
Discurso e poder
Uma abordagem sociocognitiva
A relação entre discurso e poder quase
nunca é evidente para os usuários da língua em geral. Isso se deve, em parte,
ao fato de que discursos veiculam relações de poder, muitas vezes, veladas. De que modo o discurso constitui, legitima e
reforça relações de poder? Essa é a questão basilar do presente texto. Pretendo
responder a ela a partir da abordagem sociocognitiva do discurso proposta por
Van Dijk. A fim de que a tarefa, a cuja realização me dedicarei, logre sucesso,
cuido indispensável a definição prévia dos conceitos de discurso, cognição, contexto, e
poder.
No
tocante à compreensão do discurso,
Dijk observa que o discurso é um fenômeno multidimensional. Assim, o discurso
pode ser, segundo o autor:
a)
uma totalidade formada de sequências significativas, ou seja, palavras ou
sentenças (nesse caso, o discurso se identifica com o texto);
b)
um ato de linguagem (asserção, ameaça, etc.);
c)
uma forma de interação social (gêneros discursivos tais como conversa,
telefonema, etc.);
d)
uma prática social (palestra, por exemplo);
e)
uma representação mental (um modelo mental, uma opinião, conhecimentos);
f)
um produto cultural (uma telenovela).
Não obstante as múltiplas
formas pelas quais o discurso se realiza, Dijk admite ser possível uma
definição operacionalmente razoável de discurso. Na esteira da abordagem sociocognitiva
proposta por Dijk, o discurso é forma de ação e interação social situada em situações sociais das quais os
participantes não são apenas falantes, escritores, ouvintes ou leitores, mas
sobretudo atores sociais pertencentes a grupos e comunidades culturais.
Destarte, o discurso não é um objeto autônomo. Não basta, portanto, analisá-lo
tendo como escopo apenas a sua materialidade linguística (frases, textos,
palavras). O discurso é resultado de uma interação social, histórica, cultural
e politicamente situada. Por conseguinte, é necessário, para fins de análise,
levar em conta as relações entre a materialidade linguística do discurso e as
estruturas sociais, tais como, por
exemplo, a família, a escola, as corporações midiáticas, posições de poder,
movimentos sociais, instituições governamentais, etc.
Uma vez que os participantes
do discurso são atores sociais que pertencem a grupos específicos numa mesma
cultura geral, o discurso jamais é neutro, mas é sempre cultural e
politicamente marcado. Ora, do fato de que são social, cultural, histórico e
politicamente situados os atores sociais, segue-se que eles não são
completamente livres para usarem as construções discursivas como quiserem. As
estruturas sociais condicionam a produção dos discursos produzidos pelos
usuários da língua, mas não de modo direto. Em outros termos, as condições
sociais, culturais, políticas e situacionais não influenciam diretamente a
produção do discurso. A abordagem sociocognitiva do discurso proposta por Van
Dijk esteia-se na tese segundo a qual as estruturas societárias ou situacionais
só podem influenciar o discurso pela mediação das representações mentais dos
sujeitos sociais. Vale insistir: os elementos da situação comunicativa não
afetam diretamente a produção do discurso; na verdade, a relação entre a situação
social (entendida como fragmento “demarcado espaço-temporalmente de mundos
sociais possíveis” (Dijk, 2012, p. 45)) e o discurso só pode ser estabelecida
pela intervenção da interface
sociocognitiva. Portanto, é a definição, a interpretação, a representação
ou a construção cognitiva da situação social, feitas pelos participantes do
discurso, por meio de seus contextos sociocognitivos, que influenciam o modo
como eles falam, escrevem, leem e compreendem. Antes de compreendermos como
opera a interface sociocognitiva a partir da definição de contexto, cumpre
esclarecer o que devemos entender por cognição,
nos limites estritos da abordagem sociocognitiva proposta por Dijk.
Em consonância com
a abordagem sociocognitiva do discurso, tal como proposta por Dijk, pode-se
definir a cognição como o conjunto
de várias formas de conhecimento que, não sendo totalizado pela linguagem, é de
sua responsabilidade. A cognição recobre as atividades mentais associadas ao
pensamento, ao conhecimento, à memória e à linguagem. Os processos cognitivos
como a linguagem e/ou a significação não são tomados à margem das rotinas
significativas da vida em sociedade. Portanto, a cognição é resultado das nossas
ações e de nossas capacidades sensório-motoras. A cognição é um fenômeno
situado, o que significa dizer que não há limite claro entre o que acontece
dentro e o que acontece fora da mente. A cognição é um efeito da relação
complexa entre ações sociais e atividades mentais. As tarefas que realizamos
conjuntamente com os outros constituem rotinas culturalmente determinadas que
organizam os processos cognitivos dos indivíduos em conformidade com demandas
sociais.
A interface
sociocognitiva esteia-se na visão de que sãos os modelos de contexto que permitem explicar que o que controla o modo
como falamos não é um ambiente social objetivo, mas nosso modo de compreender
ou construir subjetivamente a situação social. Modelos de contexto são, portanto, a interface entre a sociedade, a
situação social imediata (por exemplo, profiro uma palestra no auditório de uma
universidade) e o discurso. Os modelos de contexto são modelos mentais. Embora
formados a partir de experiências pessoais, os modelos de contexto baseiam-se
em conhecimentos socioculturais e outras crenças socialmente compartilhadas. Os
modelos de contexto encerram as propriedades sociais e cognitivas dos eventos
comunicativos, tais como os papéis sociais dos participantes, suas intenções e
conhecimentos.
