
A Morte do
Romântico
E a liquidez do
Amor
O eminente crítico
literário Alfredo Bosi expressou-se assim, acerca da temática dos escritores do
Romantismo (2006: 93):
“A natureza romântica é expressiva (...). Ela significa e revela. Prefere-se a noite ao dia, pois à luz crua do sol o real
impõe-se ao indivíduo, mas é na treva que latejam as forças inconscientes da
alma: o sonho, a imaginação”
(ênfase no original)
A menos que
presenciemos nitidamente a vulgarização do sentido de ser romântico e, consequentemente, um novo modelo imaginário
pós-moderno do que é ser romântico –
decerto, ralo e trivial -, não me parece errôneo acreditar que as formas de
existência românticas já feneceram. Os cadáveres do Romantismo jamais
ressuscitarão e seus fantasmas há muito foram exorcizados.
Na sua obra Amor Líquido, um dos mais renomados
sociólogos da atualidade Zygmunt Bauman (2004: 19)afirma:
“(...) a definição romântica do amor como “até que a morte
nos separe” está decididamente fora de moda, tendo deixado para trás seu tempo
de vida útil em função da radical alteração das estruturas de parentesco às
quais costumava servir e de onde extraia seu vigor e sua valorização”.
Zygmunt cuida haver
uma ambivalência nos relacionamentos pós-modernos, a qual consiste no desejo de
estreitar os laços, acompanhado da necessidade de, cada vez mais, mantê-los
frouxos.
É preciso, em
princípio, conter meu ímpeto verbal, a fim de que apresente algumas palavras
que justifiquem a produção deste texto. Uma vez satisfeito o meu intento, darei
a conhecer ao leitor os estágios nos quais se desenvolverão as minhas
reflexões.
Hegel dizia serem
páginas em branco as páginas felizes no amor romântico. E me sobejaram páginas
vãs, algumas das quais recuperei da fogueira da depressão. Vivi segundo o governo
de meu coração, durante muitos anos, e bebi do cálice da desilusão e
sofrimento. Dei ouvidos aos devaneios de minha alma e acabei desditoso,
descrente da possibilidade de experienciar um relacionamento inundado de um
amor celestial, bem ao gosto dos Azevedos. Quiçá, a esta altura, na face,
leitor, se lhe estampe um sorriso zombeteiro e se lhe afigure ao espírito que
sou afeito a pieguice. Ou, talvez, endossando a afirmação de Zygmunt, acima
referida, conclua ser meu desafogo o testemunho de um modo de ser e existir que
se poderia chamar ‘brega’.
Alhures, esforcei-me
por definir o que é ser romântico; por isso abstenho-me; apenas direi que não é
romântico aquele que não vive exageradamente
ou que “não vê numa gotícula de água toda a complexidade do oceano”.
A par de minha clara
insatisfação e frustração decorrente de ter de me contentar com a insipidez
amorosa pós-moderna, as palavras que faço deitar sobre estas páginas encontram
sustento em minha insaciável necessidade de pensar, refletir, conhecer. Anuindo
à verdade da afirmação socrática, segundo a qual “a vida não examinada não
merece ser vivida”, emprego meu espírito na busca por compreender o declínio do
amor, cujos padrões, para Zygmunt, foram baixados:
“Em vez de haver mais pessoas atingindo mais vezes os
elevados padrões de amor, esses padrões foram baixados. Como resultado, o
conjunto de experiências às quais nos referimos com a palavra amor expandiu-se
muito. Noites avulsas de sexo são referidas pelo codinome “fazer amor”.
(p. 19)
Este fato a que fez
menção o sociólogo já me foi caro, consoante se pode perceber neste poema de
minha autoria, que refiro abaixo:
Apoestasia
Que me vale bradar às rosas
Se no mundo as que vejo...perfumadas
Empinam as nádegas dengosas
Ao cravo que as querem tresloucadas?
Que me vale falar às flores
De delírios ou desamores
Se os corpos à vista dos mercados
Ufanos por cachês são desnudados?
E às que são inda mocinhas
Que vivem a falar das roupinhas
Das bocas que experimentaram nas festinhas?
E mesmo às que contam vinte
Se não lêem e às cegas vivem – andorinhas!
