
O valor do signo linguístico
Revisitando Saussure
Este texto vem
preencher uma lacuna quando da consideração que eu fiz, em outro momento,
acerca da contribuição de Saussure para o estabelecimento da Linguística como
a ciência que se ocupa da língua. Com vistas a preencher essa lacuna, impõe-se-me a
necessidade de tratar do conceito de valor
do signo linguístico no contexto de seu trabalho enquanto pensador que
lançou os fundamentos da Linguística moderna.
Antes
de me debruçar sobre a discussão sobre o conceito de valor na abordagem saussuriana da língua, procederei a uma contextualização
teórica dessa abordagem. Nessa contextualização, delinearei o escopo
epistemológico do estruturalismo em Linguística e esclarecerei a noção de relações sintagmáticas e relações
paradigmáticas, cuja compreensão é indispensável para que a noção de valor
linguístico seja compreendida em toda a sua importância epistêmica.
1.
Estruturalismo: breves apontamentos
Gostaria
de começar, pois, enfatizando que não devemos falar de um único conceito para o
termo estruturalismo. Em diversas
áreas do saber humano, tais como em antropologia, em sociologia, em psicologia,
alguma teoria estruturalista orientou a abordagem dos problemas submetidos à
investigação.
O
uso do termo estruturalismo para
caracterizar a abordagem saussuriana da língua esteia-se no pressuposto de que,
a despeito de as diversas escolas linguísticas que podem ser reunidas sob o rótulo
estruturalistas apresentarem
diferenças em termos de método e conceitos, todas elas se orientaram pela tese
de que a língua é uma estrutura, é um sistema. A tarefa do linguista, nesse
sentido, consiste, pois, em analisar a organização e o funcionamento dos
elementos constituintes desse sistema.
O
desenvolvimento da linguística estruturalista representa, deveras, um
acontecimento bastante significativo no pensamento científico do século XX. A
própria compreensão dos incontáveis avanços no quadro das ciências humanas
nesse século seria impossível, se não compreendêssemos a elaboração do conceito
de estrutura desenvolvido a partir das investigações do fenômeno da linguagem.
Toda uma geração de pensadores, entre os quais se acham Jacques Lacan, Claude
Lévi-Strauss, Louis Althusser, Roland Barthes evidenciam, em suas obras, a
contribuição pioneira de Ferdinand de Saussure, relacionada à organização
estrutural da língua.
É
no Curso de Linguística Geral, obra
póstuma que, na verdade, resultou de uma reconstrução do pensamento de Saussure
a partir de notas redigidas por alunos de três cursos que ele ministrou entre
1907 e 1911, na Universidade de Genebra, que se topam os fundamentos que
tornariam possível o desenvolvimento de um modelo teórico-metodológico
estruturalista. À luz desse modelo de análise linguística, a língua é
considerada um sistema articulado de signos, uma estrutura, na qual, à
semelhança do que sucede no jogo de xadrez (imagem abundantemente utilizada por
Saussure), o valor de cada peça não é determinado por sua materialidade, não
existe em si mesmo, mas é fixado no interior do jogo. Veremos ainda o que
Saussure entende por valor de um signo
linguístico, na seção destinada exclusivamente para o tratamento desse
tema.
Ainda
no que toca ao estruturalismo, é preciso notar que ele teve um impacto enorme
nos estudos da linguagem, no Brasil, durante os anos de 1960. Nesse período, o
estruturalismo já era a escola dominante. Foi nessa época que a Linguística foi
reconhecida, em nosso país, como disciplina autônoma. Por volta de 1970, o
estruturalismo já havia se estabelecido, no Brasil, como a orientação teórica
mais importante no âmbito dos estudos da linguagem. O estruturalismo contribuiu
bastante para criar um novo tipo de estudioso – o linguista. Não é que o
linguista inexistisse antes da consolidação do estruturalismo no Brasil, mas
sua existência até então tinha de ser afirmada em contraste com duas figuras
mais antigas: a do gramático, cujo interesse repousa na sistematização dos
conhecimentos que resultam do uso considerado socialmente “correto” da língua;
e a do filólogo, cuja preocupação reside no estudo das fases antigas da língua
e na análise dos textos representativos dessas fases. O linguista, por sua vez,
é um cientista da linguagem, cuja preocupação reside em descrever e explicar a
estrutura e o funcionamento da língua, sem fazer qualquer juízo de valor acerca
do uso de suas variedades.
