quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

"Nós matamos o Deus, mas não matamos nossa angústia" (BAR)

                                     

                                 Até onde pode ir o ateísmo

O dogmatismo, em filosofia, consiste numa atitude rígida em face da possibilidade de a razão humana alcançar certezas e verdades absolutas. Ser dogmático é admitir que podemos estar sempre seguros da verdade de nossas crenças. Se eu digo “tenho certeza de que Deus existe”, estou sendo dogmático. O dogmático não se preocupa em fazer a crítica, em avaliar,  em repensar suas posições.
Nós, ateus, temos de ter cuidado para não manifestarmos posições dogmáticas. Como bem pondera Marcelo Gleiser, em Criação Imperfeita (2010), ao mencionar o ateísmo ativista de personalidades como Richard Dawkins, Sam Harris, o filósofo Daniel Denett e o saudoso jornalista Christopher Hitchens:

“O grupo prega um ateísmo radical, usando uma retórica extremamente agressiva, tão inflamada e intolerante quanto a do fundamentalismo religioso que se propõe a combater”.

(p. 40)

Este texto se propõe repensar a postura intelectual ateísta. Sabe-se que o ateísmo, enquanto discurso, é entretecido pelos fios da razão e lógica científicas. Trata-se de um discurso calcado sobre os discursos das ciências (física, biologia, antropologia, sociologia, psicologia...). A sua retórica é a de exaltação à racionalidade científica, aos avanços da biologia, da física, bem como o da incorporação das explicações sociológicas, antropológicas e psicológicas (também neurocientistas) numa tentativa de fazer ver a natureza humana das religiões. O ateísmo não só nos convoca a colocar os pés no chão, mas também a enterrar as nossas almas com nossos corpos. Gleiser é, aliás, incisivo ao nos alertar para a proposta ateísta:

“O que o ateísmo oferece – mesmo com todo o seu apelo à razão e à lógica da ciência – não vai funcionar. Ao menos não como costuma ser apresentado, sem qualquer vestígio de espiritualidade”.
(pp. 41-42)

A espiritualidade que alguns ateístas dizem ser possível experimentar é, evidentemente, de outra ordem. Mas demonstrar essa possibilidade é complicado. Vale dizer que espiritualidade não está necessariamente ligada à religião. Aliás, independe dela. Escusando-se essa questão, vou-me ater ao que me interessa fazer ver aqui.
Gleiser criticará a tendência de os “quatro cavaleiros do apocalipse”, como ficaram conhecidas aquelas personalidades, ridicularizar as pessoas que professam a crença em Deus. E nos mostrará que o ateísmo não satisfará as indagações mais profundas e comuns a todos nós, quer as anunciemos, quer não:

“A verdade é que provas empíricas não têm nada a ver com o poder da fé. Quanto mais misterioso o credo, mais ardente a crença. A grande maioria das pessoas acredita no sobrenatural por não aceitar que a morte possa ser o fim definitivo da vida. Não queremos ser esquecidos, reverter ao nada, perder nossos entes queridos. Quantas pessoas já não passaram por este mundo, ricas e pobres, reis e escravos, famosas e desconhecidas, belas e feias, pessoas que amaram e foram amadas, que sentiram alegria e dor, e que agora são apenas um punhado de pó? “Será que é só isso?” Será que vivemos, amamos e sofremos para sermos esquecidos após algumas gerações? Se temos apenas alguns anos de vida, nem sempre felizes, para que batalhar tanto? Qual o sentido da vida, se no final a morte e o esquecimento são inevitáveis?”

(p. 41)

A ciência não pode responder a essas indagações. Ela não pode satisfazer o sentimento, o desejo grandioso que jorra de corações aflitos, o desejo de que seja possível a inesgotabilidade da vida, de que o sofrimento que experimentamos neste mundo seja justificado ou compensado. Muitas experiências de mundo nos estarrecem! Há milhares de pessoas que nascem com alguma anomalia; problemas congênitos, retardamento mental, desenvolvem câncer, ficam paraplégicas, tetraplégicas, nascem cegas. Uns nascem em um meio familiar repleto de cuidados, amor e riqueza; outros, desamparados; outros ainda em regiões marcadas pela miséria, por sofrimentos inimagináveis. São coisas que acontecem, disse-me uma amiga atéia. Verdade, ou uma triste verdade – o vizinho ao lado não teve a mesma sorte! Mas não podemos ser indiferentes! Também não podemos viver os problemas dos outros, é claro; mas devemos ter em conta que somos filhos de uma mesma angústia: o medo (ou, se preferirem alguns, a lamentação, a desilusão...) , ainda que tácito, de que todos os nossos esforços, tudo pelo que lutamos, os amores por que choramos e que nos fizeram felizes, as pessoas que amamos e que nos amaram, as alegrias que experimentamos e as tristezas que tentamos em vão sufocar ou em que nos inundamos; todo o vivido, sentido, experimentado, retorne ao nada, ao pó.
Não defendo um retorno à crença no sobrenatural, tampouco dou à fé um valor merecido em face da consciência de que nem o ateísmo nem a ciência nos acalentarão, nos ampararão. O que me esforço por fazer ver é a necessidade de repensar o projeto ateísta. Diante da Vida, basta-nos a contemplação e a oportunidade que temos de pensá-la, de buscar compreendê-la. Não à resignação e à passividade; e sim à ação pelo intelecto e pelo coração!
No entanto, ecoará surdo o apelo de Richard Dawkins a que aproveitemos a Vida, a grandiosidade e os mistérios da Natureza, quando muitos dentre nós não podemos, por condições por que não fomos responsáveis, aproveitá-los. Que diremos às crianças que chegaram à vida sem poder compreendê-la, por uma deficiência neurológica? Que diremos de tantos que vivem em condições sociais e culturais desfavoráveis e que, portanto, não tiveram oportunidades de, freqüentando curso superior, experimentar o contentamento, a alegria das mais diversas formas de saber? Estes foram privados da beleza do conhecimento científico, do prestígio da cultura letrada... Eles nasceram naquelas condições e, por fatores sócio-culturais e econômicos que os excedem, viveram uma vida de privações.
Nem a ciência, nem a razão, nem Deus no centro. Apenas o Universo e a consciência de seu grandioso mistério. O ateus devem contentar-se com o Mistério. Os religiosos também. Reconhecer o absurdo constitutivo de nossa existência é o primeiro passo para conseguirmos lidar com ele.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

"A vida intelectual pede uma dose de solidão" (João Batista Libânio)

                           


                                     Para uma vida intelectual

Este texto tinha de ser escrito ontem, no instante em que experienciei aquela satisfação que me abarrotou a alma. Não era bem uma satisfação; era um regozijo. Um regozijo desencadeado pela leitura de um capítulo do livro Introdução à vida intelectual (2006), de João Batista Libano, um teólogo que, mesmo citando uma ou outra passagem bíblica em que se ensina sobre o valor do estudo e do conhecimento, preocupou-se em escrever seu livro com o propósito de iniciar seu leitor nas lides intelectuais. É preciso aprender a pensar e o autor se propõe ensinar-nos a trilhar os caminhos da atividade intelectual.
Não intento discorrer sobre o capítulo em cuja leitura me detive, mas quero citar algumas passagens em cujas linhas depreendem-se ideias que me interessarão para efeito de desenvolvimento deste texto. São ideias basilares.
No primeiro capítulo, Libano tratará da vocação intelectual, que será contraposta à profissão. Segue-se, na íntegra, o excerto em que Libano nos diz da vocação intelectual:

A vocação intelectual envolve o homem todo. Pede-lhe atitudes básicas. Muitas são comuns a toda vocação, mas adquirem uma feição própria no mister intelectual. Cultivá-las ao longo da vida torna-se a garantia de sua autenticidade. Preferimos trabalhar um número restrito de atitudes, que julgamos mais importantes. Veio-nos em socorro o provérbio latino: Non multa, sed multum – não a quantidade, mas a qualidade. (...) Passeamos pelo mundo da gratuidade, da realização humana profunda. Pretendemos superar o espaço da produtividade, da pura necessidade. Inserimo-nos na tradição que chama de humanidades um tipo de saber, uma qualidade de pensar que parte da experiência primigênia da admiração. Buscamos responder ao chamado interior que habita todo ser”

(p. 23)
(grifo meu)

O autor contrapõe o universo do trabalho, que se prende às esferas da produtividade e às necessidades básicas do ser humano, ao universo do cultivo intelectual, cuja recompensa consiste na “realização profunda” do homem. O exercício do pensamento reflexivo, ou seja, do pensamento que se volta sobre o já pensado, depende da atitude de admiração, gérmen da filosofia. A atividade intelectual é a forma de que os homens se valem para tornar o real um dado de sua consciência, ou seja, uma forma de conhecimento. Não basta viver numa relação imediata com o real, é preciso se distanciar para apreendê-lo. Pensar o real é descobrir-lhe o significado mais profundo.
Segundo Libano,

“Uma vida intelectual seria pobre se se restringisse unicamente a um saber preocupado com a utilidade imediata, com a análise dos objetos. Ela pergunta pelo significado da realidade. (...) A vocação intelectual pretende superar o mundo do dia de trabalho, marcado pela utilidade, oportunismo, produtividade, exercício de uma função. Este confina-se ao campo das necessidades, do produto, da fome, do modo de saciá-la. É dominado pelo objeto: comida, vestuário, habitação, estudos, trabalho; e finalmente gira em torno da atividade útil, utilidade comum. Tudo isso é parte essencial do bem comum. A atividade intelectual, sem negar nada disso, aponta para um bem comum mas amplo que a utilidade, antes à ligado à inútil vida da contemplação, da arte gratuita”.
(p. 30)

Importa ver que, nas sociedades modernas de hoje, marcadas pela técnica, pelo utilitarismo e pelo consumo de massa, não nos surpreendemos com a crença generalizada de que uma vida dedicada ao exercício da reflexão, ao cultivo do intelecto, ao desenvolvimento do senso crítico, etapas indispensáveis a todo processo de tornar-se intelectual, seja uma vida enfadonha. E não nos surpreendemos com a crença em que toda forma de conhecimento tem de ter uma utilidade prática. Como Libano nos ensina, à atividade intelectual basta a contemplação, a gratuidade.
Uma vez defendendo a ideia de que a vocação intelectual não se alimenta de algum propósito voltado para a aplicação, Libano lembra-nos as exigências dessa vocação. É preciso enfrentar um desafio: fazer ver aos indivíduos (estudantes, principalmente) que há prazer no exercício do pensamento; que há prazer em cultivar o intelecto; que há prazer na concentração, no convívio com os livros e na solidão indispensável a essas práticas.

“Há palavras que os ouvidos da pós-modernidade detestam: austeridade, renúncia, sacrifício. Pelo contrário, vive-se embalado pela palavra maior: prazer. O desafio da vida intelectual é saber mostrar que há um prazer que está no fim e não no início. É o prazer intelectual. Implica, porém, um caminho de disciplina, de responsabilidade, de horas e horas de estudo, de tenacidade, de vigílias, de trabalho, de aplicação. (...)
A vida intelectual pede uma dose de solidão, que não significa nem isolamento nem alienação, mas concentração, convívio com o mistério.  (...) A solidão é lugar de descanso, de repouso, de economia de energias, de tal modo que a atividade intelectual se torna mais operosa, intensa, profunda. Solidão casa-se com silêncio, recolhimento. A natureza recolhe suas energias à noite para no dia seguinte despertar radiosa pela manhã. A noite é propícia à solidão. No entanto, hoje torna-se cada vez mais difícil cultivá-la, já que o barulho do som e das imagens, das emoções  e paixões, entra pelos programas e filmes de TV, vídeo e Internet. (...) Só o amor à solidão permite que a inteligência depois se embriague no vinho da verdade e da beleza!

(p. 32)
(grifos no original)

Aprendemos, na Análise do Discurso, que, sendo a construção do sentido resultado de processos sócio-históricos, as palavras mudam de sentido conforme a formação discursiva em que apareçam. É interessante ver que a palavra solidão aparece no discurso de Libano designando uma experiência positiva, apreciável, desejável, muito diferente do modo como ela aparece no discurso, por exemplo, de nossos jovens adolescentes e das pessoas que, como aqueles, vivem voltadas para o exterior. Diga-se de passagem, que é uma tendência de nossa pós-modernidade o existir que busca continuamente se exteriorizar, negligenciado a interiorização, o autoconhecimento, o recolhimento. As pessoas vivem envolvidas pelos ruídos diversos provindos do exterior, buscam êxtases, prazeres fugazes nos lugares de agitações e movimentos incessantes e se sentem, em geral, entediadas sempre que precisam concentrar seus espíritos em atividades que demandam solidão. Para elas, isso é um sacrifício.
Há, pois, dois desafios para a vocação intelectual: reconhecer a relação entre dedicação ao cultivo do intelecto e prazer, de um lado; e, de outro, fazer ver a solidão como uma experiência necessária àquela atividade, mas também apaziguante. A solidão apazigua e a serenidade então alcançada é indispensável ao exercício do pensamento reflexivo.
Enquanto me ocupava com a leitura do referido livro, meus familiares estavam todos assistindo ao programa Big Brother Brasil; e, não para a minha surpresa, despertou-lhes a atenção o caso de um estupro de que teria sido vítima uma das participantes. A curiosidade, comum a todo ser humano, levou um deles ao computador, a fim de rever a cena em que, num quarto escuro e debaixo de lençóis, se podia ver a atividade sexual (que, em sendo um estupro, não fora consentida por um dos parceiros). Evidentemente, mantive-me envolvido em minha leitura, pois minha curiosidade está ligada a descobertas mais elevadas (ver alguém fazendo sexo ou insinuando a atividade sexual na televisão não me interessa nem um pouco). Mas isso interessa a muitas pessoas. E o programa Big Brother Brasil é um prato cheio para o empobrecimento intelectual. A sexualidade, de fato, me interessa, mas como um fenômeno humano. Leio sobre a história da sexualidade, que foi traçada pelo predomínio do masculino e submissão do feminino. Mas a mim não interessa o sexo gratuito banqueteado na televisão, tampouco a exposição de bundas avantajadas das mulheres fruta, como há em programas como Pânico na Tv.
Pessoas que, como eu, se dedicam tenazmente à prática intelectual; pessoas que, como eu, vivem segundo um imperativo mais elevado, a saber, a busca pelo conhecimento edificante, se incomodam com a influência nociva da televisão na vida do homem pós-moderno. Pessoas assim buscarão conhecer como se dá essa influência e quais suas consequências sociais, culturais, históricas.
É provável que a grande maioria de pessoas não vejam como negativo dedicar um espaço de tempo diário para assistir ao Big Brother. Para essas pessoas, trata-se de uma atividade de entretenimento. Elas buscam diversão, distrair-se. Há algum problema nisso? Afinal, o lazer não é indispensável na vida do homem comum? Certamente, não vivemos só para trabalhar (supondo-se, com o senso-comum, que quase toda forma de trabalho é penosa e enfadonha). O divertimento, para ser bem avaliado em termos de seu proveito, deve ser relacionado ao domínio da lógica da produção numa sociedade capitalista. Franco, em A televisão segundo Adorno: o planejamento industrial do “espírito objetivo”, artigo que consta do livro A Indústria Cultural hoje (2008), traz luzes  não só sobre o lugar da televisão hoje, mas também sobre sua relação com o entretenimento. Leiamos com atenção:

“A configuração do alcance e da natureza social da televisão adquire, dessa maneira, contornos nítidos. Ela se insere no universo da diversão e, nessa medida, parece se oferecer ao espectador com a promessa de que irá arrancá-lo do sofrimento imposto diariamente pelas exigências do processo de trabalho, quer sejam físicas ou psicofísicas. Essa oferta ilusória, segundo o autor, além de reforçar a tendência antiintelectualista da sociedade, de fato ludibria as expectativas de quem busca a diversão, já que objetivamente a televisão oferece o repouso físico e psíquico necessário para a recuperação da força de trabalho. A diversão, sustenta Adorno, implica resignação”.
(p. 113)

Aqui está a ideia-chave: a diversão implica resignação. Essa ideia abre uma porta, pois que nos permite pensar a diversão como uma etapa necessária ao melhor aproveitamento do indivíduo no processo de trabalho. A diversão, nesse sentido, é uma aliada do capitalista. A televisão, ao prometer diversão, é o espaço institucional que realimenta a vida psicofísica do trabalhador, permitindo-lhe que esteja no dia seguinte revigorado para o exercício de seu trabalho alienante. A força de trabalho, uma vez consumida num dia, é renovada diante da televisão, para ser novamente empregada no dia seguinte. Eis a lógica da produção, a que me referi.
Ainda segundo Franco, na mesma página

“Talvez fosse possível fazer uma ponderação a respeito desse raciocínio: tanto o processo de trabalho mecânico nas linhas de produção fordista quanto à diversão – extensão do tempo de produção – não requerem a atividade do pensamento. Ambos podem ser considerados modos interligados da moderna destruição da experiência. A televisão, nessa perspectiva, antes de reprimir a atividade do pensamento, simplesmente não o exige. De qualquer forma, Adorno extrai da tese acima consequência bastante esclarecedora: trabalho e diversão se articulam em processo extremamente dinâmico, o qual poderia ser denominado dialético.”

(grifo meu)

Vale notar que o processo dialético a que se referia Adorno diz respeito ao fato de a diversão preparar o indivíduo para a adaptação ao trabalho. É claro que essa adaptação nunca é total, tende a flutuar, sempre há espaço para o exercício da liberdade, da criatividade e da resistência; mas também cabe notar que a televisão, atenta a essa flutuação, buscará recursos para reforçar o condicionamento.
Se, no longo processo de nossa evolução enquanto espécie, a seleção natural legou-nos genes que nos dispuseram para adaptação eficiente às condições de existência e se disso pudermos concluir pela nossa suscetibilidade ao conformismo, à resignação, parece possível dizer que devemos a ela também um cérebro que, mesmo sob a influência de dispositivos de adaptação, pode, pelas práticas de aprendizagem, conseguir superá-los, ir além e resistir.
Um caminho sólido que deve ser trilhado na tentativa de escapar ao conformismo ou à resignação provocada e reforçada pelas promessas da televisão é, segundo Adorno, alcançar uma formação cultural mais ampla, pelo estudo da filosofia. Disso não se segue que devemos ser todos filósofos profissionais e saber de cor as filosofias dos mais diversos pensadores; significa dizer que devemos estimular o espírito de contemplação, de admiração latente em nós. A formação cultural a que se refere Adorno depende do desenvolvimento da consciência crítica, da capacidade de nos distanciar das vivências, da realidade mesma para olhá-la de fora. Depende ainda de uma incursão mais profunda na cultura letrada. Essa incursão nos leva ao convívio aturado com livros que nos edifiquem intelectualmente, que nos inquietem, nos estimulem, nos tragam mais do que respostas, tragam-nos inúmeras questões para reflexão continuada.
O tempo que se consome assistindo a programas como Big Brother, que não oferecem senão baixarias, vulgaridade, patuscadas, submissão de pessoas a situações de esgotamento, em troca de um prêmio milionário (num claro reforço da ideologia que entende a felicidade como consequência necessária do acúmulo de dinheiro e riqueza, e da conquista da fama, mesmo que efêmera, como tudo na (hiper)modernidade do eterno presente), poderia ser empregado em práticas que demandem alguma ginástica intelectual;  ler, por exemplo.
Libânio, no livro aqui citado, pergunta-nos sobre quanto tempo dedicamos à televisão ou à internet, e também sobre nossos hábitos de leitura. Ele nos pergunta ainda sobre nosso interesse por conversas sobre temas culturais; pergunta-nos se estamos atentos a lançamentos de livros que despertem nosso interesse. Disso tudo depende o grau de nossa vocação intelectual.
Embora me agrade ficar na internet e aprecie certos programas de humor na televisão (Chaves está entre eles), a leitura é uma atividade que preenche maior parte de tempo em minha vida cotidiana. O exercício intelectual é, para mim, uma necessidade e, ao mesmo tempo, uma forma de eu experienciar um prazer perene e profundo.
Uma vida dedicada ao exercício intelectual não dispensa formas de atividade que visam a entreter; não impede que saiamos com os amigos, que gozemos das festas, das conversas também sobre temas triviais; mas esta vida confere aquele exercício um lugar de maior destaque e importância; a ele está associada a felicidade de homens que não se contentam apenas em viver na realidade, mas precisam entendê-la.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

"Poemas são voos graciosos da alma" (BAR)



Este que escreve

Este que escreve
Nem sempre bem compreendido
(in)compreendido às vezes
Esquece
Pondo-se a escrever sofregamente

Este que escreve
Quase sempre esquece
Os amores quebradiços
Mesmo em face do desalento
Amando mais permanece

Este que escreve
Deseja mais
E mais
Quer amar mesmo tão triste
Não esmorece


Este que escreve
Lê mais
De alma se entrega
Nas páginas em que versos
Sonhados
Jamais acordados
Padecem
De amor.