Para Dijk, contextos são tipos especiais de
modelos mentais. E modelos mentais
são representações cognitivas de nossas experiências. Em certo sentido, os
modelos mentais são nossas experiências, se entendermos que experiências são
interpretações pessoais daquilo que acontece conosco. Tais experiências
pessoais ou modelos mentais armazenam-se na Memória Episódica, a qual faz parte
da Memória de Longo Prazo. Dijk evita, portanto, o contextualismo ingênuo
característico das teorias sociolinguísticas. Elementos situacionais como
gênero, classe social, etnia, idade, posição e poder não operam objetivamente
nem deterministicamente sobre o discurso, ou seja, tais restrições situacionais
não determinam diretamente o que um sujeito diz em dada situação. As estruturas
sociais não se relacionam com o discurso de modo direto. Elas se relacionam com
o discurso pela mediação (interface) do contexto sociocognitivo. Chama-se,
pois, contexto sociocognitivo ao conjunto de conhecimentos,
propósitos, expectativas, opiniões, crenças, bem como ao conjunto de todos os
sistemas de conhecimento (enciclopédico, linguístico, comunicacional, etc.)
armazenados na memória dos interactantes e que precisam ser mobilizados por
ocasião da interação verbal. A ativação desse contexto será indispensável para
que o curso interacional se desenvolva, se mantenha e atinja um bom termo.
O contexto, para
Dijk, é um constructo cognitivo, é uma representação mental que os
participantes do discurso fazem das propriedades relevantes da situação social
na qual interagem e na qual compreendem textos falados e escritos. O contexto
media as relações entre a estrutura social e o discurso. A concepção
sociocognitiva de contexto não é determinista. Destarte, indivíduos diferentes
podem falar de maneiras diferentes mesmo quando se encontram e uma situação
social semelhante. Isso é possível
porque os participantes do evento discursivo têm representações mentais
subjetivas das estruturas sociais. São as distintas representações mentais que
eles têm que lhes conferem certa liberdade para fazerem suas escolhas
temáticas, lexicais e sintáticas por ocasião da produção de seus discursos. Mas
devemos atender no fato de que essa liberdade é relativa. Por outro lado, são
essas representações mentais que permitem aos analistas do discurso reconhecer
a relativa liberdade de que gozam os sujeitos e os condicionamentos
sócio-históricos e linguísticos que regulam o comportamento discursivo deles.
Contexto é um modelo mental de uma
determinada situação comunicativa
O contexto, à luz
da abordagem sociocognitiva de discurso, é a representação social que os
participantes do discurso fazem da situação comunicativa com base em seus esquemas mentais. Portanto, contexto
não é o conjunto de elementos sociais extralinguísticos (ambiente social, papel
social, idade, gênero, etc.) aos quais se relaciona o discurso, mas a representação mental que os
participantes do discurso fazem desses elementos. Cumpre, doravante, elucidar o
que são esquemas mentais.
O processamento do
armazenamento da Memória Episódica e da Memória de Longo Prazo (ou memória
semântica) se dá por meio de esquemas
mentais. Os esquemas mentais são estruturas de conhecimentos
preexistentes na memória. Assim, quando os interactantes produzem ou
interpretam um texto, eles já trazem um conjunto de crenças e conhecimentos
prévios (background) estruturados
mentalmente. São esses esquemas mentais que funcionam como interface entre a
estrutura social e o discurso. Dois tipos de esquemas mentais são relevantes
para a produção e interpretação dos textos:
a) frames:
constituem
conjuntos de conhecimentos armazenados sob certo “rótulo”, sem que seja
necessário ordenação entre eles. Recobrem um padrão de conhecimentos fixos,
estabilizados na memória. São estruturas de conhecimentos mais gerais numa
comunidade ou sociedade.
Por exemplo, o frame Carnaval ativa
em nossa memória uma série de conhecimentos. Se somos brasileiros,
especialmente cariocas, pensamos em blocos de rua, Cordão do Bola Preta,
Desfiles das Escolas de Samba, alegorias, fantasias, Marquês de Sapucaí, etc.
Nós possuímos uma série de conhecimentos sobre esse frame. Assim também, o frame Show ativa uma série
de saberes a respeito da experiência relativa a show em geral. Sabemos que há
uma banda ou cantor, normalmente, que se apresenta; há o palco onde eles tocam;
há um lugar próprio para a realização do espetáculo. Para participar do show
como espectadores, precisamos comprar ingressos, etc.
b) scripts: recobrem conjuntos de
conhecimentos sobre modos de agir estereotipados em uma dada cultura,
incluindo-se aí modos de comportar-se linguísticamente. São um tipo de esquema
mental mais dinâmico, como, por exemplo, saber fazer um pronunciamento.
A língua dispõe de várias fórmulas de cortesia.
Pensemos também nos rituais religiosos, como batismo. Quando vamos a um
enterro, assumimos determinados comportamentos previstos culturalmente para
essa situação. Dizemos “meus pêsames pelo falecimento de seu marido”, ou algo
parecido; mas não “sinto muito por seu marido ter batido as botas”.