Silabam AMOR removendo as calcinhas!
(BAR)
A concepção do amor
como uma forma de ‘negócio’, ‘um contrato com prazo de validade’ e dos
relacionamentos como ‘formas descartáveis de existir’ (pois existir é manter
relação com) já me sorria ao espírito, muito antes de eu conhecer a obra de
Zygmunt, cujo valor para mim foi propiciar-me a oportunidade de levar a efeito
o intento de realimentar algumas ideias sobre o amor na pós-modernidade, de
modo mais sistemático e teoricamente mais consistente.
O rigor da reflexão
filosófica exige que os pensamentos pautem-se por regras que o conduzam à
formação de um todo coerente e compreensível; portanto, não-contraditório. A
despeito do esforço espiritual empreendido na tentativa de se chegar, com
exatidão, a esse todo, não se conclua daí que se esgote a realidade posta sob o
exame do espírito. Todo estudioso deve ter em conta que a realidade é sempre
mais complexa e abrangente e que o conhecimento humano não pode pretender esgotar-lhe
a totalidade. A totalidade do real escapa à pretensão do conhecimento à
totalização. Por conseguinte, estou ciente de que não esgotarei as questões que
podem ser levantadas no tocante às experiências do amor pós-moderno. Urge
traçar o plano de construção, doravante.
Em princípio, é
necessário situar a temática na pós-modernidade e procurar compreender como o
amor tem sido experienciado numa era caracterizada por avanços tecnológicos e
consumismo. Em seguida, revisitarei o discurso filosófico sobre o amor e
considerarei o que dele nos disse Platão, Descartes, Kant, Spinoza e outros
autores contemporâneos cuja maior contribuição foi tratá-lo de uma perspectiva
cognitivo-fisiológica. Na terceira parte, lançarei olhares sobre o capítulo apaixonar-se e desapaixonar-se, que se
topa na obra Amor Líquido, de Zygmunt
Bauman e avaliarei algumas de suas posições criticamente. A parte final encerra
as conclusões a que chegarei e que, espero, venham corroborar a tese segundo a
qual o amor da pós-modernidade é um amor de conveniência.
1. O Mal-estar da pós-modernidade
O título que encabeça
esta seção é o nome da obra de Zygmunt Bauman, cujas lições nortearão nossa
reflexão. Buscarei a brevidade tanto quanto possível; é necessário, contudo,
sumariar o conteúdo do primeiro capítulo deste livro, o qual se intitula de O sonho da pureza. O autor advoga ser a
pós-modernidade instaurada sob o ideal da pureza, que constitui “uma visão da
condição que ainda precisa ser criada, ou da que precisa ser diligentemente
protegida contra as disparidades genuínas ou imaginadas” (p. 13).
A pureza a que se
refere Bauman identifica-se com a ordem, a saber, situação em que cada coisa
está em seu devido lugar. A ordem serve de um meio para regular e estabilizar
nossos atos. Se um dado estado-de-coisas não se encontra organizado segundo o
ideal de ordem (pureza), considera-se, pois, essa situação impura. O autor
adverte-nos de que as coisas não são puras ou impuras por natureza; essas
qualidades não intrínsecas a elas; são atributos resultantes de sua
localização. Nesse tocante, esclarecedoras são as palavras seguintes:
“Sapatos magnificamente lustrados e brilhantes tornam-se
sujos quando colocados na mesa de refeições. Restituídos ao monte dos sapatos,
eles recuperam a prístina pureza”.
(p. 14)
Evidentemente,
observa Bauman, que cada época e cada cultura têm seu próprio padrão de pureza.
Ao interesse pela pureza, associa-se o interesse pela higiene. Higienizar para
manter a pureza – nisso consiste o objetivo da ação pós-moderna. No entanto,
cada ordem encerra em si suas desordens. Cada modelo de pureza tem a sua
sujeira, a qual precisa ser varrida inapelavelmente. Nesse contexto, todo
esforço empreendido pelas sociedades pós-modernos é orientado para combater os
estranhos.
