
O
sujeito
Entre
o esquecimento e a ilusão de autonomia
Em Vontade de Potência (2011),
deparou-se-me a frase, que destaco de seu co-texto, e a cito aqui para ilustrar
um sentimento que, por vezes, se abate sobre minha constituição psicofísica: “O
homem cansa-se da vida quando não a vive plenamente”. Por muitas vezes, me
cansei da vida. Por muitas vezes, a vida me pesou como um piano que temos que
carregar sobre as costas para levá-lo ao andar de cima. Mas convém reinseri-la
no seu co-texto de origem, para que o potencial de sentido seja restaurado:
“O homem cansa-se da vida quando não
a vive plenamente. Viver plenamente não significa o conceito de plenitude do
objetivo que quer plenitude objetivada. Plenitude é objetividade e
subjetividade, é Apolo e Dioniso, é consciente e inconsciente” (p. 59).
Como
todo enunciado reclama interpretação, não poderia ser indiferente a este
trecho. Alguns conhecimentos prévios precisam ser ativados na memória do
leitor. A filosofia de Nietzsche é uma filosofia que enaltece o espírito
dionisíaco, que representa o “sim” à vida, que representa a emoção, o
sentimento, a ação. É afirmação da vida. A Dioniso, Nietzsche opõe Apolo, que,
para ele, representa a razão, a ordem, a harmonia, tão bem representados no
espírito da racionalidade grega. Racionalidade emblematicamente encarnada por
Sócrates, de quem Nietzsche dizia ser expressão da decadência, porque sua
filosofia, pelas mãos de Platão, negava a vida mesma em favor de uma vida transcendente,
irreal. Dioniso representa as forças ativas dos instintos, das pulsões, ao que
se opõe Apolo, que representa a razão, guiada pela vontade de verdade. Dioniso,
lembro aqui, era o deus, entre os antigos gregos, da conduta violenta, dos
excessos, das bebedeiras. Quiçá esse espírito festivo, até desordenado,
caracterizado pelos excessos, pela intensidade de existir, tenha levado
Nietzsche a concluir que Dioniso sintetiza tudo que há de afirmativo da vida. Creio não será custoso ao leitor, tendo volvido
novamente o olhar para o excerto referido, associar Apolo ao consciente e
Dioniso ao inconsciente. Nietzsche não via no inconsciente, ao contrário de
Freud, as forças monstruosas que podiam levar o homem à ruína, por isso pôde
insistir em que a plenitude depende de que a vida seja experienciada pela
conjunção daquelas duas esferas da natureza humana. Mais subjetividade para a
consciência, mais sonho, mais fantasia, a fim de evitar que ela funcione à
semelhança de uma máquina, é o que desejava Nietzsche. O homem é consciente e
inconsciente; nele os polos positivo e negativo são indissociáveis. Viver
plenamente para o homem significa, portanto, segundo Nietzsche, viver a
conciliação de sua dimensão consciente com sua dimensão inconsciente, de seu
polo positivo com seu polo negativo.
É
preciso, contudo, fazer avançar este texto, para o que tenho de deixar para
trás a filosofia de Nietzsche. Se lhe evoquei, ao menos a sombra, é para
incitar-me o corpo a prosseguir neste trabalho com a linguagem.
O tema
deste texto é o sujeito do discurso.
Algumas questões que procurarei responder serão: como se constitui o sujeito? É
ele sobredeterminado pelo social? É ele completamente consciente de seus atos? Pode
ele existir independentemente da linguagem? Em suma, quero mostrar o que tem a
nos ensinar sobre o sujeito a Análise do Discurso (doravante, AD) da vertente
francesa e a Psicanálise de orientação lacaniana. Primeiramente, discorrerei
sobre o sujeito à luz da abordagem da AD, me detendo na contribuição de
Charaudeau. Não deixarei, portanto, de oferecer uma visão geral do conceito de
sujeito na AD, muito embora seu desenvolvimento se apóie na lição de
Charaudeau. Num segundo momento, analisarei um trecho do texto Dando a volta por cima, de Cybele Ruas,
a fim de ilustrar de que modo a teoria de sujeito proposta por Charaudeau pode
enriquecer o trabalho de interpretação/compreensão textual. Ao cabo deste longo
trajeto, discutirei, não exaustivamente, a visão lacaniana de sujeito.
Tenho
consciência de que não escrevo para especialistas na área, ainda que haja entre
os meus leitores pessoas que já estudaram o assunto ou estão suficientemente
familiarizadas com ele. Ciente disso, começo notado o que não é o sujeito. O
sujeito não é o indivíduo de carne e osso, ou seja, o ser humano empírico
falante; também não é o autor (no caso do texto escrito). Na compreensão da
dinâmica interacional dos sujeitos, importa mais entender o papel desempenhado
pelo imaginário, ou seja, como os sujeitos se constituem interacionalmente, na
linguagem, numa dinâmica de produção de imagens recíprocas. A construção dessas
imagens depende da elaboração de hipóteses pelos sujeitos em interação. É
preciso fazer, portanto, uma transposição do pensamento do domínio da
materialidade empírica do indivíduo, da pessoa humana de carne e osso para o
domínio do ser do discurso, cuja existência e materialidade é discursiva. Pode
haver marcas linguísticas desse ser no discurso, como veremos. Na constituição
do sujeito, o simbólico (linguagem) e o imaginário atuam reciprocamente. Mas
não vou me apressar.
Disse
que os sujeitos “se constituem interacionalmente na linguagem”. Outra lição
importante é esta: não há sujeito fora da
linguagem. Tanto na AD (e isso vale para a Linguística de um modo geral)
quanto para a psicanálise o sujeito emerge para a existência apenas no domínio
da linguagem. Não existe sujeito antes que ele se aproprie da linguagem ou
antes que ele seja afetado pelo simbólico (como veremos no caso da
psicanálise). De passagem, noto que, no tangente à noção de autor, terei
algumas palavras a dizer. A função autor é, no senso-comum, superestimada. Na
escola, quando o professor trabalha com a leitura, o faz quase sempre supondo o
autor (pensado como o ser humano empírico) e pensando-o como o único responsável
pelo seu discurso. Durante o ensino de leitura, os alunos são instados a
compreender o que o autor quis dizer
(pressuposta, nesse caso, a crença equivocada em que o sentido já está dado,
cabendo ao leitor apenas “pescá-lo”). À medida que formos compreendendo como se
dá a constituição dos sujeitos, veremos – e nisso acompanho Charaudeau – que a
noção de autor é operacionalmente dispensável.
Quem
quer que se dedique a ensinar sobre a constituição do sujeito não se pode
escusar de levar em conta e definir conceitos tais como ideologia e/ou formação
ideológica, formação discursiva, pré-construído e discursivização. Outros
conceitos, intimamente ligados à noção de sujeito, poderão ser considerados,
segundo a orientação teórica e objetivos de quem queira ensinar sobre esse
tema, é claro. Para os meus propósitos, levarei em conta e definirei, no
momento adequado, os conceitos de discursivização,
ideologia, formação discursiva e pré-construído. Comecemos, sem mais
delongas, a compreender a noção de sujeito.
A noção
de sujeito envolve: a) as relações do sujeito com a situação de comunicação em
que se acha; b) os procedimentos de discursivização; c) os saberes, opiniões e
crenças que supõem partilhados com outros sujeitos (parceiros da comunicação);
d) suas competências comunicativa, discursiva e linguística.
No
tocante à situação de comunicação – e não pretendendo aqui fazer incursão em
sua problemática – deve-se ter em conta que ela não pode reduzir-se à situação
de comunicação imediata, ao ambiente físico e social ( objetos presentes no
campo experiencial dos interactantes, papéis sociais assumidos por eles,
instituições, etc.) em que se encontram os interactantes. Ela deve envolver um
“ambiente cognitivo partilhado”, um contexto sociocognitivo, ou seja, ao
considerarmos a situação de comunicação, devemos levar em conta o conjunto de
crenças, saberes, opiniões, valores (background)
armazenado na memória dos sujeitos, por força das experiências socioculturais
vivenciadas. Esse “ambiente cognitivo partilhado” será determinante para a
produção e compreensão do discurso.
