Um convite à leitura
Meditações sobre o ato de ler
Novamente, a voz de Fernando Pessoa conduz-me as palavras que aqui exponho. Dispenso o rigor na feitura deste texto. Não sei ainda, contudo, que caminhos verbais percorrerei. Vale a pena percorrê-los e esse é o convite que faço ao leitor. Percorramo-los juntos! Sem mais, leiamos estes passos de Pessoa:
“Leio e estou liberto. Adquiro objectividade. Deixei de ser eu e disperso. E o que leio, em vez de ser um trajo que ainda vejo e por vezes me pesa, é a grande clareza do mundo externo, toda ela notável, o sol que vê todos, a lua que malha de sombras o chão quieto, os espaços largos que acabam em mar, a solidão negra das árvores que acenam verdes em cima, a paz sólida dos tanques das quintas, os caminhos tapados pelas vinhas, nos declives breves das encostas.
Leio como quem abdica. E, como a coroa e o manto régios nunca são tão grandes como quando o Rei que parte os deixa no chão, deponho sobre os mosaicos das antecâmeras todos os meus triunfais do tédio e do sonho, e subo a escadaria com a única nobreza de ver.
Leio como quem passa. E é nos clássicos, nos calmos, nos que, se sofrem, o não dizem, que me sinto sagrado transeunte, ungido peregrino contemplador sem razão do mundo sem propósito, Príncipe do Grande Exílio, que deu, partindo-se, ao último mendigo, a esmola extrema da sua desolação”.
(p. 86)
Pretendo que este texto instaure um espaço dialógico com o leitor caracterizado pela informalidade. Por isso, eu o tratarei como “você”. É a você, leitor, que me dirijo. E, desde já, lhe confesso que esses passos de Pessoa acarretam-me alguma dificuldade; situada, é verdade, mas momentaneamente instransponível. Não sei o que significa “Príncipe do Grande Exílio”. Mas esta lacuna é ilustrativa de um princípio básico em matéria de interpretação/ compreensão textual; eu diria melhor, em matéria de construção da coerência do texto: o leitor que não dispuser dos conhecimentos prévios necessários à produção do sentido para o texto terá dificuldades para levar a cabo tal empreendimento. É claro que tais dificuldades podem não prejudicar a compreensão global do texto (a coerência é global). Algumas dificuldades, ou seja, lacunas no conhecimento de mundo compartilhado entre o autor e o leitor, podem perturbar o processo de interpretação/ compreensão do texto. Falta-me o conhecimento sobre o referente da expressão “Príncipe do Grande Exílio”, que, escrita em maiúscula, pode remontar a um codinome de um rei de Portugal, ou à obra política O Príncipe, de Maquiavel. Veja, leitor, que, quando lemos, estamos continuamente produzindo hipóteses, fazendo inferências. Elas serão confirmadas ou rejeitadas ao longo da leitura, sendo necessário, para tanto, recorrer, eventualmente, a outras fontes de conhecimento (como outros textos do autor, sobre dados de sua biografia, textos de seus críticos, resenhas sobre a obra lida, etc.).
Deixando de lado essa dificuldade pontual, vou propor a minha leitura. E isso é importante: muitas leituras são possíveis, dependendo das experiências de mundo de quem lê. Os textos potencializam muitos sentidos (embora excluam outros). Muitos, certamente, são possíveis, embora não todos. Podemos “ver” muitas coisas num texto, de acordo com o acervo de conhecimentos que vamos acumulando em nossas experiências de mundo. Para produzir um sentido para o texto que lemos, nós ativamos modelos cognitivos, que estruturam os conhecimentos (linguístico, encilopédico, pragmático, macrotextual, etc.) adquiridos nas nossas mais diversas experiências de mundo.
Quando assumimos o princípio da Linguística Textual (e também da Análise do Discurso) segundo o qual os sentidos estão abertos, são múltiplos, temos, forçosamente, de lidar com a questão dos limites da interpretação. Trata-se do problema de que se ocupa Umberto Eco, em seu Interpretação e Superinterpretação (2005). Leiamos com atenção como o autor nos coloca o problema aqui referido:
“Poder-se-ia dizer que um texto, depois de separado do seu autor (assim como da intenção do autor) e das circunstâncias concretas de sua criação (e, consequentemente, de seu referente intencionado), flutua (por assim dizer) no vácuo de um leque potencialmente infinito de interpretações possíveis”.
