
O sentimento ateu
Desnecessário dizer
que estive ocupado com os livros, durante toda esta manhã. Se o digo, no
entanto, é apenas para abrir um caminho discursivo para que as palavras o
percorram. O percurso inicia-se com uma citação de Comte-Sponville, em seu Amor à solidão (2006).
“(...) a
sabedoria outra coisa não é que essa simplicidade de viver” (p. 20).
Sponville argumenta que o sábio é aquele que
dispensa a filosofia para viver. Ele não precisa mais dela. Se um dia chegou a
escrever livros, abandona-os como balsas à margem do rio. A simplicidade é,
assim, consoante Sponville, livrar-se de tudo quanto nos atravanca e nos separa
do real e da vida. Mas o que é o real? Ensinará Sponville:
“(...) O real
é o que é, simplesmente, sem nenhuma lacuna (p. 24)”.
Se não há lacuna no real, concluiremos, com
Spinoza, que o real é perfeito. Spinoza escreveu: “Por realidade e perfeição
entendo a mesma coisa”. Identidade entre realidade e perfeição, é o que nos
quer fazer ver Spinoza. Mas não nos apressemos em concluir a perfeição do real
signifique que ele seja maravilhoso, extremamente agradável. Aqui devemos nos
prender à etimologia. A perfeição supõe acabamento. Algo perfeito é algo que se
perfez, é algo completo, portanto, que não tem lacuna.
O real não deseja, por isso é perfeito. Não há
falta. Ora, quando há desejo, há falta. O desejo supõe algo que nos falta e que
por isso desejamos. Faço uma digressão breve. Aprendi com a filosofia que o
trabalho de reflexão é trabalho cuidadoso com as palavras. Quando desenvolvemos
um discurso filosófico, devemos prestar atenção no significado que pretendemos
produzir ao concatenar as palavras. A filosofia é uma atividade discursiva
durante a qual, com base na produção de conceitos (portanto, pelo uso da
palavra) pelo uso da razão, forjamos representações sobre o mundo, com vistas a
compreendê-lo.
O real também não tem perguntas, já que nada
lhe falta. Nesse tocante, escreverá Sponville:
“Não há
pergunta, e é por isso que a resposta é sim: é o próprio mundo. Os mistérios
estão em nós, em nós os problemas e as perguntas. O mundo é simples porque é a
única resposta às perguntas que ele não se faz: simples como a rosa e o
silêncio (ib.id.)”.
O “sim” é a afirmação da vida; é a resposta à
pergunta “o que é o real?”. Nada mais claro: é o próprio mundo. Os seres
humanos que nele vivem são as únicas criaturas para as quais a sua existência é
colocada como problema. Somente eles se perguntam: o que é isto, a vida? De
onde vim? Para onde vou? Há sentido em viver? A morte tem sentido? Por isso, as
perguntas e os mistérios estão no homem. O mundo nada pergunta. O real não
precisa de respostas.
Algumas palavras sobre a filosofia de Sponville
me parecem necessárias. Sponville é, declaradamente, ateu. Sua filosofia, até
onde posso ver, tem também um pouco de Nietzsche, embora o próprio filósofo
francês cite, com muita frequência, em seus trabalhos, Montaigne. A influência
deste é inegável, decerto. No entanto, vejo um pouco de Nietzsche em Sponville
sempre que ele insiste em que a vida basta, em que o mundo é uma presença
irrefutável. É também uma presença que devemos experienciar plenamente.
