Diante de um livro
Quando mergulhamos na leitura
Quase sempre levo comigo um livro, quando vou para o trabalho. Quase sempre levo os mesmos livros. Hoje, que posso gozar da ociosidade indispensável aos espíritos ávidos de meditações, trouxe o livro Como me tornei estúpido, de Martin Page. Tão logo comecei a folhear suas páginas, não me contive e desatei a grifar muitas de suas linhas. Deparei com trechos que pareciam ter sido escritos por mim! Havia uma ressonância espiritual, eu me senti significado nos enunciados sobre os quais minha mente navegava. Por uns instantes, detinha-me como se estivesse mergulhado espiritualmente. Todo o meu espírito estava submerso naquelas águas verbais do esclarecimento! Sim, pensava, é isso mesmo! É o que sinto também! E como sentir é mais forte do que o pensar! Havia afinidade entre os pensamentos do narrador e os meus, mas foi tão só quando pude experimentá-los na intimidade de meu ser que realmente me senti acalentado (talvez, melhor fosse dizer arrebatado!).
A compreensão da leitura depende desse envolvimento intelectual-emocional do leitor com o livro. Há livros que são produzidos para o sentir e outros tão somente dirigidos para o pensamento. Os que conseguem conciliar emoção e pensamento no seu plano verbal fisgam o leitor pela raiz, porque o atingem integralmente. Não somos só razão; somos também seres de emoção. Logo, um livro ou texto que consigam conciliar estas duas dimensões humanas terá logrado pleno êxito.
Os que acompanham minha labuta verbal provavelmente saibam que me agrada o poder harmonizar dois tipos de leitor: o que busca compreender o lido e o que busca compreender o processo da leitura. A minha formação acadêmica permitiu-me tornar-me também um leitor que estuda as estratégias linguístico-cognitivas mobilizadas não só por ocasião da produção textual, como também do processamento textual. Em suma, quero simplesmente dizer que leio o que se me impõe ao espírito e também leio sobre como se desenvolve a prática de leitura, tendo em conta a relação entre um sujeito leitor, o texto e o autor, que também se atualiza como um sujeito disperso. Não quero fazer expedição nas densas vegetações das teorias textual-discursivas. Basta-me externar aqui o meu fascínio em estudar como se dá o milagre da leitura. Como o leitor compreende um texto, de que estratégias cognitivas se vale? O que o torna cada vez mais competente?
Eu confesso que sou um apaixonado pela linguagem; sou um apaixonado pela docência. A paixão nos move. E não me parece verdadeira a crença de que toda forma de paixão seja uma espécie de cegueira, porquanto a minha paixão pela docência é lúcida. E poderia ser diferente? Todo professor deveria promover uma prática pedagógica esclarecida. Tal é o caso do professor que ensina, consciente de que
“(...) A educação (...) não é reduzida a fator, mas é concebida como uma prática social, uma atividade humana e histórica que se define no conjunto das relações sociais, no embate dos grupos ou classes sociais, sendo ela mesma forma específica de relação social.”
(pp. 33-34)
O excerto acima se acha em Educação e a crise do capitalismo real, de Gaudêncio Frigotto. O professor que tem em conta a perspectiva de que a educação é uma prática social que se define em relação às demais práticas sociais é um professor igualmente consciente de que a escola é também um espaço onde as contradições de uma sociedade dividida em classes repercutem. Também é, assim, um professor consciente de que a escola, numa sociedade capitalista como a nossa, está a serviço das classes dirigentes e que é nela e por meio dela que essas classes mantêm seu controle político-ideológico, linguístico e cultural. Esse professor não se ilude, supondo ser a escola a tábua de salvação para a maioria que vive à deriva ou à margem dos interesses do Estado. Mas também reconhece que fora dela não é possível transformação social. Quanto mais privados de uma educação de boa qualidade são os membros das classes populares tanto mais limitadas se tornam as possibilidades de atuação deles como classe. Uma educação que, preocupada com os interesses dos excluídos, não promove as condições necessárias ao questionamento do status quo, só contribui para aprofundar a exclusão social. Uma educação assim não faz senão conservar no poder as classes dirigentes. É na escola que se dá o embate entre os interesses antagônicos das classes sociais. Não é ela um espaço onde esse antagonismo se neutraliza. Longe disso. Não é ela, eu insisto, a esfera onde a suposta liberdade e igualdade se manifestam convivem harmoniosamente. Numa sociedade marcada por profundas desigualdades, cujo Estado tem de garantir, entre outras coisas, o exercício da liberdade pelos seus cidadãos, numa democracia muito recentemente reconquistada, não se pode esperar senão uma escola que se coloque como responsável por trabalhar dialeticamente os antagonismos estruturais, instrumentalizando os que ocupam suas cadeiras de modo a que possam desenvolver uma consciência crítica sobre a sociedade e o mundo em que vivem.
