O
percurso da lucidez
Para
a construção de uma consciência
emancipada
da religião
Este texto é dedicado à exposição do percurso
intelectual que todo aquele que esteja interessado no esclarecimento sobre os
fatos e as bases ideológicas que tornam a tenacidade de suas crenças religiosas
consequência do obscurecimento da consciência e da ignorância alimentada pelos
outros significativos que estão na origem e no curso ininterrupto de nossa
socialização (pais, avós, tios, professores, sacerdotes, etc) pode trilhar. Decerto, as expressões “obscurecimento da
consciência” e “ignorância” podem soar ofensivas a potenciais leitores cristãos
deste blog; no entanto, em tempo, se verá que elas são apropriadas para
expressar o efeito de um longo processo de formação de consciências dependentes
engendrado pelos mecanismos doutrinários religiosos.
Aproveito o ensejo para apresentar o primeiro livro
de nosso percurso, do professor e ex-sacerdote católico, Marcelo Da Luz – Onde a religião termina (2011). Nesta
obra, o leitor encontrará uma série de temas implicados no fenômeno religioso,
muito embora o autor destine suas críticas majoritariamente à tradição cristã,
em especial ao catolicismo. Entre os
temas, se acham as falácias do discurso
religioso, o antiuniversalismo das religiões, a delegação à autoridades
religiosas da responsabilidade pela interpretação do mundo, o mito de Jesus
Cristo, “Deus” encarnado, a santidade como ideal nocivo à vida humana.
Para que tenhamos a noção do quão invasivo é o
trabalho de lapidação da consciência pela prática de doutrinação religiosa,
vale atentar para o seguinte excerto colhido do capítulo terceiro, no qual
Marcelo Da Luz trata do fenômeno a que ele chama “terceirização das escolhas
existenciais”:
“Este
autor, ex-pregador do evangelho, admite ter trabalhado ao modo de lavador de
cérebros. Desde a catequese mais elementar até os enunciados prenhes de
conteúdos teológico-espiritual, todo o trabalho do educador religioso consiste
na progressiva instalação de sinapses neofóbicas em si e nos ouvintes. Formação religiosa é expressão a ser
tomada literalmente: os indivíduos têm suas mentes presas à fôrma dos dogmas
repetidos ad nauseam. Tal formação os
impede de olharem para o fundo de si mesmos, sem medos, disfarces, escapismos,
fantasias ou regressões infantis, e os transforma em robôs existenciais,
cumpridores de ritos, repetidores de fórmulas e antagônicos a qualquer outra
nova perspectiva.”
(p. 74)
Particularmente interessante é ver que o autor, em
vários momentos, reconhece ter exercido o papel que ora trata de criticar – o
que prova ser possível aos mais ferrenhos doutrinados a emancipação intelectual
da religião, não sem antes superar uma série de fobias. Ao se ocupar da natureza da consciência
religiosa, o autor argumenta que ela é produzida para tornar-se infensa à
argumentação (o que não surpreende, já que disso depende a sua conformação e
obediência):
“A
perspectiva antiuniversalista da consciência religiosa transforma-a num ser
defensivo, cuja fortaleza não é o exercício argumentativo, mas a
pseudossegurança do dogma. Uma desconcertante inversão ocorre no processamento
mental do Homo religiosus: a crença
(ideia a priori) e o símbolo
substituem a experiência da realidade. Essa inversão é notória, por exemplo, na
obsessão dos católicos pelos sacramentos, rituais em que os supostos símbolos
da vida substituem o próprio viver. Desse modo, os religiosos passam a evitar
uma série de oportunidades e experiências, levados pelo injustificável temor de ver os fatos contradizerem suas crenças sobre a
realidade”.
(p.
178)
(grifo
meu)
No tocante à natureza simbólica da religião, remeto
o leitor ao livro de Rubem Alves O que é
religião? (1999). Limito-me a notar que o símbolo pode recobrir outras
formas sígnicas (como os signos linguísticos). No entanto, em stricto sensu, o símbolo é um objeto
material ao qual se atribui uma ideia abstrata. É nesse sentido que ele foi
empregado pelo autor. Assim, por exemplo, a cruz, no catolicismo, simboliza a
“salvação” (pelo menos era esse o significado de que falava o padre durante a
missa). Uma consulta no Dicionário de
Símbolos mostra-nos que as noções de “sofrimento” e “triunfo” estão entrelaçadas em sua
simbologia. De qualquer modo, sempre achei indecoroso associar à cruz a ideia
de “salvação” ou “triunfo”, por razões que não carecem ser explicitadas, pois
óbvias. Os judeus, até onde eu sei, me parecem mais sensatos, ao associar à
cruz a ideia de morte ou maldição. Decerto, a cruz é, na perspectiva dos
judeus, um escândalo. Pode-se imaginar quão incompreensível é para um judeu a
adoração de um homem pregado numa cruz.
Importa-me, a esta altura, fazer ver ao leitor que,
uma vez tomando o símbolo o lugar das vivências da realidade, o crente
religioso é envolvido numa atmosfera de fantasia. Assim, a hóstia e o sangue
não apenas simbolizam, respectivamente, o corpo e o sangue de Cristo, mas são o próprio corpo e sangue de Cristo.