Se, por exemplo, o Presidente da República vai à
Câmara dos Deputados fazer um pronunciamento, os frames ‘’Presidente da República’
e ‘Câmara dos Deputados’ e o script ‘fazer um pronunciamento’ são
ativados na mente dos participantes do evento discursivo, de modo que eles vão
buscar em sua memória os conhecimentos e as crenças que julgam relevantes para
a escolha de estratégias de produção e interpretação textual para aquele evento
em particular. Frames e scripts permitem aos sujeitos sociais a
produção de inferências sobre as propriedades do episódio que não são
imediatamente acessíveis. A inferenciação é uma atividade linguístico-cognitiva básica
no processo de compreensão textual. Ao interagirmos socialmente por meio de
textos, não nos limitamos a apreender os conteúdos proposicionais dos
enunciados a que somos expostos, mas, a todo momento, estamos derivando deles,
com base no diversificado conjunto de saberes de que dispomos, conteúdos
implícitos.
Os elementos que fazem parte de um esquema mental
são armazenados na memória do indivíduo ao longo da vida e são prototípicos.
Assim, temos uma ideia prototípica do que é um mamífero: um animal de sangue
quente, com pelos, que amamenta. É devido a essa prototipicidade que ficamos
confusos quando descobrimos que um mamífero como o ornitorrinco põe ovos e um
mamífero como o morcego voa.
Os frames variam de acordo com a diversidade das
comunidades socioculturais. Assim, pessoas que vivem em comunidades
socioculturais diferentes terão esquemas mentais diferentes. As representações
mentais são controladas pelos esquemas mentais, os quais são constituídos de
conhecimentos e crenças arquivados na Memória de Longo Prazo. Conquanto as
representações mentais feitas pelos participantes do discurso sejam subjetivas
e únicas, elas também se constituem de grandes quantidades de conhecimentos e
outras crenças socialmente compartilhadas. O conhecimento cultural, portanto, é a base de todas as crenças
avaliativas, incluindo as opiniões, atitudes e ideologias socialmente
partilhadas. Pessoas diferentes, que possuem posicionamentos ideológicos,
muitas vezes, conflitantes, precisam compartilhar um conhecimento cultural
geral no qual se baseiam tais posicionamentos. A existência de esquemas mentais
diferentes explica por que as pessoas fazem diferentes representações
cognitivas de um mesmo fenômeno social que, por isso, não é o mesmo fenômeno
para pessoas diferentes.
Em suma, para Dijk, contexto é definido como constructo mental, que constituirá a
ponte entre os elementos da estrutura social e o discurso, ou entre a situação
social imediata e o discurso.
Poder
e ideologia
Para Dijk, poder
é controle social de um grupo (ou seus membros) sobre outros grupos (ou seus
membros). Assim, discursos expressam relações de poder. O discurso produz e
reproduz a dominação social, ou seja, o abuso de poder de um grupo em relação a
outros grupos, mas também serve para realizar movimentos de resistência a tal
abuso de poder. A maneira como os discursos expressam e sustentam relações de
poder é através da veiculação de posições ideológicas. Por isso, é extremamente
importante compreender o que são ideologias e como elas funcionam
discursivamente.
Para Dijk, ideologias
são crenças sociais gerais e abstratas que são compartilhadas por um grupo e
que controlam e organizam as opiniões, as atitudes e os conhecimentos
específicos desse grupo. A ideologia, segundo Dijk, é uma forma de cognição social, ou seja, a ideologia “é uma estrutura
cognitiva complexa que controla a formação, transformação e aplicação de outros
tipos de cognição social, tais como o conhecimento, as opiniões e as posturas,
e de representações sociais como preconceitos sociais”. (Dijk, 2008, p. 48).
Ideologias consistem em estruturas de normas, valores, metas e princípios
socialmente relevantes que são selecionados e empregados de modo tal a
favorecer a percepção, a interpretação e a ação nas práticas sociais que
atendem aos interesses de um grupo como um todo. A ideologia dota de coerência
as atitudes sociais, as quais, por sua vez, determinam as práticas sociais. É
extremamente importante salientar que “todas as ideologias (incluindo as científicas)
englobam uma (re)construção da realidade social dependente de interesses”.
(ibid.).
O discurso desempenha um papel fundamental tanto
na formação quanto na transformação das estruturas ideológicas. Por isso, o
analista do discurso está interessado em examinar quem e mediante quais tipos
de processos controla os meios ou as instituições de (re)produção ideológica,
tais como os meios de comunicação e as instituições de ensino. As ideologias,
enquanto cognição social, influenciam a construção social da realidade, as
práticas sociais e a (trans)formação das estruturas sociais. Cada um dos
elementos estruturais da ideologia (filiação, atividades, metas, valores,
normas, posição, relações de grupo e recursos sociais) pode servir de base para
a delimitação de um grupo. Assim, um grupo
social é um conjunto de sujeitos que compartilham determinadas
características que lhes dão o sentimento de pertencimento. Por exemplo, o
elemento “valores e normas” mostra como as ideologias são sempre avaliativas.
Segundo a orientação valorativa da ideologia, nosso grupo sempre está correto e
é normal, ao passo que os outros sempre estão errados ou são anormais.
Discriminam-se os elementos da estrutura ideológica, como se segue:
a) filiação:
quem somos nós? De onde viemos? Como nós somos? Quem pode se tornar um membro
de nosso grupo?
b) atividades:
o que nós fazemos? O que se espera de nós? Por que estamos aqui?
c) metas:
por que fazemos isso? O que nós queremos realizar?
d) valores
e normas: quais são os nossos
valores fundamentais? Como nós avaliamos a nós mesmos e aos outros? O que deve
e não deve ser feito?
e) posição
e relações de grupo: qual é a nossa
posição social? Quem são nossos inimigos, nossos adversários? Quem é igual a
nós e quem é diferente de nós?
f) Recursos:
quais são os recursos essenciais de que nosso grupo dispõe ou precisa dispor?