No que
diz respeito à discursivização, basta saber que se trata do mecanismo
discursivo pelo qual se tornam evidentes no texto as instâncias dos atores
(pessoas do discurso – eu/tu), do tempo (agora) e do espaço (aqui). A
instanciação dos atores se chama actorialização;
a do tempo, temporalização; a do
espaço, espacialização.
É em
Pêcheux, analista do discurso francês, que a influência do sujeito lacaniano se
faz marcante. Para Pêcheux, o sujeito do discurso se constitui pelo
esquecimento daquilo que o determina. O sujeito se esquece de que, na sua voz,
falam outras vozes; se esquece de que o que diz é determinado por um
pré-construído (definirei adiante essa noção). Como sujeito de linguagem e,
portanto, sujeito social, por trás do sujeito fala uma comunidade discursiva;
em sua voz ecoa, sem que ele esteja disso necessariamente consciente, um coro
de atores sociais que encarnam as crenças, os valores, as ideologias, os
conhecimentos da sociedade ou grupo social a que ele, sujeito, pertence. Em
Pêcheux, o sujeito se constitui na ilusão de ser o senhor do que diz. Trata-se
do fenômeno da interpelação (Althusser) do indivíduo em sujeito do discurso. O
sujeito, então interpelado pela ideologia (não há sujeito sem ideologia), é
convocado a se pronunciar, a falar e, ao fazê-lo, esquece-se das determinações
ideológicas que lhes preexistem à fala a determinam. Ele não é, repito, a
origem do seu discurso, não é o senhor do que diz. Clara está a influência da
psicanálise, desde Freud, encontrando em Lacan um teórico empenhado, na
compreensão do sujeito: o sujeito não é senhor do que diz, tal como o eu não é
o senhor em sua própria casa.
Noto,
de passagem, que, na AD francesa dos anos 60-70, de que são expoentes Pêcheux e
Charaudeau, a ideologia é um conceito central. Considerarei, então, a
ideologia, em dois sentidos, que me parecem encontrar abrigo nos trabalhos da
AD. O primeiro sentido do termo que parece ser comum entre os teóricos que se
ocuparam do problema, quer sejam eles filiados a AD, quer sejam filósofos,
sociólogos, etc. é o de “sistema global de interpretação do mundo social” (DAD,
2006, p. 267). Esse sistema coerente de interpretação do universo social
desempenha um papel histórico no seio de uma sociedade determinada. A AD se
baseia no princípio segundo o qual não há discurso sem ideologia, todo discurso
é atravessado por uma ou mais formações ideológicas. Ideologia não tem, aqui,
um sentido negativo em si (tal como tem na tradição marxista), muito embora
possa servir ao estabelecimento e reprodução de relações de dominação de
classes, muito embora possa servir para a conservação do status quo, muito embora possa servir para falsificar a realidade
social e histórica, naturalizando-a, por exemplo.
O
segundo sentido do termo ideologia remonta à compreensão de Althusser. Esse
filósofo francês entendia a ideologia como relação imaginária dos sujeitos com
sua existência real, que se concretizava em aparelhos e práticas materiais.
Evitando faltar com o rigor na exposição do modo como ele entendia a ideologia,
precisarei que a ideologia, em Althusser, é a forma de os homens representarem
a si mesmos, de modo imaginário, as suas condições reais de existência. Na
ideologia, os homens representam a si o modo como imaginam ser essas relações,
e não as relações tais como realmente são. Isso explica, por exemplo, que eles
possam acreditar que, por serem assalariados, estão numa relação de
não-opressão e justiça com o seu patrão (muito embora saibamos com Marx que
essa relação, no modo de produção capitalista, é injusta, porque marcada pela
espoliação do proletário com a apropriação da mais-valia pelo capitalista).
Destarte,
a ideologia está vinculada ao inconsciente por meio da interpelação dos indivíduos em sujeitos. Sob o efeito da ideologia,
o sujeito a) crê na transparência da linguagem (ou seja, que os sentidos estão
nas palavras, se deixam ver claramente nelas, nos textos) b) crê, portanto,
que uma palavra designa uma coisa, que ela tem um significado imanente, c) e
não se preocupa em problematizar o estatuto dos sujeitos. Nesse último caso,
como se constituam pelo esquecimento daquilo que os determina, os sujeitos não
estão em condição de problematizar sua posição de sujeito. Aliás, o sujeito, na
prática textual em AD, é entendido como forma
sujeito, já que ele se caracteriza por ser afetado pela ideologia; quando o
sujeito do discurso se identifica com a formação discursiva que o determina ele
assume a forma sujeito (um sujeito “assujeitado”). Esse sujeito não é uno, mas
clivado; transita por diferentes formações discursivas; o sujeito são muitos.
Disse
anteriormente que a fala do sujeito é predeterminada por um pré-construído. O termo supõe uma
oposição entre algo anteriormente estabelecido com o que está sendo construído
por ocasião do discurso. O pré-construído é, portanto, a marca num enunciado de
um discurso que o antecede. Nesse sentido, o pré-construído se prende
inextricavelmente à noção de interdiscurso (o já dito). Há duas coisas
importantes que devemos ter em conta nessa noção: a) ela sugere uma imbricação
(sobreposição parcial) entre discursos e entre formações discursivas exteriores
e anteriores; b) ela também sugere a instabilidade da oposição entre o interior
e o exterior de uma formação discursiva.
O termo
formação discursiva foi, como se pôde
ver, recorrente até aqui. Imponho-me a tarefa de expor algumas palavras sobre
ele. Foi Foucault, em A arqueologia do
saber (2008), que cunhou o termo. A seguir, dou a saber o trecho em que
Foucault define o conceito de formação
discursiva, a fim de que não percamos de vista, na compreensão, o sentido
pretendido pelo seu criador:
“No caso em que se puder descrever,
entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos
de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se puder definir uma
regularidade, uma ordem,
correlações, posições, funcionamentos, transformações, diremos, por convenção,
que se trata de uma formação discursiva
(p. 43)”.
Em
negrito, destaquei duas expressões que me parecem fundamentais na compreensão
do conceito. Em primeiro lugar, é preciso compreender de que “sistema de
dispersão” se trata. Na verdade, se trata da compreensão por Foucault de que
não é possível – e nem necessário – pretender estabelecer uma unidade de temas,
conceitos, objetos com base na qual os enunciados poderiam se filiar a
totalidades a que poderíamos aplicar rótulos como “a medicina”, “a psicologia”,
“a gramática”, etc. Em outras palavras, Foucault observou que a análise não
poderia partir da suposição da existência de uma unidade que permitiria tratar
os discursos em um conjunto coerente. Pouco a pouco, ele se deu conta de que o
importante é que se estudem “formas de repartição” e que se busque descrever as
regras, as condições que tornam possível a existência dos enunciados. Se pôde
Foucault falar em formação (discursiva), é porque ele foi capaz de inferir uma
ordem em face do “caos” (aparente) em que pareciam habitar os enunciados ou os
textos. Essa ordem se encontra no sistema de regras. A formação discursiva
recobre, então, uma dispersão, uma unidade dividida (porque sistemas de
repartição cujos elementos – “objetos”, modalidade de enunciação, conceitos,
escolhas temáticas – não aparecem unificados compondo uma totalidade
imediatamente apreensível) e um sistema de regras que torna possível o
aparecimento de certo número de enunciados.
É com
Pêuchex que a noção de formação
discursiva, entretanto, passaria a ser útil a AD. Lembro que Pêuchex
desenvolve seus estudos no quadro teórico do marxismo de Althusser. Assumindo
que toda “formação social” se caracteriza por relações antagônicas entre
classes e por posições políticas e ideológicas organizadas em formações que
incluem relações de antagonismo, dominação e aliança, defenderá que uma formação discursiva determina o que se pode e deve dizer a partir de
um dado lugar social numa dada conjuntura sócio-histórica. Com Pêuchex, o
conceito de formação discursiva se reveste de um sentido normativo do
dizer-fazer.
