é o que nos quer fazer ver Spinoza. Mas não nos apressemos em concluir a perfeição do real signifique que ele seja maravilhoso, extremamente agradável. Aqui devemos nos prender à etimologia. A perfeição supõe acabamento. Algo perfeito é algo que se perfez, é algo completo, portanto, que não tem lacuna.
O real não deseja, por isso é perfeito. Não há falta. Ora, quando há desejo, há falta. O desejo supõe algo que nos falta e que por isso desejamos. Faço uma digressão breve. Aprendi com a filosofia que o trabalho de reflexão é trabalho cuidadoso com as palavras. Quando desenvolvemos um discurso filosófico, devemos prestar atenção no significado que pretendemos produzir ao concatenar as palavras. A filosofia é uma atividade discursiva durante a qual, com base na produção de conceitos (portanto, pelo uso da palavra) pelo uso da razão, forjamos representações sobre o mundo, com vistas a compreendê-lo.
O real também não tem perguntas, já que nada lhe falta. Nesse tocante, escreverá Sponville:

“Não há pergunta, e é por isso que a resposta é sim: é o próprio mundo. Os mistérios estão em nós, em nós os problemas e as perguntas. O mundo é simples porque é a única resposta às perguntas que ele não se faz: simples como a rosa e o silêncio (ib.id.)”.


O “sim” é a afirmação da vida; é a resposta à pergunta “o que é o real?”. Nada mais claro: é o próprio mundo. Os seres humanos que nele vivem são as únicas criaturas para as quais a sua existência é colocada como problema. Somente eles se perguntam: o que é isto, a vida? De onde vim? Para onde vou? Há sentido em viver? A morte tem sentido? Por isso, as perguntas e os mistérios estão no homem. O mundo nada pergunta. O real não precisa de respostas.
Algumas palavras sobre a filosofia de Sponville me parecem necessárias. Sponville é, declaradamente, ateu. Sua filosofia, até onde posso ver, tem também um pouco de Nietzsche, embora o próprio filósofo francês cite, com muita frequência, em seus trabalhos, Montaigne. A influência deste é inegável, decerto. No entanto, vejo um pouco de Nietzsche em Sponville sempre que ele insiste em que a vida basta, em que o mundo é uma presença irrefutável. É também uma presença que devemos experienciar plenamente. Sponville propõe uma plenitude imanente. A eternidade, para ele, no que estou de acordo, é o agora. Se entendermos por eternidade a negação da temporalidade, ou seja, a atemporalidade, a eternidade se identifica com o agora, e apenas com ele, porque não permite que seja segmentada num antes e depois. A eternidade nos oferece plenamente o presente. Não há futuro prometido. Nesse tocante, não há vida eterna por vir após a morte. Não há vida transcendente. Se há alguma transcendência, é uma transcendência na imanência. Não estou certo, contudo, de que Sponville sustentaria essa concepção. Não sei se ele concordaria em admitir a transcendência, ainda que ancorada na imanência do mundo. De qualquer modo, o que me parece certo é que a eternidade a que se refere Sponville nada mais é do que o agora. Acompanhemos as palavras do autor no seguinte trecho:

“A abolição do tempo (...) mas no tempo mesmo, na verdade do tempo: o sempre-presente do real, o sempre-presente do verdadeiro, e a interação deles, que é o mundo, e o presente do mundo (p. 26)”.



A abolição do tempo a que se refere Sponville é a própria eternidade. Ela se identifica com o “sempre-presente do verdadeiro” ou do “sempre presente do real”. Não deixemos que a linguagem nos traia. Dizer que a eternidade, negando a temporalidade, se identifica com o agora, significa dizer que a experiência do agora é a experiência da eternidade. A única experiência possível do tempo, para nós, é a do agora. Experiência consciente do agora. Ora, o passado é o não-ser; o futuro ainda não é. Passado e futuro são conceitos com que segmentamos nossa experiência do contiuum do tempo (realidade física). Temporalidade é já uma abstração. O universo não conhece passado, presente e futuro. Somente nós, seres humanos, é que podemos conceber o tempo como temporalidade dividida em porções de tempo, que designamos como tempo passado, tempo atual ou presente, tempo futuro. E, se meditarmos com acuro sobre a palavra eternidade , veremos que seu significado não descreve nenhuma experiência possível a nós, seres que se sabem mortais, a menos, é claro, que acreditemos que essa experiência transcende à vida e que será possível numa vida além-túmulo. Mas pensar a eternidade dessa forma é já reconhecer sua impossibilidade no aqui e agora do mundo.
Como seja ateu, Sponville só pode aceitar a experiência de eternidade, ou melhor, só pode aceitar que essa palavra signifique realmente alguma coisa, se ela servir para descrever uma experiência claramente budista de “dissolução do ego”. Sponville nos contará sobre o que pensa da experiência que reúne o silêncio, a plenitude e a eternidade. Noto, de passagem, que o silêncio, para ele, é “a presença muda de tudo”; a plenitude, “o desaparecimento da falta” (p. 26). Vejamos como ele situa a eternidade na imanência do mundo. Eternidade não é transcendência (uma experiência superior a e além do mundo):