(p. 48)
Quero que você tenha em conta dois problemas inferíveis do texto de Eco: 1o) o espaço escrito ou a modalidade escrita instaura, necessariamente, um distanciamento entre o escritor e o leitor (o texto produzido é um espaço dialógico, potencialmente repleto de significações, que o escritor instaura e do qual o leitor participa). 2o) Uma vez instaurando esse espaço, ou seja, uma vez produzindo seu texto, o escritor o destina a espaços sociais (sócioideológicos) para a leitura; logo, o autor não está mais sobre o domínio dos sentidos que poderão ser produzidos pelos leitores; o texto não mais “pertence” ao autor-escritor. Quando o texto, então escrito, é trazido a lume, passa a ser um objeto de interpretação; digo melhor, um objeto social de interpretação sócio-histórica. Os leitores são sujeitos sociais interpretantes e o texto um objeto sócio-histórico interpretável.
Todo escritor experiente, quer seja renomado, quer escreva no anonimato, lida com esses dois problemas. Muitos grandes escritores o reconheceram. Vejamos o caso do filósofo Ludwig Feuerbach, em Preleções sobre a Essência da Religião. Á página 16, na sua 1a preleção, o filósofo aponta para o primeiro problema por mim mencionado, relativo ao processo de produção escrita:
“(...) existe uma enorme diferença entre a palavra oral e escrita. A oral se relaciona com um público determinado, presente, real; a escrita, porém, com um público indeterminado, ausente, que existe para o escritor somente na imaginação; a palavra tem por objeto homens, a escrita, espíritos; porque os homens para os quais escrevo existem para mim somente no espírito, na imaginação (...)”.
Frisemos bem os aspectos da escrita apontados pelo filósofo alemão:
1o) a relação entre produtor do texto e receptor se dá in absentia, ou seja, há um distanciamento espaço-temporal entre o momento da enunciação (da produção do texto) e o da recepção (onde se situa o leitor). O receptor está ausente no momento em que o escritor produz seu texto. Ele lê em outro contexto, em outro momento;
2o) O leitor ou a audiência é produto construído discursivamente no momento mesmo em que o escritor produz o texto. É o que Feuerbach exprime com o termo imaginação ou espírito. Decerto, o escritor “imagina” destinatários para o seu texto, mas imagina-os durante o processo mesmo de construção de seu discurso. Por isso podermos dizer que o leitor é produto do discurso socio-historicamente produzido. Quando escreve seu texto, ou produz o seu discurso, o escritor produz uma “imagem do leitor”, não o leitor de carne e osso, evidentemente.
O reconhecimento destes aspectos da modalidade escrita, aspectos que tocam ao evento de enunciação dessa modalidade envolve outros problemas, tais como o fato de o escritor não poder prever todas as possibilidades de sentido para o seu texto. E a isso acrescento – coisa que a experiência de escritor de qualquer um de nós o atesta – nós, quando escrevemos, sentimos que não estamos no controle dos significados produzidos por nosso discurso. Parece-nos que as palavras nos escapam, os sentidos são fugazes, se esfumaçam. E aqui cabe um esclarecimento. Nós nunca dizemos tudo que pretendemos dizer. Não nos comunicamos dizendo tudo, se assim fosse, se entulhássemos nossos enunciados de palavras, certamente o sistema linguístico tornar-se-ia pouco eficiente comunicativamente. A dinamicidade e a flexibilidade da língua dependem de que não precisemos buscar a suficiência do sentido. Tanto isso é verdade que, se uma pessoa insiste nos rodeios durante sua fala, seu discurso torna-se cansativo e nos aborrece. É que as lacunas de nossos discursos, os silêncios, aquilo que fica por ser enunciado, que se cala, são preenchidos com informações/ conhecimentos oriundos de nossos contextos sociocognitivos compartilhados. Esse contexto sociocognitivo encerra o conjunto de conhecimentos pressupostos (enciclopédico, sociointeracional, etc.) e partilhados entre os interactantes (no caso, escritor e leitor). As lacunas do discurso enunciado são supridas na base do compartilhamento, nunca total, mas parcial, dos contextos sociocognitivos dos interactantes.
Não devemos nos inquietar, contudo, uma vez que a linguagem não é transparente, os sentidos não são fechados. Não há completude de sentidos. E nós, escritores ou falantes, não estamos no controle total do que dizemos, ou melhor, dos significados que pretendemos produzir. Isso, para mim, é instigante, fascinante. Por isso, a linguagem, para muitos de nós, parece apresentar “armadilhas”. Às vezes, as palavras nos traem e surgem mal-entendidos. As interações sociais estão repletas deles. Quando usamos a língua, estamos, em todo momento, negociando significados: uns serão acolhidos; outros mais rejeitados, reelaborados, reinterpretados, criticados.