Sponville propõe uma plenitude imanente. A eternidade, para ele, no que estou
de acordo, é o agora. Se entendermos por eternidade a negação da temporalidade,
ou seja, a atemporalidade, a eternidade se identifica com o agora, e apenas com
ele, porque não permite que seja segmentada num antes e depois. A eternidade
nos oferece plenamente o presente. Não há futuro prometido. Nesse tocante, não
há vida eterna por vir após a morte. Não há vida transcendente. Se há alguma
transcendência, é uma transcendência na
imanência. Não estou certo, contudo, de que Sponville sustentaria essa
concepção. Não sei se ele concordaria em admitir a transcendência, ainda que
ancorada na imanência do mundo. De qualquer modo, o que me parece certo é que a
eternidade a que se refere Sponville nada mais é do que o agora. Acompanhemos
as palavras do autor no seguinte trecho:
“A abolição
do tempo (...) mas no tempo mesmo, na verdade do tempo: o sempre-presente do
real, o sempre-presente do verdadeiro, e a interação deles, que é o mundo, e o
presente do mundo (p. 26)”.
A abolição do tempo a que se refere Sponville é
a própria eternidade. Ela se identifica com o “sempre-presente do verdadeiro”
ou do “sempre presente do real”. Não deixemos que a linguagem nos traia. Dizer
que a eternidade, negando a temporalidade, se identifica com o agora, significa
dizer que a experiência do agora é a experiência da eternidade. A única
experiência possível do tempo, para nós, é a do agora. Experiência consciente
do agora. Ora, o passado é o não-ser; o futuro ainda não é. Passado e futuro
são conceitos com que segmentamos nossa experiência do contiuum do tempo (realidade física). Temporalidade é já uma
abstração. O universo não conhece passado, presente e futuro. Somente nós,
seres humanos, é que podemos conceber o tempo como temporalidade dividida em
porções de tempo, que designamos como tempo passado, tempo atual ou presente,
tempo futuro. E, se meditarmos com acuro sobre a palavra eternidade , veremos que seu significado não descreve nenhuma
experiência possível a nós, seres que se sabem mortais, a menos, é claro, que
acreditemos que essa experiência transcende à vida e que será possível numa
vida além-túmulo. Mas pensar a eternidade dessa forma é já reconhecer sua
impossibilidade no aqui e agora do mundo.
Como seja ateu, Sponville só pode aceitar a
experiência de eternidade, ou melhor, só pode aceitar que essa palavra signifique
realmente alguma coisa, se ela servir para descrever uma experiência claramente
budista de “dissolução do ego”. Sponville nos contará sobre o que pensa da
experiência que reúne o silêncio, a plenitude e a eternidade. Noto, de
passagem, que o silêncio, para ele, é “a presença muda de tudo”; a plenitude,
“o desaparecimento da falta” (p. 26). Vejamos como ele situa a eternidade na
imanência do mundo. Eternidade não é transcendência (uma experiência superior a
e além do mundo):
“A eternidade é o lugar de todos nós, é o
único. Mas nossos discursos nos separam dela, bem como nossos desejos, bem
como nossas esperanças... No fundo, só estamos separados da eternidade por nós
mesmos. Daí essa simplicidade quando o ego se dissolve; não há mais que tudo, e
pouco importa o nome (“Deus”, “Natureza”, “Ser”...) que alguns quererão lhe
dar. Quando não há mais que tudo para que as palavras, já que o tudo não tem
nome? (...) O silêncio e a eternidade andam juntos: nada a dizer, nada a
explicar, já que tudo está presente (p. 28, ênfase minha)”.
Notemos que Sponville categoriza “eternidade”
como “lugar”, o que sugere a noção de situação, mas uma situação no mundo, onde
nós estamos. Assim, eternidade é também o mundo, o universo onde vivemos. Por
isso, é uma eternidade imanente. Ela é inseparável do mundo, ou melhor, se
identifica com o mundo. A eternidade congrega o agora e o mundo, num
“sempre-presente-aqui”. Somos nós que forjamos palavras para designar essa
experiência de dissolução do ego na eternidade do mundo. Mas os discursos, as
palavras só servem para causar estorvo e perturbações. Inquietude mais do que
placidez. O silêncio convoca-nos à experiência de placidez, por isso não carece
do burburinho das palavras. Deus é, certamente, a expressão máxima da
perturbação do silêncio, porque nele e através dele fala uma multidão de vozes
estridentes convencidas de que compreenderam a eternidade. Basta a experiência
do agora!
