O
mito e os equívocos
na compreensão comum da
língua
Poder falar ou
escrever sobre língua/ linguagem é um assunto que me agrada bastante.Mas não
tratá-lo de modo trivial, ao sabor do senso comum que, em matéria de linguagem,
espera ansiosamente pelas receitas que ensinem como se deve falar e escrever
“corretamente” (uso aspas porque a noção de correção idiomática é problemática
e dela já tive a oportunidade de tratar em outros textos). Quero aqui apontar as
razões por que as pessoas, em geral, entre as quais estão aquelas altamente
escolarizadas e letradas (jornalistas, escritores, profissionais da educação,
filósofos, etc.), perpetuam a crença de que português é difícil.
Particularmente, estou interessado em avaliar os equívocos subjacentes a um
juízo que ouvi a uma adolescente há alguns dias, que tem mais ou menos a
seguinte forma:
Português é muito difícil, porque tem
muitas regras.
Note-se,
desde já, que a garota justifica a dificuldade que encontra no estudo do
português na escola (ela está cursando o último ano do ensino médio) com a
declaração “tem muitas regras”. Vejamos separadamente os dois problemas aí, a
saber, o ser o português uma língua difícil e o apresentar muitas regras.
Vou-me
socorrer das lúcidas palavras de Marcos Bagno, em Preconceito linguístico, como é, como se faz (2004). No trecho
abaixo, o linguista põe-nos o problema, apresentando-nos sua causa:
“Como nosso ensino da língua sempre
se baseou na norma gramatical de Portugal, as regras que aprendemos na escola
em boa parte não correspondem à língua que realmente falamos e escrevemos no
Brasil. Por isso achamos que “português é uma língua difícil”: porque temos de
decorar conceitos e fixar regras que não significam nada para nós. No dia em
que o português se concentrar no uso
real, vivo e verdadeiro da língua portuguesa do Brasil é bem provável que
ninguém mais continue a repetir essa bobagem”.
(grifo no original)
(p. 35)
É fato
já há muito reconhecido pelos especialistas que há uma grande distância entre
os usos da língua que são ensinados na escola e os usos que realmente dela
fazem os falantes nativos no dia-a-dia. O que explica, portanto, a reprodução
da crença em que o português é uma língua difícil é a forma como essa língua tem
sido estudada numa longa tradição de ensino. Afinal, como poderia ser difícil o
domínio de uma língua para um falante nativo dessa língua, cuja aquisição se inicia muito cedo em sua vida, entre
os três e quatro anos - falante que se serve dela com bastante naturalidade e
eficiência nas inúmeras situações de interação em todos os momentos de sua
vida? Como poderia ser difícil a sua própria língua materna, cujo sistema de
regras (a gramática, falarei dela depois) ele internalizou em tão tenra idade?
Qualquer falante nativo de português, independentemente do grau de escolaridade
(mesmo um analfabeto) aceitará enunciados como (1) e (2) e rejeitará (3) e (4):
(1) O
cachorro é de João
(2) Este
brinquedo custa caro.
(3) * O
cachorro está de João
(4) *Este
o brinquedo custa caro.
(O * indica agramaticalidade)
Mesmo
quase nunca consciente das regras subjacentes à construção de (1) e (2),
qualquer falante nativo de português não tem dificuldade em considerar tais
enunciados como bem-formados gramaticalmente. Ao contrário, não hesitariam em
dizer que há algum problema nos enunciados (3) e (4). Para qualquer falante
nativo, tais enunciados não são bem-formados, porque infringem alguma regra
prevista pela gramática do português. Em (3), em enunciados em que figura uma
estrutura do tipo ‘DE-possuidor’, usamos o verbo “ser” e não “estar” (cf. A
pasta é do meu pai/ o livro é da minha professora/ o chinelo é do meu irmão).
Estou simplificando, para os meus propósitos aqui, a descrição da regra. Já em
(4), o português não admite o uso concomitante de artigo e pronome
demonstrativo, ou seja, ou usamos o artigo, ou usamos o demonstrativo, mas
nunca ambos. Evidentemente, o uso de uma ou outra unidade dependerá de fatores
sociocognitivos (ou mais simplesmente contextuais). Para os mais familiarizados
com os estudos gramaticais (digo “descritivos”), diremos que os pronomes
demonstrativos podem ocupar a posição de pré-determinante (PreD) sempre que
ocorra um numeral antes do substantivo núcleo, mas não podem ocupar essa
posição caso ocorra artigo ou pronome indefinido. Senão, vejamos:
(5) Estes
quatro brinquedos custam caro.
