sexta-feira, 14 de setembro de 2012

"Apenas o conhecimento salva" (BAR)





O percurso da lucidez
Para a construção de uma consciência
emancipada da religião


 
Este texto é dedicado à exposição do percurso intelectual que todo aquele que esteja interessado no esclarecimento sobre os fatos e as bases ideológicas que tornam a tenacidade de suas crenças religiosas consequência do obscurecimento da consciência e da ignorância alimentada pelos outros significativos que estão na origem e no curso ininterrupto de nossa socialização (pais, avós, tios, professores, sacerdotes, etc) pode trilhar.  Decerto, as expressões “obscurecimento da consciência” e “ignorância” podem soar ofensivas a potenciais leitores cristãos deste blog; no entanto, em tempo, se verá que elas são apropriadas para expressar o efeito de um longo processo de formação de consciências dependentes engendrado pelos mecanismos doutrinários religiosos.
Aproveito o ensejo para apresentar o primeiro livro de nosso percurso, do professor e ex-sacerdote católico, Marcelo Da Luz – Onde a religião termina (2011). Nesta obra, o leitor encontrará uma série de temas implicados no fenômeno religioso, muito embora o autor destine suas críticas majoritariamente à tradição cristã, em especial ao catolicismo.  Entre os temas, se acham as falácias do discurso religioso, o antiuniversalismo das religiões, a delegação à autoridades religiosas da responsabilidade pela interpretação do mundo, o mito de Jesus Cristo, “Deus” encarnado, a santidade como ideal nocivo à vida humana.
Para que tenhamos a noção do quão invasivo é o trabalho de lapidação da consciência pela prática de doutrinação religiosa, vale atentar para o seguinte excerto colhido do capítulo terceiro, no qual Marcelo Da Luz trata do fenômeno a que ele chama “terceirização das escolhas existenciais”:

“Este autor, ex-pregador do evangelho, admite ter trabalhado ao modo de lavador de cérebros. Desde a catequese mais elementar até os enunciados prenhes de conteúdos teológico-espiritual, todo o trabalho do educador religioso consiste na progressiva instalação de sinapses neofóbicas em si e nos ouvintes. Formação religiosa é expressão a ser tomada literalmente: os indivíduos têm suas mentes presas à fôrma dos dogmas repetidos ad nauseam. Tal formação os impede de olharem para o fundo de si mesmos, sem medos, disfarces, escapismos, fantasias ou regressões infantis, e os transforma em robôs existenciais, cumpridores de ritos, repetidores de fórmulas e antagônicos a qualquer outra nova perspectiva.”

(p. 74)


Particularmente interessante é ver que o autor, em vários momentos, reconhece ter exercido o papel que ora trata de criticar – o que prova ser possível aos mais ferrenhos doutrinados a emancipação intelectual da religião, não sem antes superar uma série de fobias.  Ao se ocupar da natureza da consciência religiosa, o autor argumenta que ela é produzida para tornar-se infensa à argumentação (o que não surpreende, já que disso depende a sua conformação e obediência):

“A perspectiva antiuniversalista da consciência religiosa transforma-a num ser defensivo, cuja fortaleza não é o exercício argumentativo, mas a pseudossegurança do dogma. Uma desconcertante inversão ocorre no processamento mental do Homo religiosus: a crença (ideia a priori) e o símbolo substituem a experiência da realidade. Essa inversão é notória, por exemplo, na obsessão dos católicos pelos sacramentos, rituais em que os supostos símbolos da vida substituem o próprio viver. Desse modo, os religiosos passam a evitar uma série de oportunidades e experiências, levados pelo injustificável temor de ver os fatos contradizerem suas crenças sobre a realidade”.

(p. 178)
(grifo meu)

No tocante à natureza simbólica da religião, remeto o leitor ao livro de Rubem Alves O que é religião? (1999). Limito-me a notar que o símbolo pode recobrir outras formas sígnicas (como os signos linguísticos). No entanto, em stricto sensu, o símbolo é um objeto material ao qual se atribui uma ideia abstrata. É nesse sentido que ele foi empregado pelo autor. Assim, por exemplo, a cruz, no catolicismo, simboliza a “salvação” (pelo menos era esse o significado de que falava o padre durante a missa). Uma consulta no Dicionário de Símbolos  mostra-nos que as noções de “sofrimento” e “triunfo” estão entrelaçadas em sua simbologia. De qualquer modo, sempre achei indecoroso associar à cruz a ideia de “salvação” ou “triunfo”, por razões que não carecem ser explicitadas, pois óbvias. Os judeus, até onde eu sei, me parecem mais sensatos, ao associar à cruz a ideia de morte ou maldição. Decerto, a cruz é, na perspectiva dos judeus, um escândalo. Pode-se imaginar quão incompreensível é para um judeu a adoração de um homem pregado numa cruz.
Importa-me, a esta altura, fazer ver ao leitor que, uma vez tomando o símbolo o lugar das vivências da realidade, o crente religioso é envolvido numa atmosfera de fantasia. Assim, a hóstia e o sangue não apenas simbolizam, respectivamente, o corpo e o sangue de Cristo, mas são o próprio corpo e sangue de Cristo. Por fim, a ideia de que os fatos contradizem as crenças não é levada em conta pelos religiosos. E não é porque eles resistem a confrontar suas crenças com as ocorrências do real. No que toca à noção de crenças, particularmente, de crença religiosa, a contribuição de Sam Harris, em A morte da fé (2009), não pode ser ignorada. O autor destina um capítulo para tratar da “natureza da crença”. Nele, Harris definirá crença, à luz de uma abordagem neurocientífica. Leiamos, com atenção, o excerto em que o autor apresenta-nos a definição de crença:

“(...) parece incontestável afirmar que todos os estados de ordem cognitiva mais elevada (dos quais as crenças são um exemplo) são de certa forma derivados da nossa capacidade de ação. Em termos adaptativos, a crença foi extraordinariamente útil. Afinal, é acreditando em várias premissas sobre o mundo que podemos prever eventos e considerar as consequências prováveis de nossas ações. As crenças são princípios de ação: seja lá o que forem em termos cerebrais, elas são os processos pelos quais o nosso entendimento do mundo (seja correto ou equivocado) é representado e disponibilizado para orientar o nosso comportamento”.

(pp. 58-59)
(grifo meu)

Vale acompanhar a argumentação do autor que se orienta pela intenção de nos fazer entender, ao cabo, que as crenças religiosas não representam nenhum estado-de-coisas atestado no mundo. Assim, ao tratar das convicções, o autor nos ensina que “no momento em que admitimos que nossas convicções são tentativas de representar estados do mundo, percebemos que elas devem se relacionar corretamente com o mundo para serem válidas” (p. 71).
Que os seres humanos sejam resistentes a mudar de ideia, a assumir outras perspectivas contrárias às que vêm mantendo durante muito tempo é fato já reconhecido em psicologia e neurociência. Lembra Harris que “somos conservadores nas nossas convicções, no sentido de que não acrescentamos nem subtraímos algo do nosso estoque delas sem que haja razão para isso” (p. 69). Claro é que há pessoas que abandonam suas convicções ou crenças mais arraigadas, mas é preciso que se sintam motivadas a fazê-lo; é preciso que isso lhes represente algum benefício.
Harris prosseguirá nos mostrando que, epistemologicamente falando, toda crença ou convicção precisa representar o nosso saber a respeito do mundo, o que implica crer que uma afirmação seja verdadeira, mas crer na veracidade de uma afirmação não é o mesmo que desejar que ela seja verdadeira. E, como ensina Da Luz, não é porque desejo que seja verdadeira que ela será verdadeira.
Convém, agora, retomar a obra de Marcelo Da Luz.

Na seção intitulada de A indústria da dependência, ainda no capítulo terceiro, o autor refere-se às autoridades religiosas como “funcionários do sagrado” e delas no diz o seguinte:

“O funcionário do sagrado possui, supostamente, o conhecimento para se chegar à salvação, e por suas mãos passam os poderes de perdoar, abençoar, condenar e explicar, em nome de “Deus”, as vicissitudes da vida humana. Sequiosos, devotos acorrem à recepção dos serviços sagrados, garantia de salvação. Os planos estão já revelados, as interpretações oficiais, estabelecidas; os modelos a serem seguidos, disponíveis; os meios necessários, instituídos. Ao fiel basta aquiescer a essa ordem de coisas. Nesse esquema, o poder é exterior ao indivíduo, a salvação vem sempre de fora. O crente não tem outra opção senão terceirizar as escolhas existenciais”.
(ênfase minha)

(p. 79)


O leitor interessado na leitura deste livro tomará conhecimento dos bastidores da fé; das estratégias discursivas empregadas no esforço para manipular os fiéis e promover a “lavagem cerebral” em larga escala. E saliento, de passagem, que essa expressão, tão comumente usada nas conversações cotidianas, entre aqueles que se opõem às práticas adestradoras dos “funcionários do sagrado”, foi empregada pelo próprio autor. O livro constitui um cenário de muitas e diversas questões, uma das quais me parece notável e podemos apreendê-la no seguinte passo, em que Da Luz nos ensina sobre a invenção de Satanás:

“As primeiras gerações cristãs reconstruíram o conceito de Satã à imagem de seus principais inimigos: os judeus resistentes à crença em Jesus. Pouco mais tarde, o processo de demonização atingirá também os pagãos, em função da intolerância cristã em relação aos politeísmo e à liberdade de pensamento. Finalmente, Satã será encontrado entre os hereges – cristãos dissidentes cujas diferentes interpretações das mesmas crenças ameaçaram o poder dos clérigos politicamente mais fortes. Do ponto de vista histórico,  a aterrorizante figura do demônio – habitante permanente do imaginário medieval e ainda hoje base do apelo á força presente em muitos discursos cristãos – foi apenas produto da mente sectária, cujo funcionamento enxerga no outro, no diferente e no desconhecido, a ameaça do inimigo mortal”.