Eu, ao compor este texto, tenho um projeto de sentido e espero que o leitor o aceite. É possível que o leitor não o aceite completamente, discorde, complemente com suas ponderações, com seu discurso. Mas voltemos à minha proposta de leitura dos excertos de Pessoa.
Chama-me a atenção o fato de o poeta iniciar cada um dos parágrafos com um enunciado iniciado com “leio”. Essa reiteração confere coesão e contribui para a construção da coerência do texto. Note você, leitor, que os enunciados que se seguem em cada um dos parágrafos relacionam-se ao conteúdo do enunciado inicial com “leio”. As categorias semânticas base do primeiro parágrafo são ‘liberdade’ e ‘objetividade’. A leitura liberta o olhar egocêntrico, dando-lhe objetividade, um olhar que se lança ao exterior (ao mundo). Há leveza quando nos desprendemos desse olhar egocêntrico que só “vê” a aparência do “eu” (o eu não é real, é uma imagem de nós construída por nosso cérebro). O eu é um ilusão forjada pelo cérebro, é sentimento de si. O poeta, lendo e liberto, consegue ver claramente o mundo e, ao vê-lo com clareza, percebe que o mundo também ganha atributos humanos. O mundo se humaniza no olhar do poeta liberto. Note que isso é verdade quando percebemos a sequência de presopopeias (figura de linguagem que consiste na atribuição de sentimentos ou comportamentos humanos a coisas, objetos): “o sol que vê a todos”, “a lua que malha de sombras o chão quieto”, etc. Quero fazer ver aqui quão fascinante é a linguagem: ela nos permite construir realidade, modificar nossos modelos de mundo “consensuais”; ela nos permite recriar universos de sentidos, permite-nos experimentar o real de outras maneiras. É claro que o sol não pode ver, mas quando atribuímos um verbo como “ver” que designa uma experiência sensorial própria de seres animados a seres inanimados como o sol ou a lua, obtemos efeitos de sentido. A realidade não está mais “estática” aos olhos do autor; ao percebê-la, ela também o percebe; ao senti-la, ela também o sente, o abrange.
Eu poderia dizer, receando produzir um lugar-comum, que o ato de ler nos abre uma janela para o mundo, permitindo-nos experienciá-lo com mais objetividade, permitindo-nos vê-lo de modos variados. Ao ler, o mundo nos fala, nos revela a nós. O autor abandona seu ser disperso, portanto, desatento, espalhado, que outrora não apreendia as coisas com exatidão e clareza.
No segundo parágrafo, diz-nos o poeta que “lê como quem abdica”. É interessante ver que efeito de sentido tem a palavra “abdicar”, uma ação que associamos a autoridades régias. De fato, essa relação está clara no texto. Basta ver a ocorrência de “Rei”, “mantos régios”, “coroa”. Ao propor minha interpretação, quero fazer ver a você, leitor, como o processo de interpretação se desnuda; quero pôr a nu o próprio processo de construção do sentido que proponho. Penso – e não me equivoco (haverá de concordar comigo, espero) – que aquelas palavras, vale dizer, “Rei”, “mantos régios” e “coroa” estão relacionadas ao campo semântico de “Poder”. Elas evocam a ideia de Poder, de Governo Absoluto. Note o que escreve Pessoa:
“E, como a coroa e o manto régios nunca são tão grandes como quando o Rei que parte os deixa no chão, deponho sobre os mosaicos das antecâmeras todos os meus triunfais do tédio e do sonho, e subo a escadaria com a única nobreza de ver.”
Quando o Rei (símbolo máximo do poder monárquico) abandona sua coroa e seu traje real (que são símbolos de seu poder), que lhes confere majestade, grandiosidade, onipotência diante dos seus súditos, quando os abandona no chão (lugar baixo), não os ostentando na cabeça (coroa) e no corpo (traje), tais símbolos deixam de representar o Poder do Rei. O Rei, ao deixá-los ao chão, destitui-se de Poder. Do mesmo modo, o autor se despe de seus triunfos, êxitos, de seus sucessos, todos alimentados no tédio e no sonho. Na subida, a única nobreza (que não é mais como a de um Rei) a de “contemplar” (ver). Aqui também há o componente semântico da liberdade, da libertação captado no primeiro parágrafo e que assumi como básico.