(6) *
Estes alguns brinquedos custam caro.
Fique claro
que regra aqui está sendo usado no sentido de ‘princípio de instrução para a
combinação de unidades linguísticas’. A regra, portanto, rege o uso adequado da
língua, mas num sentido diferente do que normalmente a entendemos numa visão
prescritivo-normativista de ensino de língua. Que fique claro: empreguei
‘regra’ no sentido de princípio de estruturação das unidades da língua.
Sabe-se, por exemplo, que os sufixos “-ção” e “-mento”, que formam substantivos
deverbais, são os mais produtivos. Assim, temos
(7)
especificação, realização, formação, sufixação, dominação, significação, etc.
envolvimento, entendimento, batimento,
impedimento, estacionamento, etc.
No
entanto, se a palavra terminar em “-izar”, a língua rejeita a anexação de
‘-mento’, admitindo apenas o uso de “-ção” (cf. atualização, mas não
“atualizamento”). Trata-se aqui de uma restrição de ordem estrutural à
aplicação da regra, que prevê a anexação de ‘-ção’ e ‘-mento’ para a formação
de substantivos a partir de bases verbais. Para os demais casos citados, o que
impede que tenhamos “formamento” ao lado de “formação” é simplesmente o fato de
que, uma vez já disponível uma forma em “-ção’ na língua, não há necessidade de
uma forma correspondente em ‘-mento’, a menos que a forma em “-mento” traga
alguma especialização semântica. Veja-se o caso do par “nutrimento” e
“nutrição”, que derivam do verbo “nutrir”. Como “nutrição” designa a ciência
que estuda os alimentos, sentiu-se a necessidade de falar em “nutrimento” para
se referir tão-somente ao alimento ou sustento, por exemplo, de atletas. Isso
não significa que não usamos “nutrição” no sentido de ‘ato de nutrir’, como em
“A nutrição dos atletas deve ser balanceada”. O dicionário Houassis registra as
duas formas – nutrição e nutrimento – embora atribua à nutrição, além do
significado de ‘ciência’, os de ‘alimento’ e ‘sustento’, reservando à palavra
“nutrimento” a noção de ‘ato ou efeito
de nutrir’. As duas formas compartilham os significados “alimento” e
“sustento”.
Devemos,
contudo, não tomar os dicionários como manuais do saber inquestionável sobre a língua. Muitos usos não são registrados no dicionário e as interpretações
dos usos podem ser equivocadas. Dizemos “A nutrição dos atletas é feita por um
especialista”, querendo dizer que sua alimentação é orientada por um
nutricionista; podemos dizer “O nutrimento dos meus filhos sou eu quem faz”,
querendo dizer o sustento deles. Em suma, para evitar a associação que nutrição
tem com um campo científico (“nutrição” designa um campo da ciência que estuda
os alimentos), os falantes criaram a forma “nutrimento” que exclui de seu campo
semântico a noção de “ciência”, compreendendo tão-só as noções de ‘ato de
nutrir’ ou ‘sustento’.
Comparem-se,
finalmente, as formas “descoberta” e “descobrimento”. Trata-se de duas formas
resultantes da anexação de sufixos à base “descobrir”: “descob (ert) + a “ e
“descobri + mento”. No entanto, os contextos de uso são diferentes e, portanto,
as significações também o são Embora o mesmo dicionário registre “descoberta”
como sinônimo de “descobrimento”, falamos em “descoberta científica” e não
“descobrimento científico”. Por outro lado, falamos em “descobrimento do
Brasil”. Com o uso de “descoberta”, nos referirmos a algo que veio à luz após
investigação (algo que se revela depois de um longo trabalho investigativo).
Além de associar-se a um evento grandioso, “descobrimento” pode também designar
a exposição de algo que antes estava coberto (cf. o descobrimento do corpo/ da
cabeça/ das mãos/ dos pés). Disso não se segue que não se possa usar
“descobrimento” no sentido que lhe damos no domínio discursivo das ciências.