A eternidade é o lugar de todos nós, é o único. Mas nossos discursos nos separam dela, bem como nossos desejos, bem como nossas esperanças... No fundo, só estamos separados da eternidade por nós mesmos. Daí essa simplicidade quando o ego se dissolve; não há mais que tudo, e pouco importa o nome (“Deus”, “Natureza”, “Ser”...) que alguns quererão lhe dar. Quando não há mais que tudo para que as palavras, já que o tudo não tem nome? (...) O silêncio e a eternidade andam juntos: nada a dizer, nada a explicar, já que tudo está presente (p. 28, ênfase minha)”.


Notemos que Sponville categoriza “eternidade” como “lugar”, o que sugere a noção de situação, mas uma situação no mundo, onde nós estamos. Assim, eternidade é também o mundo, o universo onde vivemos. Por isso, é uma eternidade imanente. Ela é inseparável do mundo, ou melhor, se identifica com o mundo. A eternidade congrega o agora e o mundo, num “sempre-presente-aqui”. Somos nós que forjamos palavras para designar essa experiência de dissolução do ego na eternidade do mundo. Mas os discursos, as palavras só servem para causar estorvo e perturbações. Inquietude mais do que placidez. O silêncio convoca-nos à experiência de placidez, por isso não carece do burburinho das palavras. Deus é, certamente, a expressão máxima da perturbação do silêncio, porque nele e através dele fala uma multidão de vozes estridentes convencidas de que compreenderam a eternidade. Basta a experiência do agora!
Nunca dissimulei meu interesse pelos estudos de religião, especialmente minha inclinação intelectual e afetiva às lições budistas. Mesmo tendo sido criado na tradição cristã, vejo no budismo um avanço em relação à doutrina cristã. Vejo mais vantagem, muito porque a doutrina budista não inclui a ideia de pecado e de culpa: flagelos da alma, com que o cristianismo mantêm o rebanho em seu estado de docilidade.  O budismo identifica a causa de nossos males, de nossos sofrimentos no desejo, mas não se limita a isso; propõe-nos um caminho para nos libertar da tirania do desejo, não num além-mundo, tampouco por meio de uma figura carismática e endeusada (Buda não era deus; no budismo, não há deus). Ao contrário, o cristianismo cria o mito da Queda do homem e com ele declara que o homem é irremediavelmente um pecador (o pecado como tudo aquilo que nos afasta de Deus). No mito cristão, a desobediência de Eva e a fraqueza de Adão, que não resistiu à tentação de comer da maçã do Paraíso, condenou todas as gerações de seres humanos. Nessa esdrúxula e obscena doutrina cristã, todo bebê que nasce traz a herança do pecado de Adão, por isso precisa ser batizado com a água que “lava o pecado”. Mas esse pecado, simbolicamente, lavado no batismo, é constitutivo da natureza humana. Por isso, o cristão viverá por toda a vida reconhecendo-se como pecador, humilhando-se, rebaixando-se diante de uma autoridade Superior com vistas a buscar a redenção de seus pecados (que nunca o abandonam totalmente) e a salvação após a morte. Todo cristão é pecador. Um cristão que não se reconhecesse como pecador não seria cristão, ou levantaria sérias suspeitas sobre sua fé ou mesmo desaprovações. Não se reconhecer pecador, para o cristão, já é pecado. Como se vê, não há como fugir. Só o pecado condena o cristão à fé.
Vou referir alguns trechos, colhidos de Buda – o mito e a realidade (2009), de Heródoto Barbeiro, a fim de dar a saber alguns ensinamentos do budismo sobre a dor e sobre formas de lidar com ela. Não me limitarei a citar os trechos; a cada um deles se seguirá uma breve avaliação:


“Siddharta não foi nem um teólogo, nem um metafísico. Ele chegou à conclusão de que era impossível viver sem dor. E para acabar com ela, era preciso descobrir sua origem. O Buda concluiu que essa origem era o nascimento. Nascer, sofrer. Envelhecer, perder afeto, bens, tudo aquilo pelo qual tanto se lutou, as mudanças constantes que estragam tudo o que foi construído e, por fim, a morte. Tudo isso provoca dor. Só resta renascer imediatamente e reiniciar o ciclo de nascimento e morte. Agarra-se nas poucas coisas agradáveis existentes na vida, e o restante é sofrimento (p. 64)”.


Quando cunhei a frase “O sofrimento trama as malhas da existência humana”, inspirei-me na doutrina budista que reza que “nascer é sofrer, viver é sofrer, morrer é sofrer”. É verdade que também o cristianismo reconhece a dor e o sofrimento como experiências constitutivas da vida humana, mas difere do budismo, nesse tocante, porque destitui o homem de autonomia no enfrentamento do sofrimento, não lhes fornece meios de por si só livrar-se do sofrimento, a não ser por sua fé e submissão a um outro que lhe serve de modelo de resignação ao sofrimento injusto, qual seja, Cristo. A Paixão de Cristo, ou seja, o seu martírio e sofrimento deve servir de inspiração ao cristão que sofre resignadamente confiante. Confiante na libertação por e em Cristo. Ele é o caminho pelo qual o cristão alcança a graça de Deus (“Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai senão por mim” Jo 14: 6).
O budismo instrumentaliza o homem para que ele consiga se libertar dos seus sofrimentos, pelo conhecimento de sua causa. Segundo Barbeiro, “Buda disse que a vida é muito pior do que os homens pensam”. Buda não oferece o paraíso, não promete uma vida eterna. A morte no budismo é vista como dissolução da forma orgânica, após a qual haverá novas recombinações de elementos. O budista quer escapar ao samsara, ou seja, ao ciclo de nascimento-morte-renascimento. A sabedoria budista supõe que, ao nascer, uma pessoa começa a morrer, porque grávida de um princípio de destruição. Observará Barbeiro, “não há como fugir da morte, uma vez que também estamos em constante transformação, e que em um dia somos diferentes do que fomos no outro” (p. 65). Todos os dias, em nosso corpo, morrem e nascem novas células.
Disse que o desejo é, no budismo, a causa de toda dor.

“(...) ninguém deve iludir-se com as aparências: elas são falsas, enganam a mente, não se constituem na verdadeira realidade. Dor, envelhecimento e ilusão são as bases do sofrimento. Estão apoiados no desapontamento das pessoas com a impermanência de tudo (ib.id.)”