É
certo que, atualmente, passados mais de 50 anos desde o impacto que exerceu
estruturalismo nos estudos linguísticos desenvolvidos no Brasil, o linguista
não precisa mais justificar sua própria existência em face de outros estudiosos
da linguagem. A Linguística atual se caracteriza por uma grande diversidade de
escolas, no entanto, malgrado o fato de haver orientações teóricas ainda muito
prestigiadas (como o gerativismo, o “funcionalismo” e a análise do discurso),
não existe uma orientação teórica hegemônica que coligaria os mais diferentes
interesses dos linguistas.
O
conhecimento intuitivo que o falante nativo tem de sua língua materna recobre
não só o saber a respeito das peças (signos) disponíveis, mas também das suas
possibilidades de organização, de articulação, de distribuição na cadeia
sintagmática. O que regula o funcionamento das unidades que compõem o sistema
linguístico são as regras e os princípios que internalizamos muito cedo na fase
da aquisição da linguagem e que compõem uma gramática
internalizada, cujo domínio intuitivo nos permite produzir e compreender um
conjunto praticamente infinito de enunciados em nossa língua materna.
A
abordagem estruturalista assume que a língua é forma, isto é, estrutura, e não
substância (a matéria a partir da qual ela se manifesta). É claro que há o
reconhecimento da necessidade da análise da substância para que seja possível
formular hipóteses sobre o sistema; afinal, um sistema que não apresenta
qualquer manifestação material, que não seja expresso por algum tipo de
substância, não desperta qualquer interesse científico, porque não pode sequer
ser investigado.
Uma
vez que, para o estruturalismo, o que importa é investigar a estrutura da
língua, esta deve ser estudada em si
mesma e por si mesma. O estruturalismo renuncia a toda preocupação com
fatores extralinguísticos, tais como as relações entre língua e sociedade,
língua e cultura, língua e distribuição geográfica, entre outros. O linguista
estruturalista está unicamente interessado na descrição das relações internas
entre os signos do sistema linguístico. Portanto, o recorte teórico do estruturalismo
cria um único objeto de estudo: a langue,
um sistema de signos homogêneo e abstrato.
2. Relações sintagmáticas e relações
paradigmáticas[1]
Entre as dicotomias que nos
legou Saussure como partes de seu projeto de fundamentação da nova ciência – a
Linguística -, se topam as relações sintagmáticas e as relações paradigmáticas.
Saussure sustentou que toda sincronia se relaciona a dois eixos em torno dos
quais se realiza a língua: o eixo
paradigmático ou das associações e o eixo
sintagmático ou das relações entre termos coexistentes.
Urge esclarecer que por sintagma Saussure entende uma unidade
maior que se compõe de duas ou mais unidades consecutivas.[2] Mattoso Câmara Jr.,
inspirado na definição saussuriana, definirá o sintagma como uma construção
resultante da combinação de formas mínimas numa unidade linguística superior.
Assim, em consonância com Saussure, uma forma como reler, é um tipo de sintagma, pois que resulta da combinação dos
elementos “re-“ (prefixo) e “ler” (radical). Portanto, para Saussure, tanto
como para Mattoso Câmara, o sintagma pode identificar-se com o nível do
vocábulo.
Tendo
esclarecido a noção de sintagma, passo a considerar o que são as relações
sintagmáticas. O eixo sintagmático baseia-se no caráter linear do signo
linguístico, ou seja, no fato de ser impossível pronunciar dois signos ao mesmo
tempo. É na cadeia sintagmática que um elemento linguístico passa a ter valor,
em virtude do contraste que estabelece com aquele que o precede ou lhe sucede,
ou com ambos. O eixo sintagmático recobre o domínio das relações entre unidades
linguísticas coexistentes; nesse eixo, os signos articulam-se entre si na
cadeia linear de fala. Por outro lado, as relações paradigmáticas recobre o
domínio das relações associativas e suas unidades estão numa relação de
exclusividade: se uma unidade se realiza sintagmaticamente, a outra está,
necessariamente, ausente. O paradigma, portanto, constitui uma espécie de
“banco de reservas” da língua. O paradigma recobre o conjunto de unidades
suscetíveis de aparecer num mesmo ambiente estrutural. Graficamente, os eixos
sintagmático e paradigmático se cruzam e funcionam numa inter-relação
necessária. Em outras palavras, a língua funciona mediante a inter-relação
necessária entre os dois eixos.