Sua compreensão
de formação discursiva terá importantes implicações para a AD, duas delas são:
a) o princípio segundo o qual as palavras
mudam de sentido segundo a formação discursiva em que apareçam; b) e a
ideia de que é nas formações discursivas que se dá o “assujeitamento”, a
“interpelação”, ou seja, que emerge o sujeito ideológico.
Posteriormente
(no fim dos anos 70), Pêuchex revisará sua compreensão do conceito e passará a
entendê-lo na relação necessária com o interdiscurso, de tal sorte que a
formação discursiva não será vista como um espaço estrutural fechado, mas
aberto, sempre suscetível de ser invadida por outras formações discursivas.
Saliente-se, de passagem, que desde os anos 80, o termo não tem tido a mesma
acolhida nos trabalhos dos teóricos franceses da AD. Isso tem a ver, em parte,
pela obscuridade de sua definição. Todavia,
ainda hoje pode demonstrar-se útil ao empreendimento analítico no interior da
AD.
O
sujeito em Charaudeu
Creio
que, doravante, a noção de sujeito começará a ganhar mais concretude semântica
e se tornará operacional no processo de interpretação e compreensão textual.
Vou-me esforçar para que essa crença se verifique verdadeira, ao termo desta
seção.
Antes
de iniciar nosso percurso pelos caminhos teóricos abertos por Charaudeu na
tentativa de apreender a questão do sujeito, deve-se ter em conta três outras
características do sujeito do discurso:
1)
Como
ele seja atravessado por muitas vozes, que dizem a partir de lugares
sociais diferentes, o sujeito é
polifônico. Outras vozes falam através dele;
2)
O
sujeito se constitui, constituindo sentido;
3)
O
sujeito é clivado, a saber, dividido, porquanto traz consigo vários tipos de
saberes, de alguns dos quais está consciente, de outros quase consciente, e de
outros ainda não está consciente.
Charaudeau
propõe um desdobramento do sujeito. Assim, o autor diferenciará, no domínio da
produção, o sujeito comunicante (EUc) de um sujeito enunciador (EUe); e no
domínio da interpretação, um sujeito interpretante (EUi) de um sujeito destinatário
(EUd). O EUc está para o EUi assim como o EUe está para o EUd. Há, portanto, ao
menos, quatro sujeitos:
Sujeito
comunicante (EUc) relacionado ao Sujeito interpretante (EUi)
Sujeito
enunciador (EUe) relacionado ao Sujeito destinatário (EUd).
Tratarei
de expor, em subseções separadas, cada uma das formas sujeito, situando-as no
domínio que lhes é correspondente. Antes, porém, é necessário enfatizar que,
para Charaudeau, “toda interpretação é
suposição de intenção” (p. 32). Ao entrarem em interação, os sujeitos
necessariamente elaborarão um trabalho contínuo e recíproco de hipóteses. A
interação intersubjetiva instaurada pela linguagem pressupõem como condição
necessária a elaboração de hipóteses pelos sujeitos na busca por produzir
sentidos e se compreenderem. Há alguns conceitos importantes que precisam ser
previamente definidos para que possamos compreender adequadamente a dinâmica do
trabalho empreendido pelos sujeitos na produção e compreensão do discurso e na
constituição recíproca deles mesmos.
1) Condições de Produção
Mencionei
já o fato de a noção de sujeito recobrir as relações dos sujeitos com a
situação de comunicação; destaquei também que essa situação precisa ser
interpretada como um “ambiente cognitivo partilhado”. As condições de produção ou circunstâncias
do discurso, em Charaudeau, constitui o conjunto de saberes supostos como
partilhados pelos sujeitos e que são ativados por eles por ocasião do processo
de interação. Mas o autor enfatizará que a situação extralingüística não está
excluída de seu domínio semântico, mas faz parte das condições de produção.
As
condições de produção abrigam: a) saberes a respeito do mundo (práticas sociais
partilhadas; b) saberes supostos sobre os pontos de vista recíprocos dos
sujeitos do discurso (p. 32).
2) A noção de contrato
Também
entendido como contrato de comunicação,
o contrato designa a condição para que os interactantes se compreendam
minimamente. Ele supõe que todo ato de linguagem para funcionar precisa se
estabelecer numa espécie de consenso entre os interactantes. Esse consenso
envolve: a) o reconhecimento pelos interactantes de traços identitários uns nos
outros, traços estes que os definem como sujeitos; b) o reconhecimento do
objetivo desse ato de linguagem; c) o reconhecimento mútuo do tema envolvido no
ato; d) o reconhecimento da relevância das coerções e normas socioculturais que
determinam esse ato. Assim, por exemplo, numa situação em que pai e filho
interajam, eles se reconhecem como sujeitos portadores de uma identidade social
(que se define tanto pelo viés da biologia quanto pelo viés da lei) e se
reconhecem como sujeitos que ocupam cada qual um lugar social (na verdade, seus
lugares serão reforçados, demarcados no discurso). Essa identidade social é um
pré-construído, porque é definida anteriormente à prática discursiva. Durante a
prática discursiva, no entanto, os interactantes construirão identidades
discursivas. Identidade social e identidade discursiva são indissociáveis. A
identidade social é reforçada, recriada ou mesmo ocultada no discurso. E a
identidade discursiva só pode estabelecer-se sobre a identidade social, que se
lhe constitui a base. Assim, um pai
(identidade social) pode assumir, durante a prática discursiva, outras formas de
identidade de pai, tais como a de um pai autoritário, protetor, compreensivo,
castrador, indiferente, etc.
Sem
pretender levar adiante a questão das identidades, tal como a esboço aqui, vale
notar, de passagem, que a identidade discursiva, construída pelos sujeitos nas
práticas discursivas de que participam, servem para responder à questão básica:
“Estou aqui para falar como?”. Há que
acrescentar que, embora a identidade social seja já-construída, não redunda daí
que tanto ela quanto a identidade discursiva não devam ser consideradas dentro
da situação de comunicação. Ao contrário, ambas devem ser consideradas dentro
dessa situação. Outro ponto importante é que a identidade discursiva se
constrói pelos modos como os sujeitos se apropriam da palavra, pela forma como
constroem a organização enunciativa do discurso (por exemplo, se falam como
“eu” ou em nome de um “nós”) e na mobilização dos imaginários sócio-culturais e
discursivos. Oportunas são as palavras de Charaudeau, quando nos chama a
atenção para a importância de reconhecer um jogo interacional entre a
identidade social e a identidade discursiva e para as formas de escamoteação do
ser pelo dizer ou mesmo identificação entre ambos:
“É neste jogo de vai-vem entre
identidade social e identidade discursiva que se realiza a influência discursiva.
Segundo as intenções do sujeito comunicante ou do sujeito interpretante, a
identidade discursiva adere à identidade social formando uma identidade única
“essencialista” (“eu sou o que eu digo” / “ele é o que ele diz”), ou se
diferencia formando uma identidade dupla de “ser” e de “dizer” (“eu não sou o
que eu digo”/ “ele não é o que ele diz”). No último caso, ou se pensa que é o
“dizer” que mascara o ser (mentira, ironia, provocação), ou se pensa que o
“dizer” revela um “ser” que ignora a si mesmo (denegação, revelação
involuntária: “sua voz o traiu”) (2009, p. 5)
De
certo modo, essa questão estava já na agenda dos antigos gregos, que supunham
ser o logos (palavra, discurso,
razão) capaz de revelar o ser das coisas. Ou seja, até que ponto a linguagem permite-nos
acesso ao ser da realidade foi uma questão que ocupou o pensamento dos
filósofos clássicos.