Segundo Bauman
– e este é um aspecto fundamental para a nossa discussão sobre o amor -, o
mundo moderno é instável e sua constância está relacionada apenas à hostilidade
a qualquer coisa constante. Elenco, abaixo, as características da
pós-modernidade, que pude inferir do
trabalho do autor:
·
Inconstância e
insaciabilidade;
·
Velocidade,
movimento, perpetuidade;
·
Diversidade de
estilos e padrões de vida livremente concorrentes;
·
Atuação
massificante de um mercado para consumidores, que são seduzidos com infinitas
possibilidades e promessas de constante renovação de felicidade;
·
Incessante
busca por intensas sensações e inebriantes experiências;
·
Flutuação de
identidades: veste-se e despe-se de identidades continuamente;
As utopias
modernas, em geral, se afinam com a ideia de um “mundo perfeito”, a saber, um
mundo que permaneça inalterado ou idêntico a si mesmo, de modo que o que se
aprende hoje possa ser válido amanhã e para todo o sempre. Observa Bauman, que
“O mundo retratado nas utopias era também, pelo que se
esperava, um mundo transparente – em que nada de obscuro ou impenetrável se
colocava no caminho do olhar; um mundo em que nada estragasse a harmonia; nada
“fora do lugar”; um mundo sem “sujeira”; um mundo sem estranhos”.
(p. 21)
Dentre os
aspectos que caracterizam a era pós-moderna, destaque-se a influência do
consumismo nos relacionamentos humanos. Mais adiante, dispensarei a devida
atenção a esse problema. Por ora, atente-se para a descrição que faz o autor
dos homens e mulheres pós-modernos:
“Um número sempre crescente de homens e mulheres
pós-modernos, ao mesmo tempo que de modo algum imunes ao medo de se perderem, e
sempre ou tão frequentemente empolgados pelas repetidas ondas de “nostalgia”,
acham a infixidez de sua situação suficientemente atrativa para prevalecer
sobre a aflição da incerteza. Deleitam-se na busca de novas e ainda não
apreciadas experiências, são de bom grado seduzidos pelas propostas de aventura
e, de um modo geral, a qualquer fixação de compromisso, preferem ter opções
abertas”
(pp.22-23)
A frouxidão
dos vínculos estabelecidos nos relacionamentos decorre, em parte, ou melhor, é
favorecida, segundo Bauman, por “um mercado inteiramente organizado em torno da
procura do consumidor e vigorosamente interessado em manter essa procura
permanentemente insatisfeita” (p. 23). Note-se aqui a insaciabilidade do homem
pós-moderno referida em nosso elenco de características da pós-modernidade. O
mercado incita o apetite dos consumidores, que passam a conservar um desejo por
sensações cada vez mais intensas e por novas experiências.
As pessoas que
se tornam incapazes de amoldar-se aos padrões estabelecidos pelo mercado
configuram a classe dos consumidores falhos, portanto, excluídos. Como o
conceito de liberdade, na pós-modernidade, está associado às esferas de consumo
(na medida em que o indivíduo livre é definido em termos de poder de escolha do
consumidor), os consumidores falhos, de acordo com a lógica do mercado, são
indivíduos incapazes de ser livres.
À questão da
sociedade de consumo e sua relação com as formas de experienciar o amor, na
pós-modernidade, dada a sua relevância, será dedicada a próxima seção. Antes de
levar a cabo as nossas considerações sobre a pós-modernidade, deve-se ter em
conta que a busca pela pureza expressa-se numa tendência cada vez maior de
tratar problemas socialmente produzidos como crimes. Lembrou-me a canção
“problema social”, interpretada por Seu Jorge, da qual um dos versos diz “se eu
pudesse, eu não seria um problema social”, numa clara referência à situação dos
meninos de rua, rotulados pela sociedade como um “problema” e, não raro,
tratados como casos da alçada da polícia.
Por fim, a
(pós)-modernidade caracteriza-se por uma rejeição à tradição. Destarte, ensina
Bauman:
“A modernidade viveu num estado de permanente guerra à
tradição, legitimada pelo anseio de civilizar o destino humano, num plano mais
alto e novo, que substituísse a velha ordem remanescente, já esfalfada, por uma
nova e melhor. Ela devia, portanto, purificar-se daqueles que ameaçavam voltar
sua intrínseca irreverência contra seus próprios princípios”.
