Divagações
Do desassossego
Bastam-me estes dois passos de Pessoa, em Livro do Desassossego, para que eu possa aqui dar um testemunho de mim. Deles se originará esta enxurrada de reflexões, com as quais eu me derramo neste papel virtual.
“O único modo de estarmos de acordo com a vida é estarmos em desacordo com nós próprios”.
(p. 56)
“Pedi tão pouco à vida e esse mesmo pouco a vida me negou”
(p. 45)
Intentando evitar a fratura do pensamento do poeta, refiro abaixo, na íntegra, os textos donde estes fragmentos foram retirados:
“Tornamo-nos esfinges, ainda que falsas, até chegarmos ao ponto de já não sabermos quem somos. Porque, de resto, nós o que somos é esfinges falsas e não sabemos o que somos realmente. O único modo de estarmos de acordo com a vida é estarmos em desacordo com nós próprios. O absurdo é o divino”.
“Pedi tão pouco à vida e esse mesmo pouco a vida me negou. Uma réstia de parte do sol, um campo próximo, um bocado de sossego com um bocado de pão, não pensar muito o conhecer que existo, e não exigir nada dos outros nem exigirem eles nada de mim. Isto mesmo me foi negado, como quem nega a esmola não por falta de boa alma, mas para não ter que desabotoar o casaco”.
Agora, preciso sentir-me. Preciso pensar, mas pensar dói. Não que seja uma dor que repercuta fisicamente; é uma dor mais aguda porque esteriliza a alma; é quando desejamos tanto dizer, que as palavras se tornam escassas, elas nos escapam; o sentido míngua. Na cama, livros espalhados; estava disposto a lê-los, mas os deixei ali, para escrever. Ler e escrever, ler e escrever, escrever e ler, e ler para pensar e escrever para refletir sobre o já pensado e sentir o que foi lido e escrito e pensado. Ao cabo dessas atividades, resta-me o sentir. É o sentir a que viso. O sentir é o sentido – o sentido para o qual aponta meu esforço intelectual. No início, eram as palavras; no fim, é o sentir.
Meu irmão, que, em raras ocasiões pode dizer-me alguma coisa significativa, declarou-me, há poucos dias, que há pessoas que apenas passam pela vida. Sim, como os transeuntes por que nós passamos cotidianamente e deles nos esquivamos. Alguns de nós são transeuntes da existência. Atravessam as ruelas, as ruas, as estradas, as avenidas da vida com o único propósito de chegar ao outro lado. São meros atravessadores que sabem – aliás como todos nós sabemos – que vão morrer e, ainda assim, se contentam em apenas atravessar.
E eu não me refiro aos indigentes, ao largo dos quais passamos indiferentes nas ruas. Não me refiro aos desgraçados, aos miseráveis, aos marginalizados deste mundo, cuja existência míngua a cada dia, sem que de nossas pálpebras caia uma gota de lágrima. E não nos culpemos por isso, já que não temos para com eles nenhuma afinidade. O lamento, quando há, é sufocado pela indiferença, que é nosso escudo contra as decepções da vida. Ser indiferente é um estratagema para nos protegermos; ser indiferente, muitas vezes, é necessário. A felicidade de cada um de nós depende de que olhemos para o mundo indiferentes; nosso olhar deve ostentar a indiferença, porque, do contrário, viveríamos imersos num profundo mal-estar e faríamos da melancolia nossa acompanhante no viver cotidiano. Tenho de reconhecer, em que pese o excesso de sentir que tece a essencialidade de minha alma, que certa dose de insensibilidade é condição para que possamos olhar através da janela, mesmo num dia chuvoso, e sentir a alegria de viver.
Dizia que não me referia aos indigentes, mas aos que foram privilegiados pela vida, ou, se preferirem, os privilegiados socioeconomicamente. No entanto, não quero dar ao meu discurso um tom sociológico. Existem, como cantou Tim Maia, os que nascem para sofrer e os que nascem para sorrir. E dentre os que sorriem demais ou esporadicamente, dentre os que são abastados e os que vivem sem muitos recursos econômicos, há uma grande faixa de pessoas que entulham a vida de prazeres fugazes, que não alcançam senão as aparências das relações e que, portanto, apenas seguem na travessia.
Estas pessoas estão, portanto, de acordo com uma das formas de a vida se dar; elas seguem as tendências como seguem as roupas da moda; e como a moda é, por definição, comportamento efêmero, é o espaço institucional em que tudo que circula é passageiro e descartável, essas pessoas estão sempre dispostas a abandonar certos padrões, certas tendências, certos modismos, sempre que lhe são oferecidas alternativas, novidades, últimos lançamentos. A travessia torna-se assim camaleônica. Elas se adaptam a dadas condições de existência social; dançam conforme a dança (enquanto se entusiasmam com as novas músicas). Acontece que eu não sei dançar muito bem, minha dança descompassa e meu canto desafina. E a música de minha alma remonta a tempos antigos em que o deleite provinha das sonatas do coração.
Donde se segue que há entre mim e a vida um profundo desacordo, visto que eu sou fiel a mim mesmo, estou tão de acordo comigo, que só posso dormir tranquilo quando o primeiro pensamento da manhã se harmoniza com o último pensamento da noite, tornando-me presente a mim mesmo. Evidentemente, ao longo do dia, milhares de pensamentos trafegaram em minha alma, alguns, certamente, desencontrados; mas, ao cabo de um dia, se meu último pensamento traz-me à consciência o sentido de unidade entre o que fui (em momentos anteriores) e o que sou, posso, então, dormir um sono sereno.