Além de
reconhecer traços identitários um no outro, pai e filho também reconhecerão o
objetivo envolvido no ato de comunicação, bem como o tema que o sustenta. Ainda
que se encontrem numa esfera social não diretamente afetada por coerções
sociais válidas em outras esferas (por exemplo, válidas nas esferas públicas),
o pai encarna valores e padrões de moralidade que obrigam o filho a se
comportar de tal e qual modo em face do pai. Dependendo da identidade
discursiva assumida por este, o filho poderá exibir um comportamento – também
discursivo – que sinalize mais ou menos intimidade, distanciamento, admiração,
respeito, confiança, etc. ou pode ainda, em face de um pai autoritário, mostrar
profunda reverência e medo; e essas emoções, esses modos de ser vão repercutir
no modo como ele se comportará discursivamente. Na verdade, os modos como o
filho sentir-se na presença do pai, tendo em conta também o tipo de identidade
que este construirá na prática discursiva, serão determinantes do seu
comportamento discursivo.
Sumariando
esta seção, a noção de contrato recobre, então, a existência de pelo menos dois
sujeitos em interação, a existência de convenções, normas e acordos que
regulamentam as trocas linguísticas entre eles, bem como a existência de
saberes comuns graças aos quais a intercompreensão é possível, e toda a
situação de comunicação. Também devemos incluir no contrato comunicativo as
estratégias discursivas e os tipos e gêneros textuais.
3) Representação social
Também
designada de representação coletiva,
a representação social envolve a relação entre a significação, a realidade e
sua imagem. Vou-me demorar um pouco nessa questão, não só porque cuido-a fundamental
para a correta compreensão da problemática do sujeito, mas também porque ela
nos ensina muito sobre uma questão filosófica clássica: a realidade pré-existe ao pensamento e à linguagem? Em outras
palavras, existe uma realidade independente do pensamento e da linguagem? Ou
ainda temos acesso (cognitivo) direto à realidade? É possível conhecer a
realidade mesma?
De um
modo geral, os antigos supunham a possibilidade de o homem, pelo pensamento
estruturado num discurso capaz de discernir entre a aparência e a essência das
coisas, alcançar (conhecer), portanto, o ser (essência) das coisas ou da
realidade. Ainda procurando a brevidade, na tradição filosófica ocidental, duas
grandes visões podem ser distinguidas, no que diz respeito a essa questão: uma
visão supunha a existência de uma realidade ontológica a que o pensamento
poderia ter acesso (implicada aqui a concepção de que a linguagem espelha o
pensamento) e que se opunha um mundo sensível de aparências (Platão é, sem
dúvida, quem instaurou no pensamento ocidental essa cisão na forma de ver o
mundo); a outra visão supõe que entre a realidade ontológica e o sujeito
cognoscente, há uma espécie de “tela de construção do real” (DAD, p. 432). Em
outras palavras, entre a realidade e o sujeito cognoscente há a significação.
É a
esta última visão que me inclino. Estou convencido de que o mundo, para os
seres humanos, é mundo significado. O real, para os seres humanos, é real
semiotizado. Mesmo um elemento do mundo natural só existe para o homem quando
dotado de um “investimento simbólico” (Azeredo, 2007, p. 17). Nomear é fazer os
seres e as coisas ganharem existência, e não uma atividade de etiquetação de
objetos num mundo previamente dado. Entendo que a existência para o homem é uma
abertura do real ao simbólico – simbólico que constitui o ser mesmo do homem.
Para o homem, a existência é mergulhada em significados e por eles é
entretecida.
As
palavras criam conceitos. Quando nomeamos uma coisa ou ser, inserimo-la num
universo de significações de que ela toma parte em relações significativas com
outras coisas e seres. A linguagem, assim, estrutura nossas experiências de
mundo. Dá forma e sentido a essas experiências. É parte fundamental de um
processo interacional ou intersubjetivo de fabricação do real, com o concurso
de um aparelho perceptual-cognitivo adequado e de práticas culturais, em cuja
base se acha um sistema gerador de significados. A linguagem é a base da
cultura.
O
exposto acima faz eco às palavras de Azeredo (2007), que darei a conhecer ao
leitor em dois parágrafos, na íntegra. Convém ponderar sobre a lição do autor.
Convém também atentar para o papel fundamental da cultura na relação do homem
com o mundo:
“(...) o domínio simbólico e a
cultura que deriva dele são uma espécie de ponte que liga o homem ao mundo.
Podemos, no entanto, adotar outro ponto de vista: o mundo humano não é um mero
conjunto de objetos, mas um sistema de significados; não se encontra “fora” do
homem como uma coleção de coisas que ele possui, ganha, perde, deseja ou
descarta: o que chamamos de “mundo humano” é o universo de valores e conceitos
que interiorizamos ao longo da vida, no convívio com nossos semelhantes, muitas
vezes estruturados dicotomicamente, como realidade/fantasia, remédio/veneno,
normalidade/diferença, prazer/sofrimento, beleza/feiúra, direito/dever,
prêmio/punição. É esta interiorização que nos “humaniza”, à medida que nos
integra na “sociedade dos seres humanos” (p. 17).
Eis o
que me parece ser a ideia fundamental no texto do autor: “o mundo humano é um
sistema de significados”. Não se nega a existência do mundo das coisas
fabricadas pelo homem e dos seres naturais (animais, plantas, montanhas, etc.);
nega-se que esse mundo exista independentemente do homem, nega-se que esse
mundo exista exteriormente ao homem. Graças à função de simbolização da
linguagem, esse mundo é segmentado em categorias conceituais que constituem
‘dados’ de nossa consciência. Evidentemente, essa segmentação, esse recorte do
mundo em categorias fornecidas pela linguagem se dá nas experiências
socioculturais que supõem o mundo. À medida que os homens vão forjando os
valores e os conceitos com os quais vão (re)construindo a realidade e a
compreendendo, eles vão produzindo “o mundo humano”, que é, como eu disse,
mundo entretecido de sentidos. Pensar a relação entre o real e a linguagem é
pensar a oposição entre um mundo humano e um mundo natural. O surgimento do
mundo humano instaura uma divisão no próprio real. O real deixa de ser, como se
pensa o homem comum, um ‘dado’ a ser percebido pelos sentidos, mas como um
sistema de significações construído pelos seres humanos em suas práticas
culturais de existência. Não quero com isso dizer que a percepção-cognição não
esteja envolvida na fabricação simbólica do real; quero apenas dizer que esse
real não é uma coisa previamente existente e pronta para ser percebida pelos
sentidos humanos.
Lacan,
aliás, insistirá na ideia de que o bebê só se tornará sujeito, portanto, ser do
mundo humano, quando, por assim dizer, afetado pela dimensão do simbólico. A
linguagem nos humaniza e nos eleva à nossa condição natural. Por isso, dirá
Lacan, que a vida biológica está fora da experiência do sujeito. Ele só se
relacionará com ela por meio da linguagem, que a modifica e a fragmenta.
Voltemos
a Azeredo. O trecho seguinte se segue ao anterior e nele a ideia central é a “transformação do mundo natural em história
e cultura” pela ação do homem - ser simbólico -, portanto, com o concurso
da linguagem:
“Uma pedra, uma árvore, um peixe
existem como peças de um sistema ecológico no mundo natural, mas, no mundo
humano, interiorizado como história e cultura, esses seres passam a existir
como significados graças ao uso – ou, mais exatamente, ao investimento simbólico – que o homem faz deles. É esse uso e
investimento que os inscreve no mundo humano, no qual se tornam conceitos e
ganham sentido: a pedra, por exemplo, pode servir nas construções e no
calçamento de ruas, ser usado como arma ou transformar-se em objetos de arte, a
árvore pode fornecer alimentos, remédios, matéria-prima para móveis e abrigos;
o peixe é essencialmente o alimento, mas preparado de diversas maneiras:
assado, escaldado, frito, ou mesmo cru, mas em lâminas, como na culinária
japonesa” (ib.id.)