A lógica budista não poderia ser mais límpida. O desejo quer possuir, quer conservar, quer conter, aprisionar. O desejo é desejo de permanência. Mas a realidade, ensinou Buda, e nisso o acompanhou Heráclito, é mudança, é impermanência. Como nós e tudo que há somos parte do real, não escapamos à lei da impernanência das coisas. É notável como a razão, reconhecendo essa lei, se harmoniza com a verdade do mundo. O cristianismo, ao contrário, subverte essa relação harmoniosa da razão com a verdade do mundo, proclamando a imortalidade, a eternidade do homem. Inspirada na filosofia platônica, o cristianismo nos convencerá de que a morte é mera aparência, de que o mundo é mera aparência, de que a verdadeira realidade é transcendente ao mundo, está num além. A meu ver, essa compreensão cristã de que a morte é mera ilusão, de que, pela fé e confiança em Deus, os mortos ressurgirão, viverão por toda eternidade, leva a teologia cristã a esquivar-se a um tratamento honesto e útil da questão do sofrimento. O sofrimento significa pouca coisa em face da grande recompensa que aguarda os fiéis após a morte. Aquele que sofre com resignação e coragem semelhantes às de Cristo torna-se digno aos olhos de Deus e da comunidade cristã. O sofrimento cristão dignifica o sofredor. Uma das teodiceias cristãs ensina que ao sofrimento está atrelado um ensinamento, um bem maior. Em face do sofrimento, o cristão dirá ao sofredor: “tenha fé e Deus te livrará!” Se sua condição sofredora persistir, não hesitará em dizer: “paciente, Deus tem um propósito!” Se a morte deitar-se com ele no leito, consolará o cristão os que choram: “era a vontade de Deus, Deus sabe o que faz!”.
O caminho que vim percorrendo até aqui conduziu-me ao objetivo principal deste texto: mostrar que a atitude ateísta diante da existência pode sinalizar um sentimento de libertação e de conciliação com o real, portanto, com a eternidade. Contarei uma experiência que tive há algum tempo, já tendo acordado o ateu em mim.
Não me esqueço da experiência que tive naquele ônibus a caminho da faculdade onde eu lecionava. Era de tarde, o sol ameno e o céu ostentava seu manto azul reconfortante. No Centro da Cidade, observava, sem, contudo, reter atenção em alguma coisa em especial, as pessoas num ir e vir corriqueiro. Observava o movimento da vida pulsante nas artérias da cidade, sem qualquer pensamento que me sugerisse alguma verdade. Quando o ônibus atravessava a ponte, era o céu que prendia meu olhar. Eram as gaivotas que lhe davam testemunho do movimento incessante da vida. E eis que fui inundado de uma sensação de plenitude de vida, como se o céu, o movimento dos pássaros, a eternidade daquele instante mergulhassem em minha alma. Mas não era êxtase, não senti arrebatamento. Não havia violência nessa inundação. Havia uma paz delgada, acompanhada do silêncio da sofreguidão do cotidiano. Somente a vida, o estar vivo. Somente a simplicidade que há em olhar para o céu, tão convidativo à inspiração poética. Mas não havia palavras. Discursos só perturbariam quão íntima experiência com a vida. A vida ali nua: revelando-se tal como é. Simplesmente presente, acontecendo naquele instante. O silêncio do tempo. Alguns pensamentos misturados com sentimentos... pensamentos sentidos vieram-me a confirmar o que a filosofia, o que a razão já me ensinaram: não há Deus.
Naquela experiência de reconciliação com a vida, de sim à vida, eu não senti presença alguma no céu, exceto as gaivotas. Senti também a presença do movimento da vida, a presença do céu azul desnudado de nuvens... Foi uma experiência de sentimento, não de pensamento.
Há religiosos que dizem não conseguir explicar Deus, dizem não ser necessário refletir racionalmente sobre Deus. Dizem também ser capazes de senti-lo e sentindo-o, segundo creem, se contentam. A razão me sugere uma resposta ou uma explicação que protelo por ora. É de sentimento que se trata. Não que a razão se oponha ao sentimento, erro comum, por sinal. Eles caminham juntos, trabalham juntos em nós.
Duas experiências. Dois sentimentos opostos. Onde os religiosos dizem sentir Deus eu sentia a presença nua e simples da vida. Teriam eles algum sentido especial? Teriam eles alguma capacidade sobre-humana, extraordinária que tornaria possível o sentimento de Deus? Ou será que esse sentimento é sugerido tão-só pela crença de que Deus existe? Ou seja, penso que é porque eles creem que Deus existe, se convencem disso, que podem declarar poder sentir Deus. A crença suscita uma experiência que é interpretada, por força da crença prévia, como sentimento de Deus.