(p. 26)
Devemos pensar
sobre o amor à luz da concepção segundo a qual a era pós-moderna se funda na
busca cada vez mais premente pelos indivíduos de prazer – um prazer, todavia,
fugaz, insuficiente, cuja qualidade consiste em conservá-los na insaciabilidade
do desejo.
1.2. Relacionamentos consumistas
Pode-se
identificar, com Featherstone (1995), três principais grupos de teorias que se
ocupam da questão da cultura do consumidor: o primeiro dos quais entende a
cultura do consumidor como consequência da expansão do capitalismo, que gerou o
aumento da produção por meio dos métodos tayloristas e fordistas. Nesse
contexto, a criação de novos mercados serve para “educar” as pessoas,
tornando-as consumidoras. Tal “educação” se dá mediante mecanismos de sedução e
manipulação ideológica operados pelo marketing e a propaganda. Donde se segue
uma consequência considerada negativa por alguns teóricos, qual seja, o
abandono de valores e tipos de relações que eram, então, encaradas como
verdadeiras e autênticas.
Ainda aqui
avulta a importância de se considerar o conceito de indústria cultural, advindo da Escola de Frankfurt. Featherstone
procurou estudar a transformação da cultura em mercadoria, por força da atuação
da indústria cultural. Esse processo leva à formação de consumidores culturais
e à redução do valores da alta cultura aos mais baixos níveis.
Com Jean
Baudrillard (1995), a sociedade de consumo passa a ser compreendida do ponto de
vista do valor simbólico da mercadoria. O signo é a mercadoria. A sociedade
pós-moderna caracteriza-se, assim, pela saturação das imagens. Como ensina
Barbosa (2008: 39):
“O presente se torna o tempo permanente e as imagens são
unidas cacofonicamente, sem qualquer preocupação com uma lógica histórica que
as reúna numa narrativa cronológica e espacialmente coerente”.
O segundo
grupo, que encerra os modos de consumo,
refere-se ao uso de mercadorias para demarcar relações sociais. As mercadorias
tornam-se sinalizadores de posição de prestígio; os seus consumidores, ao se
apropriarem delas, ganham status
sócio-econômico pela transferência para si mesmos das propriedades simbólicas
que as caracterizam. Para Bourdieu, as práticas de consumo situam-se no cerne
da criação e manutenção de relações de poder, tais como dominação e submissão.
Finalmente, no
terceiro grupo, se nota o consumo de sonhos, imagens, prazeres, estilos de
vida. A preocupação dos estudiosos repousa em estudar os aspectos emocionais
que estão relacionados ao consumo; trata-se de investigar os desejos e os
sonhos que são estimulados no imaginário da cultura do consumidor.
Segundo
Barbosa (p. 44), citando Featherstone, existem forças contraditórias na
sociedade contemporânea que estimulam a produção e o trabalho árduo na mesma
proporção que prometem prazer e satisfação dos desejos.
Campbell
(2000), a seu turno, entende ser a sociedade de consumo caracterizada
fundamentalmente pela insaciabilidade de seus consumidores. Houve, no hedonismo
moderno, um deslocamento da preocupação que, outrora, centrava-se nas
sensações, para as emoções. O controle absoluto recai sobre a imaginação do
indivíduo. O consumismo preenche o lugar ocupado pela emoção e pelo desejo no
domínio da subjetividade. Sua característica basilar é um irrestrito individualismo.
Cabe aos indivíduos decidi quais bens e serviços desejam obter.
Campbell e
Bauman divergem no que toca às consequências do consumismo na vida dos
indivíduos: o primeiro considera o consumismo responsável por resolver a
famigerada e tão debatida “crise de identidades”; já o segundo entende ser o
consumismo capaz de causar a degradação social.
O objetivo
fundamental do consumismo é a satisfação do prazer imaginativo que a imagem do
produto estimula. Assim é que o prazer não decorre do acúmulo e consumo de
bens, já que o descarte é rápido e incessante, mas da busca pela novidade. Um
fato ilustrativo dessa obsessão social pelo novo é a rapidez com que novos
modelos de celulares, com designe e
funções sofisticadas surgem no mercado: há celulares que filmam, tiram fotos e
ainda permitem acesso à internet. A
rapidez com que esses produtos são descartados, já que novos modelos são
oferecidos aos consumidores, patenteia a dissociação do valor de uso ao valor
de troca e sua imediata associação com valor simbólico. Assim, caracteriza-se
um estilo de vida, o qual, a seu turno, indica uma individualidade ou estilo
pessoal. Como observa Barbosa,
“A roupa, o corpo, o discurso, o lazer, a comida, a bebida,
o carro, a casa, entre outros, devem ser vistos como indicadores de uma
individualidade, propriedade de um sujeito específico, ao invés de uma
determinação de um grupo de status”.