Não
devemos subestimar o papel da cultura na fabricação do real. Na verdade,
cultura e linguagem são inseparáveis nesse processo. A cultura é uma dimensão
que atravessa todos os aspectos da vida do homem em sociedade. É o modo de ser
e de existir do próprio homem no mundo. É no interior das práticas culturais
que os sistemas semióticos (artes, música, fotografia, etc.) , dos quais a
linguagem verbal se destaca, são forjados e podem produzir sentidos. A cultura
é um sistema de pensar, de sentir, de agir, de fazer e de relacionar-se com o
mundo e com o Absoluto. Ela constitui uma teia de significados e valores que se
tornam constitutivos da realidade e que orientam os homens em suas experiências
uns com os outros e com o mundo.
Essas
reflexões fazem-me retornar à lembrança a concepção que tenho de existência
humana. No homem, a existência é a abertura do ser para o sentido ou
significado. Se existir é estar em relação com, é “evadir-se de si”, é “sair de
si”, “exteriorizar-se”, no homem e para ele, existir é lançar seu ser ao
significado; eu acrescentaria: é lançar seu ser para o significado e nele
aprisioná-lo. Reitero que os homens estão condenados a produzir sentidos. Sua
existência é toda ela atraída irresistivelmente para (a produção de) o sentido.
Também
é nesse terreno de reflexões que gostaria de situar um conjunto de ideias que,
quiçá, auxilie o leitor na sua experiência de leitura. Espero que esse conjunto
de ideias alicerce uma crítica textual desconstrutiva. Decerto, estas ideias
não são novidade, mas não é menos verdade que elas não costumam ser imediatamente
acessíveis à consciência do homem comum.
Quando
nos preocupamos em buscar a verdade, em saber quem está com a razão, quase
nunca estamos totalmente conscientes de que todas as ideias, as concepções, as
crenças, as opiniões, as ideologias, visões de mundo, saberes, teorias, ilusões
engendradas pelos discursos e por eles veiculadas remontam a uma fonte primária
e única: o próprio ser humano. Mas
não o homem abstrato, como se pairasse acima do universo sócio-histórico e
cultural, por ele mesmo fabricado, mas o homem sócio-historicamente situado,
influenciado, moldado, determinado, ainda que não totalmente (certa margem de
liberdade não lhe pode ser negada), por toda uma comunidade de formações
sociais estruturadas em crenças, valores, instituições, ideologias de sua
época. Portanto, quem crê é o homem; quem pensa é o homem; quem diz é o homem;
quem se ilude é o homem; quem oprime é o homem; quem engana e se engana é o
homem.
Levar
em conta as consequências dessas ideias é importante não só quando nos debruçamos
sobre as religiões e nos perguntamos sobre a existência dos deuses, mas também
quando nos deparamos com declarações que acenam com a naturalização de práticas
sociais, que servem para sustentar relações de opressão, de dominação de certos
grupos sobre outros. Estendendo ainda o alcance das consequências dessas
ideias, elas nos ajudam a trilhar caminhos no sentido de uma compreensão mais
profunda das formas como os homens representam para si suas relações com o
mundo, das formas como eles instauram e reproduzem, justificam toda sorte de
relações, de práticas que contrariam e ferem seus ideias mais caros, entre os
quais os que nos foram legados pela Revolução Francesa.
Na
prática, considerando-se a relação do leitor com o texto, especialmente em sala
de aula, o caminho que aponto com as ideias referidas é o do desenvolvimento de
uma consciência de suspeita no leitor em face do discurso que se vai emergindo
quando da leitura do texto. O desenvolvimento da competência textual e
discursiva do leitor significa desenraizá-lo de um estado de inocência em face
do texto. O leitor inocente é um leitor que supõe poder achar uma verdade de
que é portador o autor do texto; é, além disso, um leitor que supõe que o
sentido está ali no texto boiando em sua superfície. É o leitor pouco eficiente
no mergulho cognitivo necessário para alcançar uma compreensão profunda do
texto. É também o leitor desatento para as outras vozes que ecoam no texto e
para os outros textos que são evocados, ou com os quais o texto lido se relaciona.
É o leitor que, produzindo uma leitura restritamente horizontal do texto, perde
a oportunidade de fazer ligações entre elementos e porções de palavras que se
acham em regiões diferentes e distantes do texto. É, em suma, o leitor que não
é bem sucedido na atividade de produção de inferências que lhe permite
recuperar os implícitos e raciocinar jogando com esses conteúdos em sucessivas
relações entre eles e deles com conteúdos explícitos.
Voltemos
à questão da representação social.
Para
Wittgenstein, as representações não evidenciam o mundo, mas são o mundo.
Segundo ele, é somente por elas que tomamos conhecimento do mundo. Bourdieu
insiste, a seu turno, que é necessário “incluir no real a representação do
mundo” (Bourdieu, 1982: 136).
Para
efeito de compreensão do conceito de representação social ou coletiva, vou
situá-lo em dois domínios do conhecimento humano: o primeiro é da psicologia
social. Nesse domínio, a representação envolve um trabalho de interpretação da
realidade pelas relações de simbolização que estabelecemos com ela e também um
trabalho de produção de significados. Assim, as representações sociais se
constituem de um conjunto de crenças, de conhecimentos, de valores e de
opiniões que são produzidas pelos sujeitos sociais de um mesmo grupo ou
sociedade e partilhadas entre eles. Evidentemente, esse conjunto diz respeito a
um objeto social considerado. Também é no interior da psicologia social que se
diferenciam níveis de construção da representação: há um nível profundo,
concebido como um ‘núcleo duro’, a partir do qual as representações ‘não
negociáveis’ se constroem e se relacionam por consenso, e constituirão a
memória da identidade social; e um sistema periférico de representações, no
interior do qual as categorizações são construídas e tornam possível a
ancoragem das representações na realidade imediata do momento. Nesse caso, os
sujeitos produzem modelos cognitivos de contexto, pelos quais eles representam
e buscam compreender as situações sociais de que participam.
O
segundo domínio é o da AD. Aqui se destacam as contribuições de Bakhtim e
Charaudeau. Aquele por ter introduzido no pensamento da linguística moderna as
noções de interdiscursividade e dialogismo, na base das quais toda uma
teorização posterior das representações pôde ser desenvolvida.
É com
base em Charaudeau que podemos compreender, para os meus propósitos, o conceito
de representação social. O autor observa que, uma vez que as representações
servem para organizar o real por meio de imagens mentais veiculadas no
discurso, elas devem ser inseridas no real, ou mesmo fornecidas pelo próprio
real. É importante entender que as representações se estruturam em discursos
sociais que vão dar testemunho do saber sobre o mundo, do saber sobre as
crenças que incluem sistemas de valores de que se servem os indivíduos para
julgar essa realidade. Também esses discursos que testemunham conhecimentos e
crenças vão viabilizar a construção de identidades pessoais (os membros de um
grupo podem construir uma consciência de
si), com base numa identidade coletiva.
O Desdobramento do sujeito
No domínio da interpretação
a) Sujeito destinatário (TUd) e o Sujeito
interpretante (TUi)
O
sujeito destinatário (TUd) é o interlocutor construído (uma imagem), é um
destinatário ideal fabricado pelo EUc. O EUc tem total domínio sobre esse
interlocutor, já que lhe fixa um lugar onde supõe que sua intencionalidade lhe
será totalmente transparente.
O
sujeito interpretante (TUi), por sua vez, ao contrário do TUd, situa-se e atua
fora do ato de linguagem produzido pelo EUc. Como todo ato de linguagem, uma
vez produzido, reclama interpretação, claro é que o TUi intervém nesse ato. Os
processos de produção e interpretação estão integrados. O TUi é, portanto, o
sujeito a quem compete o processo de interpretação, cujos efeitos escapam, no
entanto, ao domínio do EUc. Disso se segue, consoante nota Charaudeau (2010:
46)
“Assim sendo, se supomos que o TUd
está em relação de transparência com a intencionalidade do EU, o TUi, ao
contrário, se encontra em uma relação de opacidade com essa intencionalidade,
já que não é uma criatura do EU. O TUi só depende dele mesmo e se institui no
instante exato em que opera um processo de interpretação”.