(pp. 183-184)
(ênfase no original)


Destaquei em negrito a expressão “do ponto de vista histórico” com a intenção de sinalizar para o fato de que o autor nos fornece uma explicação histórica para o surgimento da figura de Satã e  sua perpetuação no imaginário popular ainda hoje. Assim, a fantasia encontra arreio no real histórico e se despe da veste de “realidade trans-histórica”. Compreendida no âmbito histórico, a fantasia passa a ser plenamente explicável e compreensível. Ao final de cada capítulo, o autor nos oferece um “megaproblema” – a saber, uma questão inquietante sobre a qual ele nos convida a pensar. Destaco o megaproblema do último capítulo do livro (capítulo 17), por acreditar que ele expressa o essencial a respeito do Deus forjado pela tradição monoteísta ocidental:

“A ideia de “Deus” arquitetada pelas grandes religiões é sempre uma interpretação contaminada de antropomorfismos e anseios humanos a respeito da suposta causa primeira. A verdade quanto à identidade do princípio originário do Universo permanece inacessível à experiência terrestre da consciência. Tal verdade independe tanto dos desejos, sonhos e esperanças, quanto do número de crentes. O fato dos credos religiosos exercerem ostensiva influência sobre a vida das pessoas, infundindo-lhes consolo e alento em muitas situações, não os torna verdadeiros em si mesmos. A consolação traz alívio momentâneo, sob o preço do autoengano”.

(p. 351)

Preciso deter-me um pouco neste trecho. Vale notar, de início, que o autor rebaixa Deus à categoria de ‘ideia’, deixando de encará-lo como um ‘ser transcendente’ que pré-existe ao mundo e aos homens e  que os transcende. Deus é produto da mente humana. E nisso estaria de acordo Feuerbach. Aliás, é conhecida a tese do filósofo alemão, segundo a qual Deus não é senão a essência do homem projetada para fora de si. Deus é forjado na cisão do homem em si mesmo. Mais adiante, discorrerei um pouco sobre a contribuição de Feuerbach.
Para bilhões de pessoas no mundo, Deus é a chave do mistério da vida. No entanto, basta prestarmos atenção nos atributos que a definição de Deus encerra para que concluamos, sem muito esforço, que a ideia de Deus recobre a noção de um Ser superior a que se atribuem qualidades humanas, embora superlativizadas. As qualidades de amoroso, bondoso, poderoso, diligente, justo, ciente são caracteristicamente humanas, mas idealizadas numa escala de potência infinita na forma de Deus (daí ser Deus infinitamente amoroso, bondoso, poderoso... e onisciente). A atribuição de qualidades humanas às divindades dá-se o nome de antropomorfismo. Por isso, Deus é que foi criado à imagem e semelhança dos homens, e não o contrário. Vale insistir neste fato!
Também acho que a ponderação que Da Luz faz neste trecho é condizente com a minha atitude em face do Mistério. Como ateu, não pretendo dizer a última palavra sobre o que está na origem e no fim da vida. Eu não sei, mas tenho fortes razões para afirmar não se tratar de um Deus, tal como representado na tradição monoteísta (judaísmo, cristianismo e islamismo).
Prossigamos em nosso percurso.
Trago à cena Ludwing Feuerbach (1804-1872), filósofo alemão do século XIX, cujas ideias exerceram decisiva influência no pensamento de Karl Marx. Tendo em conta o que escrevi a respeito do antropomorfismo do Deus judaico-cristão, cuido ser pertinente referir uma passagem de A Essência do Cristianismo (2009) em que Feuerbach é bastante claro, ao corrigir a inversão ideológica operada pela tradição monoteísta, ao conceber Deus como criador e o homem como criatura:

“(...) a especulação religiosa também considera os dogmas separados do contexto no qual eles somente têm sentido; ela não os reduz criticamente à sua verdadeira origem interna; antes transforma ela o derivado em primitivo e inversamente o primitivo em derivado. Deus é para ela o princípio; o homem vem depois. Assim distorce ela a ordem natural das coisas! O princípio é exatamente o homem, depois vem a essência objetiva do homem: Deus”.

(p. 134)

Neste trecho, percebemos a tentativa de desconstrução da inversão ideológica, que toma Deus como princípio e o homem como derivado; Deus como o criador; e o homem como sua criatura. Mais adiante, Feuerbach considerará a alienação religiosa, quando escreve “(...) o homem cria Deus, sem saber e querer, conforme a sua imagem” (id.ib.). Os homens se alienam no sentido de que, não compreendendo Deus como projeção de sua própria essência para fora de si, entendem-no como um Ser que os transcende, que é exterior e independente.
A essência de Deus é a autoconsciência do homem. Deus é a essência do homem objetivada. Na verdade, a leitura do seu mais importante trabalho A Essência do Cristianismo (2009) nos permitiria saber que Feuerbach identifica Deus ao homem. Há várias passagens -  no capítulo 11, por exemplo, em que o autor trata do mistério da providência e da criação - que expressam essa identificação de Deus com o homem. Assim, lemos, à página 124, “a personalidade de Deus é a personalidade do homem libertada de todas as determinações e limitações da natureza”. Na página seguinte, encontramos também

“Concedei também que o vosso Deus pessoal nada mais é que a vossa própria essência pessoal, que ao crerdes e demonstrardes o supra e extranaturalismo do vosso Deus nada mais credes e demonstrais do que o extra e supranaturalismo de vossa própria essência”.

Dada a vaguidão que o conceito de “essência” pode suscitar ao espírito do leitor, convém precisá-lo, na perspectiva de Feuerbach. Para o autor de A Essência do Cristianismo, a essência humana é a consciência, tomada no sentido que ele qualificará de “rigoroso”, a saber, a capacidade que os seres humanos têm de tomar para objeto de pensamento o próprio gênero.  Segundo o filósofo, os seres humanos são capazes de se colocar no lugar do outro, e isso é possível porque eles tomam o gênero para objeto de sua consciência. Ao contrário, embora os animais tenham sentimento de si, são incapazes de tomar o gênero para objeto de si mesmo. Concluirá Feuerbach que, nesse sentido, eles carecem de consciência.

“(...) tem o animal apenas uma vida simples, mas o homem uma dupla: no animal é a vida interior idêntica à exterior – o homem possui uma vida interior e uma exterior. A vida interior do homem é a vida relacionada com o seu gênero, com a sua essência. O homem pensa, isto é, ele conversa, fala consigo mesmo. O animal não pode exercer nenhuma função de gênero sem um outro indivíduo fora dele; mas o homem pode exercer a função de gênero do pensar, do falar (porque pensar e falar são legítimas funções de gênero) sem necessidade de um outro (...)”.


(pp. 35-36)

Gostaria de referir este último trecho do trabalho de Feuerbach, em que se expõe a definição de Deus como mero objeto de pensamento:

“Deus como Deus, i.e., como um ser não finito, não humano, não determinado materialmente, não sensorial, é apenas um objeto do pensamento. É o ser transcendente, sem forma, intocável, sem imagem – o ser abstrato, negativo; só é conhecido pela abstração e a negação (via negationis). Por quê? Porque não é nada a não ser a essência objetiva do pensamento, a capacidade ou atividade em geral, que se a chame como se quiser, pela qual o homem se torna consciente da razão, do espírito, da inteligência. O homem não pode crer, supor, imaginar, pensar em nenhum outro espírito (i.e., porque o conceito de espírito é meramente o conceito de pensamento, de conhecimento, de inteligência, qualquer outra forma de espírito é um fantasma da fantasia) a não ser a inteligência que o ilumina, que atua nele. Ele nada mais pode fazer que abstrair a inteligência das limitações de sua individualidade”.