Veja-se
que as formas foi, era e ficou são passíveis de ocupar a posição
da forma “é” no eixo das relações
sintagmáticas, e o mesmo vale para as formas sincero, dedicado e pobre, suscetíveis de preencher o lugar
de “honesto”. A presença de “honesto” na oração “Pedro é honesto” resulta de
uma seleção operada entre as unidades virtualmente disponíveis no eixo
paradigmático. Portanto, as relações paradigmáticas supõem relações entre
unidades alternativas.
As
relações paradigmáticas supõem uma oposição entre elementos que formam “uma
série mnemônica virtual”. De fato, as unidades linguísticas estão organizadas
em classes de acordo com suas propriedades semântica, sintática e morfológica
como partes do léxico mental dos falantes. Esse conjunto de unidades
linguísticas virtualmente existentes e passíveis de ser comutadas com outras
num mesmo ambiente sintático recobre o eixo das relações paradigmáticas; em uma
palavra, constitui o paradigma.
3.
A noção de valor linguístico
Ainda
que possamos apreender o alcance da noção de valor também no eixo das relações
paradigmáticas, é no eixo das relações sintagmáticas que essa noção se
esclarece de modo mais consistente com a concepção saussuriana de língua como sistema de signos. O termo sistema é sinônimo de estrutura, muito embora Saussure tenha
preferido o uso do vocábulo sistema
em vez de estrutura. Estrutura é o conjunto de relações que
se estabelecem entre as partes de um todo, qualquer que seja esse todo. Da mesma forma que da relação sistemática
entre os ossos do corpo humano resulta o esqueleto, da relação sistemática
entre os signos linguísticos resulta a estrutura. Quando Saussure diz que a língua é forma e
não substância, ele quer dizer que a língua é sistema, é estrutura; ele quer
dizer que a linguística deve-se ocupar com a descrição das relações recíprocas
e sistemáticas entre os signos linguísticos. A fim de que a língua sirva à
interação social, é necessário que os enunciados que produzimos sejam dotados
de uma estrutura (forma), de uma
ordem. O significado das construções linguísticas depende da organização
interna de suas unidades, de seus signos. Quando comparamos (1) com (2), a
seguir, percebemos que (1) é uma frase em português, ao passo que (2) é uma
reunião aleatória de palavras.
(1)
Hoje, eu não vou sair.
(2)
*chocolate gosto eu de sorvete.
O
exemplo (1) constitui uma construção bem formada em português, porque suas
unidades constitutivas se dispõem numa ordem prevista pela gramática dessa
língua. Por outro lado, (2) não é sequer uma construção em português, já que
carece de ordem (estrutura). Trata-se de uma sequência de signos aleatória.
Portanto, no exemplo (1), temos uma frase em português, temos uma construção
linguística dotada de uma estrutura, de uma organização interna estabelecida
segundo um dos padrões de estruturação sintática previstos pelo sistema de
regras que constitui a gramática da língua portuguesa. Para que uma construção
seja dotada de significado e sirva à função de comunicação, ela deve apresentar
uma estrutura, ou seja, suas unidades constitutivas devem-se organizar segundo
um padrão gramaticalmente adequado. Veja-se que o exemplo (1) encerra a
estrutura SN-SV. O SV se constitui de uma locução verbal formada pela combinação
do auxiliar “vou” com o infinitivo “sair” Outras muitas formas são passíveis de
ocupar a posição de “vou”, conforme ilustra o gráfico abaixo:
Embora
possamos combinar preciso, posso e quero com o infinitivo “sair”, uma
combinação com “estar” é gramaticalmente inaceitável[3]. Portanto, uma sequência
como “eu estou sair” não obedece a nenhum padrão estrutural previsto em português.
Qualquer falante nativo de português sabe (ainda que esse saber não seja do
tipo declarativo) que o verbo “estar” combina-se com verbos terminados em –ndo para formar o que tradicionalmente
conhecemos como locução verbal (cf. está chovendo, estou cantando).
Uma construção como “Eu estou saindo” é gramaticalmente aceitável. Isso
significa dizer que ela segue um padrão estrutural previsto pela gramática do
português.