(poder econômico, poder político, cor de pele, civilização ocidental, etc.).
Nunca é demais lembrar que os discursos, sendo
produzidos por sujeitos social, cultural, histórica e politicamente situados,
jamais são neutros, mas sempre ideologicamente
condicionados. Todavia, nem todos os sujeitos têm consciência desse fato, o
que torna mais fácil o trabalho de manipulação das opiniões e das ações das
outras pessoas.
Acresça-se que as ideologias vão sendo
constituídas ao longo da vida das pessoas à proporção que elas se deixam afetar
pelos discursos de seus pais, mães, professores, líderes religiosos,
escritores, músicos, políticos, jornalistas, colegas, etc. A exposição a esses
discursos vai influenciar a maneira como os indivíduos representam e/ou
constroem os fenômenos sociais. A influência que esses discursos exercem está
diretamente relacionada às posições de poder ocupadas pelos atores sociais que
(re)produzem esses discursos, fato, aliás, óbvio quando se consideram mães,
pais e professores, cuja autoridade é vista como natural por filhos e alunos.
Destarte, os discursos formadores de ideologias são mais diretivos e explícitos
em casa e na escola. Por outro lado, quando consideramos os discursos de
jornalistas e escritores, a influência ideológica tende a exercer-se de modo
mais sutil e velada, o que não significa dizer que tais discursos não sejam
formadores de ideologias.
Importa, por fim, enfatizar que ter ou não
consciência da orientação ideológica de um discurso é resultado dos esquemas
mentais que as pessoas têm e que, integrados em um contexto sociocognitivo,
mediam as relações que os atores sociais – participantes do evento discursivo -
estabelecem entre o discurso e a estrutura social. O trabalho dos analistas do
discurso contribui para tornar patentes as orientações ideológicas
materializadas/veiculadas nos textos que circulam nas diversas esferas sociais
de uso da língua. Tais orientações ideológicas, muitas vezes, não sendo óbvias
para os leitores e ouvintes, podem ser decisivas para a manutenção da
desigualdade e das injustiças sociais. As escolhas lexicais e sintáticas feitas
pelos produtores de textos são sempre controlados pelos seus modelos mentais.
Nem sempre essas escolhas são conscientes, mas, quando feitas pelas elites simbólicas (jornalistas,
políticos, líderes religiosos, publicitários, escritores) -, elas são sempre
conscientes.
Quando pensamos a relação entre poder e discurso,
devemos, pois, assumir que poder é controle social do discurso dos outros.
As pessoas não são livres para falar ou escrever quando, onde, para quem, sobre
o que ou como elas querem; mas são parcial ou totalmente controladas por outras
pessoas, grupos ou instâncias que gozam do poder de exercer controle, tais como
o Estado, a polícia, a mídia ou uma empresa interessada na supressão da
liberdade da escrita e da fala. O poder, como controle social do discurso dos
outros, obriga também as pessoas a falar ou escrever como um grupo ou instância
quer que elas falem ou escrevam.
Uma
amostra de análise
Convém oferecer, doravante, um recorte de análise
que vise a demonstrar como o discurso pode exercer controle sobre os modelos
mentais de ouvintes e leitores. Van Dijk sugere que a análise comece levando em
consideração as macroestruturas semânticas, ou significados globais, que são o
tema ou tópicos discursivos. Essas macroestruturas semânticas são importantes
porque elas são conscientemente escolhidas pelo produtor do texto. Elas
expressam as informações subjetivamente mais importantes do discurso e marcam o
conteúdo geral dos modelos mentais dos eventos. Tópicos ou temas são
informações mais facilmente memorizadas pelos leitores. São caracteristicamente
tópicos ou temas os títulos, os resumos e sumários.
Terminada a análise das macroestruturas
semânticas, Dijk recomenda que o analista do discurso concentre sua atenção nas
microestruturas semânticas ou significados locais, atualizadas pelas escolhas
lexicais e sintáticas feitas pelo produtor do texto e também pelas relações
entre conteúdos explícitos e implícitos, tais como as pressuposições, e por
outros recursos imagéticos, tais como metáforas e metonímias. Os significados
locais são o resultado da seleção feita pelos falantes/escritores de
conhecimentos, crenças, ideologias constitutivas de seus modelos mentais.
Ademais, tais significados influenciam diretamente os modelos mentais e,
portanto, as opiniões e atitudes dos leitores e ouvintes.
Considere-se, para fins de análise, o seguinte
texto, sem autoria específica, publicado pelo jornal Correio da Bahia, em 19 de abril de 2011.
Fernando
Henrique comete erro de português em artigo
DESLIZE – O
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso cometeu um erro de português num artigo
sobre o PSDB, distribuído a sites e blogs e publicado no endereço eletrônico do
partido. O erro foi revelado ontem pela colunista Mônica Bergamo, do Jornal
Folha de S. Paulo. No texto, FHC diz que “existe ou existiu até a pouco certa
carga fiscal”. O correto é “existiu até há pouco”. O ex-presidente Lula cometia
diversos erros de português em seus pronunciamentos. O que chama a atenção no
caso de FHC é que ele é extremamente culto e estudado. O ex-presidente é
sociólogo formado pela USP, já lecionou na Universidade de Paris e fala
fluentemente diversos idiomas, como o francês e o inglês, além do português.