Eu falava, contudo, dos trechos do livro de Page que me deixaram admirado. Convido o leitor a se debruçar sobre eles, doravante:
“Ser curioso, querer compreender a natureza e os homens, descobrir as artes deveria ser a tendência de todo e qualquer espírito. Mas, se assim fosse, com a atual organização do trabalho, o mundo deixaria de girar, simplesmente porque aquilo demanda tempo e desenvolve o espírito crítico. Ninguém trabalharia. Eis por que os homens têm gostos e desgostos, coisas que os interessam e coisas que não os interessam – porque, se assim não fosse, não haveria sociedade. Os que se interessam demasiadamente pelas coisas, que se interessam por assuntos que não os interessariam a priori – e que querem compreender as razões do seu dessinteresse – pagam o preço disso com certa solidão”.
(p. 59)
Uma leitura, entendida como prática de produção de sentidos para o texto, será tanto mais satisfatória e interessante quanto mais capaz for o leitor de recuperar os intertextos ou as outras vozes discursivas (polifonia). Esta é, decerto, uma lição fundamental a ser aprendida quando nos envolvemos na leitura: todo texto é um intertexto, na medida em que se produz sobre outros textos, na medida em que os evoca explícita ou implicitamente. Compreendida essa lição, o leitor vai-se apercebendo de que toda forma de leitura se abre para outros textos ou discursos. Não lemos apenas no texto, mas sobretudo lemos para além do texto. A leitura abre espaços de diálogo do leitor com o autor, um diálogo silencioso e indispensável ao sucesso do empreendimento intelectivo daquele. Todo texto também encena uma orquestra de vozes. Todo texto delimita mais ou menos explicitamente um conjunto de vozes que podem ser, no palco de encenações discursivamente instaurado, basicamente, conflitantes ou concordantes.
Notemos como podemos recuperar as vozes de teóricos como Marx e Adorno (não só destes, é claro; o leitor familiarizado com o pensamento de pós-marxistas como Harbemas ou com outros teóricos preocupados com a questão do trabalho na modernidade poderia evocá-los). No texto, lemos sobre a ideia de que a atual organização do trabalho demanda consumo de tempo e da força de trabalho do trabalhador. Claro que inferimos essa ideia, quando nos atemos à leitura, especialmente, do trecho “com a atual organização do trabalho, o mundo deixaria de girar”. Para “o mundo girar”, é preciso que os trabalhadores (entendidos como proletários) despendam sua força de trabalho no processo de produção de tal modo que, ao fazê-lo, não lhes sobre tempo para o exercício do pensamento reflexivo. Assim, segundo o autor, se todos os cidadãos fossem curiosos e estivessem dispostos a se abandonar à labuta crítico-reflexiva, utilizando-se do instrumento do pensamento, faltaria quem pudesse fazer a máquina capitalista funcionar. Mas nem todos são curiosos, porque o próprio modo de produção em que se assenta a sociedade produz seus próprios agentes para o trabalho (que Marx viria a definir como trabalho alienado). Estes não podem dispor nem de tempo nem das condições para refletir sobre o funcionamento dos mecanismos da produção da vida social. Assim, nos processos de montagem de automóveis, não são necessários “pensadores”, mas tão-só mão de obra (mais ou menos qualificada, dependendo da função) para o exercício do trabalho de fabricação de automóveis.