(pp. 64-65)

Não é difícil imaginar quão polêmica foi a vinda a lume desta obra de Feuerbach no século XIX. Esta e outras expressões da definição de Deus, numa abordagem da religião como antropologia, não parece encontrar paralelo em nenhuma outra publicação. Acabo de encontrar um enunciado, que consta da Apresentação do tradutor, que exprime sucinta e claramente a tese da argumentação de Feuerbach. Sei bem que já me referi a ela anteriormente, mas gostaria de estampá-la aqui, por nos deixar a salvo das dúvidas:

“O homem projeta em seus deuses todos os seus anseios, amores e sentimentos mais elevados e profundos. O home retira de si a sua essência mais elevada e mais nobre para adorá-la fora de si como Deus”.
(p. 7)
(grifo meu)
 


Dois outros livros se destacam por nos permitir estudar o contexto socio-histórico em que surgiu e se desenvolveu a fé cristã. O leitor poderá compreender como o cristianismo pôde alcançar o status de religião predominante no mundo ainda hoje lendo o trabalho do historiador Paul Veyne – Quando nosso mundo se tornou cristão [312-394] (2011) – livro em que o autor destaca o papel decisivo do imperador Constantino na consolidação da então pequena e nova seita dentro do imenso Império Romano. Constantino converteu-se sinceramente ao cristianismo e criou as condições favoráveis ao progressivo desenvolvimento da profissão de fé cristã, não sem permitir que os cultos pagãos continuassem a ser praticados. Constantino, nesse tocante, foi assaz tolerante. Isso, no entanto, não o impediu de considerar o cristianismo como a única religião portadora da verdade, relegando as crenças pagãs ao plano da fantasia. Assim, esclarece-nos o autor:

“Constantino, dizíamos, deixou em paz os pagãos e seus cultos, mesmo depois de 324, quando a reunificação de Oriente e Ocidente sob sua coroa o tornou todo-poderoso. Naquele ano, ele dirige proclamações a seus novos súditos orientais, depois a todos os habitantes de seu império. Escritas num estilo mais pessoal do que oficial, saem da pena de um cristão convicto, que proclama que o cristianismo é a única boa religião, que argumenta nesse sentido (as vitórias do príncipe são uma prova do verdadeiro Deus), mas que não toma nenhuma medida contra o paganismo: Constantino não será um novo perseguidor, o Império viverá em paz. Melhor ainda, ele proíbe formalmente a quem quer que seja de acusar o próximo por motivo religioso: a tranquilidade pública deve reinar; dirigia-se, sem dúvida, a cristãos excessivamente zelosos, prontos a agredir os templos pagãos e suas cerimônias”

(p. 23)

E nosso itinerário pode ainda incluir uma visita ao  trabalho O Livro negro do cristianismo – dois mil anos de crimes em nome de Deus (2007). Não nos impressionemos com o título. O livro não é sensacionalista; ao contrário, inclui, de forma suscita, um sem número de episódios em que o cristianismo engendrou caça às bruxas e aos hereges, Inquisição, escravidão, colonialismo, apóio a ditaduras européias e sul-americanas, pedofilia, entre outros fatos escandalizantes.  Devido a limites de espaço e de tempo, não citarei passagens deste livro. A sua leitura nos faz refletir sobre a conveniência de seguir um corpo de dogmas que serviu a tantos crimes ao longo da história.  Também nos leva a questionar o silêncio de Deus em face das tragédias perpetradas em seu nome. Não é possível fechar as páginas deste livro sem que nos visite a mente a inquietante certeza de que a História, mormente quando exibiu suas faces mais sangrentas, se fez a despeito da suposta onipresença de Deus. 


Outro livro que merece nossa apreciação, enquanto leitores ávidos de uma compreensão satisfatória da história cristã, é o livro Evangelhos Pedidos (2008).  Neste trabalho, o autor tratará das descobertas de evangelhos que não entraram para o cânone dos textos sagrados. Também o tema das falsificações dos textos sagrados, que será retomado em Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi? (2010) e que estivera presente em O que Jesus disse? O que Jesus não disse? (2006),  encontrará abrigo nas reflexões do autor. 


Uma passagem interessante se topa na seção As variedades do Cristianismo antigo, na qual nos conta o autor a respeito da ampla diversidade de crenças cristãs:

“A ampla diversidade do Cristianismo primitivo pode ser vista acima de tudo nas crenças teológicas abraçadas por pessoas que se viam como seguidores de Jesus. Nos séculos II e III havia, é claro, cristãos que acreditavam em um único Deus. Mas havia outros que insistiam haver dois. Alguns diziam que havia trinta. Outros declararam que havia 365.”

(p. 18)

E prossegue:

“Nos séculos II e III, havia cristãos que acreditavam que Deus criara o mundo. Entretanto, outros acreditavam que esse mundo tinha sido criado por uma divindade subordinada, ignorante. (Por que outro motivo seria o mundo tão cheio de miséria e dificuldade?) E ainda outros cristãos pensavam que era pior do que isso, que este mundo era um erro cósmico criado por uma divindade má como um lugar de prisão, para capturar os humanos e submetê-los à dor e ao sofrimento”.

(id.ibid.)


Os antigos cristãos me parecem mais sensatos. Não obstante a crença em que o mundo tem de ter um criador, não acreditavam que esse criador era dotado de sabedoria e benevolência infinitas. Eles, ao menos, reconheciam que a crença na existência de tal ser é incompatível com a quantidade esmagadora de evidências do sofrimento em escala mundial. No entanto, as interpretações desses segmentos foram sobrepujadas pela compreensão dos proto-ortodoxos, que detinham o poder ideológico e político. Ora, como poderiam estender seu domínio sobre os cristãos leigos, se o Deus que criou o mundo fosse maligno ou ignorante? Quem ia querer adorar divindade com tais qualidades? Foi necessário forjar um Deus grandioso (disso nos fala Veyne, em seu Quando o mundo se tornou cristão, livro a que me referi anteriormente), providente, justo e bom. O sofrimento poderia ser explicado pelo domínio de Satanás sobre o mundo, como propunham os autores do Apocalipse. A esse respeito, o leitor pode ler O Problema com Deus, obra também de Bart. D. Ehrman (2008). Neste livro, o autor,  que exercera o cargo de pastor numa igreja evangélica, justifica o abandono da fé, quando reconheceu que “o problema do sofrimento se tornou o problema da fé” (p. 13).  Trata-se de um livro que nos envolve do início ao fim. O objetivo do autor foi investigar as respostas dadas pelos autores bíblicos ao problema do sofrimento. Vale acompanhar a exposição e argumentação desenvolvidas nas duzentas e quarenta e três páginas deste trabalho impactante.


Os dois livros já mencionados, em que Ehrman se dedica a nos ensinar sobre a fabricação da bíblia e suas contradições (Quem Jesus foi Quem Jesus não foi?; O que Jesus disse? O que Jesus não disse?) também têm o mérito de capturar o leitor logo nas primeiras linhas. Em Quem Jesus foi?, lemos, no capítulo Quem escreveu a Bíblia?, uma revelação que a mim soou como uma estrondosa evidência de que a tradição que bilhões de pessoas no mundo seguem está baseada em uma farsa:

“Embora evidentemente não seja o tipo de coisa que os pastores costumam contar às suas congregações, há mais de um século existe um forte consenso de que muitos dos livros do Novo Testamento não foram escritos pelas pessoas cujos nomes estão ligados a eles. (...)”
(p. 118)

Neste livro, aprendemos, entre tantas outras coisas, sobre a falsificação dos quatro Evangelhos que constam do cânone. Em outras palavras, descobrimos que os Evangelhos segundo Marcos, Mateus, Lucas e João não foram escritos por eles. Surpreendente é o que nos revela Ehrman a seguir:

“Essa visão de que o Novo Testamento contém livros escritos sob nomes falsos é ensinada em praticamente todas as grandes instituições de ensino superior por todo Ocidente, com exceção de faculdades fortemente conservadoras. É a visão ensinada em todos os grandes livros sobre o Novo Testamento utilizados nessas instituições. É a visão ensinada em seminários e faculdades de teologia. É o que os pastores aprendem quando se preparam para o ministério. E por que isso não é mais conhecido? Por que as pessoas nos bancos das igrejas – para não falar das pessoas nas ruas – não sabem nada sobre isso? Seu palpite é tão bom quanto o meu.”

(p. 154)


Citarei, abaixo, alguns trechos do livro O que Jesus disse?, em que Ehrman discorre sobre o trabalho dos copistas no longo processo de fabricação das escrituras sagradas.  Mais precisamente, o trecho refere-se à prática de cópias de manuscritos do Novo Testamento. Estamos no segundo capítulo da obra, intitulado de Os copistas dos escritos cristãos primitivos. À página 67, na seção Dificuldades para saber qual é o texto original, observa Ehrman:

“Mudanças de todos os tipos foram feitas nos manuscritos pelos copistas que os copiaram. Examinaremos com mais pormenores os tipos de mudanças num capítulo posterior. De momento, basta-nos saber que realmente foram introduzidas mudanças e que elas eram generalizadas especialmente nos primeiros duzentos anos em que os textos foram copiados, época em que a maioria dos copistas era de amadores. Uma das principais questões com que a crítica textual precisa se haver é como reconstruir o texto original – o texto tal qual o autor o escreveu -, diante da circunstância de que os nossos manuscritos são tão coalhados de erros. O problema é agravado pelo fato de que, uma vez introduzido, o erro pode se encaixar firmemente na tradição textual, muito mais firme que o original”


No tocante à carta aos Gálatas, que não fora escrita por Paulo, mas ditada por ele a um copista – o prova a presença de um pós-escrito acrescentado por ele mesmo Paulo, com o objetivo de assegurar aos destinatários que ele, Paulo, foi o autor da carta, observa Ehrman que tal prática era comum na Antiguidade. Tendo sido ditada a carta, surge o problema de saber se Paulo a ditou longamente, palavra por palavra, ou se fez uma exposição básica de sua doutrina, deixando ao copista a tarefa de completar as lacunas. Tendo em conta essa dificuldade com que têm de lidar os estudiosos, escreve o autor:

“Suponhamos, contudo, que o copista tenha captado as palavras de modo 100% correto. Se múltiplas cópias da carta foram feitas, podemos estar seguros de que todas as cópias são também 100% corretas? É, no mínimo, possível que mesmo que tivessem sido todas copiadas na presença de Paulo, uma palavra ou duas aqui ou ali pudessem ser alteradas em uma ou outra das cópias. Se fosse esse o caso, o que ocorreria se apenas uma das cópias tivesse servido como cópia da qual todas as cópias subsequentes fossem feitas – depois, no século I, no século II, no século III, e assim por diante? Nesse caso, a cópia mais antiga que constituíra a base de todas as cópias subsequentes da carta não era exatamente o que Paulo escrevera, ou quisera escrever”.