(p. 23)
]
As discussões
sobre o consumismo levam alguns estudiosos a se perguntarem sobre as condições
que produzem a necessidade de consumo cada vez maior. Assim, a questão é: as
pessoas são naturalmente insaciáveis e, portanto, propensas a consumir ou o
aumento do poder aquisitivo leva a uma tendência irresistível ao consumo
desenfreado?
Creio em que a
resposta a essa questão não escusa a observação de que o desejo, a sensação de
insaciabilidade são produzidos pelo mercado. Parece-me que os indivíduos são
condicionados a consumir mais e mais. Tal condicionamento se dá, especialmente,
pelo poder das imagens, por meio da publicidade, do marketing e da televisão.
Há,
evidentemente, uma distância intransponível, entre o imaginário e a realidade,
de sorte que, não experimentando na vida real os prazeres que povoam seu
imaginário, o desencanto nos indivíduos é inevitável; do que se segue que, a fim
de superá-lo, eles se põem a consumir mais e mais produtos. O consumo encontra
sua força motriz justamente na manutenção do estado de insaciabilidade dos
sujeitos, com a promessa de que ela poderá ser satisfeita com a aquisição de um
novo produto.
A próxima
seção é destinada à reflexão sobre o Amor,
a qual será conduzida pelo que nos legaram filósofos como Platão, Spinoza,
Descartes e Kant, e outros estudiosos contemporâneos.
2. O Amor na filosofia
É consabido
que Eros é, na mitologia grega, uma
divindade que representa o Amor. Nas diferentes versões das teogonias, Eros é
considerado a força que organiza o universo e a que se atribui a
responsabilidade da perenidade das espécies e da harmonia do Cosmos.
No Banquete, Platão distingue um Eros ou
Amor espiritual e um Eros ou Amor sensual. Vou-me ocupar com a apresentação de
algumas das concepções de Amor que se acham nos discursos dos participantes do
diálogo platônico. A exposição será grosseira; não obstante, logrará sucesso se
o leitor for capaz de perceber donde se originam as ideias sobre o amor que
compõem o tecido ideológico da cultura ocidental.
Fedro foi o
primeiro dentre os participantes a tomar a palavra. A certa altura, assim se
expressou:
“Porque, de fato, o que deve orientar os homens que desejam
viver uma vida honesta, isto não o dão nem as linhagens, nem as honrarias, nem
a riqueza. Só o amor consegue dar isso. Que pretendo sugerir com isto? Que
coisa deve orientar os homens? Julgo que às ações vis e desonestas se liga a
desonra e às boas ações está ligado o amor”.
(p.103)
Nesse passo,
está clara a associação entre ‘Amor’ e ‘Bem’: o amor é responsável pela boa
conduta dos homens, por seus valores mais elevados.
Posteriormente,
citando o caso de Alceste – figura lendária que morreu para a restituição da
saúde de seu marido Admeto, que estava condenado à morte – Fedro concebe o amor
como a maior de todas as virtudes. Trata-se do Amor sacrificial, que motiva o
ser que ama a dar sua própria vida pela sobrevivência do ser amado.
A ascensão do
Amor ao nível do sentimento mais nobre encontra seu ápice na seguinte passagem,
na qual observamos ser o Amor
responsável por elevar o ser que o nutre à condição de ser divino:
“(...) o que ama é, de certa maneira, mais divino que o objeto
amado, pois possui em si divindade; é possuído por um deus”.
(p. 106)
Pausânias,
por sua vez, advertindo a Fedro, chama a atenção de todos para o fato de que as
ações não são boas ou más em si; estas qualidades são atribuídas a elas, tendo
em conta o modo como essas ações são vivenciadas. Há, em seu discurso, dois
aspectos importantes: um deles é a associação do Belo ao Bem e do Feio ao mal.