Por gramática, portanto,
deve-se entender aqui o sistema de regras
e princípios que governam a construção dos arranjos linguísticos. A
gramática disponibiliza as regras e os princípios que nos permitem organizar as
unidades linguísticas para a construção de enunciados em nossa língua
materna. Quando Saussure propõe que a
língua seja estudada enquanto sistema de signos que se articulam
reciprocamente, é sobre a gramática, tal como definida acima, que ele quer que recaia
o interesse analítico do linguista. O linguista deve se preocupar em descrever
como a língua se organiza estruturalmente a fim de tornar possível a produção do
sentido.
A fim de que possamos
adentrar na discussão sobre o que significa o conceito de valor linguístico em Saussure, necessário é insistir em que, para o
mestre genebrino, a langue é um
sistema de signos. Um sistema é um
conjunto organizado de elementos, no qual um elemento se define pelo outro,
isto é, a função de um elemento se define em relação com os demais. No antigo regime monárquico, o que faz um rei
ser rei é o fato de ele não ser um de seus súditos. Analogamente, em língua, o
singular só existe em função do plural.
Portanto, o valor das unidades do sistema linguístico se define pela oposição umas às outras. Por exemplo,
sabemos que o signo casa está no
singular, porque existe a contraparte com a marca –s indicadora de plural – casas.
Só podemos falar em morfema-zero - a
ausência de marca em casa -, porque
podemos verificar o morfema pluralizador –s
no signo casas. Em outros termos, o singular
é expresso justamente pela ausência de marca, de modo que a forma singular é a
forma não marcada. Em língua, a ausência de marca significa, mas só significa
em oposição a uma forma que correlativamente apresenta uma marca. Nos
substantivos, o masculino é a forma não marcada, mas só o é porque o feminino,
em português, é a forma marcada (cf. menino x menina, garoto x garota, doutor x doutora, professor x professora).
Para
Saussure, portanto, considerar a língua como sistema significa dizer que tudo na língua são oposições. São
justamente as oposições ou diferenças que nos permitem construir uma gama
diversa de conteúdos análogos de pensamento. A língua é um sistema de signos e
a gramática é o mecanismo através do qual esse sistema funciona, opera. Vejamos
mais um exemplo disso. Considerem-se as frases abaixo:
(3)
Reprovar o aluno não agrada ao
professor.
(4)
A reprovação do aluno não agrada ao
professor.
Destacou-se,
em negrito, em cada uma das frases, o seu respectivo sujeito. Em (3), o sujeito
é preenchido por uma oração de infinitivo – reprovar
o aluno. Em (4), o sujeito é preenchido por um SN cujo núcleo é a forma
nominalizada do verbo “reprovar” – “reprovação”. Note-se que, ao derivar reprovação de reprovar, ou seja, ao anexar o sufixo nominalizador “-ção” à base
do verbo “reprovar”, a estrutura do sujeito se altera. Em (3), o sujeito
oracional encerra um complemento desprovido de preposição – “o aluno”. Em (4),
o que era complemento direto – o aluno – torna-se complemento nominal
introduzido da preposição “de” – “a reprovação do aluno”. Em outras palavras, se a valência de
“reprovar” prevê um actante 2 (à direita) sem preposição - X reprova Y -, a valência de “reprovação”, por
outro lado, prevê um actante marcado formalmente com a preposição “de”: “a reprovação
de Y”. Trata-se de um mecanismo
bastante regular em português. Assim, dado um verbo ao qual se pode articular o
sufixo “-ção”, a forma nominalizada resultante poderá combinar-se com um
complemento introduzido pela preposição “de” (cf. a manutenção de, a
atualização de, a informação de, a acusação de, etc.). Assim, no sistema, a peça ‘N-ção’ (nome +
-ção) se combina com um termo introduzido da preposição “de”. Qualquer que seja
a alteração nessa forma de estruturação produzirá um resultado agramatical.
(4a)
*A reprovação o aluno não agrada ao professor.
Uma vez que se verifique a
desobediência das regras de organização das peças do sistema linguístico,
haverá prejuízo no plano do conteúdo, tornando difícil a inteligibilidade do
enunciado. Naturalmente, nenhum falante nativo de português produz (4a). É
parte do conhecimento intuitivo do falante nativo de português saber construir
enunciados com formas nominzalizadas terminadas em “-ção”.