(p. 69)


À proporção que o leitor avança na leitura do livro, não custará a ele chegar à conclusão de que a grande maioria dos escritos que compõem o Novo Testamento são produto de falsificações. O que figura na bíblia e que chegou até nós, passados mais de 2.ooo anos, são cópias de cópias. Dos 27 livros que compõem o Novo Testamento, 19 são produto de falsificações, como se depreende do seguinte trecho de Ehrman, em Quem foi Jesus?:

“Agora retorno à minha pergunta original: quem escreveu a Bíblia? Dos 27 livros do Novo Testamento, apenas oito quase certamente foram escritos pelos autores aos quais são tradicionalmente atribuídos: as sete inquestionáveis epístolas de Paulo e o Apocalipse de João, que poderia ser classificado como homônimo, já que não alega ter sido escrito por um João específico; isso era reconhecido até mesmo por alguns autores dos primórdios da Igreja”.
(p. 153)
(ênfase minha)


O leitor que prosseguisse na leitura saberia que há controvérsia no tocante à autoria dos textos 2 Tessalonicences e 1 Pedro. Aqui as posições se dividem entre os que acreditam que tais textos foram escritos pelos autores a que eles são referidos, respectivamente, Paulo e Pedro, e os que lançam sérias dúvidas quanto a serem estas pessoas seus autores. Por outro lado, os estudiosos estão de acordo quanto ao fato de os livros 1 Timóteo e 2 Pedro não terem sido produzidos pelos autores cujos nomes se estampam nas páginas. Ou seja, não foi Timóteo que escreveu 1 Timóteo, tampouco Pedro que escreveu 1 Pedro.
Tendo tomado conhecimento da problemática em torno da verdadeira autoria dos textos sagrados, também – assim creio – não será custoso ao leitor concluir que a Bíblia foi produzida pelas mãos de muitos homens. A Bíblia é um livro humano. Gostaria, de passagem, referir um trecho bastante elucidativo da posição de Ehrman, um dos maiores especialistas nos estudos do Novo Testamento. Nesse excerto, o autor retoma a razão por que abandonou a sua fé, bem como expõe a conclusão inevitável a que chegou após longos anos de estudo da Bíblia:

“Portanto, não abandonei a fé cristã por causa dos problemas inerentes à fé propriamente dita nem porque me dei conta de que a Bíblia era um livro humano ou que o cristianismo era uma religião humana. Tudo isso é verdade – mas não foi o que desmontou minha aceitação do mito cristão. Eu abandonei a fé pelo que considerei (e ainda considero) ser uma razão distinta: o problema do sofrimento no mundo”.

                                                                (p. 298)
(grifo meu)

Note-se que Ehrman refere-se ao cristianismo como um mito ou um conjunto de mitos. Outros tantos autores assim compreendem as religiões, de maneira geral, e o cristianismo, particularmente. O próprio Marcelo Da Luz se reconhece hoje como agente comprometido com a desconstrução “[do] mundo de fabulas e falácias onde se assenta o pensamento religioso” (p. 122). Não se pode ter certeza absoluta da existência histórica de Jesus, conquanto para autores como Ehrman Jesus, enquanto profeta judaico apocalíptico que viveu na Palestina do século I, provavelmente existiu. As dificuldades ligadas à certeza da existência de Jesus consistem em que as únicas fontes disponíveis que nos permitem conhecer a vida de Jesus são os quatro Evangelhos, textos impregnados de inconsistências. Assim, adverte-nos Ehrman, na mesma obra:


 
“(...) o problema é que os Evangelhos estão repletos de discrepâncias e foram escritos décadas após o ministério e a morte de Jesus, por autores que não tinham testemunhado pessoalmente nenhum dos acontecimentos da vida dele”.

(p. 159)


Volvemos à consideração do cristianismo como um conjunto de fábulas. O trecho a seguir, tomado a Marcelo Da Luz, esclarece-nos sobre a influência das mitologias pagãs na construção da narrativa do sacrifício de Jesus. Não está em questão a crucificação de Jesus (embora seja possível levantar suspeitas sobre a prática de crucificação entre os romanos naquela época). No link abaixo, há uma reportagem divulgada na revista Época, em que um teólogo qualifica a crucificação de Jesus como uma “história baseada nas tradições católicas e em ilustrações antigas”.

O que está em questão é a construção da significação teológica do sacrifício e morte de Jesus. Acompanhemos as palavras do autor:

“O antropólogo francês René Girard tornou-se célebre pela teoria explanatória da violência religiosa, segundo a qual as comunidades primitivas, a fim de não se autodestruírem pela rivalidade e inveja de seus indivíduos, ritualizavam a morte de um forasteiro, em quem era depositada toda a culpa ao modo de bode expiatório. A tradição judaica, no entanto, paulatinamente refinou essa prática, substituindo seres humanos por animais, vítimas inocentes levadas ao altar da imolação. Dessa forma, segundo o cristianismo, Jesus ocupa o papel do cordeiro justo e sem mancha, vítima perfeita, cujo sangue é derramado a fim de aplacar a ira de “Deus” todo-poderoso. Esse bizarro discurso – predominante na história do pensamento cristão – aproxima sobremaneira o cristianismo às antigas religiões pagãs praticantes do sacrifício humano”.

(p. 134)


Um discurso bizarro – escreve o autor. Por que bizarro? Porque, se examinado cuidadosamente, ele nos parecerá repugnante ao coração e ao intelecto. Ao coração, porque Deus se satisfaz com a morte de um inocente. Este inocente tinha de morrer para que Deus se acalmasse e não viesse a destruir o mundo (mais uma vez). Ele mesmo envia ao mundo seu próprio filho para morrer, não sem antes experimentar dor e sofrimento atrozes. E a dor, o sofrimento e a morte deste infeliz e inocente judeu serviu à salvação de toda humanidade da ira de Deus, que estava insatisfeito com os maus comportamentos de suas criaturas. Mas a mesma doutrina ensina que Deus é infinitamente misericordioso e, portanto, está sempre disposto a perdoar, o que nos obriga a perguntar: por que então não perdoou aqueles que estavam perpetrando atos maus, poupando o próprio filho do martírio?
Pensemos na história tendo como base o comportamento humano. Um pai pode sacrificar-se para salvar a vida do próprio filho. Certamente, muitos pais e mães estão dispostos a morrer pelo próprio filho. Nesse sentido, realmente, estamos diante de um sacrifício em favor da salvação de um outro a quem muito amamos. Nada semelhante há na narrativa do sacrifício e morte de Jesus. Deus não se sacrifica para salvar a humanidade, o que seria absurdo em se tratando de uma divindade, que, por definição, desconhece sofrimento e morte. Mas insisto em que Deus não se sacrifica; faz melhor: envia o seu filho amado para se sacrificar em favor da sobrevivência de toda a humanidade, porque ele, Deus, estava muito zangado com a forma como os homens vinham se comportando. (estou ignorando o dogma segundo o qual  Jesus é o próprio Deus que se fez carne para a expiação dos pecados dos homens, porque isso complica mais ainda essa esdrúxula história; mesmo que Deus, transmutado em Cristo, tenha morrido, ele, segundo a crença, não morre, porque ressurge no terceiro dia após sua morte – mas isso é matéria de fé, porque o fato é que Jesus, uma vez pregando contrariamente às convicções de certa classe do poder judaico, preparou o caminho de seu próprio autosuicídio (ver. Da Luz, p. 135)).