Por fim, a ideia de que os fatos contradizem as crenças não é levada em conta pelos
religiosos. E não é porque eles resistem a confrontar suas crenças com as ocorrências do real. No que toca à noção de crenças,
particularmente, de crença religiosa, a contribuição de Sam Harris, em A morte da fé (2009), não pode ser
ignorada. O autor destina um capítulo para tratar da “natureza da crença”.
Nele, Harris definirá crença, à luz de uma abordagem neurocientífica. Leiamos,
com atenção, o excerto em que o autor apresenta-nos a definição de crença:
“(...)
parece incontestável afirmar que todos os estados de ordem cognitiva mais
elevada (dos quais as crenças são um exemplo) são de certa forma derivados da
nossa capacidade de ação. Em termos adaptativos, a crença foi
extraordinariamente útil. Afinal, é acreditando em várias premissas sobre o
mundo que podemos prever eventos e considerar as consequências prováveis de
nossas ações. As crenças são princípios
de ação: seja lá o que forem em termos cerebrais, elas são os processos pelos quais o nosso entendimento do mundo (seja
correto ou equivocado) é representado e disponibilizado para orientar o nosso
comportamento”.
(pp.
58-59)
(grifo
meu)
Vale acompanhar a argumentação do autor que se
orienta pela intenção de nos fazer entender, ao cabo, que as crenças religiosas
não representam nenhum estado-de-coisas atestado no mundo. Assim, ao tratar das
convicções, o autor nos ensina que “no momento em que admitimos que nossas
convicções são tentativas de representar estados do mundo, percebemos que elas
devem se relacionar corretamente com o mundo para serem válidas” (p. 71).
Que os seres humanos sejam resistentes a mudar de
ideia, a assumir outras perspectivas contrárias às que vêm mantendo durante
muito tempo é fato já reconhecido em psicologia e neurociência. Lembra Harris
que “somos conservadores nas nossas convicções, no sentido de que não
acrescentamos nem subtraímos algo do nosso estoque delas sem que haja razão
para isso” (p. 69). Claro é que há pessoas que abandonam suas convicções ou
crenças mais arraigadas, mas é preciso que se sintam motivadas a fazê-lo; é
preciso que isso lhes represente algum benefício.
Harris prosseguirá nos mostrando que,
epistemologicamente falando, toda crença ou convicção precisa representar o
nosso saber a respeito do mundo, o que implica crer que uma afirmação seja
verdadeira, mas crer na veracidade de uma afirmação não é o mesmo que desejar
que ela seja verdadeira. E, como ensina Da Luz, não é porque desejo que seja
verdadeira que ela será verdadeira.
Convém, agora, retomar a obra de Marcelo Da Luz.
Na seção intitulada de A indústria da dependência, ainda no capítulo terceiro, o autor
refere-se às autoridades religiosas como “funcionários do sagrado” e delas no
diz o seguinte:
“O
funcionário do sagrado possui, supostamente, o conhecimento para se chegar à
salvação, e por suas mãos passam os poderes de perdoar, abençoar, condenar e
explicar, em nome de “Deus”, as vicissitudes da vida humana. Sequiosos, devotos
acorrem à recepção dos serviços sagrados, garantia de salvação. Os planos estão
já revelados, as interpretações oficiais, estabelecidas; os modelos a serem
seguidos, disponíveis; os meios necessários, instituídos. Ao fiel basta
aquiescer a essa ordem de coisas. Nesse esquema, o poder é exterior ao
indivíduo, a salvação vem sempre de fora. O
crente não tem outra opção senão terceirizar as escolhas existenciais”.
(ênfase
minha)
(p. 79)
O leitor interessado na leitura deste livro tomará
conhecimento dos bastidores da fé; das estratégias discursivas empregadas no
esforço para manipular os fiéis e promover a “lavagem cerebral” em larga
escala. E saliento, de passagem, que essa expressão, tão comumente usada nas
conversações cotidianas, entre aqueles que se opõem às práticas adestradoras
dos “funcionários do sagrado”, foi empregada pelo próprio autor. O livro
constitui um cenário de muitas e diversas questões, uma das quais me parece
notável e podemos apreendê-la no seguinte passo, em que Da Luz nos ensina sobre
a invenção de Satanás:
“As
primeiras gerações cristãs reconstruíram o conceito de Satã à imagem de seus
principais inimigos: os judeus resistentes à crença em Jesus. Pouco mais tarde,
o processo de demonização atingirá também os pagãos, em função da intolerância
cristã em relação aos politeísmo e à liberdade de pensamento. Finalmente, Satã
será encontrado entre os hereges – cristãos dissidentes cujas diferentes
interpretações das mesmas crenças ameaçaram o poder dos clérigos politicamente
mais fortes. Do ponto de vista histórico, a aterrorizante figura do demônio –
habitante permanente do imaginário medieval e ainda hoje base do apelo á força
presente em muitos discursos cristãos – foi
apenas produto da mente sectária, cujo funcionamento enxerga no outro, no
diferente e no desconhecido, a ameaça do inimigo mortal”.
(pp.
