A um amigo enlutado
Supondo
oportuno este momento em que você ainda está em trabalho de luto, compartilho
alguns sentimentos angustiantes que me são familiares e que, de um tempo para
cá, têm se me tornado mais dilacerantes e assíduos. Estou eu cá com um livro,
como de costume, envolvido em uma leitura densa... E subitamente sou tomado por
uma carreata estrondosa de pensamentos e sentimentos que me levam a me
questionar por que me dedico tanto aos livros, por que os cumulo, para que leio
tanto, para que tenho tantos livros, se só tenho uma vida apenas, tão débil e
incerta, que pode ser mais breve do que eu esperaria que fosse e que, portanto,
pode apagar-se, a qualquer momento, como a chama de uma vela? Sartre dizia que
a morte é absurda... sim, de fato... a morte é um corte muito profundo e
irremediável, uma ruptura definitiva com tudo aquilo que valorizamos e amamos
na vida... a morte não só nos priva do convívio com as pessoas que amamos, mas
também com aquele mundo de coisas e atividades que apreciamos, como a leitura,
por exemplo... quando eu morrer, não poderei mais ler os livros que gostaria de
ler ou continuar lendo... e estes livros que hoje me valem tanto terão um
destino que ignorarei, porque os mortos têm uma inveterada e impertinente mania
de serem indiferentes, de serem desapegados, de serem insensíveis... ( e os
livros serão doados? Vendidos? Destinados ao lixo? - que me importa!)...nunca
mais os reencontrarei, nunca mais terei o prazer de lê-los... nunca mais
estarei aqui com eles ao redor disponíveis para que eu os leia e me demore na
nudez de suas páginas durante horas... nunca mais, nunca mais, nunca mais... a
morte também me priva de tudo que eles me oferecem e me possibilitarão, dos
saberes que esperava compartilhar... saberes que morrerão comigo... Quando
envelhecemos, deveríamos nos habituar ao desapego... o envelhecimento é um
processo de desligamento, de despedida gradativa de tudo aquilo que outrora
superestimávamos... nós deveríamos evitar cumular coisas à medida que
envelhecemos (embora eu conheça velhos que não fazem senão acumulá-las, num ato
inconsciente de protesto e resistência vã contra o processo de desfazimento da vida)...
mas eu também acumulo... acumulo livros que provavelmente se tornarão coisas
inúteis, quinquilharias que o tempo, o mofo e as traças consumirão... à medida
que os anos passarem, que as rugas fizerem sulcos em meu rosto, que o meu corpo
ficar ressequido, debilitado, carcomido e que o sentimento da vanidade de tudo
tornar-se o sentimento soberano e uníssono em minha existência, nem mesmo os
livros valerão o tempo que lhes dedico... quando jovens, raramente o temos,
tudo tem graça, vibração, colorido e sentido... mas o envelhecimento vai
erodindo uma a uma nossas ilusões sobre a vida... “Amadurecer é aproximar-se da
morte e sentir o cheiro da insignificância de tudo”, escreveu Pondé... Como o
negar?
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