(BAR)

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

"A educação exige os maiores cuidados, porque influi sobre toda a vida". (Sêneca)


                                            Educação em foco
                           Considerações sobre ser professor

Costumo dizer que sou um apaixonado do exercício do magistério; sou um professor comprometido com uma Educação libertária. E sorri-me a crença em que, talvez, tenha eu nascido para a prática pedagógica. Se é verdade que certas aptidões e talentos possam já estar previstos em nossa constituição genética, é muito provável que a minha aptidão para o magistério estivesse em mim latente. É o que sinto, sinceramente, e o confesso aqui.
O que me estimula a escrever este texto é mais do que a necessidade de dar um testemunho de minha paixão pelo magistério, é também a vontade de trazer à consciência de meus leitores a inegável importância da Educação na construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Sou romântico, sim, também neste domínio. Claro é, porém, que evito deslumbrar-me com idealizações, com utopias. E experimento frustrações, frequentemente. Não escapamos a elas, como professores, sempre que nos comprometemos a ir além; sempre que não nos conformamos às condições educacionais muito pouco favoráveis a um ensino crítico e libertário. Só não se frustram aqueles que nada desejam, que nada pretendem, além de receber, ao final do mês, seu ganha-pão.
A Educação é lugar de conflitos; é o espaço onde as desigualdades sociais, as diferenças de classe, as ideologias, as crenças e visões de mundo diversas repercutem. Mas é também o espaço onde tudo isso deve ser trabalhado; digo, discutido e questionado. A Educação é (ou deve ser), numa sociedade democrática, um espaço de resistência. Formar para a resistência, desenvolver a consciência crítica, promover a reflexão, o questionamento – são todas atividades que competem aos profissionais da Educação.
A que resistência me refiro? Resistência ao status quo, resistência ao senso-comum, aos lugares-comuns, às ideologias prestigiosas e que, supostamente, prescrevem “verdades”, aos preconceitos de toda sorte (inclusive ao preconceito linguístico, completamente ignorado, quer pelos membros das classes dominadas, quer pelos membros das classes dominantes, quer também por grande parte de nossas autoridades políticas).
Enquanto me ocupava da leitura do livro Nada na língua é por Acaso – por uma pedagogia da variação linguística (2007), do renomado (socio)linguista Marcos Bagno – um livro que, por sinal, muito bem escrito e de fácil compreensão – chamou-me a atenção o seguinte trecho, que é a expressão de uma das etapas que, segundo o autor, configuram o trabalho de reeducação sociolinguística que cabe ao professor de português desenvolver na escola (e eu acrescentaria também na universidade):

“Conscientizar o alunado de que a língua é usada como elemento de promoção social e também de repressão e discriminação – comparar o preconceito linguístico com as outras formas de preconceito que vigoram na sociedade; desconstruir o preconceito linguístico com argumentos bem fundados e alertar alunos e alunas contra suas próprias práticas de discriminação por meio da linguagem”
(p. 84)
(grifo no original)

Em seus livros (que prezam sempre pela clareza e pela fundamentação teórica, sem deixarem de ser didáticos e acessíveis à leitura), Bagno insiste incansavelmente na necessidade de combate ao preconceito linguístico, ignorado em nossa sociedade. Ele existe! Mas passa ao largo dos debates sobre temas sociais e políticos na mídia e escapa à consciência da grande maioria dos indivíduos de nossa sociedade. É claro que isso não é um fato específico da sociedade brasileira; o preconceito em relação aos usos da língua é comum  senão a todas, certamente à maioria das sociedades civilizadas.
E como esse preconceito se manifesta? Se manifesta nas ocasiões em que discriminamos a fala dos outros, a censuramos, a ridicularizamos, a rotulamos de “errada”, de “estropiada”, etc.. E mais – e isso sequer é percebido: a discriminação do modo de falar do outro é também discriminação do próprio indivíduo. Ora, quando usamos a língua trazemos à tona também nossa origem sócio-cultural, ou seja, à classe social a que pertencemos, nosso grau de escolarização e de participação na cultura letrada. O que falamos revela muito sobre de onde viemos, onde fomos educados, sobre nossos valores, nossa identidade; em suma, sobre quem somos. Disso se segue que, ao censurar uma forma como probrema (que, aliás, é muito estigmatizada; talvez, o leitor tenha-se rido ao lê-la) produzida por uma empregada doméstica, estamos demarcando-lhe as fronteiras sócio-culturais que dela nos separam. Estamos dizendo, tacitamente: “vejo logo que você vem de uma classe social menos favorecida à qual eu não pertenço (e rejeito)”. Os usos da língua, é preciso dizer, revelam a estratificação social. Numa sociedade como a brasileira, fortemente estratificada, usar a língua é, muitas vezes, uma forma de reforçar essa estratificação social. E fazemos isso frequentemente, sem que, muitas vezes, percebamos.
Não vou, contudo, me alongar neste assunto. Volto ao que me interessa propriamente aqui: a Educação. Evidentemente, falar em Educação é falar de um espaço de múltiplos discursos, portanto, de um espaço onde as práticas institucionais (e não poderia ser diferente) são práticas de linguagem. Discursos são arenas de conflitos; é o lugar privilegiado da ideologia. São práticas sociais ou modos de ação social e formas de representação; nesse tocante, devemos entendê-los tanto como espaços sociointeracionais moldados pelas estruturais sociais, quanto espaços constitutivos dessas estruturas. Assim também o discurso serve para a reprodução e  para a mudança dessas estruturas.
A Educação não é imune aos jogos de poder fundamentados nos discursos e por eles viabilizados ; ela não está salva das ideologias dominantes, das desigualdades de classe, realidades estas que repercutem em seus espaços institucionais (veja-se a escola). E o professor, como agente social, pedagógico e político, precisa atuar no sentido de mediar a relação entre as diferentes formas de representação social e de conhecimento. Ele não escapa ao senso-comum, evidentemente; mas não pode limitar-se a reproduzi-lo, deve ultrapassá-lo, deve estimular seus alunos a questioná-lo. Daí sempre a necessidade do debate, da leitura reflexiva, orientada, mas também das releituras (que não consistem em ler de novo, mais em ler sob outras perspectivas, à luz de novos conhecimentos alcançados). Questionar as leituras institucionalizadas, consagradas por uma tradição intelectual elitizada; afinal, os textos ( incluindo as obras literárias) são abertos a muitas interpretações (não a todas, certamente, mas a muitas) – constitui tarefa de todo professor (não só do de português e Literatura).
Uma Educação para a resistência começa num trabalho orientado pelo princípio de que a linguagem é um instrumento não só de expressão, mas também de reprodução e consolidação do poder. Não obstante, é também um espaço em que os poderes podem e devem ser questionados.
Não só fala quem manda; mas também fala quem ousa resistir e questionar! E você, ousa falar?


quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

"Um debate é uma troca de conhecimentos. Uma discussão é uma troca de ignorâncias". (Robert Quillen)

                     




                                               Incomodações
                              Para a necessidade de um debate equilibrado
                                                      entre religiosos e ateus  
                                                      