183-184)
(ênfase
no original)
Destaquei em negrito a expressão “do ponto de vista
histórico” com a intenção de sinalizar para o fato de que o autor nos fornece
uma explicação histórica para o surgimento da figura de Satã e sua perpetuação no imaginário popular ainda
hoje. Assim, a fantasia encontra arreio no real
histórico e se despe da veste de “realidade trans-histórica”. Compreendida
no âmbito histórico, a fantasia passa a ser plenamente explicável e
compreensível. Ao final de cada capítulo, o autor nos oferece um “megaproblema”
– a saber, uma questão inquietante sobre a qual ele nos convida a pensar.
Destaco o megaproblema do último capítulo do livro (capítulo 17), por acreditar
que ele expressa o essencial a respeito do Deus forjado pela tradição
monoteísta ocidental:
“A
ideia de “Deus” arquitetada pelas grandes religiões é sempre uma interpretação
contaminada de antropomorfismos e anseios humanos a respeito da suposta causa
primeira. A verdade quanto à identidade do princípio originário do Universo
permanece inacessível à experiência terrestre da consciência. Tal verdade
independe tanto dos desejos, sonhos e esperanças, quanto do número de crentes.
O fato dos credos religiosos exercerem ostensiva influência sobre a vida das
pessoas, infundindo-lhes consolo e alento em muitas situações, não os torna
verdadeiros em si mesmos. A consolação traz alívio momentâneo, sob o preço do
autoengano”.
(p. 351)
Preciso deter-me um pouco neste trecho. Vale notar,
de início, que o autor rebaixa Deus à categoria de ‘ideia’, deixando de
encará-lo como um ‘ser transcendente’ que pré-existe ao mundo e aos homens e que os transcende. Deus é produto da mente
humana. E nisso estaria de acordo Feuerbach. Aliás, é conhecida a tese do
filósofo alemão, segundo a qual Deus não é senão a essência do homem projetada
para fora de si. Deus é forjado na cisão do homem em si mesmo. Mais adiante,
discorrerei um pouco sobre a contribuição de Feuerbach.
Para bilhões de pessoas no mundo, Deus é a chave do
mistério da vida. No entanto, basta prestarmos atenção nos atributos que a
definição de Deus encerra para que concluamos, sem muito esforço, que a ideia
de Deus recobre a noção de um Ser superior a que se atribuem qualidades
humanas, embora superlativizadas. As qualidades de amoroso, bondoso, poderoso,
diligente, justo, ciente são caracteristicamente humanas, mas idealizadas numa
escala de potência infinita na forma de Deus (daí ser Deus infinitamente amoroso,
bondoso, poderoso... e onisciente). A
atribuição de qualidades humanas às divindades dá-se o nome de antropomorfismo. Por isso, Deus é que
foi criado à imagem e semelhança dos homens, e não o contrário. Vale insistir
neste fato!
Também acho que a ponderação que Da Luz faz neste
trecho é condizente com a minha atitude em face do Mistério. Como ateu, não
pretendo dizer a última palavra sobre o que está na origem e no fim da vida. Eu
não sei, mas tenho fortes razões para afirmar não se tratar de um Deus, tal como
representado na tradição monoteísta (judaísmo, cristianismo e islamismo).
Prossigamos em nosso percurso.
Trago à cena Ludwing Feuerbach (1804-1872),
filósofo alemão do século XIX, cujas ideias exerceram decisiva influência no
pensamento de Karl Marx. Tendo em conta o que escrevi a respeito do
antropomorfismo do Deus judaico-cristão, cuido ser pertinente referir uma
passagem de A Essência do Cristianismo (2009)
em que Feuerbach é bastante claro, ao corrigir a inversão ideológica operada
pela tradição monoteísta, ao conceber Deus como criador e o homem como
criatura:
“(...)
a especulação religiosa também considera os dogmas separados do contexto no
qual eles somente têm sentido; ela não os reduz criticamente à sua verdadeira
origem interna; antes transforma ela o derivado em primitivo e inversamente o
primitivo em derivado. Deus é para ela o princípio; o homem vem depois. Assim
distorce ela a ordem natural das coisas! O princípio é exatamente o homem,
depois vem a essência objetiva do homem: Deus”.
(p.
134)
Neste trecho, percebemos a tentativa de
desconstrução da inversão ideológica, que toma Deus como princípio e o homem
como derivado; Deus como o criador; e o homem como sua criatura. Mais adiante,
Feuerbach considerará a alienação religiosa, quando escreve “(...) o homem cria
Deus, sem saber e querer, conforme a sua imagem” (id.ib.). Os homens se alienam
no sentido de que, não compreendendo Deus como projeção de sua própria essência
para fora de si, entendem-no como um Ser que os transcende, que é exterior e
independente.
A essência de Deus é a autoconsciência do homem.
Deus é a essência do homem objetivada. Na verdade, a leitura do seu mais
importante trabalho A Essência do
Cristianismo (2009) nos permitiria saber que Feuerbach identifica Deus ao
homem. Há várias passagens - no capítulo
11, por exemplo, em que o autor trata do mistério da providência e da criação -
que expressam essa identificação de Deus com o homem. Assim, lemos, à página
124, “a personalidade de Deus é a personalidade do homem libertada de todas as
determinações e limitações da natureza”. Na página seguinte, encontramos também
“Concedei
também que o vosso Deus pessoal nada mais é que a vossa própria essência
pessoal, que ao crerdes e demonstrardes o supra e extranaturalismo do vosso
Deus nada mais credes e demonstrais do que o extra e supranaturalismo de vossa
própria essência”.