Pelo menos, parece possível o uso de descobrimento tendo como complemento o
‘agente”. Veja-se o exemplo abaixo:
(8) Antes disso, o reverendo Plot tinha
encontrado um osso fêmur enorme em 1676 na Inglaterra. Acreditava-se que
pertencia a um gigante. R. Brookes publicou um relatório sobre o descobrimento de Plot em 1763.
Não
hesitaríamos em usar “descoberta” no lugar de descobrimento, para nos referir
ao achado científico do reverendo Plot. Nos exemplos abaixo, colhidos do site www.linguateca.pt.,
vemos as formas “descobrimento” e “descoberta” para referir-se ao conhecimento
de territórios:
(9)
par=ext203641-clt-94b-1: Mostrando-nos, sobremaneira, o risco daqueles que, na vida e na obra,
assumiram e ainda assumem a poesia como força de descobrimento íntimo e de elucidação
moral .
(10)
par=ext218063-clt-93a-3: No ano em que, na Exposição Universal de Sevilha, a diplomacia do
comissário Emilio Cassinelo permitiu a síntese expositiva de aspectos polémicos
da história de Espanha -- descobrimento
da América, desterro dos judeus e expulsão dos árabes --, a sociedade civil
manifesta sintomas de um novo mal: o racismo .
(11)
par=ext224942-nd-93b-3: Deus convocou o Anjo Consolador e mandou-o conversar com Cristóvão
Colombo, que estava em profunda depressão desde as comemorações dos 500 anos do
descobrimento da
América, no ano passado .
(12)
par=ext235874-clt-94a-1: Já enumerámos a descoberta
das ilhas atlânticas, simples consequência do descobrimento das costas de África .
Em (9), “descobrimento”
significa ‘autoconhecimento’, ‘revelação de si à própria consciência’. Em (10)
e (11), a mesma forma designa o evento de descobrir (achar, encontrar) uma nova
terra. Em (12), “descoberta” também é empregado nesse mesmo sentido com que
usamos, normalmente,“descobrimento”.
Os
parcos dados sugerem que não tem havido um esforço entre os falantes nativos de
manter uma distinção semântico-pragmática rigorosa no uso das formas
“descobrimento” e “descoberta”, pelo menos quando o campos experienciais
ativados são o da geografia e das ciências (descobrir novas terras, o
descobrimento do cientista ajuda na compreensão...).
O que
vim fazendo até aqui foi mostrar como se faz descrição linguística, ou seja,
como, grosso modo, trabalha um linguista. Ele trabalha com dados empiricamente
demonstráveis e com formulação de hipóteses sobre como a língua funciona.
Proponho
que se faça a distinção entre regras
descritivas e regras prescritivas. O primeiro conjunto de regras compreende
aquelas estipuladas pelo linguista quando da observação e exame do uso da
língua na base de textos reais representativos de um corpus. Esse conjunto de regras constitui a gramática internalizada
que todo falante nativo tem inscrita em sua mente/cérebro. Trata-se de um
componente de regras que ele aciona intuitivamente para construir enunciados em
sua língua materna. Cabe ao linguista produzir gramáticas (modelos teóricos)
que constituem uma hipótese de como esse componente de regras funciona.
Descrever a estrutura e o funcionamento de uma dada língua significa explicitar
e explicar seus sistemas de regras (fonológico, morfossintático, semântico e
pragmático).
As
regras prescritivas são as que regulamentam o uso da variedade de prestígio de
uma língua e que devem ser seguidas por todo aquele que pretende ser bem
avaliado socialmente. Assim cabe distinguir entre a regra que nos instrui a
usar o artigo antes do substantivo e a regra que exige que usemos a forma
“dele” como complemento do verbo “gostar”, ao invés da forma “lhe” (cf. Eu
gosto dele/ Eu lhe gosto). Nesse último caso, a inserção de “lhe” não viola o
funcionamento do sistema gramatical, diferentemente do que sucederia, se
usássemos o artigo depois do substantivo (cf. *Menino o falou alto).
A prova
de que os falantes nativos de português seguem regras de modo intuitivo são as
ocorrências abaixo.
Se eu
_________, você ____________.
Canto dança
Cantar dança
Cantar dançará (vai dançar)
Cantava dançava
Cantei dançou
* cante
Mas
Caso eu
cante, você dança.