Como não se afigurar em nossa alma a ideia de um Deus sádico? Jesus, o filho de Deus, nos salva da ira de seu Pai; portanto, nos salva do próprio Deus, que estava insatisfeito com os nossos pecados. Tendo poder suficiente para resolver o problema que o incomodava, Deus envia seu filho para morrer e, assim, evitar que se eliminem todos os seres que habitam o planeta. Uma solução, no mínimo, pouco engenhosa vindo de uma divindade de tal magnitude. Deus é, assim, sádico e cúmplice do assassinato do próprio filho. Que pai, sabendo que o filho correria risco de vida,  o mandaria resolver um problema que ele mesmo, pai, teria condições de resolver sozinho? Mas a história bíblica ainda é pior. Deus estava presciente dos acontecimentos funestos que envolveriam a vida do filho; o sacrifício e morte de Jesus estavam previstos no plano maquiavélico de Deus! Só faz sentido falar em salvação pela morte se há um sacrifício verdadeiro de alguém pela sobrevivência de outrem. O pai que se lança para evitar que o filho seja alvejado por um projétil, deixando o peito exposto ao impacto, assume o risco de morrer para salvar o filho. O plano de Deus, sendo não só repugnante é também falho. Ainda hoje, os homens se veem às voltas com as dificuldades decorrentes de sua natureza. Ainda hoje, matam uns aos outros; guerreiam, cultivam a discórdia, discriminam; fomentam a competição, engordam na alma a ganância, etc. Em suma, nossos problemas continuam conosco.
A respeito da prática de sacrifício, comum nas religiões pagãs de povos primitivos, pode-se ler sua lógica em O livro das religiões:

“Se um indivíduo cometeu um crime contra os deuses e despertou a sua ira, deve ser punido. Para apaziguar os deuses e evitar uma vingança, ele pode fazer um sacrifício de expiação. A oferenda – por exemplo, um animal sacrificial – substitui o culpado e é punida no lugar dele”.

(p. 31)

Que belo exemplo de justiça! Veja-se como os deuses pagãos eram produto de antropomorfismo, ou seja, eles eram dotados de qualidades humanas, demasiado humanas. Embora fossem dispostos a fazer o bem aos homens que os adoravam, proporcionando-lhes, por exemplo, boa colheita, podiam também irar-se contra eles, submetendo-os a uma temporada de fome.  Também o Deus judaico-cristão era capaz de odiar e punir. O Deus do Antigo Testamento era ciumento; não lhe apetecia o culto a outras divindades. Vale notar também que a prática de render oferenda é uma estratégia de barganha de que se valem os religiosos para obter benefícios de suas divindades.
Tenho de pôr um ponto final neste texto. Por isso, deixarei de considerar um pouco do conteúdo de livros igualmente importantes como o de Christopher Hitchens – deus não é Grande (2007).
Que benefícios intelectuais nosso percurso nos acarretou? Vimos que podemos aprender muito sobre o modo como a fé católica penetra na consciência dos crentes, com Marcelo Da Luz; podemos aprender com Feuerbach que a religião é um fenômeno antropológico; podemos também aprender, com Ehrman, sobre as contradições que se acham na Bíblia, sobre a história da fabricação deste que é o livro mais vendido e lido do mundo; podemos ainda estudar o contexto sócio-histórico em que o cristianismo lançara suas raízes, de tal sorte que seremos levados a concluir, corretamente, que o Deus que nossas sociedades ocidentais herdaram foi forjado num tempo remoto por pessoas que viveram sob o domínio dos romanos no Oriente Médio. Trata-se de um Deus que foi plasmado na História, que foi forjado por uma ideologia que rezava ser a crença no poder infinito desse Ser transcendente a única forma de escapar, ou, ao menos, resistir ao jugo dos dominadores. Portanto, uma ideologia da submissão, da obediência cega a uma autoridade transcendente. Uma ideologia que trataria, com o tempo, de arrebanhar bilhões de seguidores.





quinta-feira, 6 de setembro de 2012

"Trago esta rosa para te dar, meu amor" (Tim Maia)






Primavera

A tarde. O sol desvela a demência
Que a clausura neste quarto escuso
Causa aos que a Deus em obediência
Amam ao samaritano e ao filho patusco

A noite. A velha bruxa o negro manto
Sobre a alameda gélido estende
Os morcegos descem a sugar o rebanho
Que é imundo e delinqüente!

A manhã. A anêmona a alma inebria
- Filha dos Céus! Leda do Cisne!
 Minh’alma é uma obscura abadia!

O corpo. Ah! deitado em horror e agonia
Decorado com papoulas. E o beijo de Hera
Onírico no ventre pousa: oh! é Primavera!

(BAR)

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Não tenho um discurso bonitinho, apenas uma idéia do que seja este mundo que ainda não entendo." (Hiago Rodrigues Reis de Queirós)



                           



                                                O que é Deus?
                         Uma análise crítica da teologia cristã

Dedicando muitas horas do cotidiano ao convívio com os livros, procuro trafegar espiritualmente por vastas avenidas de saberes conflitantes. Procuro tomar cuidado para não aderir tenazmente a uma única perspectiva; esforço-me por conhecer suas concorrentes. Em poucas palavras, preocupo-me em não me posicionar dogmaticamente. Por isso, estou ciente das críticas ventiladas por personalidades que, não sendo necessariamente religiosos ou crentes em Deus, martelam na tendência de o movimento do neoateísmo assumir uma postura tão dogmática quanto as atitudes que visa a atacar. Também não me escapa à consciência o fato de esse novo ateísmo, restituindo a confiabilidade nas promessas das Luzes, tomar a ciência como um modelo de explicação do mundo suficientemente capaz de satisfazer nossas inquietações mais profundas. Não sejamos ingênuos. A ciência está longe de oferecer uma teoria total. Não importa, para a grande maioria das pessoas, o que digam os cientistas sobre como surgiu o Universo, de onde viemos e para onde não vamos. A questão do significado transcendente de nossa existência ainda permanecerá e, provavelmente, nunca será extirpada. A autotranscendência, ou seja, a capacidade de ir além da herança biológica ou de superar-se a si mesmo é uma qualidade especificamente humana, já largamente reconhecida.

“Uma das constantes do comportamento humano é a de superar e transcender sistematicamente o comportamento dos animais: o homem sobrepuja os animais no pensamento, na liberdade, no trabalho, na palavra, na diversão, na técnica e em tantas outras coisas”.

                     (Mondim, B. Introdução à filosofia, 2009, p. 74)

Questões como “quem eu sou?”, “como foi que o universo/ mundo passou a existir?”, “o que acontecerá quando eu morrer?” tocam-nos no íntimo, onde a ciência não consegue penetrar. Atento a essa exacerbação dos que apelam para a ciência a fim de recusar as crenças religiosas, estou à procura do livro “Por que a ciência não consegue enterrar Deus?”, do matemático britânico e cristão John C. Lennox, que participou de um debate com Richard Dawkins sobre o livro Deus, um delírio (v. http://www.youtube.com/watch?v=-LNwek-UmlY).
Neste momento, pensamentos que, para muitos poderiam parecer angustiantes, visitam-me a mente. Deveria eu acolher o conselho, que se depreende da seguinte passagem, em A negação da morte (2012):

“Eu acredito que têm razão, absoluta razão, aqueles que acham que uma plena compreensão da condição humana levaria à loucura. De vez em quando, nascem crianças com guelras e caudas, mas isso não é divulgado – ao contrário, é abafado ao máximo. Quem é que quer enfrentar plenamente com coragem  a criatura que nós somos, que tem de usar suas garras e luta pelo ar que respira num universo além do seu entendimento”.
(p. 49)