Dada a vaguidão que o conceito de “essência” pode suscitar
ao espírito do leitor, convém precisá-lo, na perspectiva de Feuerbach. Para o
autor de A Essência do Cristianismo,
a essência humana é a consciência, tomada no sentido que ele qualificará de
“rigoroso”, a saber, a capacidade que os seres humanos têm de tomar para objeto
de pensamento o próprio gênero. Segundo
o filósofo, os seres humanos são capazes de se colocar no lugar do outro, e
isso é possível porque eles tomam o gênero para objeto de sua consciência. Ao
contrário, embora os animais tenham sentimento de si, são incapazes de tomar o
gênero para objeto de si mesmo. Concluirá Feuerbach que, nesse sentido, eles
carecem de consciência.
“(...)
tem o animal apenas uma vida simples, mas o homem uma dupla: no animal é a vida
interior idêntica à exterior – o homem possui uma vida interior e uma exterior.
A vida interior do homem é a vida relacionada com o seu gênero, com a sua
essência. O homem pensa, isto é, ele conversa, fala consigo mesmo. O animal não
pode exercer nenhuma função de gênero sem um outro indivíduo fora dele; mas o
homem pode exercer a função de gênero do pensar, do falar (porque pensar e
falar são legítimas funções de gênero) sem necessidade de um outro (...)”.
(pp.
35-36)
Gostaria de referir este último trecho do trabalho
de Feuerbach, em que se expõe a definição de Deus como mero objeto de
pensamento:
“Deus
como Deus, i.e., como um ser não finito, não humano, não determinado
materialmente, não sensorial, é apenas
um objeto do pensamento. É o ser transcendente, sem forma, intocável, sem
imagem – o ser abstrato, negativo; só é conhecido pela abstração e a negação (via negationis). Por quê? Porque não é
nada a não ser a essência objetiva do pensamento, a capacidade ou atividade em
geral, que se a chame como se quiser, pela qual o homem se torna consciente da
razão, do espírito, da inteligência. O homem não pode crer, supor, imaginar, pensar
em nenhum outro espírito (i.e., porque o conceito de espírito é meramente o
conceito de pensamento, de conhecimento, de inteligência, qualquer outra forma
de espírito é um fantasma da fantasia) a não ser a inteligência que o ilumina,
que atua nele. Ele nada mais pode fazer que abstrair a inteligência das
limitações de sua individualidade”.
(pp.
64-65)
Não é difícil imaginar quão polêmica foi a vinda a
lume desta obra de Feuerbach no século XIX. Esta e outras expressões da
definição de Deus, numa abordagem da religião como antropologia, não parece
encontrar paralelo em nenhuma outra publicação. Acabo de encontrar um
enunciado, que consta da Apresentação do
tradutor, que exprime sucinta e claramente a tese da argumentação de
Feuerbach. Sei bem que já me referi a ela anteriormente, mas gostaria de
estampá-la aqui, por nos deixar a salvo das dúvidas:
“O homem projeta em seus deuses todos os
seus anseios, amores e sentimentos mais elevados e profundos. O home retira de si a sua essência mais
elevada e mais nobre para adorá-la fora de si como Deus”.
(grifo meu)
Dois outros livros se destacam por nos permitir
estudar o contexto socio-histórico em que surgiu e se desenvolveu a fé cristã.
O leitor poderá compreender como o cristianismo pôde alcançar o status de religião predominante no mundo
ainda hoje lendo o trabalho do historiador Paul Veyne – Quando nosso mundo se tornou cristão [312-394] (2011) – livro em
que o autor destaca o papel decisivo do imperador Constantino na consolidação
da então pequena e nova seita dentro do imenso Império Romano. Constantino
converteu-se sinceramente ao cristianismo e criou as condições favoráveis ao
progressivo desenvolvimento da profissão de fé cristã, não sem permitir que os
cultos pagãos continuassem a ser praticados. Constantino, nesse tocante, foi
assaz tolerante. Isso, no entanto, não o impediu de considerar o cristianismo
como a única religião portadora da verdade, relegando as crenças pagãs ao plano
da fantasia. Assim, esclarece-nos o autor:
“Constantino,
dizíamos, deixou em paz os pagãos e seus cultos, mesmo depois de 324, quando a
reunificação de Oriente e Ocidente sob sua coroa o tornou todo-poderoso.
Naquele ano, ele dirige proclamações a seus novos súditos orientais, depois a
todos os habitantes de seu império. Escritas num estilo mais pessoal do que
oficial, saem da pena de um cristão convicto, que proclama que o cristianismo é
a única boa religião, que argumenta nesse sentido (as vitórias do príncipe são
uma prova do verdadeiro Deus), mas que não toma nenhuma medida contra o
paganismo: Constantino não será um novo perseguidor, o Império viverá em paz.