Sabemos
intuitivamente quais as correlações verbais são normais ou aceitáveis em
português, quando do uso da conjunção condicional “se”. Apenas a forma do
presente do subjuntivo “cante” é incompatível com o uso de “se”. No entanto,
ela combina com “caso”. Isso se torna um problema para o aprendiz estrangeiro
de português. A tarefa do linguista é observar o que as pessoas usam e
descrever a regularidade do uso e os sentidos produzidos nas combinações em questão.
Quando usamos o presente do indicativo na oração com “se” e na oração principal
(a que segue, no caso), expressamos a ideia de ‘habitualidade’, ou seja,
queremos dizer “toda vez que eu danço, você dança”.
Há
regras semântico-discursivas operando nesses casos. Convém investigá-las e
descrevê-las. Não me estenderei nesse terreno. Limito-me a dizer que tais
regras não são de natureza prescritiva, no sentido de que elas tocam ao uso
largamente aceito por todos os falantes nativos da língua.
Todos os usos linguísticos são sensíveis às situações de interação, por isso mesmo o uso da variedade de prestígio deve atender a expectativas contextuais. Usamos a variedade de prestígio quando há exigências ou expectativas, tacitamente estabelecidas em nossa cultura, para o uso dela, num dado contexto de interação. Devemos, portanto, entender que somos mais competentes comunicativamente quanto mais capazes somos de adequar os diferentes usos da língua às diversas situações sociocomunicativas. Isso significa que é tão inapropriado fazer uso da variedade coloquial, numa situação em que se espera o uso da variedade de prestígio, (numa entrevista de emprego, por exemplo) quanto inadequado é usar a variedade de prestígio, numa situação em que ela não é esperada ou exigida (na praia com os amigos, em casa com os familiares, etc.).
Voltando,
contudo, ao problema inicial, devemos considerar que o que se ensina nas aulas
de português na escola é pura e simplesmente análise estrutural da língua.
Põe-se a língua como entidade a ser dissecada em suas partes constituintes para
posterior classificação. Nessa atividade, cobra-se o domínio das nomenclaturas,
tais como “substantivo”, “adjetivo”, “sufixo”, “objeto direto”, “sujeito
simples”, “oração subordinada substantiva objetiva direta”, etc. Na escola, a
língua é estudada como um objeto desvinculado do uso, como uma realidade
engessada, estática, como um ‘corpo’ cujas partes devem ser analisadas, sem que
lhes reconheçam as funções comunicativas a que se prestam. Daí solicitar ao aluno que encontre
os substantivos da frase “Nem todos os animais vertebrados são carnívoros”.
Cobra-se ainda dele que indique o tempo em que o verbo “adorar” foi conjugado
em “Se nós adorássemos andar a cavalo, nós teríamos pedido para cavalgar”. É
também nesse modelo de ensino que o aluno é solicitado a classificar a palavra
“que” nos seus diferentes empregos, como em:
(13) Eu
disse que ele era meu professor.
(14) O que é isso?
(15) O
relógio que você procurava está
aqui.
(16) Que beleza!
Essa
forma de ensinar pelo exercício de dissecamento-taxionomia da língua inclui
também um formato prescritivista-normativista. Assim é que o aluno precisa
saber usar o português de acordo com as regras que prescrevem a variedade de
prestígio, isso justifica o ensino dos casos de concordância (verbal e
nominal), bem como os de regência. Ensina-se, por exemplo, o aluno a usar o verbo “assistir”, no sentido
de “ver”, com a preposição “a”, muito embora o uso real da língua dispense essa
preposição. O que lemos e ouvimos é “Pelé assistiu
o jogo do Santos ontem na Vila Belmiro”. Como bem observa Bagno, o que se
ensina não é o que realmente se usa. Estudos sociolingüísticos já vêm mostrando
há tempo que a regência “assistir a” está cada vez mais em desuso, mesmo na
língua escrita mais monitorada, mesmo entre os falantes considerados “cultos”.
Os grandes jornais da imprensa escrita estão repletos de emprego do verbo
“assistir” desacompanhado da preposição “a”. Sendo um verbo transitivo direto,
ou seja, cujo complemento não é regido de preposição, “assistir” aceita
normalmente a voz passiva (cf. O jogo do Santos na Vila Belmiro foi assistido
por Pelé).