Eu mesmo, durante longo tempo em minha vida, estava convencido de que podia, em certas ocasiões, em que me abstraia de tudo que me seduzisse os sentidos, como durante à noite em que me ocupava com minhas produções poéticas, ou jazido na cama, conversando comigo mesmo no silêncio da alma, sentir a presença de Deus
Mas o que prova o sentimento? Nada. O sentimento nada prova; o sentimento não pode provar a existência de Deus. O sentimento prova apenas que existe um ser capaz de tê-lo e de tomar consciência dessa experiência.
Não pretendo levar adiante a objeção à possibilidade real de os crentes sentirem Deus. Se contei aqui a experiência que tive naquela tarde quando ia para o trabalho, é somente para mostrar que o descobrir-me ateu e o assumir a atitude ateísta diante da vida significou uma libertação. A experiência ateísta (isto é, viver sem a promessa de vida eterna, viver sem a crença numa divindade providente), longe de ser experiência de desespero, é experiência de libertação. É, decerto, sinal de coragem, que não suprime medos, apenas não se serve de alguma forma de fuga.
O acordar o ateu em mim significou sobrepujar o Pai primordial. Significou sobrepujar sua autoridade sobre o meu psiquismo. Para mim, a morte simbólica de Deus é fonte de alívio e de libertação em face de um autoritarismo do Outro (de Lacan). Libertação da escravidão da condição pecadora, da submissão a uma Vontade superior, vigilante e esmagadora, cujos desígnios e disposições me deviam ser ocultados. Também é uma libertação da dimensão egocêntrica que se enrobustece no religioso. Nesse sentido, deixei de interpretar os acontecimentos bons ou ruins com base na convicção de que Deus tem um propósito para tudo, propósito diante do qual me coloco como beneficiário, ou me represento como seu portador. A dimensão egocêntrica do religioso se expressa também na convicção de que ele é portador de uma verdade sobre o modo de Deus agir.
A imagem do cristão típico pode ser assim representada. Como cristão, alguém busca consolar um amigo cuja mãe foi desenganada pelos médicos. Sua mãe sofre de câncer terminal. Então, o cristão diz que tudo tem um propósito para Deus e, ao dizer isso, ele acredita na verdade do que diz, acredita que está sendo um porta-voz da palavra de Deus, um intermediário enunciador do desejo de Deus. Eis o seu ego insuflado! Ele traz a boa-nova, ele é portador dessa verdade que cuida inquestionável e consoladora.
Vejo nessa atitude cristã não só presunção, vaidade, mas certo desrespeito, certo desprezo pela dor, pelo sofrimento do outro. É mais nobre, a meu ver, participar de seu sofrimento. É mais digno e humano reconhecer-se também na fragilidade do outro, reconhecer-se como suscetível do mesmo sofrimento. Um abraço reconfortante é mais humanizante e consolador do que quaisquer palavras prontas, empacotadas, já-dadas pelos ensinamentos teológicos sobre Deus e seus caprichos, mascarados como “propósitos escusos” na ideologia cristã. É mais nobre reconhecer-se no sofrimento daquele amigo como ser humano também que se identifica com sua condição humana destinada ao sofrimento. Ser cúmplices no sofrimento. Ser humano no sofrimento humano, que é sofrimento consciente.
Solidariedade do humano com o humano no sofrimento exige que não elaboremos justificativas assentadas em alguma metafísica. Basta o sofrimento e a vida que precisa ser vivida. Pense-se nas teodiceias já forjadas por filósofos e teólogos cristãos que visam a justificar a quantidade de sofrimento que recai sobre os justos e inocentes. Pense-se nas tentativas ignominiosas pelos proponentes de teodiceias de justificar o sofrimento de crianças. Acho repulsivo tal esforço da razão contaminada pela fé. A razão deve ser, nesse caso, amordaçada, para que seu portador não se torne cúmplice num sofrimento sem sentido. Calemos a razão que serve à elaboração de justificativas inaceitáveis ao coração, refutáveis à luz de um exame cuidadoso, para deixar falar o amor, o sentimento de solidariedade e de desespero. Por que não? Viver é também desesperar-se. Desespero preferível, porque autêntico, a esperanças ilusórias. Deixemos o amor que conforta comandar o bom-senso, e não a fé (esse consolo da ausência, da mentira, da fantasia). O silêncio de um abraço em face da presença da morte comunica ao outro a cumplicidade do humano na dor, no sofrimento e no desespero que essa presença nos causa.