Considerem-se,
ainda, os exemplos abaixo:
(5)
O menino é estudioso.
(5a)
A menina é estudiosa.
(6)
Os meninos são estudiosos.
(6a)
As meninas são estudiosas.
No
par (5)-(5a), ao comutar o substantivo de gênero masculino com a sua
contraparte no gênero feminino, o adjetivo sofre modificação em sua forma para
acomodar-se ao gênero do substantivo. No par (6)-(6a), ao comutar o substantivo
masculino no plural com a sua forma feminina no plural correspondente, o
adjetivo flexiona-se no feminino plural. Portanto, esse processo, que chamamos
de concordância nominal, dá testemunho do funcionamento do sistema linguístico.
As peças do sistema sofrem alterações em sua forma, isto é, suprimem ou recebem
elementos para combinar-se com outras peças.
Há casos, conforme vimos com a nominalização em “-ção”, em que, para uma
peça combinar-se com outra, é preciso que uma delas, a que governa o processo,
selecione outra peça que será responsável pela combinação. É o que ocorre em
(7) a seguir:
(7)
Eu gosto de sorvete de chocolate.
O verbo gostar, para combinar-se com o seu complemento – “sorvete de
chocolate”, seleciona necessariamente a preposição “de”, cuja função é
justamente permitir a relação entre a forma “gostar” e seu complemento. Sem
esse conectivo, o resultado é agramatical: * Eu gosto sorvete de chocolate.
O que Saussure entende por valor linguístico é justamente o
conjunto de diferenças que constituem o sistema da língua. Um signo é o que os
outros não são. O valor de um signo provém da situação recíproca dos signos na
língua. Na língua, só existe a produção e a interpretação das diferenças. Por
exemplo, se quisermos determinar o valor do fonema /b/, teremos de levar em
conta as relações de oposição que ele estabelece com outros fonemas. Assim, se
tomamos o par mínimo[4] ‘pote/ bote’, verificamos
que os fonemas /b/ e /p/ se opõem com base nos traços [+ sonoridade] e [-
sonoridade]. O som /b/ comporta o traço [+ sonoridade], enquanto o som /p/ é [-
sonoro] (ou [+ surdo]). Os fonemas /p/ e
/b/ constituem um par mínimo, pois que há um contraste fenomênico entre eles,
que é relevante para a distinção de significado entre palavras: presença x
ausência de [sonoridade].
É, portanto, da relação que
se estabelece entre dois signos que resulta o valor de cada um deles, bem como
seu significado individual. Os elementos da língua só adquirem valor enquanto
se opõem a outros, enquanto não se confundem com outros. Não é, portanto, sua
qualidade positiva e própria que os caracteriza, mas sua qualidade negativa,
opositiva, diferencial.
Falar em valor linguístico
é, antes de mais nada, ressaltar a natureza opositiva do signo. O que
fundamenta a especificidade de cada signo linguístico é a maneira como a língua
põe esse signo em contraste com todos os demais. O valor linguístico, portanto,
calca-se sobre a ideia de contraste
entre um signo com outros signos na cadeia sintagmática. A noção de valor para
Saussure caracteriza a língua como uma
rede de pares opositivos. Segundo Saussure, “na língua, só existem
diferenças”. (2003, p. 139). Quando atentamos para o paradigma flexional dos
verbos e dos nomes, compreendemos bem essa afirmação saussuriana. A primeira
conjugação e a segunda conjugação derivam seu valor pela oposição das marcas
“-ar” (da primeira conjugação) e “-er” (da segunda conjugação): vendar x vender. O futuro do presente se opõe ao futuro do pretério através da
diferença entre as desinências modo-temporais “-rá (-re)” e “-ria” (cf. Ele
venderá, eu venderei x ele/eu venderia). Já o presente se opõe ao pretérito imperfeito porque, no
presente, a desinência modo-temporal está ausente (morfema-zero); mas, no
pretérito imperfeito, essa desinência é –va:
estudaØ x estudava. No substantivo, o
masculino se opõe ao feminino pela ausência de marca de gênero masculino e
presença de marca no gênero feminino: meninoØ x menina. Quando a oposição se expressa pela presença vs. ausência de
marca, dizemos que a oposição é privativa ou binária. Quando a oposição se
expressa através de marcas equivalentes, como em “saberei” e “saberemos” (caso
em que “-i”, que expressa a primeira pessoa do singular, se opõe a “-mos”, que
expressa a primeira pessoa do plural), dizemos que a oposição é equipolente ou
polar. Há também a oposição gradual, caso em que uma forma se opõe a outra em
função da gradação de um dado traço, como em “pode x pôde”.