Perdoem-me se os primeiros enunciados deste texto destilarão doses ácidas de altivez; se com eles pretendo eu olhar de meu mirante espiritual as rasas pegadas deixadas pelo espírito de pessoas que trafegam virtualmente nas redes de relacionamentos on-line, como Orkut e Twitter, e que são incapazes de sustentar um debate circunscrito às exigências da razão, desferindo mutuamente uma série de acusações, ofensas e despautérios. Perdoem-me, pois que aqueles que me acompanham há muito e me conhecem sabem que não sou presunçoso. E, por mais desinteressantes sejam, para mim, muitas das comunidades nos espaços de relacionamentos virtuais, participo de algumas delas (decerto, das que me atraem pela temática que propõem). No entanto, apesar de parecerem-me, a princípio, interessantes, não deixam de me frustrar pela quantidade de postagens repletas de lugares-comuns, visões rasas e pouco fundamentadas e, principalmente, repletas de ataques pessoais.      
Em outro texto, tratei da falta de reconhecimento de uma ética discursiva, que deve reger debates que se propõem ao tratamento de questões de alguma relevância social, política e cultural. Alguns participantes, simplesmente, ignoram-na. Receio que esteja eu sendo demasiado acurado no modo como desenvolvo aqui meus pensamentos; dou passos lentos como quem deseja atacar de surpresa. Busco certa discrição verbal na consideração dessa empobrecida realidade intelectual dos ciberespaços. Uma amiga querida minha, contudo, abandonou finezas, ao dizer-me, com razão, que a maioria dos que se envolvem naqueles debates são muito ignorantes. Talvez, nem sejam tanto, mas são, em alguma medida, “despreocupados”.
Tenho, pois, participado (na verdade, voltei a participar) de comunidades ateístas no Orkut e no Facebook. Neste, as comunidades me agradam mais. Não percebi, entre os participantes, ataques pessoais, ainda que, vez por outra, se topem mais comentários de indignação ou de defesa da causa ateísta do que comentários que abram caminhos para alguma reflexão válida. Sucede diferente nas comunidades ateístas das quais participo  no orkut (pelo menos a minha foto está entre as dos participantes, já que, a rigor, dou pouca contribuição). Nelas, observa-se um festival de acusações (especialmente, na comunidade Debates de Religião x Ateísmo, cuja denominação já nos permite entrever as condições favoráveis ao teor relativamente agressivo dos discursos). Excogitei de apresentar alguns trechos aqui, mas conclui que me demandaria muito tempo. Fica o convite para quem quiser atestar por si mesmo.
É bom ponderar que nem todos os comentários têm aquele teor; alguns incluem alusões filosóficas, trazem à cena algumas sombras de perspectivas teóricas interessantes. Mas outros tantos passam ao largo do tema proposto; outros, ainda, chegam a tangenciá-lo, mas tão logo dele se afastam. Veja-se um exemplo disso:

 A diz: ou guris de 14 anos, que estão começando a carreira de ateus de modinha.

B diz: ateu de modinha,senhora,saiba que vivo numa comunidade catolica muito conservadora,e que sofro muito preconceito.Seguir uma modinha não seria sensato na minha posição.

O tema do fórum é expresso com a denominação criativa “Religião=ignorância?.  Mas notem que A foge ao tema, ao sugerir que o ateísmo é uma moda crescente na sociedade pós-moderna. E B imediatamente replica, se defendendo. Parece que, agora, estamos diante de um outro tema “ateísmo é modismo?”. Não raro, dentro do macro-debate, estimulado pelo tópico principal, há outros debates que se particularizam em torno de temas com os quais se comprometem dois ou mais enunciadores. Em geral, observa-se não haver uma continuidade de raciocínios, talvez porque os participantes não se dêem ao trabalho de ler as contribuições uns dos outros, a menos que tenham interesse em completá-las ou refutá-las.
Note-se abaixo um claro exemplo de agressão verbal, que não serve senão para infertilizar qualquer debate:


A diz: mesmo teístas terem feito mais pela ciencia,apenas os ateus compreendem a existencia claramente."
Ta explicado. Que merda cara, no meu tempo, nós só falavamos sobre "ateismo", na universidade e mesmo assim, eram discussões tratando de filosofia. Não tinha nenhum poser idiota metido a etendido de ciência, pagando de "sagaz" no círculo... só marxistas... (Hahaha).


B: vi que voce é o que chamamos de "porca capitalista" (quem critica o marxismo por influencia do capitalismo selvagem)
poser idiota é voce que vem aqui só pra me xingar


As partes em negrito foram por mim grifadas com o objetivo, evidentemente, de salientar a incapacidade de os participantes levarem adiante um debate equilibrado e apenas alimentado por argumentos válidos, ou seja, orientado para a manifestação de posicionamentos claros e coerentes e não impregnados de sentimento agressivo. Salvo este caso particular, em que um dos enunciadores é uma jovem adolescente, não me surpreenderia se, em casos análogos, os enunciadores, equiparando-se em gênero e idade, pudessem, estando face-a-face, desferir, um no outro, pontapés e socos. Vale lembrar a lição de Freud sobre a grande dose de agressividade que carrega a natureza humana. E, quando a causa está impregnada de um sentido visceral, como, por exemplo, a de religiosos que se esforçam por defender suas crenças e a de ateus não menos dedicados a defender seus argumentos contrários, dá para se ter uma noção da suscetibilidade humana à agressão.
Tenho insistindo em dizer que religião se discute sim e que o desejável, numa sociedade que se acredita democrática, é favorecer oportunidades de discussão séria neste terreno. Não obstante, não posso aceitar o fato de encontrarmos aqui e ali uma forte disposição para ataques pessoais de ambas as partes – teístas e ateus. Os partidários dos dois grupos tendem a se comportar linguisticamente de modo agressivo, desferindo mutuamente ofensas e acusações.
Sou tentado a sugerir que só a ignorância de ambas as partes pode explicar isso. É possível que haja muitos que buscam em livros conhecimentos suficientes para validar seus argumentos; mas outros tantos ou não são leitores assíduos ou verdadeiramente interessados em aperfeiçoar sua argumentação, ou, se lêem, o fazem ignorando as vantagens dessa atividade, ou seja, lêem, mas se limitam a vomitar conhecimentos fragmentados ou cristalizados e a encarar o debate como uma arena em que pessoas devem duelar e afirmar-se continuamente como portadoras de verdades incontestes. 

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

"O debate acelera a inteligência" (Patrick Schneider)


                              Debatendo sem se debater

Um novo ano começou e eu ignorei as promessas e os planos. Basta-me a vida e a possibilidade de levá-la adiante. Já, há algum tempo, só me comprometo comigo mesmo, com o meu modo de me dar à vida. Esperança é palavra caduca em meu vocabulário. Esperar demais de algumas pessoas leva-nos, muitas vezes, à frustração. O conselho de Epíteto parece-me válido: a ordem das coisas, frequentemente, não pode ser mudada; mas podemos mudar nossas opiniões ou interpretações. Diante de uma circunstância adversa ou perturbadora, devemos ponderar, perguntando-nos se temos ou não influência sobre ela. São nossas visões sobre as coisas que nos inquietam ou nos perturbam. A serenidade, a mansidão e a busca por nos fazer incólumes a sofrimentos evitáveis são a meta do estoicismo. A felicidade depende do modo como nos posicionamos diante das adversidades. Segundo Epíteto, devemos buscar, nessas ocasiões, manifestar calma, serenidade e ser determinados.
A este espírito de prudência estóico quero acrescentar o espírito de ousadia nietzschiano. Á página 46, em Ecce Homo, escreve o filósofo alemão:

“A minha prática de guerra pode ser resumida em quatro proposições. Primeira: eu ataco somente as coisas vitoriosas; ou espero até tal se tornarem. Segunda: ataco somente as coisas para as quais não poderia encontrar companheiros onde estou só, onde sou o único a comprometer-me. Nunca articulei um passo que não me comprometesse; isto é (segundo o meu modo de ver), em que não me fosse dado agir corretamente. Terceira: não ataco nunca as pessoas; sirvo-me delas como duma possante lente de aumento com que se pudesse tornar visível algum mal comum mas oculto, difícil de ser pesquisado.(...) Quarta: eu ataco somente as coisas das quais se exclui qualquer antipatia pessoal, para as quais me falta todo e qualquer sedimento de esperanças tristes. Pelo contrário, atacar é, para mim, um sinal de benevolência, sendo às vezes até de reconhecimento. Para mim é uma honra proporcionar algo; uma distinção, quando uno o meu nome ao de uma coisa ou de uma pessoa: pró ou contra a mesma, tem o mesmo valor para mim. Se guerreio o Cristianismo, tenho pleno direito a isso, porque desse lado nunca me infligiram desgraças ou obstáculos; os cristãos mais convictos sempre me foram sobremodo benévolos. Eu mesmo, inimigo do Cristianismo de rigueur, estou bem longe de ter ódio aos seus prosélitos, sendo, como é, uma fatalidade de milhares de anos”.

O compromisso com a crítica à tradição e a ruptura com ela fazia parte da agenda nietzschiana. E, quase sempre, sinto-me impregnado desse espírito revolucionário, ainda que consciente de minha pequenez e impotência para modificar um dado estado-de-coisas estabelecido por um poder imediato ou secular. Não dou asas ao deslumbramento nem animo ideias utópicas; e, por vezes, fico de permeio com a renúncia e a persistência. Tendo a esta última como o filho tende ao colho da mãe e a ave tende ao ninho. Os meus pensamentos me acolhem, ainda que eles se enfraqueçam diante dos valores mais rígidos e das ideologias mais vigorosas e penetrantes, que ainda vicejam.
Se todas as produções de meu espírito, todos os escritos que trouxe a lume pudessem ser significativamente sumariados numa só palavra, eu escolheria a palavra engajamento. Engajar-se é comprometer-se; é participar ativamente de uma causa, é fazer ecoar nossa voz num dado domínio da dialética social (que inclui, evidentemente, esferas de saber e poder).
A internet, com suas redes de relacionamentos virtuais, decerto, favoreceu para que indivíduos interessados em engajar-se possam externar suas posições sobre temas de relevância social. Mas não estou admitindo que os espaços on-line destinados a debates sejam todos vantajosos e interessantes. Neles, se acha toda sorte de gente; os que mais me desagradam são os pseudointelectuais arrogantes, que ignoram a ética argumentativa, que deve prevalecer nas esferas de debates que se pretendam sérios. Dessa ignorância se segue uma sorte de sarcasmos, ofensas e baixezas linguísticas. A postura de Nietzsche, que não atacava, como nos confessa, as pessoas, mas tão só suas obras, não se faz sentir entre aqueles intelectualóides.
Não alardearei o mérito da humildade, mas desfraldarei a bandeira da decência intelectual. O desenvolvimento da intelectualidade não é possível sem a solidariedade ou mutualidade de intelectos. O intelectual é, para além do acúmulo de titulações, antes de tudo um agricultor do intelecto, alguém que aprecia demorar-se no cultivo de seus pensamentos e se deter a longas pesquisas. Ler é para ele atividade indispensável. Sucede, contudo, que, naquelas ocasiões, alguns dos participantes são incapazes de sustentar um debate sério e equilibrado; são carecidos de rigor racional e tornam-se, com frequência, suscetíveis às emoções mais pífias, ainda que ostentem em seus atos linguísticos certo ar de onipotência.
Por vezes, animo-me a dar-lhes a devida resposta, sem que ela se embarace em despeito ou jactância. E nunca perco de conta a quase certeza de que eu estou lindando com pessoas que se supõem capazes de participar de debates intelectualmente relevantes, mas que são estúpidas ou ignorantes sobre a necessidade de manter uma conduta em consonância com o simples bom senso: o saber se produz em conjunto. Filósofos e cientistas, por exemplo, não se julgam donos da verdade ou do saber; ao contrário, reconhecem continuamente sua ignorância, mas não desistem de buscar a verdade e de produzir conhecimento.
Não espero que o leitor depreenda destas palavras sentimento de indignação pessoal. Sou indiferente àqueles que se comportam presunçosamente, quando se julgam capazes de emitir opiniões peremptórias. Mas não sou indiferente à insistência em que qualquer debate que demande rigor racional, orientação argumentativa sólida deve ser realizado na base do pressuposto da ignorância; deve ser desenvolvido por indivíduos dispostos a aprender uns com os outros. Apenas os estúpidos tendem a rejeitar esse princípio inatacável.  

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

A leitura é uma fonte inesgotável de prazer mas por incrível que pareça, a quase totalidade, não sente esta sede" (Carlos Drummond de Andrade)

             

              Quando a leitura entra em cena

É lugar-comum afirmar que ler é um meio eficiente para a aquisição de conhecimentos. Os textos são responsáveis por tornar o conhecimento socio-cognitivamente existente. Insisto neste ponto: o conhecimento como fato social só existe pela sua constituição linguística em textos. Os textos são formas de cognição social. Segundo Koch, em Introdução à Linguística Textual (2004),


“Os textos são condição de possibilidade de se tornar o conhecimento explícito, de segmentá-lo, diferenciá-lo, pormenorizá-lo, de inseri-lo em novos contextos, permitir sua reativação, de testá-lo, avaliá-lo, corrigi-lo, reestruturá-lo, tirar novas conclusões a partir daquilo que já é compartilhado e de representar linguisticamente, de forma nova, novas relações situacionais e sociais”.
(p. 173)

Convém enfatizar a mudança de perspectiva que se opera na relação entre texto (ou leitura) e conhecimento. Os textos não são apenas meios de aquisição de conhecimentos; mas permitem constituí-los e estruturá-los dando-lhes um formato socialmente relevante. Koch (p. 172) ainda nos ensina que “todo o conhecimento declarativo de nossa sociedade é (com exclusão daquele que se traduz em números ou fórmulas) primariamente linguístico, ou melhor, conhecimento textualmente fundado”. Não se segue daí que só podemos conhecer na base de textos. Russel nos ensinara sobre a forma de conhecimento que decorre da experiência sensível, denominada por ele de conhecimento por familiaridade.
Mas minha preocupação aqui é mostrar que, desde o advento da escrita alfabética, há uns 3.000 a.C. , entre os sumérios (posteriormente desenvolvida pelos gregos), o conhecimento pôde ser registrado, organizado e conservado para ser estendido às gerações posteriores. Não suponho, contudo, que ele tenha sido, com a escrita, democratizado; longe disso: a escrita é uma das formas de legitimar o poder e de impedir a um grande número de indivíduos o acesso ao conhecimento. E o conhecimento é um instrumento a serviço dos segmentos que detém o poder político, social e econômico.
As palavras de  Lyotard – A condição pós-moderna (2009) - esclarecem-nos sobre a relação entre conhecimento e poder:

“Sabe-se que o saber tornou-se nos últimos decênios a principal força de produção, que já modificou sensivelmente a composição das populações ativas nos países desenvolvidos e constitui o principal ponto de estrangulamento para os países em vias de desenvolvimento. (...) Sob a forma de mercadoria informacional indispensável ao poderio produtivo, o saber já é e será um desafio maior, talvez o mais importante, na competição mundial pelo poder”
(p. 5)

No tocante às condições em que se acha o saber, o autor nos mostra que ele é, nas sociedades de consumo da era (pós-)moderna, uma mercadoria, inserida ao lado das outras nas esferas de consumo; além disso, o conhecimento tornou-se também um importante instrumento a serviço da reprodução do poder, em escala mundial.
Não pretendo, no entanto, pormenorizar a questão do status do conhecimento na sociedade pós-moderna. Quero apenas insistir, mais uma vez, que a posse de conhecimento é indispensável à maior participação social, política e cultural. E lembro, embora não possa me deter neste tema aqui, que a participação política não se cinge ao exercício do voto, mas envolve o engajamento de indivíduos em organizações, grupos e se caracteriza também pela capacidade de eles tomarem decisões e responderem criticamente ao status quo. A própria contribuição de cada um de nós para a conscientização de outros indivíduos da importância de defender a liberdade de pensamento, de lutar pela igualdade de condições, de combater toda forma de preconceito e intolerância, etc. já é uma forma de participação política. Costumo lembrar aos meus alunos que ensinar é assumir um compromisso político e, portanto, é participar politicamente da construção de uma sociedade mais justa. Na Educação, todos nós, professores, sabemos não escapar aos ideais.
Até aqui, podemos arrolar as seguintes conclusões:

a) estamos de acordo em que o conhecimento tem importância social;
b) estamos de acordo em que a leitura é o principal caminho para adquiri-lo.

No entanto, também devemos estar de acordo quanto ao fato de que não conseguiremos estimular jovens e adultos a ler mais pela via argumentativa que ressalta a importância sócio-política e cultural dessa prática. Não estou interessado aqui  em apresentar propostas para o incentivo à leitura. Quero apenas insistir em que ela não é uma atividade lúdica, muito embora possa causar prazer. E é sobre o prazer que a leitura pode provocar em nós que repousa meu interesse.
Não foi exatamente durante o período em que me graduava que comecei a experimentar prazer na leitura. Provavelmente, porque as leituras que nós, então estudantes, devíamos fazer dos textos que nos eram dados pelos professores visava sempre a alguma avaliação (trabalhos ou provas). Parece-me que toda leitura orientada para uma avaliação pedagógica é uma atividade pouco prazerosa. O prazer sucumbe ao propósito de, pela leitura, lograrmos êxito no exame a cuja realização ela se destina. A finalidade da leitura, seja na escola, seja na universidade, é a realização de atividades. Lê-se porque se tem de fazer testes, exercícios de avaliação de aprendizagem (incluindo seminários, redações...), provas e testes.
 Outro fator que obstaculiza o prazer diz respeito a interesses pessoais por um ou outro tema. Sabemos, como leitores, que há temas que nos interessam e outros que não nos interessam. Na escola, especialmente, temos de ler textos que não nos agradam.  Os que não apreciam as aulas de biologia precisam ler a matéria de biologia no livro didático (não estou pressupondo que os alunos leiam, realmente; em geral, o professor passa-lhes um questionário e eles se baseiam nele para realizar a prova). De qualquer forma, eles precisam ler os capítulos em que se acham  as respostas das questões propostas.
Quero dizer que a leitura não é uma atividade restrita às aulas de português. Os alunos são expostos à leitura, nas aulas escolares, durante todo o tempo em que delas participam. A escola é o espaço para a leitura, por excelência.
Há um discurso pedagógico, talvez influenciado pelas posições de Paulo Freire, que insiste em que o trabalho de leitura deva ser orientado de tal modo, a abranger o universo sócio-cultural em que vive o aluno. Este seria incentivado a ler mediante a leitura que ele possa fazer do próprio mundo; em outras palavras, ele leria textos que toquem às suas experiências de mundo, textos que representem aspectos do mundo que lhe são acessíveis por suas experiências sociais imediatas. Esse é um caminho que tem-se mostrado profícuo, mas é necessário ultrapassá-lo, já que não conseguiremos, se apenas nos limitarmos a segui-lo, alargar-lhe a consciência de mundo. Por exemplo, o professor que trabalhe com letras de funk com uma turma de jovens da periferia, numa escola pública, elaborando sobre elas atividades de interpretação, deve saber que está contribuindo para uma tomada de consciência deles da realidade social em que vivem (caso a letra da canção retrate aspectos importantes dessa realidade); no entanto, deve reconhecer também que ainda estará reforçando a limitação deles a essa realidade (conserva-se a exclusão). Eles precisam ter acesso a outros modelos de mundo, textualizados; a outras visões de mundo, a outras formas de compreensão da realidade. Uma maior participação cultural, aqui, significa, principalmente, conhecer outras produções culturais que não só a dos membros que pertencem à sua realidade social.
Mas voltemos ao prazer na leitura. Esse prazer é o prazer do desvelar. Desvelar que nos incute o deslumbramento. Ler é “retirar o véu”. Véu da ignorância. O deslumbramento é o encanto, o maravilhamento que experimentamos quando conhecemos, ou seja, quando tornamos presente à consciência algo que ignorávamos. É o que sinto quando meu espírito se embrenha nas páginas de livros, quando ele trafega pelas amplidões que lhe abrem as palavras.
Só pode haver prazer em ler, se o sujeito leitor é capaz de reconhecer o valor do saber ou do conhecer como um imperativo da condição humana. Ler por qualquer obrigação castra o prazer. Da mesma forma, ler sem reconhecer a importância do conhecimento dificilmente será uma atividade que provoque deslumbramento.
Ler porque é necessário conhecer. E conhecer pode sim causar prazer. Um prazer intelectual, que nos engrandece, que nos contenta, que nos torna mais atuante, a despeito das tendências conformistas.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

"A solidão desola-me; a companhia oprime-me" (Fernando Pessoa)

                    

                           Pensamentos dispersos


Vezes há em que precisamos parar. Simplesmente, cessar de pensar tanto, de ler tanto e de projetar. Há momentos em que preciso simplesmente reler, rever, re-experienciar, relembrar, revisitar os produtos de minha labuta verbal. Foi isso que fiz, ao ler breve e descompromissadamente meus textos antigos no blog, mas também os comentários que a eles se seguem. Notei que muitos não se acompanham de comentários; apercebi-me de que meu grupo de seguidores reúne hoje alguns outros simpatizantes. Houve um pequeno crescimento, mas nada ainda comparável ao número de seguidores que observo nas páginas de outros bloguistas, que encerram grupos com mais de 400 leitores.
Não é que eu me preocupe com o fato de meus textos não angariarem muitos leitores; alguns dos poucos que decidiram acompanhar meu blog são leitores assíduos de meus textos, ainda que estes possam incomodá-los de algum modo (talvez por insistir em cutucar suas crenças mais arraigadas e vitais).
Por um instante, pus diante de mim o livro Ecce Homo, de Nietzsche, a fim de nele buscar algum trecho que me infundisse um sentimento de potência, de superação que, no filósofo, não raro, era amparado numa soberba com que aquele homem de saúde frágil fazia valer seu espírito. Nietzsche, conforme nos revela em um de seus textos nesta obra, só atacava as coisas grandiosas. O cristianismo está entre essas coisas que lançou aos confins do mundo seus hinos de vitória. Nietsche via aí a moral do rebanho, dos decadentes, na qual se baseia a doutrinação incansável que se vem propagando há mais de dois mil anos.
No entanto, não podia seguir adiante, porque senão estaria eu novamente a me ocupar com os pensamentos. E este texto é erigido para negar a atividade de pensamento, para rejeitar as reflexões que teimam em perturbar o desejo de simplesmente reler, rever, re-ssentir, rememorar. Escrevo como quem regressa a sua terra natal e se pasma com suas mudanças.