A esta
altura, duas observações são essenciais. A primeira diz respeito ao conceito de
intencionalidade. Embora se encontre
em seu texto o termo “intenção”, observa o autor que a opção pelo uso dele se
deve a sua intenção de expressar a ideia de “um conjunto de intenções que podem
ser mais ou menos conscientes, mas que são todas marcadas pelo selo de uma
coerência psicossociolinguageira” (p. 48). Assim, pretende salientar o aspecto
inconsciente envolvido no ato de linguagem, bem como os efeitos do contexto
sócio-histórico sobre este ato. A segunda observação é ter em conta que o TUi
situa-se na esfera externa do ato de linguagem. Ao contrário do TUd, ele não é
uma imagem construída pelo EUc.
No domínio da produção
Sujeito comunicante (EUc) e o Sujeito
enunciador (EUe)
Tanto
quanto o TUi o EUc é um sujeito agente que se institui como locutor e ao qual
compete construir um discurso. A ele cabe o poder de iniciar o processo de
produção. Ele é também testemunha de um real, muito embora de um real
construído no seu universo discursivo. Lembro que o real não tem uma existência
prévia ao discurso. Charaudeau observa, a esse respeito, o seguinte: “(...) Não
consideramos que haja em algum lugar uma realidade fixa, indiferente à
linguagem e mais verdadeira que ela. Conferimos ao real um valor de estatuto
imaginado pelo homem” (p. 51, ênfase no original). É preciso, contudo, frisar: não se trata de ver aí um real
subjetivamente construído, como um mero produto de crenças, valores e saberes
subjetivos. Na verdade, por trás do sujeito, há uma comunidade que encarna
essas crenças, valores e saberes do qual ele é herdeiro. Disso se segue que o
real é uma construção intersubjetiva
que se dá na linguagem no interior de um dado sistema cultural.
No que
diz respeito ao EUe, deve-se ter em conta que, da perspectiva da interpretação,
ele é um sujeito construído pelo TUi. É uma imagem do ser do discurso
construída pelo TUi. Quando nos situamos no domínio da produção, o EUe será uma
imagem de enunciador construído pelo EUc e representará sua intencionalidade.
Observações
Tendo
em vista o exposto acima, preciso fazer algumas considerações suplementares.
Tendo em conta o EUc, urge entender que ele assume o papel de produtor de um
ato de linguagem e, nesse momento, imagina como seria a reação do TUd. O TUi, a
seu turno, ocupa o lugar de interpretante de um ato de linguagem em virtude do
que ele pensa sobre o EUc. Ao produzir uma imagem do EUc, ele cria o EUe.
O EUe e
o EUd são independentes, em parte, do EUc e do EUi. Aqueles são seres do
discurso. É só no discurso que ganham um estatuto linguístico e passam a existir
com relativa independência destes últimos.
Também
preciso dizer que o EUe e o TUd são, em parte, transparentes, porquanto se
inscrevem no ato de linguagem por meio da estruturação desse ato. Por outro
lado, não há relação de transparência entre o EUe e o EUc (Charaudeau, p. 49).
O Eue é tão-só uma representação linguística parcial do EUc, embora também seja
uma representação construída pelo TUd. O Eue “é uma máscara de discurso usada
pelo EUc” (ib.id.). Acrescente-se que, pode haver ocultamento graduado do Euc
pelo EUe, ou mesmo um distanciamento igualmente graduado entre eles.
O que
vimos apresentando e desenvolvendo até aqui leva-nos à conclusão, com
Charaudeau, de que a noção de autor
se demonstra pouco útil, do ponto de vista analítico. O autor, entendido,
tradicionalmente, como uma função organizadora do discurso, recobre um sujeito
duplo: o EUc e o EUe.
O EUc,
conquanto se situe na esfera exterior ao ato de linguagem, não deixa de atuar
na totalidade desse ato. Igualmente importante é considerar a intervenção, no
processo interpretativo, do TUi, com base no conhecimento de que dispõe do EUc.
Se o TUi intervém no processo de interpretação baseando-se no conhecimento que
tem do EUc, segue-se daí que o EUc não é um ser único, já fixado de uma vez por
todas. Ele será aquilo que o processo interpretativo dizer dele. O EUc depende
do conhecimento que o TUi tem dele.
Cabe
ainda referir os dois modos de proceder do EUc:
1o
Ele constrói uma imagem do real como locus
da verdade exterior a si mesmo (sujeito) e que se investe do poder de lei. Essa
verdade situa-se além dele, independe dele, é algo que ele supõe, acredita
descobrir e se encarrega de revelar,
a-presentar no discurso. Nesse caso, o discurso para o sujeito comunicante
não produz um efeito de verdade, mas,
porque afetado pela ideologia, crer poder revelar
a verdade;
2o
Ele fabrica uma imagem de ficção que considera um lugar a partir do qual o
sujeito se identifica com o outro. Essa imagem constituirá um lugar de onde se
dá a projeção do imaginário desse sujeito.
Vale
ainda considerar as duas apostas do sujeito falante: a) a primeira diz respeito
a sua expectativa de que os contratos instituídos por ele por ocasião do evento
interacional sejam aceitos e bem vistos pelo sujeito interpretante; b) a segunda
aposta é atinente à expectativa que tem de que as estratégias empregadas surtam
o efeito desejado.
É com a
noção de estratégia, portanto, que encerro esta seção, após a qual iniciarei a
análise de um trecho do texto do texto Dando
a volta por cima, de Cybele Ruas. Em seguida, passo a considerar, com a
brevidade exigida pela longa extensão deste texto, a esta altura, a questão do
sujeito na psicanálise.
A noção
de estratégia estriba-se na hipótese
de que o sujeito comunicante (EUc) concebe, organiza e encena suas intenções de
modo a produzir determinados efeitos – de persuasão ou sedução, sobre o sujeito
interpretante (TUi). Seu objetivo é levá-lo a identificar-se , de modo
consciente ou não, com o sujeito destinatário ideal (TUd), então, construído pelo
EUc.
Uma proposta de análise
Dando a volta por cima
Cybele Ruas
[...] Algumas pessoas são resistentes,
aparam os golpes da vida; outras simplesmente desabam. Não adianta ser duro
como o aço: o impacto pode ser pior. É necessária alguma elasticidade,
suficiente para absorver o golpe, mas é preciso recuperar o equilíbrio.
Resiliência é o nome técnico para a capacidade de absorção do choque e
recuperação da forma original.
Que golpes? Famílias disfuncionais,
divórcio, viuvez, perda de filhos, desemprego, problemas financeiros,
violências sofridas, mudança de cidade, ou de país – há muita coisa que pode
nos atingir ou abalar. Não há como evitar os percalços da vida.
Nossa força pessoal é intimamente
relacionada com a autoconfiança: quanto mais psicologicamente estáveis, mais
resistentes seremos às tensões. [...]
A resiliência é como se fosse um músculo
psíquico, que pode ser exercitado. Mas é melhor encará-lo como arte – de bem
viver: as pessoas fortes não se deixam limitar pelas adversidades; estabelecem
metas que vão sempre um pouco além, na certeza de que os tempos ruins são
passageiros (...).
Há uma verdadeira indústria de vítimas, que
tende a fazer que as pessoas se digladiem com traumas durante toda a vida: as
fraquezas passam a ser nutridas a pão-de-ló. Na verdade, somos
consideravelmente fortes, embora possamos não saber disto, e é esta força
interior que devemos buscar.
Em
primeiro lugar, situemos os lugares dos sujeitos, tendo em conta o discurso de
que este texto é expressão. O Euc, externo ao discurso, é o produtor dos atos
de linguagem que o constitui. É, em suma, o produtor do discurso. Esse EUc, ao
longo do processo de construção do discurso, construirá uma imagem de si,
denominada de Eue (sujeito enunciador). O Tud é a imagem do interlocutor (no
caso do texto escrito, do leitor) construída pelo EUc. O Tud é, portanto, a
imagem de leitor construída pelo EUc. O TUi é o ser exterior ao discurso,
embora responsável pela interpretação do discurso. O TUi também construirá uma
imagem do EUc, ou seja, também construirá um EUe, que pode ou não
identificar-se com o EUe construído pelo EUc.