Vamos prestar atenção, agora, no último parágrafo, que se inicia com “Leio como quem passa”. Uma leitura que não se apega, que não se prende a princípios dogmáticos. A ocorrência de palavras como “sagrado”, “ungido” nos remete ao discurso religioso. As religiões buscam dar sentido à vida; um sentido fechado, acabado, inquestionável. Mas o autor reconhece que não há propósito no mundo. E ele o contempla sem pretender ter razão, sem pretender explicá-lo definitivamente. O sentido último do mundo não lhe interessa; o autor é indiferente a ele. Por isso, dá ao mendigo um punhado (esmola) de sua tristeza extrema (desolação). Ele compartilha, como transeunte, que não se detém num lugar, do sofrimento humano com aqueles cujas vozes não são ouvidas - vozes ignoradas dos indigentes transeuntes que habitam o mundo sem propósito.
Caberia vê-lo como um Cristo desmitificado, como um Cristo impotente diante do sofrimento humano? Um Cristo que precisou exilar-se, compartilhando apenas de sua miséria com os miseráveis? Deixo aqui este caminho interpretativo em aberto. No que me baseio para sugerir essa possibilidade interpretativa? Ora, justamente a passagem “me sinto sagrado transeunte, ungido peregrino”. Cristo peregrinou e fora ungido (ou batizado por João Batista). Conta-se a lenda que, naquele momento, teria pousado sobre ele o Espírito Santo. Evidentemente, se levarmos adiante essa possibilidade interpretativa, estaríamos diante de um Cristo desconstruído, não mais o Cristo bíblico, o personagem carismático forjado nas Escrituras; mas o Cristo humano (e apenas humano) transeunte, que passa indiferente, muito embora contemple, mas só; não age em favor do bem-estar de seus semelhantes. E sua única generosidade consiste em compartilhar sua miséria. Exilar-se, é, pois, afastar-se sendo indiferente ao sofrimento do mundo.
Voltemos ao significado de leitura, então. Que imagens de leitor nos oferece Pessoa? Quero dizer, aqui, que estou simplificando um pouco as coisas, quando falo em autor ou uso o nome de Pessoa. Claro é que, como já tive a oportunidade de discutir, o autor é uma abstração e o responsável pela unidade de seu discurso, mas ele se manifesta na forma de uma função: a função de sujeito. É o sujeito que diz de um determinado lugar social. O autor é, como ensina Maingueneau (2010: 30), “[sic.] a instância de estatuto historicamente variável que responde por um texto”. Mas deixemos de lado os detalhes teóricos, embora eu os julgue relevantes para o desenvolvimento da competência de leitura dos leitores. De fato, o leitor comum atribui uma voz unívoca e absoluta ao autor; dá a ele o poder de ser senhor do que diz. E a partir dele formula perguntas tais como “o que quis dizer?”, “o que isso significa?”, quando deveria levantar outras perguntas, tais como “para que ele o diz?” e “como o diz?”. O “para que” remete ao propósito, ao objetivo, à intenção de quem enuncia; o “como” ao modo como o que se diz é dito (o enunciador adere ao que diz, se distancia, assume atitudes de dúvida, certeza, insatisfação?, etc.) O “como” diz respeito a “como o enunciador se representa (encena) no discurso", no sentido mesmo teatral.
Que imagens de leitor nos oferece Pessoa? Ora, em síntese, em todos os parágrafos, retém-se a ideia de um leitor que se liberta, através da atividade de leitura. E essa liberdade experienciada, uma liberdade do ego, do olhar centrado em si mesmo, o faz olhar o mundo, o faz ouvir falar o mundo. Tanto a abdicação quanto o comportamento de transeunte envolvem um movimento de liberdade, ou de libertação. Não o prende, depois que ele lê. A leitura o faz compreender o mundo, compreender também as coisas sobre as quais ele não tem poder. A miséria é um fato reconhecido e compartilhado. O leitor, cidadão do mundo, é um leitor que se exila. Este exílio é também um refúgio. Pode a indiferença ser nosso refúgio? Digo, refúgio como estratagema para evitar a “desolação”?
