sexta-feira, 6 de agosto de 2021

"Todo o existente nasce sem razão, prolonga-se por fraqueza e morre por encontro imprevisto." (Sartre)

 




A um amigo enlutado

 

Supondo oportuno este momento em que você ainda está em trabalho de luto, compartilho alguns sentimentos angustiantes que me são familiares e que, de um tempo para cá, têm se me tornado mais dilacerantes e assíduos. Estou eu cá com um livro, como de costume, envolvido em uma leitura densa... E subitamente sou tomado por uma carreata estrondosa de pensamentos e sentimentos que me levam a me questionar por que me dedico tanto aos livros, por que os cumulo, para que leio tanto, para que tenho tantos livros, se só tenho uma vida apenas, tão débil e incerta, que pode ser mais breve do que eu esperaria que fosse e que, portanto, pode apagar-se, a qualquer momento, como a chama de uma vela? Sartre dizia que a morte é absurda... sim, de fato... a morte é um corte muito profundo e irremediável, uma ruptura definitiva com tudo aquilo que valorizamos e amamos na vida... a morte não só nos priva do convívio com as pessoas que amamos, mas também com aquele mundo de coisas e atividades que apreciamos, como a leitura, por exemplo... quando eu morrer, não poderei mais ler os livros que gostaria de ler ou continuar lendo... e estes livros que hoje me valem tanto terão um destino que ignorarei, porque os mortos têm uma inveterada e impertinente mania de serem indiferentes, de serem desapegados, de serem insensíveis... ( e os livros serão doados? Vendidos? Destinados ao lixo? - que me importa!)...nunca mais os reencontrarei, nunca mais terei o prazer de lê-los... nunca mais estarei aqui com eles ao redor disponíveis para que eu os leia e me demore na nudez de suas páginas durante horas... nunca mais, nunca mais, nunca mais... a morte também me priva de tudo que eles me oferecem e me possibilitarão, dos saberes que esperava compartilhar... saberes que morrerão comigo... Quando envelhecemos, deveríamos nos habituar ao desapego... o envelhecimento é um processo de desligamento, de despedida gradativa de tudo aquilo que outrora superestimávamos... nós deveríamos evitar cumular coisas à medida que envelhecemos (embora eu conheça velhos que não fazem senão acumulá-las, num ato inconsciente de protesto e resistência vã contra o processo de desfazimento da vida)... mas eu também acumulo... acumulo livros que provavelmente se tornarão coisas inúteis, quinquilharias que o tempo, o mofo e as traças consumirão... à medida que os anos passarem, que as rugas fizerem sulcos em meu rosto, que o meu corpo ficar ressequido, debilitado, carcomido e que o sentimento da vanidade de tudo tornar-se o sentimento soberano e uníssono em minha existência, nem mesmo os livros valerão o tempo que lhes dedico... quando jovens, raramente o temos, tudo tem graça, vibração, colorido e sentido... mas o envelhecimento vai erodindo uma a uma nossas ilusões sobre a vida... “Amadurecer é aproximar-se da morte e sentir o cheiro da insignificância de tudo”, escreveu Pondé... Como o negar?

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