O dia seguinte...

E cá estou eu novamente... Em face do computador, alinhando estas palavras, estruturando-as de modo a compor enunciados que configurem um texto que atenda às minhas necessidades interacionais.
Por vezes, quando entretido com as minhas leituras, sinto engrandecer-me dentro de mim um espírito empreendedor, germina-me um ânimo que faz com que meus pensamentos estejam sempre adiante de mim; eles se antecipam às palavras; mas não tarda para eu me convencer de que o tempo de vida que me é permitido por minha condição humana é relativamente curto em face dos grandes projetos nos quais nós, seres humanos, podemos nos engajar. É claro que esse reconhecimento não constitui razão suficiente para levar à derrocada as pretensões mais viris de um espírito ávido pelo saber.
Eu abrigo uma inquietude intelectual que não me deixa descansar, até que eu ponha diante de meus olhos um texto que testemunhe meus sentimentos e pensamentos mais viscerais e urgentes. Enquanto escrevo este texto, fico a catar textos ou blogs sobre autores cujas produções intelectuais eu admiro, como as de Bart D. Ehrman. E tudo que vou achando, deixo arquivado on-line. Talvez, esses materiais me sirvam em tempo para trazer a lume novas arquiteturas verbais.
É justamente por haver em mim um sentimento de urgência de conhecimentos e um ânimo sempre renovado de compartilhá-los que eu não me satisfaço em lecionar por mera conveniência financeira. A mim me incomoda o ter de “dançar conforme a música”. Um professor acomodado é um professor resignado, vencido pela frustração. E a frustração - certamente, inevitável, muitas vezes - é como um sentimento que deve ser exorcizado. A luta contra a frustração parece ser a única saída para os professores, a menos que eles estejam dispostos a desistir de seu compromisso pedagógico.
O mesmo vale para aqueles que, mesmo não sendo professores, dedicam-se a escrever sobre temas intelectualmente estimulantes. Quando diante de um público desinteressado, resta-nos decidir se nos vale trazer a lume nossos pensamentos ou deixá-los estampados em páginas dentro de uma gaveta. Por anos, escolhi a segunda opção. Felizmente, conclui que estava desperdiçando meu tempo em escrever para mim mesmo. Não há escritor sem leitores e não há textos sem leitores . Não pretendo agradar a um grande público; e acredito que meus textos não são feitos para uma grande quantidade de pessoas. É possível que meu estilo estorva a compreensão, dificulte a leitura, enfade. Eu tenho me preocupado em escrever com menos rigor formal e com menos formalidade. No entanto, não escapo à satisfação de lapidar a linguagem, enquanto me sirvo dela para escrever. Gosto de me envolver neste trabalho laborioso de arranjar palavras, selecioná-las cuidadosamente, apagá-las quando não me parecem oportunas, reinventá-las, rearranjá-las quando parecem ocupar um lugar inadequado nas estruturas sintáticas.
Eu não fujo aos equívocos. Sempre que releio meus textos, antes de divulgá-los, encontro-os em penca. Como palavras ou acrescento-as onde não são necessárias. Extrapolo as exigências da sintaxe, e, não raro, subverto a semântica. Escrevo coisas que me parecem sem sentido, depois de duas ou três leituras. Apresso-me a reescrever e, ainda assim, fico com a impressão de que não era bem o que eu queria ter dito.
Aceito a ideia de que a escrita não é uma terapia; nem sempre ela entretém; nem sempre traz felicidade. Pode, no entanto, trazer um bem-estar, quando, através dela, produzimos uma catarse. Aceito também a ideia de que as palavras nos traem; certamente; não estamos no controle dos sentidos, ignoramos os sileciamentos que vazam delas; a linguagem é opaca, não é transparente. Se nossa alma sangra, se as palavras nos causam sofrimento, se a escrita torna-se, assim, uma atividade dolorosa, disso não se segue que não sirva para afugentar nossos fantasmas, para restituir o que se perdeu em nós. Penso a escrita como uma atividade de que me ocupo para resolver um problema. É possível que, ao final dela, o problema ainda persista, mas vale o esforço, a entrega, a tentativa de domesticar as palavras que parecem desafinar os sentimentos, desalinhar-se, desarmonizar-se com os pensamentos e traçar a inexatidão dos dizeres que se calcam ininterruptamente sobre os já-ditos.
Escusa dizer quanto a linguagem me causa admiração e fascínio. E estudá-la na universidade é, decerto, uma atividade na qual me envolvo com grande prazer. Nestes mais de dez anos de dedicação aos estudos sobre linguagem, aprendi muito, mas tive poucas oportunidades para transmitir o que aprendi e, quando o fiz, ensinei muito pouco. E, em muitas ocasiões, minhas aulas não correspondiam qualitativamente ao legado de conhecimentos acumulado nestes mais de dez anos. Quem leciona pode imaginar por que razões as minhas aulas, por vezes, me frustravam. Não me delongarei nesse tocante.
Quando descobrimos que o discurso não se confunde com o texto e não é um dado apartado da realidade, quando descobrimos que o discurso é um acontecimento sócio-histórico de produção de sentidos, que ele não representa a realidade, mas a (re)constrói; quando descobrimos que o autor não é senhor do seu discurso, não está no controle dos sentidos previstos pelo seu texto, que não há discursos sem ideologia (portanto, que é a ideia da neutralidade do discurso é um efeito da ideologia), que identidades são discursivamente construídas, que discursos são práticas sociais nas quais os homens se envolvem também para constituir, reproduzir e alterar as estruturas sociais; quando descobrimos que também pelos discursos legitimamos o poder – e as descobertas não param por aí -; quando estamos a par de tudo isso, então somos capazes de reconhecer quão ricas são as reflexões sobre a linguagem e quão fundamentais à nossa vida são as atividades linguajeiras. Toda empresa intelectual passa, necessariamente, pela linguagem.
Em suma, discursos tanto podem aclarar consciências quanto podem estorvá-las; tanto podem libertar, quanto podem aprisionar, subjugar, embotar. Todo debate, toda discussão é um exercício de compromisso e confronto com a linguagem; não escapamos à linguagem; não escapamos às palavras; e não temos, portanto, acesso direto ao mundo, à realidade. O que sabemos sobre o mundo sabemos somente pelas nossas lentes linguísticas, pelas nossas visões, pelas nossas interpretações. Não escapamos dos pontos de vista.