A fim de que fiquem claras as orientações
ideológicas que atravessam o texto, é importante saber que o Correio da Bahia pertence à família do
ex-senador Antonio Carlos Magalhães, falecido em julho de 2007. Esse jornal é
um meio de comunicação à disposição de um grupo político de direita, afinado
com grupos ruralistas e com outros grupos conservadores da sociedade brasileira.
Um dia antes da publicação desse texto, FHC desafiara Lula para disputar uma
eleição presidencial. Essas informações são relevantes porque fornecem pistas
sobre que estruturas ideológicas são compartilhadas pelos editores do jornal.
Levando em conta, em primeiro lugar, as
macroestruturas semânticas, é notável a preocupação do autor do texto com a
correção linguística, o que revela a orientação linguística normativista do
jornal. Essa preocupação do autor é a mesma que se expressa no patrulhamento
linguístico das elites brasileiras. Após relatar o suposto “erro” linguístico
cometido pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o autor introduz, sem
nenhuma razão aparente, uma informação sobre o ex-presidente Lula: “O
ex-presidente Lula cometia diversos erros de português em seus
pronunciamentos”. Sem deixar de ser curiosa, a menção aos erros de português
cometidos pelo ex-presidente Lula não é por acaso. Ao lembrar que Lula “cometia
diversos erros” em seus pronunciamentos quando era presidente, o autor do texto
simplesmente aproveita a ocasião para desqualificar Lula. Como sabemos que o
jornal Correio de Bahia é controlado
por grupos de direita, conservadores, alinhados ideologicamente com as elites
brasileiras, e que politicamente fazem oposição a Lula, o autor do texto
reproduz essa oposição que é tanto política quanto de origem sociocultural. A
expressão do compromisso do autor com o posicionamento político-ideológico do jornal
se torna inegável quando consideramos que, não fazendo mais qualquer referência
a Lula, o autor passa a fazer valorações positivas de FHC.
Quando, num segundo momento, consideramos os
significados locais, não podemos deixar de notar o uso de expressões
valorativas como “extremamente culto e estudado” para caracterizar Fernando
Henrique Cardoso. Expressões como estas não só assinalam avaliação positiva,
podem, como acontece no texto, orientar o leitor a anuir às seguintes
conclusões:
1. Se o erro de português cometido por FHC causa
surpresa, os “diversos erros de português”
que Lula, supostamente, cometeu não surpreendem devido à falta de sua
formação acadêmica;
2. Fernando Henrique Cardoso é um político mais
competente que Lula.
Como se vê, o objetivo do Correio da Bahia é criar uma imagem negativa de Lula e uma imagem
positiva de FHC, a despeito de este ter cometido também um suposto “erro de português”,
que, aliás, é categorizado como “DESLIZE” (uma forma linguística que conota ‘atenuação,
suavização’), o que reforça a ideia de que o que se considera “erro
linguístico” depende da origem sociocultural do falante. A avaliação positiva
de FHC, que se identifica com grupos de elite, e a construção de uma imagem
negativa de Lula, que se identifica com as camadas populares, encenam, no
âmbito ideológico, o velho embate etnocêntrico entre NÓS e os OUTROS.
O
controle do discurso público: o discurso jornalístico
Hegemonia, conceito-chave do
pensamento de Gramsci, designa o modo como um poder governante conquista o
consentimento dos governados ao seu domínio. A noção de hegemonia recobre as
ideias de ‘consentimento’ e ‘coerção’. Uma poderosa fonte de hegemonia política
é a suposta neutralidade do Estado. A hegemonia caracteriza o fato de o poder
de grupos dominantes integrar-se a leis, regras, normas, hábitos e a um
consenso geral. Os grupos podem exercer maior ou menor controle sobre outros
grupos, ou podem controlar certos grupos em situações específicas. Por seu
turno, grupos dominados podem, em maior ou menor grau, aceitar, consentir,
legitimar esse poder – até mesmo achá-lo “natural”-, ou podem resistir a ele.
A Análise Crítica do Discurso (ACD) cumpre, como
uma de suas preocupações, a tarefa de explicitar e explicar como os grupos que
gozam de maior poder controlam o discurso público e como o discurso público
passa a controlar a consciência de indivíduos e a ação de grupos (menos
poderosos) e quais são as consequências sociais desse controle (por exemplo,
desigualdade social, exclusão de minorias, etc.). O acesso à comunicação e ao
discurso público, ou o controle exercido sobre essas instâncias, representa um
importante recurso simbólico que define a base do poder de um grupo ou
instituição.
A maioria das pessoas tem um controle ativo tão
somente sobre as conversas cotidianas com membros de sua família, amigos ou
colegas. A maioria delas tem controle passivo sobre, por exemplo, os discursos
da mídia. Em muitas situações, as pessoas comuns são simplesmente receptoras
passivas, em menor ou maior grau, de textos orais e escritos, produzidos, por
exemplo, por seus chefes, professores e autoridades como oficiais de polícia,
juízes, burocratas da previdência social ou auditores fiscais. Todas essas
autoridades dizem em que a maioria de nós deve acreditar (ou não
acreditar) e o que podemos (ou não)
fazer.