Melhor ainda, ele proíbe formalmente a quem quer que seja de acusar o próximo
por motivo religioso: a tranquilidade pública deve reinar; dirigia-se, sem dúvida,
a cristãos excessivamente zelosos, prontos a agredir os templos pagãos e suas
cerimônias”
(p. 23)
E nosso itinerário pode ainda incluir uma visita ao
trabalho O Livro negro do cristianismo – dois mil anos de crimes em nome de Deus
(2007). Não nos impressionemos com o título. O livro não é sensacionalista; ao
contrário, inclui, de forma suscita, um sem número de episódios em que o
cristianismo engendrou caça às bruxas e aos hereges, Inquisição, escravidão,
colonialismo, apóio a ditaduras européias e sul-americanas, pedofilia, entre
outros fatos escandalizantes. Devido a
limites de espaço e de tempo, não citarei passagens deste livro. A sua leitura
nos faz refletir sobre a conveniência de seguir um corpo de dogmas que serviu a
tantos crimes ao longo da história.
Também nos leva a questionar o silêncio de Deus em face das tragédias
perpetradas em seu nome. Não é possível fechar as páginas deste livro sem que
nos visite a mente a inquietante certeza de que a História, mormente quando
exibiu suas faces mais sangrentas, se fez a despeito da suposta onipresença de
Deus.
Outro livro que merece nossa apreciação, enquanto
leitores ávidos de uma compreensão satisfatória da história cristã, é o livro Evangelhos Pedidos (2008). Neste trabalho, o autor tratará das
descobertas de evangelhos que não entraram para o cânone dos textos sagrados.
Também o tema das falsificações dos textos sagrados, que será retomado em Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi? (2010)
e que estivera presente em O que Jesus
disse? O que Jesus não disse? (2006), encontrará abrigo nas
reflexões do autor.
Uma passagem interessante se topa na seção As variedades do Cristianismo antigo, na
qual nos conta o autor a respeito da ampla diversidade de crenças cristãs:
“A
ampla diversidade do Cristianismo primitivo pode ser vista acima de tudo nas
crenças teológicas abraçadas por pessoas que se viam como seguidores de Jesus.
Nos séculos II e III havia, é claro, cristãos que acreditavam em um único Deus.
Mas havia outros que insistiam haver dois. Alguns diziam que havia trinta.
Outros declararam que havia 365.”
(p. 18)
E prossegue:
“Nos
séculos II e III, havia cristãos que acreditavam que Deus criara o mundo.
Entretanto, outros acreditavam que esse mundo tinha sido criado por uma
divindade subordinada, ignorante. (Por que outro motivo seria o mundo tão cheio
de miséria e dificuldade?) E ainda outros cristãos pensavam que era pior do que
isso, que este mundo era um erro cósmico criado por uma divindade má como um
lugar de prisão, para capturar os humanos e submetê-los à dor e ao sofrimento”.
(id.ibid.)
Os antigos cristãos me parecem mais sensatos. Não
obstante a crença em que o mundo tem de ter um criador, não acreditavam que
esse criador era dotado de sabedoria e benevolência infinitas. Eles, ao menos,
reconheciam que a crença na existência de tal ser é incompatível com a
quantidade esmagadora de evidências do sofrimento em escala mundial. No
entanto, as interpretações desses segmentos foram sobrepujadas pela compreensão
dos proto-ortodoxos, que detinham o poder ideológico e político. Ora, como
poderiam estender seu domínio sobre os cristãos leigos, se o Deus que criou o
mundo fosse maligno ou ignorante? Quem ia querer adorar divindade com tais
qualidades? Foi necessário forjar um Deus grandioso (disso nos fala Veyne, em
seu Quando o mundo se tornou cristão,
livro a que me referi anteriormente), providente, justo e bom. O sofrimento
poderia ser explicado pelo domínio de Satanás sobre o mundo, como propunham os
autores do Apocalipse. A esse respeito, o leitor pode ler O Problema com Deus, obra também de Bart. D. Ehrman (2008). Neste
livro, o autor, que exercera o cargo de
pastor numa igreja evangélica, justifica o abandono da fé, quando reconheceu
que “o problema do sofrimento se tornou o problema da fé” (p. 13). Trata-se de um livro que nos envolve do
início ao fim. O objetivo do autor foi investigar as respostas dadas pelos
autores bíblicos ao problema do sofrimento. Vale acompanhar a exposição e
argumentação desenvolvidas nas duzentas e quarenta e três páginas deste
trabalho impactante.
Os dois livros já mencionados, em que Ehrman se
dedica a nos ensinar sobre a fabricação da bíblia e suas contradições (Quem Jesus foi Quem Jesus não foi?; O que
Jesus disse? O que Jesus não disse?) também têm o mérito de capturar o
leitor logo nas primeiras linhas. Em Quem
Jesus foi?, lemos, no capítulo Quem
escreveu a Bíblia?, uma revelação que a mim soou como uma estrondosa
evidência de que a tradição que bilhões de pessoas no mundo seguem está baseada
em uma farsa:
“Embora
evidentemente não seja o tipo de coisa que os pastores costumam contar às suas
congregações, há mais de um século existe um forte consenso de que muitos dos
livros do Novo Testamento não foram escritos pelas pessoas cujos nomes estão
ligados a eles. (...)”