O texto
em tela pertence ao gênero artigo, cuja publicação (penso eu) deve ter se dado
num jornal de grande circulação. Trata-se de um texto escrito por uma
especialista na área de psicologia com o objetivo de esclarecer um público
leigo sobre o significado de um termo técnico próprio dessa área de
conhecimento, qual seja, resiliência.
De certo modo, o EUc supõe a ignorância de seu público sobre o que significa
esse termo. Note-se a importância da elaboração de hipóteses: o EUc formula a
hipótese inicial de que está escrevendo para um público não especializado na
área e que, portanto, não detém o conhecimento do que significa resiliência. Logo, a imagem que o EUc
constrói do leitor, que será seu TUd, é a imagem de quem “ignora o significado
de um termo técnico importante em psicologia”. Evidentemente, essa hipótese
inicial não totaliza a imagem do TUd. A essa hipótese, podem-se somar outras duas:
“o Tud é alguém interessado em aprender sobre psicologia” e “o conhecimento do
que significa resiliência pode ajudar
as pessoas a compreender um fato importante a respeito do modo como elas se
relacionam com o mundo”. Talvez, esta última hipótese pudesse ser reelaborada
com outros termos, mas o que ela diz é que o EUc supõe que é importante saber o
significado do termo, porque ele descreve tipos de personalidades que existem e
que reagem às dificuldades da vida de um modo que foi identificado e descrito
com o termo. É interessante ver aqui como as palavras, ao criar conceitos,
permitem que a experiência representada passe a existir como um dado de
consciência do homem. Claro é que a experiência de mundo das pessoas as ensina
que certas pessoas exibem uma capacidade de superação de problemas que lhes
impressiona. Todavia, antes que se criasse um termo, um conceito para
representar essa experiência, ela não estava integrada num universo conceitual (embora
a ela sentidos já pudessem estar associados, visto que nossas experiências são
estruturadas na linguagem) com o qual interpretamos experiências semelhantes e
as relacionamos com outras experiências análogas ou distintas. Resiliência
descreve, assim, uma experiência que representada na forma de conceito se integra
num universo simbólico. Ao ouvir a palavra resiliência, quem quer que conheça
seu conceito ou significado ativa uma imagem mental dessa experiência. O signo
é justamente isto: algo que está no lugar
de. Não precisamos viver a experiência para saber do que se trata; uma vez
sabendo o que significa a palavra resiliência,
a experiência, assumindo a forma de conhecimento, de conceito, é ativada em
nossa memória, é representada cognitivamente em nossa mente.
Tendo
em conta as hipóteses iniciais do EUc, com as quais constroem o seu TUd (lembro
que o leitor é o TUi), o EUc levará adiante o seu projeto de dizer. E ele o
inicia com informações que supõe conhecidas do TUd. Em outras palavras, ele
representa no discurso experiências com as quais – ele espera – o leitor venha
a se identificar (“eu já vivi isso, pensará o leitor”). Trata-se de uma
estratégia bastante eficaz para o seu propósito básico. Como o EUc quer
introduzir no modelo textual do leitor um termo (uma informação nova) cujo
significado supõe que ele, leitor, desconheça, conclui ser mais adequado
iniciar seu texto representando experiências possivelmente já vividas pelo
leitor, ou seja, representando um modelo de mundo reconhecido pelo leitor. Aqui
está o efeito de verdade: o EUc, que também constrói uma imagem de si, supõe
ser portador de uma verdade sobre o modo como o mundo funciona. Ou seja, nesse
mundo textualizado pelo EUc, há pessoas que “são resistentes”, que “aparam os
golpes da vida”, isto é, há pessoas que suportam com firmeza os problemas da
vida, de tal modo que conseguem “dar a volta por cima”. No mundo proposto pelo
EUc – melhor será dizer construído em seu discurso -, há pessoas que, tendo
sido acometidas pelos problemas da vida, conseguem se recuperar após os
traumas. Elas gozam de uma capacidade de superação de tais problemas que chama
a atenção dos especialistas, a ponto de eles terem lhe destinado uma palavra
que a descrevesse.
Noto,
de passagem, tendo em conta a importância das hipóteses que o EUc vai
produzindo sobre os saberes, as crenças, as expectativas do TUd, que, ainda no
primeiro parágrafo, o EUc parece prever a conclusão, pelo leitor, após a
leitura dos enunciados iniciais, segundo a qual “é preciso ser duro e
resistente”. Opondo a essa conclusão justamente a ideia contrária (“Não adianta
ser duro como o aço: o impacto pode ser pior”), o EUc poderá prosseguir
argumentando no sentido contrário àquela conclusão, ou seja, entenderá que é
preciso certa maleabilidade ou “elasticidade, suficiente para absorver (como
uma esponja?) o golpe”. Em seguida, pela introdução do “mas”, o EUc encaminha a
argumentação no sentido contrário a uma conclusão do leitor que ele mesmo EUc
antecipa. A essa altura, o leitor poderia estar pensando: “se não devemos ser
duros para agüentar o golpe, mas sermos maleáveis, não correríamos o alto risco
de ser profundamente afetado?”. Ou seja, a conclusão do leitor poderia ser: “a
falta de firmeza poderia me abalar profundamente”. Mas o EUc adverte,
contrariamente, que é necessário ter a capacidade de se recuperar, de modo que
a tal “elasticidade” precisa ter limites.
Claro é
que o leitor pode não concordar com o EUc. Pode julgar que, baseando-se em suas
experiências pessoais, o melhor a fazer é suportar com firmeza quase
indestrutível os duros golpes da vida. Chamo atenção para o fato dos
silenciamentos que atravessam as palavras. O EUc não diz tudo; a linguagem é
insuficiente, ou melhor, é atravessada pela incompletude; os silêncios vazam
das palavras. Há sempre uma lacuna ou lacunas que não são preenchidas pelo
dizer. E nelas encontra o leitor a oportunidade de intervir, para o que se
baseia no conjunto de suas crenças, conhecimentos, valores e experiências
representados e armazenados em sua memória.
As
questões que um pequeno parágrafo suscita são muitas, como se pode ver. Não
pretendo me ocupar de todas aqui. Tampouco me seria possível fazê-lo.
O TUi,
leitor, também constrói uma imagem do EUc. Também ele tem o seu EUe, que pode
ou não identificar-se com o EUe fabricado pelo EUc. Os saberes, os valores, as
crenças, as expectativas do TUi sobre o EUc constituirão a base sobre a qual
construirá uma imagem deste. Não podemos subestimar a importância também das
emoções e dos sentimentos do TUi em relação ao EUc. Por exemplo, esperando
aprender mais sobre o conceito de resiliência – supondo-se aqui que o TUi já
tivesse conhecimentos prévios sobre o assunto antes de ler o texto -, ele
poderia se decepcionar com o EUc, caso este não contribuísse para alargar o
terreno de seus conhecimentos sobre o assunto. Se o texto lhe parecesse
redundante, porque repleto de informações já conhecidas, o TUi poderia
construir uma imagem pouco favorável do EUc, isto é, o EUe do leitor (TUi) não
se identificaria com o EUe do EUc.
Pode
haver tensões nessa relação. O TUi, conquanto ao entrar no processo de
interação, pela leitura (no caso), com o EUc aceite o contrato proposto, não
está obrigado a concordar com o EUc totalmente. É claro que o TUd é projetado
pelo EUc como um ser do discurso necessariamente suscetível ao convencimento ou
à persuasão. Nesse sentido, o TUd é um ser do discurso suposto como concordante
com a versão de mundo representada pelo EUc e com o modo como essa versão de
mundo produz um efeito de verdade que será sustentado pela argumentação.