Por outro lado, membros de grupos e instituições
sociais que gozam de maior poder – mormente as elites – detêm o privilégio do
acesso mais ou menos exclusivo a um ou mais gêneros de discurso público,
exercendo controle sobre esses gêneros. Destarte, os professores universitários
controlam o discurso acadêmico; os professores de escola, o discurso
educacional; os jornalistas, o discurso midiático; os advogados, o discurso
jurídico; os políticos, o discurso da política e de outros assuntos públicos.
Quanto maior for o controle dos agentes sociais sobre a maior quantidade de
discursos, sobretudo os mais influentes, tanto maior será o poder exercido por
esses agentes.
No que se seguirá, serão apresentadas algumas
considerações sobre o poder da mídia, com especial destaque ao discurso
jornalístico.
Não resta dúvida de que a mídia é um instrumento ou espaço de poder no mundo contemporâneo.
Não resta dúvida de que ela desempenha um papel sobremaneira relevante na
disputa pela hegemonia, na promoção de ideias identitários, na regulação e
normatização de comportamentos, na administração da memória, na constituição da
chamada opinião pública e na
formulação de agenciamentos democráticos. Sim, a mídia é um poderoso
dispositivo simbólico capaz de influenciar significativamente, de formas
variadas, a vida cotidiana e a atuação política dos indivíduos – isto é, a
maneira como eles agem, sentem, desejam, lembram, convivem e resistem.
Entretanto, a mídia não é apenas um instrumento de dominação burguesa; é também
uma instância de luta político-cultural, na qual se confrontam diferentes discursos,
ideologias e forças sociais. Destarte, ao mesmo tempo que a mídia legitima e
sustenta a ação coercitiva do Estado, moldando a vontade política da sociedade,
ela oferece também um espaço dinâmico e dialógico de manifestações
contra-hegemônicas, de expressão e encenação de vozes dissonantes de atores
sociais interessados na criação de novas formas culturais de viver e na criação
de uma nova ordem social.
Quando pensamos na influência da mídia na
formação da opinião pública, devemos
ter em conta que o que se chama de “opinião pública” é sempre um ponto de
contato entre o consenso e a força. Os chamados órgãos formadores da opinião
buscam captar e expressam o consenso da maioria, consenso este que justifica,
legitima e dá sustentação ao poder e à ação coercitiva do Estado. O Estado,
quando pretende tomar medidas impopulares, cria preventivamente a opinião
pública que lhe é adequada, a fim de obter o consenso geral. Se é verdade que a
Rede Globo e um jornal de grande
circulação nacional como a Folha de São
Paulo cumprem inegavelmente uma função de direção político-cultural, não se
deve daí concluir que sejam meros porta-vozes dos interesses das classes
dominantes. A Rede Globo, a Folha, o Estado de São Paulo, a Veja constituem um coletivo intelectual
que se ocupa da formulação e da elaboração sistemática da ideologia
indispensável à dominação do grande capital financeiro. Todas essas instâncias
midiáticas modelam a opinião pública e criam o clima cultural favorável e
indispensável às reformas liberais de um Governo, como por exemplo, às
privatizações do Governo de Fernando Henrique Cardoso.
A mídia, como partido, “captura” as “paixões
elementares” das massas, organiza-as e acomoda, com bastante eficiência, a
visão de mundo da sociedade às necessidades de desenvolvimento das forças
produtivas e aos interesses dos grupos de poder.
A maneira mais elementar e provavelmente mais
fácil de o discurso jornalístico formar a opinião pública e expressar o
consenso da maioria é reforçando a crença na objetividade do próprio discurso
jornalístico. Como o homem comum acredita que usamos a língua para nos referir
a um mundo externo de objetos que existem previamente e independentemente da
linguagem e da percepção-cognição humanas, não surpreende que ele imagine que,
diante de uma notícia que está lendo, ele está diante do que realmente
aconteceu. Por acreditar numa relação especular entre a linguagem e o real, o
homem comum crê que usamos a língua para falar de um mundo de objetos discretos
previamente existente e que a função da língua é apenas fornecer descrições
fiéis de estados-de-coisas no mundo. É preciso, no entanto, quebrar o encanto!
O homem, enquanto ser social, é construtor do
mundo; e o homem é construtor do mundo porque ele é aberto para o mundo.
Consoante ensinam Berger & Luckmann (2007, p. 142), “a experiência humana, ab initio, é uma exteriorização
contínua”. Ao se exteriorizar, o homem constrói o mundo em que se exterioriza.
No processo de exteriorização, o homem projeta na realidade seus próprios
significados. O homem é produtor de significados, e estes significados não
existiam antes do advento do homem. Para que fique clara a importância da
linguagem no modo como experienciamos a realidade, devemos atentar para como
Berger & Luckmann definem o que chamam de universo simbólico:
“O
universo simbólico é a matriz de todos os significados socialmente objetivados
e subjetivamente reais. A sociedade histórica inteira e toda a biografia do
indivíduo são vistas como acontecimentos que se passam dentro deste universo.” (ibid., p. 132).