Tais pensamentos sugerem-me a possibilidade de, após a morte, não haver outra vida. Talvez, o universo nunca tenha sido criado, porque eterno. Talvez, a vida, tal como a conhecemos, seja um evento extraordinário e singular. Talvez, nunca se repita, quando nosso planeta for dizimado por qualquer evento cataclísmico. Da morte o que sabemos é que o morto não revive. A pessoa, o indivíduo não existe mais; na morte, passamos ao estado inorgânico. Só conhecemos a morte sob o aspecto da aparência. O que vemos num caixão é um cadáver, um corpo inanimado, um corpo destinado a apodrecer e a ser consumido por vermes. A morte reduz toda a nossa vida a um esqueleto estirado num caixão – o complexo de ossos que será, posteriormente, exumado. De um embrião a cinzas, eis os estados a que a vida consciente pode ser reduzida.
Uma vez decididos a enfrentar essa verdade que decorre de nossa consciência de seres destinados, desde o nascimento, à morte, teremos de construir um propósito para a vida nela mesma e não para além dela. Teremos de reconhecer que esse ‘eu’ singular que se representa em nossa consciência (e que pode ser identificado com ela) como uma alma habitando um corpo (embora a neurociência e a psicologia evolutiva o neguem), não é eterno; ele morre no momento em que o cérebro deixa de funcionar. A morte do cérebro é a morte do ‘eu’, desse ‘eu’ (auto)consciente, detentor de vontade e desejo, movido por paixões e emoção. Este que diz ‘eu sou’ deixará de existir e não voltará a existir, porque a vida é um fenômeno irrepetível ou não-renovável.
Eu não poderia afirmar categoricamente não haver uma realidade além-túmulo. Na verdade, a perspectiva de nossa condição como seres conscientes e mortais, como a que expus no parágrafo precedente, é uma verdade enquanto estamos vivos. Evidentemente, a ciência não pode ir além da constatação de que a morte significa o fim da vida. Um enunciado como “Há vida após a morte” não pode ser avaliado em termos científicos, porque não é falsificável. Devemos a Karl Popper esta compreensão epistemológica da natureza de uma teoria científica. Pelo critério de falsificabilidade, uma teoria é científica se for falsificável, ou seja, se for passível de ser desmentida, ou se ainda não tiver sido provada como falsa. Assim, toda teoria que recebe a qualificação de científica tem de ser refutável; caso contrário, não poderá ser considerada de natureza científica. Disso se segue que, da mesma forma que um enunciado como “Há vida após a morte” não constitui uma hipótese científica, um enunciado como “Deus existe” também não o é, porque cada qual encerra uma proposição não-falsificável.
E se a morte assemelhar-se ao despertar de um sonho? E se esta vida não passar de um longo sonho, nem sempre agradável? Para milhares de pessoas, certamente, um pesadelo. Se a realidade que tocamos, vemos, escutamos – se o mundo tal como o percebemos e interpretamos - , não passar de um simulacro, uma projeção distorcida ou ilusória de uma realidade verdadeira e essencial? Ouço o eco de Platão em minha alma!
Tendo ponderado sobre a inconveniência de tentar valer-se de um neocientificismo para rejeitar toda interpretação metafísica da realidade, posso agora me ocupar do tema deste texto. Estou interessado em avaliar como o Deus judaico-cristão é pensado no discurso teológico. Para tanto, vou me basear no capítulo Deus do livro Teologia – os fundamentos, de McGrath (2004). Como ateu, nego a existência de divindades, incluindo entre elas o Deus inventado por um povo que vivera num tempo remoto na região do Mediterrâneo (Oriente Médio). Espero que, ao cabo de minha exposição, o leitor se aperceba de que, na realidade, o que eu rejeito não é senão uma dada representação de Deus. Deus, aliás como tudo o mais a que nos referimos pela linguagem, é um objeto de discurso. Portanto, a representação de Deus é resultado de uma construção discursiva. Nenhum discurso espelha o mundo tal como é; mas o reconstrói segundo determinada perspectiva, segundo determinados valores e crenças de um sujeito sócio-historicamente determinado. Classicamente, por representação entende-se o ato de re-apresentar ao espírito alguma coisa. Trata-se de um registro simbólico (ideia, imagem) de um objeto que existe fora de nós. No domínio discursivo teológico, pode-se falar de representação de Deus, pois que se supõe a sua existência fora de nós, ou melhor ainda, para além de nós. Entretanto, para um descrente, talvez, o termo mais adequado fosse abstração. Abstrair é isolar, separar elementos que, na experiência, se apresentam como indissociáveis. Para Aristóteles, a abstração é o próprio ato de conhecer, pelo qual isolamos o que há de generalidade nas coisas. Assim, quando falamos no “ser humano”, referimo-nos ao gênero humano, ignorando que o gênero (ou espécie) humano é constituído de indivíduos singulares e muito diferentes entre si. Há um sentido muito comum no qual usamos a palavra abstração, que parece adequado na consideração do problema Deus. Abstração pode designar uma ideia demasiado pura, metafísica, desprovida de um referente no mundo. Para evitar a visão realista e ingênua da relação entre linguagem e mundo, melhor será dizer que os referentes só têm valor para a compreensão dos “jogos de linguagem” como objetos de discurso, que são construídos, modificados, expandidos, delimitados, etc., no discurso. Eles constituem entidades resultantes de uma construção mental.
Meus objetivos são:

1o – Mostrar que as construções imagéticas que a tradição teológica cristã faz de Deus têm raízes em uma dada tradição religiosa;

2o – Patentear como algumas questões teológicas não passam de pseudoquestões;

3o – Evidenciar que a necessidade de uma teorização sobre Deus (teologia) serviu para o estabelecimento de uma Igreja forte e de uma fé que pudesse beneficiar-se da razão, tornando-a, contudo, ancilar, e que isso favoreceu a consolidação de um sistema de conceitos e crenças que serve (e vem servindo) à sustentação de relações de dominação.

Claro me parece que o teólogo não se pretende um cientista. No entanto, seus estudos são desenvolvidos na base do pressuposto da existência de Deus. Creio que assim o é para a maioria dos teólogos. Há, portanto, um objeto teórico delimitável, cuja existência é assumida por princípio.
O autor inicia o capítulo buscando identificar o Deus cuja representação tratará de explorar. Esse Deus é o que se revelou aos profetas do Antigo Testamento. É o Deus de Israel, o Deus que estabeleceu uma aliança com o seu povo – os hebreus. É o Deus de Abraão, de Moisés, de Isaac e de Jacó. É também o Deus em que creem os cristãos. É o Deus que se manifestou na pessoa de Jesus Cristo. A novidade cristã consiste em acreditar que esse Deus se revelou de maneira definitiva em Cristo, de modo que falar em Cristo é falar em Deus.
Observa ainda o autor que abunda o uso de analogias, em teologia. Na Bíblia, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento, Deus é representado como pastor, rei, rocha, etc. No Antigo Testamento, a metáfora de pastor de que se reveste a noção de Deus se acha em Isaías 40, 11 e em Ezequiel 34. 12, por exemplo. No Novo Testamento, encontraremo-la em João 10, 11, onde se acha uma referência a Jesus como “o bom pastor” (“Eu sou o bom Pastor; o bom Pastor dá sua vida pelas ovelhas”). Também no primeiro versículo do salmo 23 – “O Senhor é o meu pastor” – vemos a representação de Deus como pastor.
Para os judeus, considerar a Deus como pastor significa crer que Deus está totalmente comprometido com Israel e com a Igreja. Os primeiros cristãos, na medida em que pregavam a crença num Deus que se universalizava; portanto em um Deus que, se revelando em Cristo, sacrifica-se para a salvação da humanidade, entenderam a metáfora do pastor como uma forma de representar aquele que conduz o rebanho, zelando por ele de tal sorte, que arrisca a própria vida para protegê-lo. O bom pastor foi identificado com a figura de Cristo.
Interessa-me chamar a atenção para o fato de que, nessa imagem de Deus ou Cristo como pastor, há um mecanismo discursivo na base do qual se fundou uma moral do rebanho. Trata-se de uma estratégia discursiva, que, incansavelmente reiterada nas prédicas religiosas, molda a consciência de dependência, tão comum à maioria dos religiosos, mormente daqueles provenientes das classes populares, aos quais, em nosso país, é negado o benefício do letramento e da escolarização plena e satisfatória. Convém atentar para o seguinte trecho:

“(...) pensar em Deus como pastor significa afirmar que Deus nos guia. O pastor sabe onde se encontram o alimento e a agia, e guia o rebanho até onde esses bens se encontram. Comparar Deus com um pastor é mostrar a constante presença de Deus em Israel e na Igreja: é afirmar o desvelo de Deus para nos proteger dos perigos que a vida nos traz e para nos conduzir a um lugar de fartura e segurança. Deus “guarda seu rebanho como um pastor, toma os cordeirinhos em seus braços e os conduz no colo bem junto do coração, e conduz com carinho as ovelhas que têm crias” (Is 40, 11)”.

(p. 54)
(grifo meu)

Esse trecho nos suscita vários questionamentos. O primeiro deles diz respeito à crença em que Deus está verdadeiramente interessado na proteção de cada um de nós, que somos suas “ovelhas”. As ocorrências do mundo confinam essa crença ao imaginário da criança que reside na consciência dos que delegam às autoridades da fé o poder de interpretar o mundo por eles. Como bem nos ensina Marcelo Da Luz, a esse respeito:

“(...) O sentimento de radical dependência de outrem se expressa em variadas formas. Nas tradições monoteístas, por exemplo, todos os crentes se reportam à ideia do ser onipotente, onisciente e onipresente, origem e princípio de todas as coisas, cuja vontade é suprema em todo o Universo: “Deus” (embora essa ideia receba não apenas diferentes nomes, mas diferentes explicações dentro do judaísmo, cristianismo e islamismo; definitivamente, essas tradições não podem estar falando do mesmo ser supremo, embora os assessores teológicos do diálogo inter-religioso insistam no contrário)”.
(p. 77)
(Onde a religião termina: 2011)

Na mesma obra, o autor explicará a obediência aos “funcionários do sagrado” em termos de “terceirização das escolhas existenciais” (Da Luz, 2011). Leiamos com atenção este passo:

“Na língua portuguesa, o verbo terceirizar indica, no campo administrativo, a ação efetuada pelas empresas de transferir algumas atividades e serviços para outras organizações, a fim de diminuir custos, economizar recursos, desburocratizar estruturas e atingir mais rápida e eficazmente as metas estabelecidas. Na presente abordagem, o mesmo verbo vem utilizado metaforicamente, a fim de indicar uma das atitudes mais características da vivência religiosa, qual seja, a assunção da obediência aos funcionários do sagrado – sacerdotes, pastores, sheiks, rabinos, médiuns e gurus de todos os tipos. O fiel religioso transfere a essas figuras de autoridade a responsabilidade de interpretar a própria vida, à luz de regras estabelecidas pela suprema instância de terceirização: a ideia de “Deus” (ou deuses), em que se encontram, supostamente, todas as respostas e desígnios do Universo”.
(p. 71)
(grifo meu)