Numa sociedade dividida em classes, cujas condições de existência estão baseadas no modo de produção capitalista, o trabalho, segundo a ideologia dominante, é encarado, por um lado, como uma prática penosa, desumanizadora (não sem razão, muita vez; toda ideologia tem um fundo de verdade, embora tenda a ser generalizante) - muito diferente do que propunha Marx, para quem o trabalho deveria ser um exercício de liberdade do homem, forma pela qual ele se humaniza ou se realiza, já que para o autor o trabalho constitui o próprio ser do homem, não como ser abstrato, mas ser concreto (de carne e osso), historicamente definido; mas foi o próprio Marx que veio a reconhecer a forma alienada do trabalho no capitalismo - ; por outro lado, produziria as condiçóes nas quais se poderia distinguir, pela operação mistificadora da ideologia, os que trabalham empregando as forças do corpo e os que pensam. Assim, é que, segundo reza uma das formas ideológicas dominantes, os que trabalham são aqueles que não precisam exercitar o pensamento e os “pensadores” são aqueles que não trabalham, porque libertos da obrigação de empregar seu corpo na árduas tarefas do processo de produção. Daí a crença de que estudante não trabalha, de que quem se dedica a pesquisas acadêmicas também não trabalha. Trabalhadores, segundo essa visão ideológica, são aqueles que se engajam nas ásperas tarefas cotidianas rigorosamente disciplinadas, num espaço de tempo que lhes é pré-fixado pelo capitalista e num espaço de trabalho que o confina (por exemplo, a uma mesa, a um setor de uma linha de produção, no caso de uma indústria, etc.),
Mas como vemos Marx e Adorno neste texto? Decerto, não encontramos registros textuais desses autores, mas suas vozes podem ser ouvidas (polifonia). Tanto um quanto outro lançaram ácidas críticas sobre o modo de produção capitalista, cada qual a seu modo e em sua época. Adorno estava preocupado, particularemente, com a questão da transformação sistemática da cultura em formas de mercadoria, pela mobilização por agentes sociais de instrumentos da técnica, segundo uma lógica que coisifica toda e qualquer manisfetação cultural, padronizando-a, a fim de submetê-las às leis de oferta e procura do mercado. Esse mecanismo de moldagem de toda produção cultural, que redunda na destituição de seu valor estético plural e de sua potencialidade como espaço semiótico para a crítica às formas de existência social, e que desencoraja os indivíduos da crítica social, Adorno (com a cooperação de Max Horkheimer) chamou Indústria cultural. A obra de arte, assim, perde sua autencidade enquanto obra para se tornar reproduzível em larga escala e destinada ao consumo de massa. Para adorno, a esfera do entretenimento se organiza de modo a servir aos interesses do capitalista, já que, uma vez descansado o trabalhador, tendo já suas forças repositadas, pode ele retornar ao trabalho no dia seguinte devidamente disposto a entrosar-se com as demandas do seu trabalho alienado. Para Adorno, a televisão é uma forte aliada nesse processo de adestramento do trabalhador aos imperativos do modo de produção capitalista. O lazer é, nessa perspectiva, a extensão do processo do trabalho alienado.
Marx, no século XIX, arvorou-se em crítico sagaz do modo de produção capitalista. Coube a ele desvelar as formas injustas nas quais se desenvolvem as relações sociais nesse modo de produção. Marx ensinou que a relação entre o proletariado e o empregador (capitalista) é uma relação desigual, caracterizada pela expoliação daquele. O lucro do capitalista advinha do que Marx denominou de mais-valia, o valor do trabalho não-pago de que se apropria o capitalista. A mais-valia é a diferença entre o que o trabalhador produziu e o que ele recebeu. Mas não vou me alongar nessa discussão.
O texto nos oferece a oportunidade de pensar o conceito de trabalho na perspectiva desses dois estudiosos. No texto, está clara a ideia de que a organização do trabalho no modo de produção capitalista impede o usufruto do tempo necessário ao desenvolvimento da curiosidade, do espírito crítico-reflexivo. Mas a sociedade, segundo a ideologia dominante, não seria possível se todos os seus membros não se dividissem entre aqueles que pensam e aqueles que tão só executam. Os que simplesmente executam aquilo que lhes é ordenado, ignoram, quase sempre, as razões por que o fazem ou devem fazer. Apenas aos que estão libertos da sobrecarga decorrente da rigidez do tempo e das exigências do trabalho mecanizado e que, portanto, podem se dedicar à compreensâo da forma real como se dão as relações sociais na esfera da produção, quando superada a inversão feita pela ideologia, é dado pensar. Mas, inisisto, que essa divisão real é representada, na ideologia dominante, como inalterável. A ideologia dominante nos leva a crer que é impossível uma ordem social alternativa, com a transformação da base econômica. Faz-nos crer que o atual estado-de-coisas, por independer das ações dos próprios homens (e isso também é uma crença ideologicamente difundida), não pode ser alterado. Marx, evidentemente, bem como Adorno, não pensavam assim.
Não esgotei a leitura com estas considerações, porque toda leitura está aberta, é aberta, eu diria. E outros leitores, certamente, dotados de conhecimentos que me escapam, podem ver mais coisas neste texto, podem estender a leitura para além de minha compreensão. De qualquer forma, o que espero tenha ficado claro é a ideia de que quanto mais conhecimentos trazemos para a leitura tanto mais rica será ela. A leitura de um dado texto torna-se mais produtiva quanto mais leituras prévias tenhamos acumulado. O leitor exepriente é aquele que ler cada vez mais. O leitor traz seus conhecimentos e experiências de mundo (entre as quais as experiências de leitura, evidentemente) para dentro do texto. E é na bese desse conjunto de conhecimentos (mas também crenças, valores, ideologias) e de experiências que o leitor desenvolve sua leitura. Vê-se quão fundamental torna-se o papel do professor de português no trabalho com a leitura, na tarefa de ser um co-agente no desenvolvimento da competência textual (que inclui uma competência de leitura) do aprendiz.