Note você, leitor, como a leitura demanda sempre um trabalho intertextual. Um texto remete a outros textos. Por exemplo, agora me ocorreu que o filósofo Marcel Conche, em Análise do Amor, escrevera a respeito da busca pela felicidade. Enquanto folheava o seu livro à caça do trecho pertinente, reconhecia “coisas” que me passaram despercebidas. Li o livro há tempo; hoje, se eu retomar a leitura, ela não será a mesma, porque, desde então, acumulei mais conhecimentos, à luz dos quais produziria outros gestos interpretativos. Lamento não ter encontrado o trecho. E me custa agora continuar a procurá-lo. Conche nos fala de uma felicidade dependente de certa indiferença ao sofrimento alheio. Ele reconhece a importância da solidariedade, entenda bem! Ensina-nos que a vida é um movimento de criação de obstáculos à morte. Para ele, a morte nos abraça a todos; sentimo-nos filiados uns aos outros pelo sentimento de morte. Morreremos, é fato! Para Conche,
“A morte está onipresente em nossa época. (...) A moral se inscreve nas estratégias de sobrevivência. (...) A obrigação moral significa que a morte diz respeito a todos nós, que é necessário enfrentá-la juntos, porque estamos vivos juntos. O egoísmo é uma insensatez porque cada um só tem sentido por via dos outros”.
(p. 47)
Para validar sua posição, com base em Heidegger, lembra Conche que o ser do homem é um ser-com os outros, um ser de relação com (os outros). Não me aprofundarei no conceito de “outros”, segundo Heidegger.
O que Conche, ao cabo, nos ensinará é que a felicidade (que ele distinguirá entre superficial e profunda) depende de que não nos afundemos nos problemas alheios. Se acumulamos as preocupações, os problemas dos outros, tomando-os como nossos também, o resultado será catastrófico e a felicidade impossível. Quiçá, me pareça válida a lição de Epíteto, para quem só podemos mudar nossas opiniões sobre as coisas, nossos sentimentos em relação a elas. Se uma dada ordem de coisas, após tê-lo avaliada, não puder ser alterada pelas nossas ações, se não dispomos de meios para tanto, se não nos cabe agir sobre ela, então não devemos buscar culpados e nos apoquentar. A felicidade depende de serenidade, prudência, capacidade de auto-exame e ponderação sobre as circunstâncias que nos parecem adversas. Nossas formas de ver as coisas, nossas opiniões sobre as situações do mundo, estas sim, segundo Epíteto, podem ser alteradas. Para Epíteto, só há felicidade se nossas formas de se relacionar com o mundo forem orientadas pela serenidade, pela calma e firmeza.
Fui longe demais, reconheço, e meus passos espirituais poderiam ser ainda mais largos, não duvide disso você que me lê. Não quero cansá-lo mais do que já o cansei.
Quero, apenas, compartilhar com você a minha satisfação ao compor este texto, ao chegar a esta altura com a débil segurança (mesmo que isso lhe pareça antitético) de que logrei sucesso. A bem da verdade não era esse meu projeto. Eu pretendia escrever sobre a neurose e sobre as noções de normalidade e anormalidade, que me foram sendo esclarecidas, à medida que lia um livro interessante, intitulado de O que é neurose? Encontrei aí passagens férteis para reflexões, instigantes mesmo. Veja, a título de exemplo, o seguinte passo:
“As pessoas são únicas, expressões singulares da natureza, e de uma complexidade psíquica profunda, sendo nossa ignorância quanto a elas muito grande.
Muitas vezes são os homens retos e puros, espontâneos e autênticos, corajosos, criativos e rebeldes que são considerados “anormais” por uma sociedade que, no fundo, teme as mudanças que eles possam provocar”.
A psicanálise põe em derrocada todas as nossas pretensões à normalidade, anunciando que todos somos neuróticos em alguma medida. Todos lançamos mão de certo número de mecanismos de defesa, em face das frustrações e situações que nos ferem, nos injuriam. Os neuróticos adoecidos abusam de tais mecanismos e temem mudanças. Neles, as experiências dolorosas, mal vividas e compreendidas não são verbalizadas; ficam acumuladas em silêncio. Também os neuróticos tendem a agarrar-se às suas convicções, assumem-se como donos da verdade, não admitindo serem contrariados. Não conseguem conviver com a diversidade (de opiniões, de visões de mundo, crenças, comportamentos, hábitos). Tudo isso me levaria á concepção de Freud de religião como uma “neurose coletiva”. Ah! Mas aí, certamente, eu iria muito longe... Falta-me pavimentação nos caminhos que se me encurtam, agora, ao espírito.