Anexo             

                               
                              Nietzsche, um ateu?


Há quem entenda que Nietzsche não era um ateu num sentido forte, isto é, no sentido de ser alguém que negava qualquer metafísica ou um princípio primeiro e absoluto que seja causa de tudo. Mas não se pode negar que Nietzsche, num sentido mais fraco, era um ateu, porque concordaria em negar existência a qualquer divindade. Certamente, sua veia ateísta torna-se protuberante em sua crítica ao deus cristão reconhecido por ele como deus antropomórfico. Os homens criaram Deus à sua imagem. Nietzsche critica justamente esta ilusão nos homens: eles não se reconhecem mais como os verdadeiros criadores de Deus. Não há por que culpá-los disso; o cristianismo já se encarrega de impingir-lhes a culpa original. Pobres homens ignorantes ou semiconscientes dos processos históricos entretecidos pelos fios robustos e falsificadores da ideologia, que, posicionando-os como produtores e produtos do devir histórico, lançam sobre a sua consciência o véu da obscuridade! Para Nietzsche, Deus é um ideal de super-humanidade no homem.

“Esse o ateísmo de Nietzsche. Combatia o deus criado pelos racionalistas, o deus definido por atributos. Nietzsche negava os atributos, porque o atributo já é um limite. Deus não poderia cingir-se às bitolas [medidas, padrões] pretensiosas da razão humana”.
(p. 65)


Chamo atenção para o fato de que Nietzsche, ao estender as garras de sua crítica aos atributos de Deus, assume-o não mais como um ser (transcendente), mas como um sujeito da linguagem. Um sujeito de que o homem predica atributos.


“(...) interpretar Deus, defini-lo, criar uma ciência como a teologia, é ofendê-lo. O silêncio em torno de seu nome é mais nobre. O crente é, por isso, um explorador de Deus. O ateísmo nietzschiano é, assim, uma devoção respeitosa”.
(p. 66)

Talvez nem devoção, talvez nem tão respeitosa. Porque Nietzsche destitui Deus de seu lugar elevadamente simbólico: Deus não é mais o Ser Supremo, Absoluto, Ser Criador. Uma devoção respeitosa não lhe autorizaria a operar, pelo uso da razão, tal sacrilégio.
Ao se voltar com ferocidade crítica para o cristianismo, é verdade que Nietzsche o condenava por aviltar o mundo e a condição humana, por transformar aquele num vale de lágrimas. Pretendeu convocar os crentes a que amassem o mundo. Pretendeu restituir o homem a terra, fincar-lhe as raízes no mundo. Mas também é verdade que Nietzsche, em muitos momentos, exaltou o cristianismo, certamente pelo seu caráter social-revolucionário. Há, portanto, essa ambivalência em sua crítica.

Em suma, a crítica ao cristianismo levada a efeito por Nietzsche pode ser resumida no que se segue:

“Em vez de construir na terra o Reino dos Céus, postergou-o para o infinito, e acusou o mundo de todos os males e o homem de todas as infâmias. E o que o homem tinha de mais puro e de mais belo, que eram e são os seus instintos, essas forças misteriosas que o trazem em constante defesa e lhe permitem usufruir a vida, veste-os de cores negras, desmerecendo-os. A natureza dos sentimentos, a ingenuidade das atitudes passaram a ser crime, pecado, afronta”.

“O homem – o verdadeiro Satã – criara o seu próprio inferno, porque se negava a si mesmo”.

(p. 67)


Novamente aqui, vale a lógica: afirmação de Deus significa negação do homem.
A coluna dorsal, assim me parece, da filosofia de Nietzsche consiste em seu princípio dionisíaco de afirmação da vida. À luz desse princípio, é possível entender a crítica de Nietzsche ao cristianismo e ao Deus cristão. Afirmar a Deus é negar o homem. Negá-lo em dois sentidos: primeiro, é negá-lo como agente da história, negá-lo, portanto, como único responsável pela fabricação, ao longo de milênios, da ideia de Deus; segundo, é negá-lo como ser mundano, como ser natural dotado de instintos que lhe são como forças criativas, forças que alimentam sua vontade de poder (de dominar), com a qual ele pode apossar-se da vida, agarrar-se a ela, enraizar-se no mundo, assumir-se como - para lembrar Heidegger - um ser-aí.
Ao concentrar sua crítica nos atributos de Deus, Nietzsche não só reconhece em Deus a marca da humanidade do homem (uma humanidade idealizada, elevada à máxima potência), mas também a presunção humana que se esconde na crença de que pode determinar a natureza de Deus. Vaidade, um dos pecados definitivamente censurados pelo cristianismo! Por isso, para Nietzsche, os crentes são ofensivos a Deus ao cuidarem-se conhecedores da sua natureza, ao cuidarem-se capazes de lhe fixar arestas, limites, contornos, por meio da atribuição de qualidades que não são senão marcas linguísticas deixadas pela razão humana.
O leitor atento consegue escutar a voz concordante de Feuerbach?