É
também esse modelo de ensino que perpetua a rejeição a formas como “trago” e
“chego”, quando figuram como verbos principais em locuções como em “tinha trago a mochila” e “tinha chego às
duas horas”. Todos os falantes mais escolarizados, ao ouvirem tais formas,
costumam julgá-las “erradas”, “estranhas”, “de mau gosto”. Todos eles condenam
as pessoas que as utilizam. Todos perguntam “não estão erradas?”. Uma
explicação científica para a ocorrência dessas formas deve incluir as seguintes
observações:
1ª
observação: as formas “trago” e “chego” (fonologicamente semelhantes às formas
de primeira pessoa do singular do verbos “trazer” e “chegar”, daí dizermos que
são homófonas), se comportam estruturalmente como particípios do verbo “trazer”
e “chegar”. Os particípios são as formas nominais do verbo que terminam,
sistematicamente, em “-do” e vêm acompanhados dos auxiliares “ter” e “haver”
(embora possamos ter particípios na função de adjetivos junto aos verbos “ser”
e “estar”, nesse caso eles se flexionam em número e gênero).
(17)
Eles têm cantado juntos todos os sábados.
(18)
Elas estão encantadas com a sua presença.
2ª
observação: os particípios, embora regularmente apresentem a terminação –do,
podem apresentar as terminações “-a” ou “-o” (raramente, “-e”), passando a se
chamar “particípios irregulares”. Há particípios que apresentam as duas
terminações, como, por exemplo, “acendido” e “aceso”, “imprimido” e “impresso”,
“elegido” e “eleito”, “pagado” e “pago”, “pego” e “pegado”, “gastado” e “gasto”,
“ganho” e “ganhado”.
Deixando
os casos do grupo “ppgg” (pagar, pegar, gastar, ganhar) de lado, por enquanto,
para os demais casos a regra válida para a variedade de prestígio da língua
prevê o uso das formas em “-do” junto aos auxiliares “ter” e “haver”. Assim, na
variedade de prestígio, diremos “eu tenho imprimido muitas provas ultimamente”,
“nós havíamos elegido esse prefeito em outra ocasião”. As formas terminadas em
“a” e “o” são usadas junto aos verbos “ser” e “estar” (e “ficar”, “continuar”):
“A luz está acesa”, “a luz ficou acesa”, “aqui as provas são impressas com
rapidez”.
Os usos
de “pagar”, “pegar”, “gastar” e “ganhar” têm dado testemunho da dinamicidade
inerente a toda língua. Apesar dos esforços por fixar regras, o uso tende a
flexibilizá-las. Assim é que se pode ouvir e ler tanto “Eu tinha pagado a
conta” quanto “eu tinha pago a conta”, e o mesmo vale, analogamente, para os
verbos “pegar”, “gastar” e “ganhar”. Ouve-se tanto “O Flamengo tinha ganho o
jogo” ou “O Flamengo tinha ganhado o jogo”.
Pode-se
agora entender o que sucede com os casos de “trago” e “chego”. Os falantes
criaram a forma irregular do particípio dos verbos “trazer” e “chegar”.
Tradicionalmente, tais verbos só exibiam a forma regular do particípio, a
terminada em “-do” (trazido, chegado). Evidentemente, as formas irregulares
ainda não são aceitais (olha o uso de “aceita”) pelos falantes mais
escolarizados e por isso são muito estigmatizadas. E o são porque tais formas
são comumente utilizadas por falantes com baixo nível de escolaridade e
provindos de uma classe socioeconômica menos favorecida. O julgamento que se
estabelece por meio dos rótulos “certo” e “errado” tem base essencialmente
elitista. “Certo” e “errado” são resultado de valorações sociais baseadas numa
ideologia forjada nas práticas de dominação de classes, segundo a qual a língua
exibe em si formas e usos corretos e errados. No entanto, a desconstrução dessa
ideologia consiste em fazer ver que a língua considerada “certa” é a língua das
classes dirigentes, sendo considerados desvios ou erros os usos da língua
feitos pelas classes populares. É preciso fazer entender aos não-especialistas
que quem está no poder vai querer impor sua forma de falar a todo o resto da
sociedade e vai considerar os modos de falar não recobertos pela norma
estabelecida pelo poder como desvios ou erros. No final das contas, vale
insistir, a problemática da noção de erro em matéria de linguagem se desloca do
âmbito puramente linguístico para o domínio do social, lugar onde é forjada.