Note que os autores ensinam que todos os
significados socialmente objetivados e subjetivamente experienciados como reais
são produzidos por essa matriz criadora chamada “universo simbólico”. Ainda
segundo os autores, “toda a realidade social é precária” e “todas as sociedades
são construções em face do caos”. (ibid., p. 141). Os universos simbólicos,
sendo sempre construções linguístico-cognitiva-sociais, recobrindo e
totalizando a realidade humanamente dotada de sentido e o cosmo inteiro,
proclamam o valor da existência humana – valor, no entanto, que inexiste fora
desses universos simbólicos. Os universos simbólicos são as extensões máximas
da projeção humana de significados na realidade. Quando eles são questionados e
abalados quer por movimentos sociais contestatórios ou revolucionários, quer
quando são ameaçados por epidemias e pandemias, a fragilidade da realidade
social que eles sustentam é exposta. É o universo simbólico que integrará e
unificará todos os processos institucionais. Graças a essa integração e
unificação realizadas pelo universo simbólico, a sociedade inteira ganha
sentido. Instituição e papéis particulares são legitimados por sua localização
em um mundo compreensivelmente dotado de sentido. O universo simbólico ordena a
história, o que significa dizer que ele localiza os acontecimentos coletivos
numa unidade coerente que abriga o passado, o presente e o futuro. No que diz
respeito à sua relação com o passado, o universo simbólico estabelece uma
“memória” que é compartilhada por todos os indivíduos socializados na
coletividade. O universo simbólico também constrói um quadro de referência
comum para a projeção de ações individuais. Assim, o universo simbólico cumpre
a função de ligar os homens com seus predecessores e seus sucessores numa
totalidade dotada de sentido, possibilitando a eles transcender a finitude da
existência individual e conferindo significado à morte individual. Finalmente,
o universo simbólico permite que todos os membros de uma sociedade possam
conceber-se como partes integrantes de um universo dotado de sentido, que
existia antes de terem nascido e que continuará a existir depois de morrerem. É
toda a comunidade empírica de seres humanos que é transportada para um plano
cósmico e tornada majestática e ficcionalmente independente das vicissitudes da
existência individual. Novamente é Berger & Luckmann que assinalam o papel
fundamental da linguagem na fabricação social da realidade:
“A
linguagem é capaz não somente de construir símbolos altamente abstraídos da
experiência diária, mas também de “fazer retornar” estes símbolos,
apresentando-os como elementos objetivamente reais na vida cotidiana. Desta
maneira, o simbolismo e a linguagem simbólica tornam-se componentes essenciais
da realidade da vida cotidiana e da apreensão pelo senso comum desta realidade.
Vivo em um mundo de sinais e símbolos todos os dias.” (ibid., p.
61).
A linguagem constrói esquemas de classificação ou
categorização para diferenciar objetos em gênero e número. A linguagem constrói
campos semânticos ou zonas de significação linguisticamente circunscritas. Por
exemplo, a soma das objetivações linguísticas referentes ao meu trabalho
constitui um campo semântico que ordena de maneira significativa todos os
acontecimentos da rotina que encontro em meu trabalho diário. Nos campos
semânticos assim construídos, a experiência, tanto biográfica quanto histórica,
pode ser objetivada, conservada e acumulada.
Contrariamente ao realismo ingênuo, o homem não
se relaciona com um mundo povoado de coisas independentemente da linguagem e as
quais seriam nomeadas pelas palavras, que funcionariam como espécie de
“etiquetas” para essas coisas. O referente é um evento cognitivo, produto de
nossa percepção moldada discursivamente. A práxis, definida como conjunto das atividades humanas que
engendram não só as condições de produção, mas, sobretudo, as condições da
existência de uma sociedade, modela a percepção/cognição e gera a
significação do mundo. O indivíduo percebe o mundo e o capta intelectivamente
através de “óculos sociais”. São através dos estereótipos da percepção, isto é,
dos padrões ou modelos perceptivos que vemos a realidade e que fabricamos o
referente. A língua une de modo indissociável percepção e cognição, impedindo o
indivíduo de ver a realidade de um modo ainda não programado pelos corredores
de estereotipação. Assim, nossa cognição está submetida a um processo de
estereotipação contínuo, de sorte de que consideramos real e natural todo um
universo de referentes e realidades fabricadas.
Todos os significados produzidos pelos universos
simbólicos são socialmente construídos. Há uma íntima relação entre percepção,
cognição, linguagem e cultura. São os sujeitos que constroem, mediante práticas
discursivas e cognitivas, social e culturalmente situadas, as versões públicas
do mundo. Segue-se daí que as categorias e objetos de discurso (os referentes)
não preexistem às práticas discursivas e cognitivas, mas são elaborados nessas
práticas e transformados segundo contextos.
Interpretar é necessariamente uma operação
sociocognitiva por meio da qual o sujeito nunca constrói o sentido em si, mas
sempre para outro sujeito. Destarte, toda experiência social é semiotizada:
atua-se numa situação social investida de sentido e reconstruída pelos esquemas
mentais dos interactantes.
As categorias cognitivas ou linguísticas não
existem a priori como entidades ontológicas (coisas no mundo). Elas são
construídas no processo de referenciação, por meio do qual objetos cognitivos e
discursivos são construídos nas práticas intersubjetivas das negociações, das
modificações, das ratificações de concepções individuais e públicas do mundo.