O princípio das oposições
funcionais constitui a própria base do axioma estruturalista, segundo o qual
cada unidade linguística só adquire valor a partir da oposição (substituição) e
contraste (combinação) com outras unidades pertencentes ao mesmo nível
gramatical. A noção de valor linguístico
caracteriza o fato de que a língua é um sistema cujos termos são todos
solidários entre si. O valor de um signo resulta tão somente da presença
simultânea de outros. Quer na esfera do significado, quer na esfera do
significante, o valor de um signo é constituído unicamente de relações e
diferenças com outros signos da língua. Por isso, segundo Saussure,
A língua
(...) é comparável a uma folha de papel: o pensamento é o anverso e o som o
verso; não se pode cortar um sem cortar, ao mesmo tempo, o outro, assim
tampouco, na língua, se poderia isolar o som do pensamento; ou o pensamento do
som (...). (ibid., p. 15).
Apêndice
O estruturalismo
norte-americano, cujo expoente foi Leonard Bloomfield, muito embora tenha se
desenvolvido de maneira independente no momento em que o pensamento de Saussure
começava a ser conhecido na Europa, encerra pontos em comum, malgrado as
diferenças, com a proposta formulada por Saussure. O estruturalismo de
Bloomfield, dominante, nos Estados Unidos, até aproximadamente 1950, se desenvolveu sob o rótulo de distribucionalismo ou Línguística distribucional.
Bloomfield estava
interessado na elaboração de um sistema de conceitos destinados à descrição
sincrônica de qualquer língua. Para tanto, ele assumiu os seguintes
pressupostos teóricos:
a) cada língua apresenta uma
estrutura específica;
b) essa estrutura se
evidencia em três níveis – o fonológico, o morfológico e o sintático -, os quais
se organizam hierarquicamente, com o fonológico na base e o sintático no topo;
c) cada nível é constituído
de unidades de nível imediatamente inferior: a oração se constitui de
sintagmas; os sintagmas, de palavras; as palavras, de morfemas; os morfemas, de
fonemas;
d) a descrição de uma língua
deve começar pela consideração das unidades mais simples, prosseguindo
gradativamente à descrição das unidades mais complexas;
e) cada unidade linguística
é definida em função de sua posição
estrutural, de acordo com os elementos que a precedem e que a seguem;
f) na descrição, é
necessária absoluta objetividade, o que exclui o estudo da semântica do escopo
da linguística;
Vou ilustrar como se deve
proceder à descrição da língua, segundo os itens d) e e). Tomemos para exemplo
o vocábulo casamento. Segundo o que
propõe o estruturalismo em d), devemos começar por descrever as unidades mais
simples da palavra “casamento”. Isso significa dizer que devemos decompor a
palavra em seus fonemas constitutivos. O resultado é o seguinte: /k/ /a/ / z/
/a/ /m/ /e/ /n/ /t/ /o/. Em seguida, passamos à discriminação das unidades
significativas que a constituem: cas-radical;
-a vogal temática; -mento sufixo de nominalização.