A intuição do poeta a respeito de nossa incapacidade de nos conhecermos a nós mesmos realmente é confirmada pelas ciências da mente. Somos um estranho vivendo em nós mesmos. Algumas pessoas experimentam isso de modo desastroso; outras lidam com esse estranhamento com serenidade; outros mais com perspicácia; e ainda há os que, estranhando-se a si mesmos, fazem arte. Há os que se sentem confortáveis em si mesmos; e há os que dariam tudo para evadir-se (assim mesmo furtivamente, para que não sejam notados pelo superego, que viria nessa tentativa de fuga uma transgressão).
Entre os transeuntes da existência, há milhares que pedem muito à vida. Desejam carros, milhões de reais, aquela viagem dos sonhos, um condomínio de luxo, um corpo escultural, o cargo de poder, entre outras tantas aspirações. Sinto que meu sofrimento primevo fez-me pedir pouco à vida, salvo o desejo de vivê-la. Isso, talvez, seja muito, mas nem sempre a vida me caiu como uma roupa bonita que nos torna irresistível numa noite agitada. Houve tempo em que a vida me era pesada, me sabia indigesta.
Com a maturidade e, embora na infância ofertado com mimos e presentes, descobri, entre as superfluidades que entulham nossas vidas, o essencial. Então, pedi à vida esse essencial: amor e conhecimento. O conhecimento, ou o saber é uma riqueza cuja conquista só dependia de mim (embora eu tenha contado com a ajuda de tantos outros); mas notem “com a ajuda”. O amor, contudo, não depende de quem o deseja; o amor implica o outro; e os outros com os quais me relacionei não participavam da mesma extensão do amor da qual eu tomava parte. O amor convoca o outro a participar de um mesmo sentido conosco. Não tardou para que eu reconhecesse que a reciprocidade amorosa era um pedido exorbitante. É que para muitos o amor não é o essencial; é um adendo que se vier a calhar, muito bem, senão, o eu se abarrota de si e, na ilusão de sua auto-suficiência, pensa ou diz, mesmo que contrafeito, “estou feliz sozinho”.
A felicidade na solidão é uma ilusão constante numa geração incapaz de experienciar relações duradouras e emocionalmente consistentes. Frustrados, homens e mulheres da modernidade líquida enganam-se a si mesmos, e supõem, mesmo que contrariamente à própria natureza da espécie de que eles são exemplares (de uma perspectiva biológica), que eles se bastam a si mesmos. A crença na felicidade de viver solitariamente é produto da ideologia individualista que prescreve a supremacia do indivíduo sobre o coletivo. Primeiro eu, depois eu, depois eu e... depois eu...
Entendam, mesmo que eu possa parecer enfadonho, mas o óbvio é carecido de atenção, já que, muitas vezes, ele nos elucida: nós, seres humanos, somos seres sociais. A relação entre o indivíduo e o todo (a sociedade) é uma relação dialética, na medida em que não há indivíduo sem o social, e este não pode ser pensado sem os indivíduos que o compõem. Mas a ideologia individualista mascara essa evidência.
Felizmente, existe o amor, que nos convoca para olhar o social, o amor nos implica nesse social, nos abre para o outro. A abertura que o amor nos provoca, que é nossa capacidade de nos relacionar com o exterior (não só com o interior), torna-nos sensíveis ao entorno social, que inclui as pessoas a quem destinamos carinhos ou nossas disposições de afeição. E não se entenda esse amor como amor universal, que é uma utopia, uma idealização, fruto de nossa ingenuidade. Freud nos ensinara a esse respeito: o amor é uma moeda cara demais para ser distribuída aleatoriamente ou a todos. É impossível amar aquele que nos é estranho, com o qual não temos nenhuma afinidade.
Talvez, melhor seria falar em moral. É a ela que devemos, na verdade, essa abertura para o social. A moral surge no momento em que um homem se relaciona com outro homem, em que cada um tem de reconhecer o domínio de sua individualidade e liberdade e atuar em benefício comum, ou, ao menos, tentando evitar prejuízos recíprocos. A moral surge no instante do confronto com o sujeito e o social, ou o mundo. No entanto, creio em que sem o amor não é possível a moral. Mas insisto em que se trata de uma forma específica de amor: é o amor que rejeita toda forma de violência. Claro: se os homens vivessem abandonados aos seus impulsos, atacando e matando uns aos outros, a vida em comunidade seria impossível e é mais vantajoso para a vida individual que haja um esforço cooperativo entre todos - homens e mulheres.
Já enfadado, fico com a sensação de que não disse tudo. Ao tentar externar-me com exatidão, creio ter oferecido senão inexatidões de minha alma; é a sensação de que eu me escapo a mim mesmo e nunca atinjo um núcleo de sentido palpável. Talvez, porque o sentido não é palpável mas fluente... ele se esvai... escorre e tentado capturá-lo, nos perdemos no meio do caminho, como quem se encontra perdido numa encruzilhada.
Sinto que sou um projeto irrealizável e que o meu eu mesmo é uma afronta ao mundo. De resto, sobra-me aquela sensação de que estou de acordo com o eu sou.