Não
poderia levar adiante esta análise, visto que o tamanho do texto excedeu em
muito os limites desejados para uma publicação em blog. Quero, contudo,
insistir que as hipóteses são elaboradas tanto pelo EUc quanto pelo EUi. E elas
não servem apenas para a construção das imagens dos sujeitos do discurso. No
caso do sujeito interpretante, elas são movimentos linguístico-cognitivos
constitutivos do próprio processo de interpretação. Portanto, o leitor está, a
todo momento, ao longo do processo de leitura, elaborando hipóteses, lançando
mão de estratégias que servem para a produção de um sentido para o texto (tendo
em conta que os sentidos são muitos).
Igualmente
importante é o papel das inferências
durante a atividade de produção de leitura. O leitor, com base no seu
conhecimento de mundo, estabelece, pelos processos de inferências, uma relação
não explícita entre porções ou elementos textuais, ou ainda entre esses
elementos e conhecimentos necessários para a compreensão.
O sujeito em Psicanálise: a contribuição de
Lacan
Antes
de atacar a questão do sujeito em psicanálise, é preciso dizer que, por meio
dos trabalhos de Lacan, foi possível aproximar a psicanálise da AD,
particularmente da vertente francesa. Foi a teoria do discurso proposta por
Michel Pêcheux que deu origem a um percurso em que a AD e a psicanálise pôde-se
integrar. Em Pêcheux, também houve espaço para o materialismo histórico, de
influência althusseriana. A AD deste autor procura, então, articular a
psicanálise ao materialismo histórico.
Nesta
seção, enfocarei a contribuição da psicanálise com base nos estudos de Lacan.
Particularmente, estarei interessado em apresentar e discutir os conceitos de
sujeito, dentro da teoria psicanalítica proposta por ele, e os conceitos de
“outro” e “Outro”. Com Lacan, via Pêcheux, a AD abriu espaço no palco do
discurso para a voz do desejo inconsciente do sujeito. O sujeito, agora, é
visto como sujeito do inconsciente, muito embora continue sendo sujeito de
linguagem. Nesse tocante, a psicanálise só vem a confirmar aquilo no que os
linguistas cujos trabalhos se desenvolvem na esteira da linguística da
enunciação, da pragmática, da semântica argumentativa, aos quais se reúne, em
coro, a AD, estão de acordo: o sujeito é
sujeito de linguagem.
Começarei,
então, reiterando: também em psicanálise,
o sujeito deve ser estudado no âmbito da linguagem. Também nessa área do
conhecimento humano não há sujeito sem linguagem; ele é construído na dimensão
simbólica. Todavia, há uma outra dimensão do sujeito que a psicanálise se
encarregará de desvelar: a sua dimensão
inconsciente. Assim, na psicanálise, o sujeito é também sujeito do inconsciente. Vamos, então, compreender de que
modo esse sujeito do inconsciente que só existe na linguagem se constitui.
Desde já, informo que estou ciente de que não recobrirei todas as questões aí
implicadas. Não tenho a intenção de fazê-lo. Darei apenas uma amostra da
teorização psicanalítica sobre o sujeito.
Lacan,
com vistas a desenvolver sua teoria do sujeito, parte da herança do pai da
linguística moderna Ferdinand de Saussure. Tendo em conta a compreensão que o
mestre genebrino tinha de signo linguístico – uma entidade dividida
dicotomicamente em significante (imagem
acústica) e significado (conceito) -,
Lacan entende que o significante prevalece sobre o significado. Para ele, o
significado resulta da articulação de significantes em cadeias. Só o
significante é material e simbólico. Sua estruturação na cadeia de
significantes é que produz o significado. Evidentemente, Saussure, embora
pudesse endossar essa visão sistêmica da linguagem, não concordaria em
dissociar o significante do significado no signo. O signo, em Saussure, não
pode ser pensado e não existe sem a relação necessária entre o significante e o
significado.
Claro é
que a perspectiva teórica de Lacan é outra e as questões de que se ocupa, os
objetivos para os quais suas reflexões se orientavam eram outros. Em suma, o
universo de postulados e a metodologia de Lacan não era o mesmo proposto por
Saussure. Prossigamos com Lacan.
Como a
psicanálise, a partir daí, com Lacan pensará o sujeito? O sujeito será pensado
como sujeito social. Lacan reconhece a raiz social do sujeito, reconhece que o
ser humano toma parte numa ordem social, cuja unidade básica, que lhe serve de
porta de entrada para essa ordem, é a família. De que modo, contudo, se
constitui esse sujeito do inconsciente,
sem o qual não haveria psicanálise?
Tendo
em conta a importância do papel da família no processo de humanização do ser
biológico que é o bebê, Lacan ensinará que ao nascimento desse ser preexiste
uma ordem social, cultural e significante, a qual encerra valores, ideologias,
significações. Essa ordem se estrutura material e simbolicamente assumindo a
forma de um Outro. O Outro é essa estrutura significante que representa a ordem
social. É a mãe, considerada aqui como um lugar de ser criador (não
necessariamente a mulher que dá à luz uma criança , mas qualquer pessoa que venha a
desempenhar esse papel para o bebê), que representará para o bebê o Outro.
Atentemos para o trecho abaixo, em que Elia, em O conceito de sujeito (2007), nos ensina a respeito do papel da
mãe:
“O que a mãe transmite é,
primordialmente, uma estrutura significante e inconsciente para ela própria
(ela não sabe o que transmite, para além do quê
ela pretende deliberadamente transmitir), e não poderia ser simplesmente
o conjunto de valores culturais
(entendendo-se sob esse termo toda a complexidade de elementos significativos
ordenados na família e na sociedade à qual pertence a mãe e bebê)” (p. 40).
É
importante reter esta ideia: a mãe, embora encarne o Outro, não está consciente
da estrutura significante que ela está a transmitir ao bebê. A ordem
significante (o Outro) é destacada da ordem de significados e valores, de tal
modo que o que o bebê interioriza não é um conjunto de significados, mas “um
conjunto de marcas materiais e simbólicas – significantes” (p. 41). Não
obstante o fato de a mãe interiorizar no bebê esses significantes, não redunda
daí que ele seja passivo. O bebê, na verdade, é um sujeito que produz um ato de resposta. Ele é agente, portanto.
Recapitulando,
o sujeito se encontra com o Outro, em um dado momento. Num segundo momento,
esse encontro ganha algum significado, que lhe permite atingir e reconhecer
algum nível de constituição. Como o significante prevalece, consoante Lacan,
sobre o significado no inconsciente (a estrutura do inconsciente é uma
estrutura significante), em certo momento, o bebê tem um encontro com o
significante. Nesse encontro, o sujeito é convocado a dar uma resposta. É nesse
encontro que o sujeito iniciará o trabalho de sua constituição.
Certamente,
esta síntese deixa muitas questões em aberto; quiçá suscite mais dúvidas do que
esclarecimentos. Mas as dúvidas são importantes para nos manter ávidos por
aprender mais, por buscar as respostas de que carecemos para uma compreensão
mais satisfatória de um dado aspecto da realidade. As dúvidas movem o espírito,
conduzem-no à aventura do pensamento.
Antes
de por um ponto final neste texto e procurando ser o mais claro possível, não
poderia deixar de dizer que a ideia de que o Outro preexiste ao sujeito é
sensivelmente perturbada pela ideia, aparentemente contraditória, de que o
Outro, na verdade, também surge no encontro com o sujeito. Até onde consegui
entender, é preciso postular uma pré-história de um bebê que não é delimitável
na história do Outro. Essa pré-história tem estatuto simbólico e não se
confunde, por exemplo, com a experiência de gravidez. Um dos elementos dessa
pré-história do Outro, entre os quais estão desejos, desígnios, demandas, que remonta
a um ancestral do bebê, é o nome que ele receberá. Evidentemente, o nome é
anterior ao encontro do bebê nascido com o Outro, no entanto, ele só existe no
momento em que o bebê o recebe. Esse encontro do bebê com o seu nome atualiza o
passado, traz o passado à existência. É nesse sentido que o Outro se constitui
na relação com o sujeito. Os desígnios, desejos e demandas de que o Outro é
portador são atualizados no encontro com o bebê. Nesse sentido, o Outro passa a
existir ao mesmo tempo em que se dá a constituição do sujeito.
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