Nunca dissimulei meu interesse pelos estudos de
religião, especialmente minha inclinação intelectual e afetiva às lições
budistas. Mesmo tendo sido criado na tradição cristã, vejo no budismo um avanço
em relação à doutrina cristã. Vejo mais vantagem, muito porque a doutrina
budista não inclui a ideia de pecado e de culpa: flagelos da alma, com que o cristianismo mantêm o rebanho em seu
estado de docilidade. O budismo
identifica a causa de nossos males, de nossos sofrimentos no desejo, mas não se
limita a isso; propõe-nos um caminho para nos libertar da tirania do desejo,
não num além-mundo, tampouco por meio de uma figura carismática e endeusada
(Buda não era deus; no budismo, não há deus). Ao contrário, o cristianismo cria
o mito da Queda do homem e com ele declara que o homem é irremediavelmente um
pecador (o pecado como tudo aquilo que nos afasta de Deus). No mito cristão, a
desobediência de Eva e a fraqueza de Adão, que não resistiu à tentação de comer
da maçã do Paraíso, condenou todas as gerações de seres humanos. Nessa esdrúxula
e obscena doutrina cristã, todo bebê que nasce traz a herança do pecado de
Adão, por isso precisa ser batizado com a água que “lava o pecado”. Mas esse
pecado, simbolicamente, lavado no batismo, é constitutivo da natureza humana.
Por isso, o cristão viverá por toda a vida reconhecendo-se como pecador,
humilhando-se, rebaixando-se diante de uma autoridade Superior com vistas a
buscar a redenção de seus pecados (que nunca o abandonam totalmente) e a
salvação após a morte. Todo cristão é pecador. Um cristão que não se
reconhecesse como pecador não seria cristão, ou levantaria sérias suspeitas
sobre sua fé ou mesmo desaprovações. Não se reconhecer pecador, para o cristão,
já é pecado. Como se vê, não há como fugir. Só o pecado condena o cristão à fé.
Vou referir alguns trechos, colhidos de Buda – o mito e a realidade (2009), de
Heródoto Barbeiro, a fim de dar a saber alguns ensinamentos do budismo sobre a
dor e sobre formas de lidar com ela. Não me limitarei a citar os trechos; a
cada um deles se seguirá uma breve avaliação:
“Siddharta
não foi nem um teólogo, nem um metafísico. Ele chegou à conclusão de que era
impossível viver sem dor. E para acabar com ela, era preciso descobrir sua
origem. O Buda concluiu que essa origem era o nascimento. Nascer, sofrer.
Envelhecer, perder afeto, bens, tudo aquilo pelo qual tanto se lutou, as mudanças
constantes que estragam tudo o que foi construído e, por fim, a morte. Tudo
isso provoca dor. Só resta renascer imediatamente e reiniciar o ciclo de
nascimento e morte. Agarra-se nas poucas coisas agradáveis existentes na vida,
e o restante é sofrimento (p. 64)”.
Quando cunhei a frase “O sofrimento trama as malhas da existência humana”, inspirei-me na
doutrina budista que reza que “nascer é sofrer, viver é sofrer, morrer é
sofrer”. É verdade que também o cristianismo reconhece a dor e o sofrimento como
experiências constitutivas da vida humana, mas difere do budismo, nesse
tocante, porque destitui o homem de autonomia no enfrentamento do sofrimento,
não lhes fornece meios de por si só livrar-se do sofrimento, a não ser por sua
fé e submissão a um outro que lhe serve de modelo de resignação ao sofrimento
injusto, qual seja, Cristo. A Paixão de Cristo, ou seja, o seu martírio e
sofrimento deve servir de inspiração ao cristão que sofre resignadamente
confiante. Confiante na libertação por e em Cristo. Ele é o caminho pelo qual o
cristão alcança a graça de Deus (“Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém
vem ao Pai senão por mim” Jo 14: 6).