Tendo em vista o exposto, urge reconhecer que o
discurso jornalístico não produz senão uma ilusão de objetividade. O mundo que
nos é representado nas notícias ou nas reportagens é um mundo que passou por
processos de edição, ou seja, um mundo redesenhado, redefinido num trajeto
atravessado por milhares de filtros até aparecer no rádio, na televisão ou no
jornal. A notícia, embora seja um produto real que pode ser lida ou vista, é
sempre um símbolo, já que se põe no lugar de outra coisa. Não obstante, a
famigerada objetividade do discurso jornalístico é alardeada por especialistas
como um princípio ético que torna os gêneros jornalísticos práticas discursivas
comprometidas com a “verdade”. Acontece que a crença na objetividade apaga a
existência de um sujeito interpretante. Evidentemente, a objetividade do
jornalismo é difundida pelos próprios meios de comunicação como garantia de
credibilidade e como forma de manter a confiança de seu público, que espera
saber o que é e o que não é verdade sobre o mundo. A suposta imparcialidade e
neutralidade das informações veiculadas e a afirmada independência do repórter
visam a assegurar que o produto midiático é um espelho da realidade. O
jornalista seria, assim, responsável por produzir cópias fiéis da realidade.
O leitor, imaginando que está diante do que
realmente aconteceu, ignora todo o processo de criação e seleção existente no
ato de reportar um fato. Sem embargo, uma vez estejamos convencidos de que há
uma complexa interação entre cognição-percepção, linguagem e práticas culturais
na fabricação da realidade, o que chamamos de “fatos” são constructos
sociocognitivos, em cuja base estão teorias, conceitos, sensações, sistemas,
contextos, conhecimentos, linguagem. O discurso jornalístico não descreve ou
retrata o mundo objetivo, o mundo aparente e externo à nossa consciência, mas
fornece uma versão imagética do
mundo, constrói a realidade segundo uma série de processos que culminam na
fabricação do fato jornalístico. O jornalismo opera um tratamento simbólico da
realidade, mas jamais um retrato do mundo.
Ao pretender relatar os acontecimentos do mundo,
o discurso jornalístico discrimina objetos (fatos) já previamente selecionados
e nomeados por uma pauta escrita (lista), uma teoria subjacente ou esquemas
mentais. Depois de apurada, ou seja, depois que se ouvem possíveis testemunhas
do ocorrido e que fontes tenham sido checadas, esta lista e todos os dados são
usados para a redação de um texto – a notícia ou a reportagem -, que não sendo
um retrato fiel da realidade, é um modelo, uma versão pública do real, cuja
construção depende da interface linguístico-cognitiva. Não se trata de negar
que exista um mundo externo à mente, mas de fazer compreender que as formas
como experienciamos/percebemos o mundo são estruturadas pela linguagem. Vemos e
distinguimos as “coisas” como são percebidas e categorizadas pela linguagem.
O discurso jornalístico trabalha tanto com fatos
sociais quanto com fatos institucionais. Os fatos sociais dizem respeito a tudo
que ocorre na vida em sociedade, a estruturas e contextos, a ambientes onde a
atividade social humana acontece. Os fatos institucionais, por sua vez, pressupõem
o consenso humano. Exigem uma instituição humana para existir. Por exemplo,
para que um pedaço de papel seja considerado um dinheiro, é necessário que
seres humanos concordem entre si em atribuir a ele a função de representar sistematicamente o valor de
outras coisas em suas relações comerciais. Fatos institucionais não são
naturais, mas criações, ficções humanas.
Do repórter que noticia determinado acontecimento
até o telespectador/leitor que sobre esse acontecimento se informa, a “realidade”
é submetida a vários processos de reconstrução, seleção, adaptação e edição,
que tornam o produto final algo diferente e estranho à realidade “objetiva”. A
objetividade aparente da informação é, por si só, um instrumento de legitimação
de todo o processo de codificação. O leitor de um jornal, por exemplo, acredita
estar recebendo um “retrato” da realidade sem distorções ou manipulações. Sob a
aparência de se fazer um trabalho objetivo, ao noticiar apenas um fato tal como
aconteceu, vela-se um poderoso aparelho ficcional (de invenção, de criação),
mediante o qual a realidade é fragmentada, reunida, editada, adaptada e
interpretada segundo a ideologia da instituição jornalística. Em suma, a notícia
ou a reportagem não é a “realidade”, mas uma representação ou construção ficcional
da realidade. Habitando os porões da vida cotidiana, o homem comum ignora que “a
linguagem constrói (...) imensos edifícios de representação simbólica que
parecem elevar-se sobre a realidade da vida cotidiana como gigantescas
presenças de um outro mundo”. (ibid.). Quando se trata de pensar em que medida
a existência humana é dependente de uma rede simbólica tecida e mantida pela
linguagem, convém sempre atentar para a lição de Castoriadis:
“Tudo
o que se nos apresenta, no mundo social-histórico, está indissociavelmente
entrelaçado com o simbólico. Não que se esgote nele. Os atos reais, individuais
ou coletivos – o trabalho, o consumo, a guerra, o amor, a natalidade – os inumeráveis
produtos materiais sem os quais nenhuma sociedade poderia viver um só momento,
não são (nem sempre não diretamente) símbolos. Mas uns e outros são impossíveis
fora de uma rede simbólica”. (Castoriadis, 1982, p. 142).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BERGER, Peter L.; LUCKMANN,
Thomas. A fabricação social da
realidade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
CASTORIADIS, Cornelius.
A instituição imaginária da sociedade.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
DIJK, van Teun A. Discurso e contexto: uma abordagem
sociocognitiva. São Paulo: Parábola Editorial, 2013.
____________. Discurso e Poder. São Paulo: Contexto,
2008.
OLIVEIRA, Luciano A. Van Dijk. In: OLIVEIRA, Luciano Amaral.
Estudos do discurso: perspectivas teóricas.
São Paulo: Parábola Editorial, 2013.
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