A presente passagem merece alguns comentários. A fim de ilustrar a validade da compreensão do autor acerca de como os religiosos buscam em terceiros formas de interpretar suas próprias vivências, basta que pensemos na pessoa que agradece ao pastor ou sacerdote, a quem ela atribui o papel de ministro ou intermediário de Deus (no caso do sacerdote, também a ele associa-se a qualidade de santidade), o fato de ter conseguido um emprego, ou, no caso de um jovem adolescente, de ter conseguido passar no vestibular. Num e noutro caso, a conquista foi uma graça de Deus, e nada ou pouco tem a ver com o esforço pessoal, ou com as condições político-econômicas favoráveis num dado período de crescimento de seu país.
Sempre achei muito suspeita a metáfora do “rebanho de ovelhas”. Vale notar que a figura do pastor de ovelhas era muito comum na cultura da palestina. Segundo MacGrath, o pastor, porque tinha de dedicar muito tempo ao cuidado com suas ovelhas, era um indivíduo muito marginalizado, não podendo participar das atividades sociais.
À luz da desconstrução da ideologia do rebanho de ovelhas produzida nas condições sócio-culturais e políticas da palestina do século I d.C., não parece difícil compreender o verdadeiro significado da ideia de que somos “ovelhas que teimam em desgarrar-se”. As ovelhas desgarradas são as ovelhas insubmissas, insubordinadas (hereges). São justamente aquelas que se rebelaram contra as condições de submissão em que viviam. Ainda no livro de MacGrath, podemos ler, nesse tocante, o seguinte:

“(...) a imagem de Deus como pastor fala-nos de nós mesmos, do ponto de vista cristão. Somos o rebanho das pastagens de Deus (Sl 79, 13; 95, 7; 100, 3). Somos ovelhas sem capacidade de cuidar de nós mesmas, continuamente nos desgarrando. Não somos auto-suficientes, precisamos aprender a depender de Deus como as ovelhas dependem inteiramente do pastor para a sua existência. Podemos ter vontade de pensar que podemos cuidar de nós mesmos, mas o modo cristão de compreender a natureza humana exige que reconheçamos nossa total dependência de Deus. Assim, a condição de pecado inerente ao ser humano é comparada muitas vezes com o afastamento de Deus, como o desgarramento de uma ovelha: “Como ovelhas, estávamos todos perdidos, cada qual ia em frente por seu caminho” (Is 53, 6; cf. Sl 119, 176; 1Pd 2, 25).”

(p. 54)
(grifo meu)

Esse trecho abriga vários elementos importantes na formação de uma consciência religiosa caracteristicamente dependente e submissa, por meio da doutrinação. Há pouco, falava do papel do discurso na construção de modelos de mundo, ou seja, o homem compreende o mundo e atua sobre ele através de suas práticas discursivas, que constituem uma etapa entre outras práticas sociais. Todo discurso é uma prática social dentre outras. O discurso não espelha a realidade, mas a reconstrói, fabrica um modelo de realidade, segundo a perspectiva de sujeitos situados historicamente, determinados, em alguma medida, ideologicamente. Tendo em conta isso, é extremamente importante que o leitor atente para as construções simbólicas de mundo nesse excerto. Destaquei algumas palavras e expressões, a fim de que a análise que farei esteja bem situada ou ancorada no texto.
Em primeiro lugar, veja-se como a natureza humana é representada. Note-se que salientei a expressão “do ponto de vista cristão” (que, em Linguística Textual, é um operador discursivo de domínio, ou seja, um recurso linguístico que sinaliza a perspectiva ideológica ou teórica em que um enunciado deve ser compreendido). No caso em tela, o operador discursivo sinaliza a perspectiva de uma doutrina específica e de toda uma comunidade que adere a ela. Então, segundo essa doutrina, tendo assumido Deus como pastor, assume-se toda a humanidade como seu rebanho. O rebanho deve obediência ao pastor. Chamo atenção, de passagem, para o fato de a ideia de ‘livre-arbítrio’ tornar-se, nesse modo de entender a relação entre Deus e o ser humano, dificultosamente sustentável. Um estudo aprofundado dos discursos teológicos, criteriosamente orientados na perspectiva de uma Análise do Discurso Crítica, nos permitiria trazer à tona uma série de inconsistências. Convém, no entanto, retomar a análise.
Uma prova de que a doutrina cristã é orientada para tornar seus adeptos indivíduos dependentes, desprovidos de autonomia crítico-intelectual é a passagem “precisamos aprender a depender de Deus”. Trata-se de um processo de ensino-aprendizagem (adestramento) voltado para a produção de indivíduos submissos; certamente contrário a qualquer concepção pedagógica moderna que se orienta pelo objetivo de promover a emancipação do estudante. O que vemos nas práticas religiosas, o que lemos em suas produções discursivas é um testemunho de ações orientadas por uma pedagogia da submissão irrestrita. É necessário “depender inteiramente de Deus”. O trecho a seguir, que recupero, a título de destaque, abaixo, é bastante claro:

“Podemos ter vontade de pensar que podemos cuidar de nós mesmos, mas o modo cristão de compreender a natureza humana exige que reconheçamos nossa total dependência de Deus”.

Toda religião oferece uma “teoria” da natureza humana. O cristianismo também tem a sua forma de entender a natureza humana. Na perspectiva cristã, a natureza humana é inteiramente dependente de Deus e pecadora, porque tende sempre a se afastar de Deus. A palavra desgarramento tem claramente um valor negativo no texto. Aqui, aproveito para chamar a atenção para o fato de que nenhuma palavra (nenhum signo) tem sentido fora do discurso. Sua significação é construída no interior do discurso, o que significa dizer que depende das circunstâncias de discurso, as quais compreendem os saberes supostos sobre os pontos de vistas dos atores sociais, bem como os saberes supostos acerca do mundo, implicados nas práticas sociais.
Claro está que num discurso em que a natureza humana é destituída de autonomia, é vinculada submissamente a um Outro transcendente, a palavra desgarramento só pode significar “insubordinação”, “rebelião”, “desobediência”; portanto, um ato depreciável, passível de correção. Raciocínios análogos podemos desenvolver a respeito da ocorrência das palavras “pastor” e “rebanho” (entre tantas outras), que significarão diferentemente, caso ocorram em outros domínios discursivos, por exemplo, na fala de um fazendeiro ou na de um antropólogo. Pensemos no uso da palavra “política”, num enunciado como “Isso tudo é política”, proferido por alguém que assiste pela televisão um político prometendo grandes realizações. Nesse caso, política significa “uma prática cínica”, uma prática que visa a enganar os segmentos populares. Uma discussão que pretendesse lançar luzes sobre essa questão demandaria um novo texto. Escuso-me de fazê-la aqui.
Já se desponta aqui os prelúdios de uma “moral de rebanho”. Viver moralmente é viver buscando a Deus, buscando seguir os ensinamentos da Igreja, que é depositária da Verdade Revelada, que constitui, senão, um ato de fé. O imoral, o pecador é aquele que se desvia do rebanho de Deus. Essa compreensão é confirmada na seguinte passagem de MacGrath:

“Em todas as essas analogias observamos a mesma ênfase da fé cristã: nós estamos desgarrados e Deus vem ao mundo em Jesus Cristo para nos reencontrar e trazer de volta para casa”.
(p. 54)