O budismo instrumentaliza o homem para que ele
consiga se libertar dos seus sofrimentos, pelo conhecimento de sua causa.
Segundo Barbeiro, “Buda disse que a vida é muito pior do que os homens pensam”.
Buda não oferece o paraíso, não promete uma vida eterna. A morte no budismo é
vista como dissolução da forma orgânica, após a qual haverá novas recombinações
de elementos. O budista quer escapar ao samsara,
ou seja, ao ciclo de nascimento-morte-renascimento. A sabedoria budista supõe
que, ao nascer, uma pessoa começa a morrer, porque grávida de um princípio de
destruição. Observará Barbeiro, “não há como fugir da morte, uma vez que também
estamos em constante transformação, e que em um dia somos diferentes do que
fomos no outro” (p. 65). Todos os dias, em nosso corpo, morrem e nascem novas
células.
Disse que o desejo é, no budismo, a causa de
toda dor.
“(...)
ninguém deve iludir-se com as aparências: elas são falsas, enganam a mente, não
se constituem na verdadeira realidade. Dor, envelhecimento e ilusão são as
bases do sofrimento. Estão apoiados no desapontamento das pessoas com a
impermanência de tudo (ib.id.)”
A lógica budista não poderia ser mais límpida.
O desejo quer possuir, quer conservar, quer conter, aprisionar. O desejo é
desejo de permanência. Mas a realidade, ensinou Buda, e nisso o acompanhou
Heráclito, é mudança, é impermanência. Como nós e tudo que há somos parte do
real, não escapamos à lei da impernanência das coisas. É notável como a razão,
reconhecendo essa lei, se harmoniza com a verdade do mundo. O cristianismo, ao
contrário, subverte essa relação harmoniosa da razão com a verdade do mundo,
proclamando a imortalidade, a eternidade do homem. Inspirada na filosofia
platônica, o cristianismo nos convencerá de que a morte é mera aparência, de
que o mundo é mera aparência, de que a verdadeira realidade é transcendente ao
mundo, está num além. A meu ver, essa compreensão cristã de que a morte é mera
ilusão, de que, pela fé e confiança em Deus, os mortos ressurgirão, viverão por
toda eternidade, leva a teologia cristã a esquivar-se a um tratamento honesto e
útil da questão do sofrimento. O sofrimento significa pouca coisa em face da
grande recompensa que aguarda os fiéis após a morte. Aquele que sofre com
resignação e coragem semelhantes às de Cristo torna-se digno aos olhos de Deus
e da comunidade cristã. O sofrimento cristão dignifica o sofredor. Uma das
teodiceias cristãs ensina que ao sofrimento está atrelado um ensinamento, um
bem maior. Em face do sofrimento, o cristão dirá ao sofredor: “tenha fé e Deus
te livrará!” Se sua condição sofredora persistir, não hesitará em dizer: “paciente,
Deus tem um propósito!” Se a morte deitar-se com ele no leito, consolará o
cristão os que choram: “era a vontade de Deus, Deus sabe o que faz!”.
O caminho que vim percorrendo até aqui
conduziu-me ao objetivo principal deste texto: mostrar que a atitude ateísta diante da existência pode sinalizar um
sentimento de libertação e de conciliação com o real, portanto, com a
eternidade. Contarei uma experiência que tive há algum tempo, já tendo
acordado o ateu em mim.
Não me esqueço da experiência que tive naquele
ônibus a caminho da faculdade onde eu lecionava. Era de tarde, o sol ameno e o
céu ostentava seu manto azul reconfortante. No Centro da Cidade, observava,
sem, contudo, reter atenção em alguma coisa em especial, as pessoas num ir e
vir corriqueiro. Observava o movimento da vida pulsante nas artérias da cidade,
sem qualquer pensamento que me sugerisse alguma verdade. Quando o ônibus
atravessava a ponte, era o céu que prendia meu olhar. Eram as gaivotas que lhe
davam testemunho do movimento incessante da vida. E eis que fui inundado de uma
sensação de plenitude de vida, como se o céu, o movimento dos pássaros, a
eternidade daquele instante mergulhassem em minha alma. Mas não era êxtase, não
senti arrebatamento. Não havia violência nessa inundação. Havia uma paz
delgada, acompanhada do silêncio da sofreguidão do cotidiano. Somente a vida, o
estar vivo. Somente a simplicidade que há em olhar para o céu, tão convidativo
à inspiração poética. Mas não havia palavras. Discursos só perturbariam quão
íntima experiência com a vida. A vida ali nua: revelando-se tal como é.