Prosseguimos observando a posição estrutural em que ela ocorre, é o que se
postula em e). A palavra “casamento” pode ocorrer nas seguintes posições
estruturais:
(8a) [O casamento do meu tio]
foi um sucesso
(8b) Havia muitos convidados
[no casamento do meu tio]
(8c) Foram muitas pessoas
[ao casamento do meu tio]
(8d) Já começaram os
preparativos [do casamento do meu tio]
Em todos os casos, o
vocábulo “casamento” preenche o núcleo de um SN, do qual faz parte o artigo
como pré-determinante. É justamente por admitir a combinação com artigo que o
vocábulo “casamento” pertence à classe do substantivo. Assim, todo substantivo
se caracteriza por admitir a combinação com um artigo (ou outro determinante
equivalente). Essa é uma propriedade estrutural do substantivo. A classificação
de uma palavra como “substantivo” depende, portanto, do ambiente sintático em
que ela sistematicamente figura. O aspecto semântico, tão privilegiado na gramática
tradicional, não entra a fazer parte da definição do substantivo (ou de
qualquer outra classe gramatical), segundo a perspectiva distribucional. O que
importa é considerar seu comportamento sintático, o entorno estrutural em que a
palavra se encontra. O
distribucionalismo visa a determinar como as unidades linguísticas se
distribuem, se organizam, se estruturam na cadeia sintagmática. Há,
evidentemente, diferença na distribuição do substantivo “casamento” nos casos
acima mencionados, quando consideramos o sintagma de que ele é o núcleo. Em
(8a), o vocábulo “casamento” é o núcleo de um SN que preenche a posição de
sujeito da oração. Já em (8b), “casamento” é o núcleo de um SN encaixado num SP
(em__SN), na função de adjunto adverbial. Em (8c), o mesmo vocábulo constitui o
núcleo de um SN encaixado no SP, o qual, por sua vez, preenche a posição de
complemento circunstancial de “ir” (cf. foram ao casamento...). Finalmente, em
(8d), “casamento” é núcleo de um SN encaixado no SP que funciona como
modificador do substantivo “preparativos”.
Em suma, “casamento” é distribucionalmente um substantivo, porque pode
ocupar a posição de núcleo de um SN; e esse sintagma nominal pode ou não ser
parte de um SP. O SN cujo núcleo é
preenchido sempre por uma palavra funcionalmente correspondente a um
substantivo pode exercer as seguintes funções sintáticas, ou seja, pode ocupar
as seguintes posições na estrutura oracional: 1) a de sujeito, caso em que, via
de regra, precede o verbo; 2) a de complemento direto, caso em que se pospõe ao
verbo; 3) a de predicativo do sujeito ou do objeto direto (cf. Pedro é um
grande amigo / Eu considero Pedro um grande amigo).
Para Bloomfield, o processo
de combinação das unidades da língua para formar construções de nível
imediatamente superior é governado por regras e princípios próprios de cada
sistema linguístico. Assim, algumas construções serão autorizadas pelo sistema
de regras da língua (a gramática), enquanto outras construções serão totalmente
desautorizadas.
É inegável a contribuição do
estruturalismo para a consolidação da Linguística enquanto ciência autônoma, em
consonância com os postulados saussurianos. Essa contribuição é patente quando
reconhecemos que a linguística distribucional propõe que o estudo da língua
seja levado a efeito com base na:
a) constituição de um corpus representativo de enunciados
efetivamente realizados por usuários de uma determinada língua, numa dada
época;
b) a elaboração de um
inventário, a partir desse corpus,
que permita determinar as unidades elementares em cada nível de análise, assim
como as classes a que essas unidades pertencem;
c) a verificação das regras
de combinação de elementos de diferentes classes.
Talvez a maior contribuição
do estruturalismo de Bloomfield para a Linguística é seu método de análise em constituintes imediatos. Os
proponentes do estruturalismo advogam que as peças de uma língua não se
organizam arbitrariamente, mas, ao contrário, distribuem-se em certas posições
particulares fixadas pelo sistema de regras da língua. A análise em constituintes imediatos evidencia o fato de que as
frases de uma língua são formadas pela combinação de construções – os seus
sintagmas – e não de uma simples sequência de elementos discretos. De acordo
com esse método, uma frase resulta de diversas camadas de constituintes. Assim, a frase “o casamento do meu tio
agradou aos convidados” é analisada como produto da combinação de dois
constituintes imediatos: um SN “o casamento do meu tio” e um SV “agradou aos
convidados”. Cada um desses constituintes imediatos é formado por outras
unidades constitutivas. Por exemplo, o SN “o casamento do meu tio”, encerra o
SP “do meu tio”, que, por sua vez, inclui o SN “o meu tio”. O SN “o meu tio”
resulta da combinação do núcleo “tio” com os determinantes “o”
(pré-determinante) e o “meu”. Graficamente, podemos analisar o SN “o casamento
do meu irmão”, isolando entre colchetes os termos marginais em cada etapa de
análise:
[o] casamento do meu tio
[do meu tio]
[de]
meu tio
[o] meu tio
[meu] tio
Veja-se que o substantivo
núcleo “casamento” do SN nunca é isolado entre colchetes. Todos as unidades do
sintagma são partes constitutivas dessa teia urdida a partir de um centro, de
um núcleo.