(p.
118)
Neste livro, aprendemos, entre tantas outras
coisas, sobre a falsificação dos quatro Evangelhos que constam do cânone. Em
outras palavras, descobrimos que os Evangelhos segundo Marcos, Mateus, Lucas e
João não foram escritos por eles. Surpreendente é o que nos revela Ehrman a
seguir:
“Essa
visão de que o Novo Testamento contém livros escritos sob nomes falsos é
ensinada em praticamente todas as grandes instituições de ensino superior por
todo Ocidente, com exceção de faculdades fortemente conservadoras. É a visão
ensinada em todos os grandes livros sobre o Novo Testamento utilizados nessas
instituições. É a visão ensinada em seminários e faculdades de teologia. É o
que os pastores aprendem quando se preparam para o ministério. E por que isso
não é mais conhecido? Por que as pessoas nos bancos das igrejas – para não
falar das pessoas nas ruas – não sabem nada sobre isso? Seu palpite é tão bom
quanto o meu.”
(p.
154)
Citarei, abaixo, alguns trechos do livro O que Jesus disse?, em que Ehrman
discorre sobre o trabalho dos copistas no longo processo de fabricação das
escrituras sagradas. Mais precisamente,
o trecho refere-se à prática de cópias de manuscritos do Novo Testamento.
Estamos no segundo capítulo da obra, intitulado de Os copistas dos escritos cristãos primitivos. À página 67, na seção
Dificuldades para saber qual é o texto
original, observa Ehrman:
“Mudanças
de todos os tipos foram feitas nos manuscritos pelos copistas que os copiaram.
Examinaremos com mais pormenores os tipos de mudanças num capítulo posterior.
De momento, basta-nos saber que realmente foram introduzidas mudanças e que
elas eram generalizadas especialmente nos primeiros duzentos anos em que os
textos foram copiados, época em que a maioria dos copistas era de amadores. Uma
das principais questões com que a crítica textual precisa se haver é como
reconstruir o texto original – o texto tal qual o autor o escreveu -, diante da
circunstância de que os nossos manuscritos são tão coalhados de erros. O
problema é agravado pelo fato de que, uma vez introduzido, o erro pode se
encaixar firmemente na tradição textual, muito mais firme que o original”
No tocante à carta aos Gálatas, que não fora
escrita por Paulo, mas ditada por ele a um copista – o prova a presença de um pós-escrito
acrescentado por ele mesmo Paulo, com o objetivo de assegurar aos destinatários
que ele, Paulo, foi o autor da carta, observa Ehrman que tal prática era comum
na Antiguidade. Tendo sido ditada a carta, surge o problema de saber se Paulo a
ditou longamente, palavra por palavra, ou se fez uma exposição básica de sua
doutrina, deixando ao copista a tarefa de completar as lacunas. Tendo em conta
essa dificuldade com que têm de lidar os estudiosos, escreve o autor:
“Suponhamos,
contudo, que o copista tenha captado as palavras de modo 100% correto. Se
múltiplas cópias da carta foram feitas, podemos estar seguros de que todas as
cópias são também 100% corretas? É, no mínimo, possível que mesmo que tivessem
sido todas copiadas na presença de Paulo, uma palavra ou duas aqui ou ali
pudessem ser alteradas em uma ou outra das cópias. Se fosse esse o caso, o que
ocorreria se apenas uma das cópias
tivesse servido como cópia da qual todas as cópias subsequentes fossem feitas –
depois, no século I, no século II, no século III, e assim por diante? Nesse
caso, a cópia mais antiga que constituíra a base de todas as cópias
subsequentes da carta não era exatamente o que Paulo escrevera, ou quisera
escrever”.
(p. 69)
À proporção que o leitor avança na leitura do livro,
não custará a ele chegar à conclusão de que a grande maioria dos escritos que
compõem o Novo Testamento são produto de falsificações. O que figura na bíblia
e que chegou até nós, passados mais de 2.ooo anos, são cópias de cópias. Dos 27
livros que compõem o Novo Testamento, 19 são produto de falsificações, como se
depreende do seguinte trecho de Ehrman, em Quem
foi Jesus?:
“Agora
retorno à minha pergunta original: quem escreveu a Bíblia? Dos 27 livros do
Novo Testamento, apenas oito quase
certamente foram escritos pelos autores aos quais são tradicionalmente
atribuídos: as sete inquestionáveis epístolas de Paulo e o Apocalipse de João,
que poderia ser classificado como homônimo, já que não alega ter sido escrito
por um João específico; isso era reconhecido até mesmo por alguns autores dos
primórdios da Igreja”.
(p.
153)
(ênfase
minha)
O leitor que prosseguisse na leitura saberia que há
controvérsia no tocante à autoria dos textos 2 Tessalonicences e 1 Pedro. Aqui
as posições se dividem entre os que acreditam que tais textos foram escritos
pelos autores a que eles são referidos, respectivamente, Paulo e Pedro, e os
que lançam sérias dúvidas quanto a serem estas pessoas seus autores. Por outro
lado, os estudiosos estão de acordo quanto ao fato de os livros 1 Timóteo e 2
Pedro não terem sido produzidos pelos autores cujos nomes se estampam nas
páginas. Ou seja, não foi Timóteo que escreveu 1 Timóteo, tampouco Pedro que
escreveu 1 Pedro.