Simplesmente presente, acontecendo naquele instante. O silêncio do tempo.
Alguns pensamentos misturados com sentimentos... pensamentos sentidos vieram-me
a confirmar o que a filosofia, o que a razão já me ensinaram: não há Deus.
Naquela experiência de reconciliação com a
vida, de sim à vida, eu não senti presença alguma no céu, exceto as gaivotas.
Senti também a presença do movimento da vida, a presença do céu azul desnudado
de nuvens... Foi uma experiência de sentimento, não de pensamento.
Há religiosos que dizem não conseguir explicar
Deus, dizem não ser necessário refletir racionalmente sobre Deus. Dizem também
ser capazes de senti-lo e sentindo-o, segundo creem, se contentam. A razão me
sugere uma resposta ou uma explicação que protelo por ora. É de sentimento que
se trata. Não que a razão se oponha ao sentimento, erro comum, por sinal. Eles
caminham juntos, trabalham juntos em nós.
Duas experiências. Dois sentimentos opostos.
Onde os religiosos dizem sentir Deus eu sentia a presença nua e simples da
vida. Teriam eles algum sentido especial? Teriam eles alguma capacidade
sobre-humana, extraordinária que tornaria possível o sentimento de Deus? Ou
será que esse sentimento é sugerido tão-só pela crença de que Deus existe? Ou
seja, penso que é porque eles creem que Deus existe, se convencem disso, que
podem declarar poder sentir Deus. A crença suscita uma experiência que é
interpretada, por força da crença prévia, como sentimento de Deus.
Eu mesmo, durante longo tempo em minha vida,
estava convencido de que podia, em certas ocasiões, em que me abstraia de tudo
que me seduzisse os sentidos, como durante à noite em que me ocupava com minhas
produções poéticas, ou jazido na cama, conversando comigo mesmo no silêncio da
alma, sentir a presença de Deus
Mas o que prova o sentimento? Nada. O
sentimento nada prova; o sentimento não pode provar a existência de Deus. O
sentimento prova apenas que existe um ser capaz de tê-lo e de tomar consciência
dessa experiência.
Não pretendo levar adiante a objeção à
possibilidade real de os crentes sentirem Deus. Se contei aqui a experiência
que tive naquela tarde quando ia para o trabalho, é somente para mostrar que o
descobrir-me ateu e o assumir a atitude ateísta diante da vida significou uma
libertação. A experiência ateísta (isto é, viver sem a promessa de vida eterna,
viver sem a crença numa divindade providente), longe de ser experiência de
desespero, é experiência de libertação. É, decerto, sinal de coragem, que não
suprime medos, apenas não se serve de alguma forma de fuga.
O acordar o ateu em mim significou sobrepujar o
Pai primordial. Significou sobrepujar sua autoridade sobre o meu psiquismo.
Para mim, a morte simbólica de Deus é fonte de alívio e de libertação em face
de um autoritarismo do Outro (de Lacan). Libertação da escravidão da condição
pecadora, da submissão a uma Vontade superior, vigilante e esmagadora, cujos
desígnios e disposições me deviam ser ocultados. Também é uma libertação da
dimensão egocêntrica que se enrobustece no religioso. Nesse sentido, deixei de
interpretar os acontecimentos bons ou ruins com base na convicção de que Deus
tem um propósito para tudo, propósito diante do qual me coloco como
beneficiário, ou me represento como seu portador. A dimensão egocêntrica do
religioso se expressa também na convicção de que ele é portador de uma verdade
sobre o modo de Deus agir.