É particularmente importante
pontuar que essa análise por meio de colchetes permite resolver casos de
ambiguidade, como em (9):
(9) Pedro viu Maria com um
binóculo.
Essa frase é ambígua: tanto
pode significar ‘Pedro utilizou um binóculo para ver Maria’ quanto ‘Pedro viu
Maria enquanto ela portava um binóculo’. A ambiguidade de sentido resulta de
duas possibilidades de apreensão da estruturação da frase. Para o primeiro
significado, temos a estrutura:
(9a) Pedro viu Maria [com um
binóculo]
Nesse caso, isola-se o
constituinte menos aderente, que preenche a função adverbial, qual seja, a de
instrumento pelo qual Pedro vê Maria.
(9b) Pedro viu [Maria com um
binóculo]
Nesse caso, isola-se o
constituinte que corresponde a um SN, a cujo núcleo “Maria” se prende o
modificador “com um binóculo”. Agora, a leitura é: Pedro viu Maria enquanto ela
trazia um binóculo.
Abaixo, segue a análise exaustiva
da frase “o casamento do meu irmão agradou aos convidados” em seus
constituintes, os quais estão organizados em níveis gramaticais hierárquicos
diferentes: a frase constitui o nível hierárquico mais alto, enquanto o fonema
é o nível mais básico. Entre os níveis
intermediários, o morfema é hierarquicamente inferior ao nível da palavra, o
qual, por sua vez, é inferior ao nível do sintagma:
FRASE ______________ o casamento do meu tio agradou
aos convidados
SINTAGMAS __________ o casamento do meu tio / agradou os convidados
PALAVRAS _____________ /o / casamento/ /de/ /o/ /meu/ /tio/
/agradou/ /os/ /convidados/.
MORFEMAS ___________ /o/ /cas-/
/a/ /-mento/ /de/ /o/ meu/ tio/ / agrad-/ /ou/ /o/ /s/ /convid-/ /-ado/ /s/
FONEMAS __________
/o/ /k/ /a/ /z/ /a/ /m/ /e/
/N/ /t/ /o/ /d/ /o/ /m/ /e/ /u/ / t/ /i/
/o/ / a/ /g/ /r/ /a/ /d/ /o/ /u/ /a/ /o/ /s/ /c/ /o/ /n/ /v/ /i/ /d/ /a/ /d/ /o/ /s/.
Consoante se vê, a análise
distribucional, cunhada no modelo estruturalista, apresenta uma perspectiva
demasiadamente formal acerca do fenômeno da linguagem, de modo que a tarefa do
linguista é tão só, na descrição da língua, decompor suas unidades
constitutivas, identificar as regras por meio das quais elas podem se combinar
em unidades de nível cada vez mais alto e classificá-las com base num corpus representativo de enunciados.
______________________________________________________
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
SAUSSURE,
Ferdinand. Curso de Linguística Geral.
São Paulo: Cultrix, 2003.
[1] Vale dizer que Saussure não usa o termo
“relações paradigmáticas”, preferindo o termo “relações associativas” (CLG, 2003,
p. 142).
[2] Essa concepção alargada de “sintagma”
autoriza-nos a chamar de sintagma até mesmo as sílabas, muito embora a
concepção mais restrita de sintagma suponha a combinação, a articulação de
unidades menores, dotadas de significado, numa unidade hierarquicamente
superior. Assim, o que entendemos hoje por sintagma impede que se considerem
sintagmas as sílabas, já que estas são desprovidas de significado.
[3] Para que possamos combinar “estar” com infinitivo, é necessária a presença da preposição “a”. A construção resultante é semanticamente equivalente à construção de ‘estar + gerúndio”: ‘estou a cantar’. No entanto, a construção ‘estar a + infinitivo’ não é usada no português brasileiro.
[4] O par mínimo é um procedimento fonológico que permite determinar que sons pertencem à mesma classe. O par mínimo recobre duas palavras que diferem em significado quando apenas um dos fonemas é alterado. Por exemplo, “lata e “mata” formam um par mínimo, já que, comutando /l/ com /m/, temos duas palavras com significado diverso. Outros exemplos de pares mínimos são: ‘mar x par’, ‘luva x lava’, ‘dedo x cedo’. Note-se que, no par mínimo, a estrutura fonológica permanece praticamente a mesma, exceto pelo fato de um único fonema mudar: dedo x cedo.
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