Outra metáfora associada a Deus é a do Pai. É interessante ver que o Deus judaico-cristão é um deus antropomórfico, porque representado com características humanas (amoroso, irado, justo, bondoso, ciumento, tirano, etc.). O autor justifica o largo uso das analogias com tipos humanos, no tratamento, ou melhor, na tentativa de definir a Deus, com o argumento segundo o qual “precisamos formar uma ideia de Deus como que em uma imagem de tamanho reduzido, apropriada à nossa capacidade humana” (p. 56), que se entende seriamente deficiente ou limitada. Recorre-se a analogias com elementos do universo humano, porque, segundo o autor, não há como termos acesso direto a Deus. É interessante pensar na relação entre a crença na inacessabilidade cognitiva a Deus, ou seja, a crença de que Deus é incognoscível, e a necessidade de manutenção da obediência dos religiosos, ou melhor, da formação de uma consciência de submissão. Se fosse dado aos religiosos saber que o ter acesso a uma compreensão de Deus depende apenas e exclusivamente de que eles reconheçam que Deus nada mais é do que produto da mente humana, que Deus é uma representação construída no longo curso de uma tradição milenar, eles, então, saberiam que o famigerado recurso a ideia de “inacessabilidade pela razão humana a Deus” é um estratagema de que se valeram as autoridades religiosas para mantê-los em estado de submissão. Uma vez invertida a relação que se depreende no enunciado, muito repetidamente martelado na consciência dos crentes - “o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus”-, compreende-se melhor que a inacessabilidade a Deus é, na verdade, decorrente do fato de os crentes leigos serem privados de uma compreensão clara das estratégias discursivas na base das quais essa inacessabilidade acaba por ser representada como impossibilidade humana de uma compreensão direta de Deus. A razão, contudo, pode compreender a Deus, no momento em que o desnudamos de sua vestimenta metafísica, desmanchamos o enredamento conceitual a que ele está preso, para, assim, vê-lo exposto como uma ideia pronta para ser analisada no seio do discurso, no interior do qual ela se conecta a outras ideias. Se reescrevêssemos o referido enunciado, de sorte a inverter a relação – “Deus foi criado à imagem e semelhança do homem” – a inacessabildade a Deus não é senão a impossibilidade de os crentes “contemplarem” o que está por detrás da construção imaginária de Deus. Tendo situado Deus, enquanto ideia ou conceito, no domínio da História, compreendido num dada conjuntura cultural, ficará claro entender como é possível a construção de discursos que visam a subordinar uma imensa parcela da humanidade a uma autoridade transcendente, a um Outro, por intermédio de pessoas que reivindicam para si o posto de porta-vozes de uma Verdade inquestionável.
MacGrath tratará, em outra seção da metáfora de Deus como Pai, bem como da ideia de Deus pessoal e de Deus como todo-poderoso. São temas que merecem uma apreciação cuidadosa, mas que será adiada para outra ocasião.
Percebi, na leitura do capítulo, certa seriedade no tratamento dos temas pelo autor. É claro que a teologia moderna também compreende o estudo das religiões em geral (não só do cristianismo) e de suas relações com os homens. Nesse sentido, trata-se de um domínio de conhecimento interessante. Mas as discussões calorosas, que engendraram disputas acirradas por poder nos primórdios da era cristã, a respeito da natureza de Jesus Cristo - se era ele divino e humano, ou se era ele apenas divino, ou se apenas o Cristo era divino, sendo Jesus um homem em que Cristo viveu por um tempo (crença da maioria dos gnósticos à época), não parecem ter maior interesse para nós modernos, já acostumados a ver o mundo a partir de uma ótica cientificista, exceto pelo fato de revelar um aspecto da história das ideias, ou de revelar como uma determinada classe dirigente (a dos Pais da Igreja nascente) desenvolvia e se apropriava de uma ideologia poderosa, cuja propagação resultaria, entre outras coisas, no arrebanhamento de grande parte da humanidade para uniformizar-se em seu sistema de crenças e valores . A visão vitoriosa (ortodoxa), nesse tocante, foi a dos autores proto-ortodoxos dos séculos II e III, entre eles Justino, Irineu, Tertuliano e Hipólito. Todos estavam de acordo em que Jesus era homem e divino ao mesmo tempo. Por isso, hoje, teólogos assumirem que se deve falar em Jesus como Deus. Daí também a adoração de Jesus como Deus pelos crentes. Deus se rebaixa à condição humana, “revela-se” em Jesus e sacrifica-se, tal como o cordeiro oferecido em sacrifício nos rituais judaicos, para a expiação dos pecados dos homens. Deus se sacrifica, sacrificando Jesus. Este era o cordeiro sacrificado, a ovelha obediente e conduzida à morte porque era essa a vontade de Deus. Jesus hesita, suplica a Deus que o livre do tormento iminente. Mas era a vontade de Deus, de um Deus homicida, que dispôs as condições necessárias para a crucificação do próprio filho amado; e com um único propósito nobre: a salvação da humanidade pecadora. Mata-se para salvar... uma lógica absurda! Deus deveria estar horrorizado com seu crime e dolorosamente frustrado com a ineficácia de sua premeditação repugnante. Há quem defenda que Jesus construiu o caminho de seu suicídio, não sem a aprovação de Deus.
Antes de pôr termo a este texto, gostaria de me estender um pouco mais sobre o papel fundamental que desempenha o discurso não só na vida humana, mas, particularmente, na atividade de doutrinação religiosa. Para tanto, é preciso considerar os seguintes pressupostos, na base dos quais uma teoria do discurso crítica estabelece seu projeto:

1opp. O discurso é uma prática social, um modo de ação social, entre outros. É um momento das práticas sociais;

2opp. O discurso, como realidade social, é, ao mesmo tempo, moldado pelas estruturas sociais e constitutivo dessas estruturas. Não convém pensar linguagem e sociedade em esferas separadas, uma externa à outra; mas inter-relacionadas dialeticamente

3opp. Todo discurso é atravessado por formações ideológicas, as quais compreendem um complexo de práticas e representações, que não sendo nem individuais, nem universais, estão ligadas às posições de classe em disputa. Assim, não obstante a polissemia do termo ideologia, interessa entender que todo discurso se constrói na base de uma ideologia, entendida como visão de mundo de um dado grupo social situado historicamente. Nesse sentido, não só as classes dirigentes produzem suas ideologias, mas também as classes populares, embora apenas as ideologias das classes que detêm o poder socio-político e econômico passem a ser as ideologias dominantes em uma determinada época.

Em Ideologia (1997), de Terry Eagleton, o leitor encontrará uma discussão exaustiva sobre o conceito de ideologia. Trata-se de um termo, cujo emprego deve ser significativamente determinado, já que, dependendo do teórico que dele tenha se ocupado, poderá ter um valor tanto positivo quanto negativo. No capítulo 1 de seu trabalho, Eagleton nos oferece nada mais nada menos do que dezesseis definições de ideologia. Entendida num sentido mais “neutro”, a reflexão sobre ideologia demandará de quem a desenvolve a avaliação de quais discursos servem à transformação de relações de dominação, à emancipação social e quais, sendo ideológicos, servirão para a produção e reprodução dessas relações de dominação. É o que encontramos nesta definição de Fairclough, em Discurso e Mudança social (2001):

“As ideologias são significações/ construções da realidade (o mundo físico, as relações sociais, as identidades sociais) que são construídas em várias dimensões das formas/ sentidos das práticas discursivas e que contribuem para a produção, a reprodução ou a transformação das relações de dominação”.
(p.117)

Autores há que só entendem a ideologia no seu aspecto negativo, ou seja, como fenômeno ilusório e enganador, que servem à reprodução das relações de poder. As relações de poder se sustentam mediante significados em torno dos quais se estabelece um acordo tácito, pois é assim que se consolida a universalização de pontos de vistas particulares (o que se chama hegemonia). É o que sucede com os discursos da tradição cristã, nas suas variadas ramificações (especialmente católica e neopentecostal). Não obstante o sincretismo religioso tão característico de nossa cultura, o discurso religioso hegemônico é o discurso produzido na esteira da tradição cristã.
Finalmente, apresento o quarto e último pressuposto:

4opp. A linguagem é uma atividade social por meio da qual nossas experiências de mundo são organizadas numa estrutura significativa. Assim, a realidade é produto da inter-relação entre linguagem, cultura, percepção-cognição.

Assim, aprendemos muito com a lição do linguista Luiz Antônio Marcuschi (2005):

“(...) Não nego que exista certa relação entre linguagem e algo externo a ela, mas nego que ela seja estável, pronta, universal e a mesma para todo sempre. Afirmo que conhecer não é um ato de identificação de algo discreto existente no mundo e mediado pela linguagem: conhecer é uma atividade intersubjetiva (...)”.
(p. 69)

E um pouco adiante, acrescenta:

“Conhecer um objeto como cadeira, mesa, bicicleta, avião, livro, banana, sapoti não é apenas identificar algo que está ali, nem usar um termo que lhes caiba, mas é fazer uma experiência de reconhecimento com base num conjunto de condições que foram estabilizadas numa dada cultura. O mundo de nossos discursos (não sabemos como é o outro) é sócio-cognitivamente produzido. O discurso é o lugar privilegiado da designação do mundo. A própria ordem de reflexão sob o ponto de vista de sua organização e dependências lógicas é uma construção predominantemente discursiva”.
(id.ibid.)

Se o desenvolvimento da reflexão, que supõe uma organização de conceitos, segundo esquemas de dependências lógicas é “uma construção predominantemente discursa”, não custa lembrar a lição do também professor e linguista Carlos Franchi, para quem a linguagem serve à construção do pensamento. É consenso entre os especialistas que não há possibilidade de produção de pensamento conceitual fora dos domínios da linguagem. Portanto, não é correto reduzir a linguagem a mero instrumento de comunicação, a mero instrumento para a expressão do pensamento. Os antigos filósofos já haviam notado que a própria razão não poderia desenvolver-se nos seres humanos, se esses não fossem dotados de uma faculdade de linguagem, se não fossem capazes de fazer uso de uma linguagem articulada, mediante a qual combinam um extenso repertório de sequências de sons com uma gama grande de significados diferentes. Isso é um fato extraordinário, principalmente se pensarmos, por exemplo, que, em português, temos 31 fonemas (12 vocálicos, sendo 7 orais e 5 nasais; e 19 consonantais) e eles podem ser combinados em sequências diversas, segundo regras previstas no sistema fonológico da língua, para a produção de um número gigantesco de palavras (cada qual encerrando uma pluralidade de sentidos), que entrarão a fazer parte de um número teoricamente ilimitado de enunciados,  para a expressão de uma vasta quantidade de significações. Dispondo dos fonemas /a/, /e/. /i/, /d/, /p/, /l/, /c/ , /o/, podemos ter as sequências sonoras significativas dedo, pé, , copo, lado, pedal, oco, oca, etc. É um exercício interessante o articular essas mínimas unidades sonoras desprovidas de significado. Somente quando dispostas numa determinada sequência segundo padrões fonológicos previstos pelo sistema da língua é que temos uma unidade significativa, de nível hierárquico mais elevado.