Tendo tomado conhecimento da problemática em torno
da verdadeira autoria dos textos sagrados, também – assim creio – não será
custoso ao leitor concluir que a Bíblia foi produzida pelas mãos de muitos
homens. A Bíblia é um livro humano.
Gostaria, de passagem, referir um trecho bastante elucidativo da posição de
Ehrman, um dos maiores especialistas nos estudos do Novo Testamento. Nesse
excerto, o autor retoma a razão por que abandonou a sua fé, bem como expõe a
conclusão inevitável a que chegou após longos anos de estudo da Bíblia:
“Portanto,
não abandonei a fé cristã por causa dos problemas inerentes à fé propriamente
dita nem porque me dei conta de que a Bíblia era um livro humano ou que o
cristianismo era uma religião humana. Tudo isso é verdade – mas não foi o que
desmontou minha aceitação do mito
cristão. Eu abandonei a fé pelo que considerei (e ainda considero) ser uma
razão distinta: o problema do sofrimento no mundo”.
(p. 298)
(grifo meu)
Note-se que Ehrman refere-se ao cristianismo como
um mito ou um conjunto de mitos. Outros tantos autores assim compreendem as
religiões, de maneira geral, e o cristianismo, particularmente. O próprio
Marcelo Da Luz se reconhece hoje como agente comprometido com a desconstrução “[do]
mundo de fabulas e falácias onde se assenta o pensamento religioso” (p. 122).
Não se pode ter certeza absoluta da existência histórica de Jesus, conquanto
para autores como Ehrman Jesus, enquanto profeta judaico apocalíptico que viveu
na Palestina do século I, provavelmente existiu. As dificuldades ligadas à
certeza da existência de Jesus consistem em que as únicas fontes disponíveis
que nos permitem conhecer a vida de Jesus são os quatro Evangelhos, textos
impregnados de inconsistências. Assim, adverte-nos Ehrman, na mesma obra:
“(...)
o problema é que os Evangelhos estão repletos de discrepâncias e foram escritos
décadas após o ministério e a morte de Jesus, por autores que não tinham
testemunhado pessoalmente nenhum dos acontecimentos da vida dele”.
(p.
159)
Volvemos à consideração do cristianismo como um
conjunto de fábulas. O trecho a seguir, tomado a Marcelo Da Luz, esclarece-nos
sobre a influência das mitologias pagãs na construção da narrativa do
sacrifício de Jesus. Não está em questão a crucificação de Jesus (embora seja
possível levantar suspeitas sobre a prática de crucificação entre os romanos
naquela época). No link abaixo, há uma reportagem divulgada na revista Época, em que um teólogo qualifica a
crucificação de Jesus como uma “história baseada nas tradições católicas e em
ilustrações antigas”.
O que está em questão é a construção da
significação teológica do sacrifício e morte de Jesus. Acompanhemos as palavras
do autor:
“O
antropólogo francês René Girard tornou-se célebre pela teoria explanatória da
violência religiosa, segundo a qual as comunidades primitivas, a fim de não se
autodestruírem pela rivalidade e inveja de seus indivíduos, ritualizavam a
morte de um forasteiro, em quem era depositada toda a culpa ao modo de bode
expiatório. A tradição judaica, no entanto, paulatinamente refinou essa
prática, substituindo seres humanos por animais, vítimas inocentes levadas ao
altar da imolação. Dessa forma, segundo o cristianismo, Jesus ocupa o papel do
cordeiro justo e sem mancha, vítima perfeita, cujo sangue é derramado a fim de
aplacar a ira de “Deus” todo-poderoso. Esse bizarro discurso – predominante na
história do pensamento cristão – aproxima sobremaneira o cristianismo às
antigas religiões pagãs praticantes do sacrifício humano”.
(p.
134)
Um discurso bizarro – escreve o autor. Por que
bizarro? Porque, se examinado cuidadosamente, ele nos parecerá repugnante ao
coração e ao intelecto. Ao coração, porque Deus se satisfaz com a morte de um
inocente. Este inocente tinha de morrer para que Deus se acalmasse e não viesse
a destruir o mundo (mais uma vez). Ele mesmo envia ao mundo seu próprio filho
para morrer, não sem antes experimentar dor e sofrimento atrozes. E a dor, o
sofrimento e a morte deste infeliz e inocente judeu serviu à salvação de toda
humanidade da ira de Deus, que estava insatisfeito com os maus comportamentos
de suas criaturas. Mas a mesma doutrina ensina que Deus é infinitamente
misericordioso e, portanto, está sempre disposto a perdoar, o que nos obriga a
perguntar: por que então não perdoou aqueles que estavam perpetrando atos maus,
poupando o próprio filho do martírio?