A imagem do cristão típico pode ser assim
representada. Como cristão, alguém busca consolar um amigo cuja mãe foi
desenganada pelos médicos. Sua mãe sofre de câncer terminal. Então, o cristão
diz que tudo tem um propósito para Deus e, ao dizer isso, ele acredita na
verdade do que diz, acredita que está sendo um porta-voz da palavra de Deus, um
intermediário enunciador do desejo de Deus. Eis o seu ego insuflado! Ele traz a
boa-nova, ele é portador dessa verdade que cuida inquestionável e consoladora.
Vejo nessa atitude cristã não só presunção,
vaidade, mas certo desrespeito, certo desprezo pela dor, pelo sofrimento do
outro. É mais nobre, a meu ver, participar de seu sofrimento. É mais digno e
humano reconhecer-se também na fragilidade do outro, reconhecer-se como
suscetível do mesmo sofrimento. Um abraço reconfortante é mais humanizante e
consolador do que quaisquer palavras prontas, empacotadas, já-dadas pelos
ensinamentos teológicos sobre Deus e seus caprichos, mascarados como
“propósitos escusos” na ideologia cristã. É mais nobre reconhecer-se no
sofrimento daquele amigo como ser humano também que se identifica com sua
condição humana destinada ao sofrimento. Ser cúmplices no sofrimento. Ser
humano no sofrimento humano, que é sofrimento consciente.
Solidariedade do humano com o humano no
sofrimento exige que não elaboremos justificativas assentadas em alguma
metafísica. Basta o sofrimento e a vida que precisa ser vivida. Pense-se nas
teodiceias já forjadas por filósofos e teólogos cristãos que visam a justificar
a quantidade de sofrimento que recai sobre os justos e inocentes. Pense-se nas
tentativas ignominiosas pelos proponentes de teodiceias de justificar o
sofrimento de crianças. Acho repulsivo tal esforço da razão contaminada pela
fé. A razão deve ser, nesse caso, amordaçada, para que seu portador não se
torne cúmplice num sofrimento sem sentido. Calemos a razão que serve à
elaboração de justificativas inaceitáveis ao coração, refutáveis à luz de um
exame cuidadoso, para deixar falar o amor, o sentimento de solidariedade e de
desespero. Por que não? Viver é também desesperar-se. Desespero preferível,
porque autêntico, a esperanças ilusórias. Deixemos o amor que conforta comandar
o bom-senso, e não a fé (esse consolo da ausência, da mentira, da fantasia). O
silêncio de um abraço em face da presença da morte comunica ao outro a
cumplicidade do humano na dor, no sofrimento e no desespero que essa presença
nos causa.
Nietzsche, um
ateu?
Há quem entenda que Nietzsche não era um ateu num sentido forte, isto
é, no sentido de ser alguém que negava qualquer metafísica ou um princípio
primeiro e absoluto que seja causa de tudo. Mas não se pode negar que
Nietzsche, num sentido mais fraco, era um ateu, porque concordaria em negar
existência a qualquer divindade. Certamente, sua veia ateísta torna-se
protuberante em sua crítica ao deus cristão reconhecido por ele como deus
antropomórfico. Os homens criaram Deus à sua imagem. Nietzsche critica
justamente esta ilusão nos homens: eles não se reconhecem mais como os
verdadeiros criadores de Deus. Não há por que culpá-los disso; o cristianismo
já se encarrega de impingir-lhes a culpa original. Pobres homens ignorantes ou
semiconscientes dos processos históricos entretecidos pelos fios robustos e
falsificadores da ideologia, que, posicionando-os como produtores e produtos do
devir histórico, lançam sobre a sua consciência o véu da obscuridade! Para
Nietzsche, Deus é um ideal de super-humanidade no homem.