Censurar um uso linguístico é censurar a própria pessoa ou comunidade que dele
se serve. No Brasil, o baixo nível de escolaridade está diretamente
correlacionado com o baixo nível socioeconômico de um indivíduo. Sendo privado
de uma escolarização plena, não tem ele acesso à variedade linguística de
prestígio e, portanto, a um instrumento de poder fundamental com que poderá
lutar por maior justiça e igualdade social. Sem o domínio desse capital
simbólico, está ele excluído, marginalizado social, cultural e politicamente.
Essa exclusão é reforçada todas as vezes que seu modo de falar é censurado e
discriminado.
Quando
dizemos que toda língua se constitui de uma gramática, estamos querendo dizer
que toda língua comporta um sistema de regras e unidades, por meio das quais
estas podem ser combinadas em construções de extensão e nível variados. Assim,
existe uma regra em português que prevê o uso do verbo na primeira pessoa do
singular sempre que usamos na posição de sujeito o pronome “eu”. Todo falante
nativo dirá ou escreverá “Eu amo, adoro, gosto, aceito, bebo, etc.”. Mas não
dirá nunca “Eu ama, adora, gosta, aceitamos, etc.”. Trata-se de uma regra mais
rígida, ou seja, que não admite escolhas. Há, contudo, regras mais flexíveis,
tais como a que admite o uso ou não do artigo antes do pronome possessivo.
Podemos dizer “O meu irmão” ou tão-somente “meu irmão”.
Vejamos
como o componente de regras funciona no domínio da regência verbal a partir de
alguns exemplos. De fato, não temos escolhas ao usar o verbo “gostar”. Temos de
usá-lo com a preposição “de”, impreterivelmente. Dizemos “Eu gosto de
chocolate” e não “Eu gosto chocolate” (embora a criança, nas fases iniciais de
aquisição da linguagem, possa dizê-lo). Também não podemos usar outra
preposição no lugar da preposição “de”: * Eu gosto a chocolate; *Eu gosto para
chocolate. Em inglês, ao contrário, dispensa-se qualquer preposição quando o
complemento de gostar (like) é um substantivo. Em inglês, dizemos “I like
chocolate”.
O verbo
“amar”, por seu turno, deve ser empregado sem qualquer preposição na relação
com seu complemento. Dizemos “Eu amo você”, “Nós amamos nossos avós”. O uso da
preposição “a” tem, tradicionalmente, valor estilístico. Mas é necessário dizer
que tal uso não parece vigorar ordinariamente. Na fala cotidiana, não dizemos
“amar a nossos pais”, mas “amar nossos pais”.
Sabemos
também que verbos há que mudam de significado conforme mude a regência. É o
caso de “confiar”. Regendo a preposição “em”, “confiar” tem sentido de ‘ter
confiança’, ‘depositar esperança’, como em “Eu confio em você”. Mas, se usado
com a preposição “a”, tem o sentido de “entregar aos cuidados de”, como em
“Confio a você meus meninos”.
Uma
regra bem flexível em português é a que prevê o apagamento do sujeito, quando
empregado na primeira pessoa (do singular ou plural). Dizemos “Estamos aqui
reunidos” ou “Nós estamos aqui reunidos”, ou ainda “ (Eu) Estou aqui reunido”.
Não
posso mais, neste espaço, me demorar na discussão sobre como se comporta esse
mecanismo de regras que chamamos de gramática. Gostaria de referir, antes de
terminar, o trecho da professora Irandé Antunes, em Muito além da gramática – por um ensino de língua sem pedras no caminho
(2007), que corrobora o princípio teoricamente incontestável segundo o qual
todas as línguas do mundo se constituem de um sistema de regras:
“Todos os usos da língua são submetidos à aplicação de regras. A
própria natureza das línguas, que faz delas meios da inter-relação social,
marcas da identidade cultural dos grupos, leva a esse cuidado, para que as
línguas mantenham seu padrão e a cara que tem”.
(grifo no original)
(p. 72)
Uma
última observação importante: as regras que apresentei aqui são as que seguem
os usuários da língua de modo intuitivo e que são descritas e explicadas pelos
linguistas. O papel do linguista é descrever e explicar os padrões de usos da
lingua, é descrever e explicar seu modo de estruturação e funcionamento. O
linguista NÃO DITA O QUE SE DEVE DIZER
OU ESCREVER, ELE APENAS DESCREVE E EXPLICA O QUE E COMO SE DIZ.
Para tanto, ele formula hipóteses e as testa na observação dos dados
linguísticos, representados em um corpus.