Primeiro pensamento: as salas de
aula são cemitérios do saber.
Terminantemente convencido
da vanidade de todas as atividades humanas num universo entretecido por uma
insignificância radical, resta-me, contudo, a ilusão de que a leitura confere
algum fôlego e sentido a esta minha existência inerentemente absurda e cosmologicamente
precária.
A filosofia não é para amadores, tampouco para curiosos. A necessidade
da filosofia é como ter um corpo: todo corpo é destino. Em outras palavras, a
necessidade da filosofia é um acontecimento da ordem da fisiologia, da
disposição psicofisiológico-afetiva. Quero dizer que é o acaso fisiológico que
nos pré-dispõe para o exercício filosófico, e não as salas de aula (não se ensina filosofia, muito menos a fiosofar!). É esse
acaso que nos torna carentes da filosofia como uma necessidade existencial.
Mais uma vez: a filosofia repele os curiosos.
É vão, até mesmo
nauseante, lamentar as frustrações do exercício do magistério. Não há solução.
A minha escrita é solitária; não há leitores que a suportam. Escrevo com o
pesar de quem aceita a inexorável finitude existencial; leio para respirar no
Intolerável.
Só dou aulas, ou melhor, só
me indisponho para ir às salas de aula semanalmente, porquanto sou escravo
da necessidade. Em uma palavra, porque preciso ganhar dinheiro para sobreviver.
Nada além disso me move para o magistério. Se eu tivesse milhões em minha conta
bancária hoje, viveria unicamente para o ócio criativo. É de uma ingenuidade,
de uma leviandade risível negar que o dinheiro resolve tudo, ou quase tudo.
Não nos livra da morte? Mas nada nos livra. Não nos protege contra doenças
letais? Mas pode ajudar-nos a tratá-las, a suportar o sofrimento que nos
causam. Pobres adoecem tanto quanto os ricos, mas aqueles, por falta dos
recursos econômicos que estes têm em abundância, estão condenados à
vulnerabilidade e às augruras dessa condição. A pobreza é a maior das injustiças e uma das
mais intoleráveis infelicidades. Ricos e pobres têm, é verdade, o mesmo destino
inexorável – o túmulo -; todavia vidas
qualitativa e significativamente díspares. Enquanto aqueles se encontram no
mundo para fruir a vida, estes aqui se acham para lutar pela vida e suportá-la.
Segundo pensamento: Todo
entusiasmo me parece um ato criminoso, como uma espécie de violação do estado
natural, normal da vida.
Repouso
sobre o chão uma pilha de livros como quem espera que o próprio cérebro seja
capaz de devorar a variedade de conteúdos que eles reservam. Decerto, é um
hábito resultante de uma inveterada obsessão, uma obsessão de que nunca consegui
me curar: uma obsessão amparada pela crença ilusória de que a leitura e o
conhecimento podem manter-me suspenso no vazio existencial que me devora as
entranhas, a carne.
Outrora,
a prática da escrita me era mais espontânea, e os pensamentos se organizavam
com mais fluidez e desenvoltura; eram mais exuberantes. Hoje, como agora, eles
se me afiguram esfumaçados, fugidios como sombras.
Depois
de tantos anos consumidos no exercício da escrita acadêmica, ao longo dos quais
preenchi com palavras um sem-número de folhas de papel, vejo, em retrospectiva, a
inutilidade desse labor, sinto a insignificância de tudo aquilo que elas
abrigam.
A minha
escrita não pretende mais ensinar nada a ninguém. Ela sequer se preocupa com o
leitor em potencial. Ela só pode sobreviver sob a forma de diário, de confissão.
Sob a forma de confissão, aliás, é como a filosofia era vivida por Cioran. Encontro
nas páginas de Cioran uma ressonância intelectual e afetiva que jamais encontrei
em autor algum que tenha frequentado antes de conhecê-lo. Tal como para Cioran,
também para mim o exercício da escrita sempre foi vivido como uma forma de
expurgação de tormentos, de taras, de sentimentos e ideias insidiosas.
Em
entrevista a Fernando Savater, Cioran confessa:
“(...) escrever, por pouco que seja,
me ajudou a atravessar os anos, pois as obsessões expressas permanecem amansadas
e, em parte, superadas”.
A isso
acresce, “escrever é um desafogo extraordinário”. Se ele não tivesse
escrito seus livros – confessa -, teria se matado. Escrevendo, também evitou
tornar-se um assassino. É esta relação fisiológica, orgânica, visceral e fatal
com a escrita que sempre experienciei e que encontro entretecida nas
articulações verbais cioranianas, em sua forma mais apaixonada e acabada.
Ao
escrever um livro, Cioran visava a despertar alguém, a flagelar seu eleitor. Cioran
confessa que “um livro deve de fato ser uma ferida, que deve mudar a vida do
leitor de um modo ou de outro”. Não obstante acreditar que um livro cumpre
esta função (muito pessoal), ele não escrevia com o propósito de ser lido. A
função de seus livros era apenas a de ser sinal de uma ferida, uma ferida
que, no entanto, deveria mudar algo no leitor, pois que “um livro que mantém
seu leitor como antes da leitura é um livro fracassado”.
É da perda – talvez irremediável? –
dessa relação, ou melhor, dessa necessidade fisiológica, existencial da escrita
que me ressinto. Há tempo sinto-me oco, existencialmente ressequido. Fui absorvido
na temperatura normal da vida. Como escreveu Cioran, aos 21 anos de idade, em seu
primeiro livro, “a vida não resiste a altas temperaturas”; por isso, evitando
sucumbir novamente à queda – “as pessoas mais atormentadas estão condenadas
à queda”, precisei reunir-me aos medíocres, que “vivem na temperatura
normal da vida”. Decerto, viver na companhia deles me desgasta, me
enfraquece, mas a alternativa seria viver em constante estado de esquartejamento.
Viver na temperatura normal da vida é a única forma de suportar a sensação de
esgotamento:
“Nessa sensação de esgotamento se
revela o verdadeiro sentido da agonia – que, longe de ser uma luta baseada na
fantasia ou em paixões gratuitas, é a vida se debatendo nas garras da morte,
com poucas chances para a vida.”
Por alguns anos, senti-me vítima de um
destino cruel; num dia lúgubre, este destino se me relevou com sua face trágica
– e ainda hoje, de pé sobre os seus escombros, o percebo como tal: um
acontecimento imerecido e nefasto. Um ano, ou pouco mais, de psicoterapia me
forçou a conformar-me com ele como o único caminho de suportar a vida. Aqui
vale o que disse Cioran sobre a impossibilidade de encontrar um sentido para a
vida: “é preciso se resignar a aturar a vida como ela vem”. É preciso, como
afirma Cioran, habituar-se a viver sem propósito; todavia, ele mesmo admite que
viver sem propósito não é tão fácil.
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