Pensemos na história tendo como base o
comportamento humano. Um pai pode sacrificar-se para salvar a vida do próprio
filho. Certamente, muitos pais e mães estão dispostos a morrer pelo próprio
filho. Nesse sentido, realmente, estamos diante de um sacrifício em favor da
salvação de um outro a quem muito amamos. Nada semelhante há na narrativa do
sacrifício e morte de Jesus. Deus não se sacrifica para salvar a humanidade, o
que seria absurdo em se tratando de uma divindade, que, por definição,
desconhece sofrimento e morte. Mas insisto em que Deus não se sacrifica; faz
melhor: envia o seu filho amado para se sacrificar em favor da sobrevivência de
toda a humanidade, porque ele, Deus, estava muito zangado com a forma como os
homens vinham se comportando. (estou ignorando o dogma segundo o qual Jesus é o próprio Deus que se fez carne para a
expiação dos pecados dos homens, porque isso complica mais ainda essa esdrúxula
história; mesmo que Deus, transmutado em Cristo, tenha morrido, ele, segundo a
crença, não morre, porque ressurge no terceiro dia após sua morte – mas isso é
matéria de fé, porque o fato é que Jesus, uma vez pregando contrariamente às
convicções de certa classe do poder judaico, preparou o caminho de seu próprio
autosuicídio (ver. Da Luz, p. 135)).
Como não se
afigurar em nossa alma a ideia de um Deus sádico? Jesus, o filho de Deus, nos
salva da ira de seu Pai; portanto, nos salva do próprio Deus, que estava
insatisfeito com os nossos pecados. Tendo poder suficiente para resolver o
problema que o incomodava, Deus envia seu filho para morrer e, assim, evitar
que se eliminem todos os seres que habitam o planeta. Uma solução, no mínimo,
pouco engenhosa vindo de uma divindade de tal magnitude. Deus é, assim, sádico
e cúmplice do assassinato do próprio filho. Que pai, sabendo que o filho
correria risco de vida, o mandaria
resolver um problema que ele mesmo, pai, teria condições de resolver sozinho?
Mas a história bíblica ainda é pior. Deus estava presciente dos acontecimentos
funestos que envolveriam a vida do filho; o sacrifício e morte de Jesus estavam
previstos no plano maquiavélico de Deus! Só faz sentido falar em salvação pela morte se há um sacrifício
verdadeiro de alguém pela sobrevivência de outrem. O pai que se lança para
evitar que o filho seja alvejado por um projétil, deixando o peito exposto ao
impacto, assume o risco de morrer para salvar o filho. O plano de Deus, sendo
não só repugnante é também falho. Ainda hoje, os homens se veem às voltas com
as dificuldades decorrentes de sua natureza. Ainda hoje, matam uns aos outros;
guerreiam, cultivam a discórdia, discriminam; fomentam a competição, engordam
na alma a ganância, etc. Em suma, nossos problemas continuam conosco.
A respeito da prática de sacrifício, comum nas
religiões pagãs de povos primitivos, pode-se ler sua lógica em O livro das religiões:
“Se um
indivíduo cometeu um crime contra os deuses e despertou a sua ira, deve ser
punido. Para apaziguar os deuses e evitar uma vingança, ele pode fazer um
sacrifício de expiação. A oferenda – por exemplo, um animal sacrificial –
substitui o culpado e é punida no lugar dele”.
(p. 31)
Que belo exemplo de justiça! Veja-se como os deuses
pagãos eram produto de antropomorfismo, ou seja, eles eram dotados de
qualidades humanas, demasiado humanas. Embora fossem dispostos a fazer o bem
aos homens que os adoravam, proporcionando-lhes, por exemplo, boa colheita,
podiam também irar-se contra eles, submetendo-os a uma temporada de fome. Também o Deus judaico-cristão era capaz de
odiar e punir. O Deus do Antigo Testamento era ciumento; não lhe apetecia o
culto a outras divindades. Vale notar também que a prática de render oferenda é
uma estratégia de barganha de que se valem os religiosos para obter benefícios
de suas divindades.
Tenho de pôr um ponto final neste texto. Por isso,
deixarei de considerar um pouco do conteúdo de livros igualmente importantes
como o de Christopher Hitchens – deus não
é Grande (2007).
Que benefícios intelectuais nosso percurso nos acarretou? Vimos que podemos aprender muito sobre o modo como a fé católica penetra
na consciência dos crentes, com Marcelo Da Luz; podemos aprender com Feuerbach
que a religião é um fenômeno antropológico; podemos também aprender, com Ehrman,
sobre as contradições que se acham na Bíblia, sobre a história da fabricação
deste que é o livro mais vendido e lido do mundo; podemos ainda estudar o
contexto sócio-histórico em que o cristianismo lançara suas raízes, de tal
sorte que seremos levados a concluir, corretamente, que o Deus que nossas
sociedades ocidentais herdaram foi forjado num tempo remoto por pessoas que
viveram sob o domínio dos romanos no Oriente Médio. Trata-se de um Deus que foi
plasmado na História, que foi forjado por uma ideologia que rezava ser a crença
no poder infinito desse Ser transcendente a única forma de escapar, ou, ao
menos, resistir ao jugo dos dominadores. Portanto, uma ideologia da submissão,
da obediência cega a uma autoridade transcendente. Uma ideologia que trataria,
com o tempo, de arrebanhar bilhões de seguidores.