“Esse o ateísmo de Nietzsche. Combatia o deus criado pelos
racionalistas, o deus definido por atributos. Nietzsche negava os atributos,
porque o atributo já é um limite. Deus não poderia cingir-se às bitolas [medidas,
padrões] pretensiosas da razão humana”.
(p. 65)
Chamo atenção para o fato de que Nietzsche, ao
estender as garras de sua crítica aos atributos de Deus, assume-o não mais como
um ser (transcendente), mas como um sujeito da linguagem. Um sujeito de que o
homem predica atributos.
“(...) interpretar Deus, defini-lo, criar uma ciência como a teologia,
é ofendê-lo. O silêncio em torno de seu nome é mais nobre. O crente é, por
isso, um explorador de Deus. O ateísmo nietzschiano é, assim, uma devoção respeitosa”.
(p. 66)
Talvez nem devoção, talvez nem tão respeitosa.
Porque Nietzsche destitui Deus de seu lugar elevadamente simbólico: Deus não é
mais o Ser Supremo, Absoluto, Ser Criador. Uma devoção respeitosa não lhe
autorizaria a operar, pelo uso da razão, tal sacrilégio.
Ao se voltar com ferocidade crítica para o
cristianismo, é verdade que Nietzsche o condenava por aviltar o mundo e a
condição humana, por transformar aquele num vale de lágrimas. Pretendeu
convocar os crentes a que amassem o mundo. Pretendeu restituir o homem a terra,
fincar-lhe as raízes no mundo. Mas também é verdade que Nietzsche, em muitos
momentos, exaltou o cristianismo, certamente pelo seu caráter
social-revolucionário. Há, portanto, essa ambivalência em sua crítica.
Em suma, a crítica ao cristianismo levada a
efeito por Nietzsche pode ser resumida no que se segue:
“Em vez de construir na terra o Reino dos Céus, postergou-o para o
infinito, e acusou o mundo de todos os males e o homem de todas as infâmias. E
o que o homem tinha de mais puro e de mais belo, que eram e são os seus
instintos, essas forças misteriosas que o trazem em constante defesa e lhe
permitem usufruir a vida, veste-os de cores negras, desmerecendo-os. A natureza
dos sentimentos, a ingenuidade das atitudes passaram a ser crime, pecado,
afronta”.
“O homem – o verdadeiro Satã – criara o seu próprio inferno, porque se
negava a si mesmo”.
(p. 67)
Novamente aqui, vale a lógica: afirmação de Deus
significa negação do homem.
A coluna dorsal, assim me parece, da filosofia de
Nietzsche consiste em seu princípio dionisíaco de afirmação da vida. À luz
desse princípio, é possível entender a crítica de Nietzsche ao cristianismo e
ao Deus cristão. Afirmar a Deus é negar o homem. Negá-lo em dois sentidos:
primeiro, é negá-lo como agente da história, negá-lo, portanto, como único
responsável pela fabricação, ao longo de milênios, da ideia de Deus; segundo, é
negá-lo como ser mundano, como ser natural dotado de instintos que lhe são como
forças criativas, forças que alimentam sua vontade de poder (de dominar), com a
qual ele pode apossar-se da vida, agarrar-se a ela, enraizar-se no mundo,
assumir-se como - para lembrar Heidegger - um ser-aí.
Ao concentrar sua crítica nos atributos de Deus,
Nietzsche não só reconhece em Deus a marca da humanidade do homem (uma
humanidade idealizada, elevada à máxima potência), mas também a presunção
humana que se esconde na crença de que pode determinar a natureza de Deus.
Vaidade, um dos pecados definitivamente censurados pelo cristianismo! Por isso,
para Nietzsche, os crentes são ofensivos a Deus ao cuidarem-se conhecedores da
sua natureza, ao cuidarem-se capazes de lhe fixar arestas, limites, contornos,
por meio da atribuição de qualidades que não são senão marcas linguísticas
deixadas pela razão humana.
O leitor atento consegue escutar a voz
concordante de Feuerbach?
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