Assim, a ação bela é ação correta e boa; a ação feia é ação incorreta. O outro
aspecto diz respeito a existência de duas espécies de Afrodite e,
consequentemente, de duas espécies de Eros. Há uma Afrodite, denominada de
Urânia, filha de Urânio – esta é mais velha; há outra, mais nova, chamada
Paudemiana, filha de Zeus e Dione (Hera). Assim nem todo Eros é belo e louvável,
mas o será se nos conduzir a um amor belo e louvável.
A
Afrodite mais moça, considerada popular ou vulgar, define-se como o amor que
toma por objeto o corpo. Este Eros é suscetível às inconstâncias do acaso. O
Eros da Afrodite celeste, que participa unicamente do masculino, ama a
inteligência e a força.1
“(...) A própria organização das estações
do ano se encontra sob a influência desses dois Eros. Se impera o Eros da
ordem, a que me referi, e sob sua égide se concerta uma harmonia e boa
combinação do quente e do frio, do seco e do molhado, os elementos compõem um
bom ano e proporcionam saúde tanto aos homens como a todos os seres vivos e às
próprias plantas. Mas, se, pelo contrário, é o Eros anárquico quem exerce
domínio sobre as estações, então há muito estrago e muito prejuízo, pois de sua
ação resultam geralmente pestes e muitas outras doenças, tanto para as plantas
como para os animais”.
(p.117)
O mito
do andrógino, que se topa também no Banquete
e que se refere ao amor como busca por uma unidade, então, desfeita, ilustra a
concepção do amor como busca por experienciar a unidade – unidade que não se
realiza no sexo, mas o transcende; trata-se de uma unidade que, aos verdadeiros
românticos como eu, é experienciada no calor dos espíritos, no perfume dos
olhos, janelas da alma, e nas feições cuja beleza só pode ser percebida pelos
sensores aguçados da sensibilidade transcendente.
Custa-me
dissimular prazer ao compor estas linhas, pois o que meu espírito experimenta é
um repugnante amargo; afinal, tomar o amor para objeto de interesse da razão é
uma prática que tenho por inconveniente; no entanto, creio ser a única coisa
que me restou, após inúmeras páginas fracassadas. As ideias de amor, que dantes
coabitavam com os delírios da paixão romântica em minha alma, já feneceram em
função do imperativo da realidade, implacável para com toda forma de devaneio
lírico romântico.
Em
Espinosa, “o amor é a alegria acompanhada da ideia imaginativa de uma causa
exterior” (p. 41). Não é pela busca da unidade, ou melhor, da união com o ser
do outro, que devemos entender o amor. Para o filósofo, pensar na existência do
ser amado já é suficiente para que o amante experiencie contentamento.
O amor
romântico, ao contrário do que entende o senso comum, é o amor da
impossibilidade de preencher sua carência. Trata-se de um amor fugaz e
ilusório. A impossibilidade de sua realização leva o amante à tristeza, ao desespero,
à obsessão pela morte – fuga última a que recorre para findar as dores de sua
alma. Sua característica basilar é, como cantou o poeta, o exagero: o amor romântico é o amor do exagero, da desmedida.
A
personagem Werther, do romance de Goethe, declara: “Mais de uma vez me
embebedei, minhas paixões nunca estiveram longe da demência, e não me arrependi
de nenhuma das coisas que fiz”. Esse fragmento dá-nos uma ideia clara da
intensidade do amor romântico e de sua capacidade de contrariar a moral e a sensatez
da razão.
1. Há um claro desprezo votado à mulher na época clássica grega: a filha de um deus e de uma deusa era considerada inferior a outra que tivesse nascido apenas de um deus.
Percebo q concordamos no quanto essa ideia romântica hj em dia é, digamos, pisoteada (falando em pisar, adorei a relatividade na ideia do sapato sobre a mesma!).
ResponderExcluirE assim o amor tb segue nessa relatividade louca (eu sou uma sofredora de mal-de-século rs). A gente deve é se subordinar - pq, antes isto, q é tão nobre (sem dúvida q é) do q estar no limbo entre o consumo (não-amoroso) e o vazio a ser preenchido com isso.
Bjão