Autocrítica: as imagens de si no galanteio
A
questão de que me ocuparei neste texto tem a seguinte forma: Qual é a origem de nossas decepções no
galanteio? Embora a palavra ‘galanteio’ seja definida de modo a colocar o
homem como o responsável pelas lisonjas e finezas, as ideias que desenvolverei
aqui valem também para as mulheres. Eu preciso, contudo, dizer o que me motiva a
escrever este texto. Vou contextualizá-lo, portanto.
Estou
participando de um site de relacionamentos, não faz muito tempo. Não cuido
sejam necessárias muitas justificativas, mas decidi participar por me
possibilitar conhecer mulheres e lidar com as dificuldades comuns da conquista.
Evidentemente, minha intenção é namoro, mas, até que o namoro aconteça, é
preciso dedicar-se à conquista ou ao galanteio (palavra fora de moda, bem o
sei). Neste site, os participantes precisam escrever/falar sobre si mesmos e
sobre a pessoa que buscam, ou seja, precisam construir um ethos (grosso modo, uma imagem de si) e uma imagem da pessoa que
lhes seria, de algum modo, interessante. Antes de me decidir pelo tema deste
texto, me sorriu a ideia de escrever sobre esses ethos. É interessante compreender como as pessoas constroem um ethos com vistas a serem
bem-sucedidas na busca pelo parceiro/parceira ideal. Todavia, protelo o
tratamento deste tema.
De certo
modo, é de ethos que vou falar. Na
verdade, do meu ethos. Mas, como o
conceito é problemático, tendo sido, tradicionalmente, tratado na retórica em
Aristóteles, interessado aos pragmatistas da argumentação, como Oswald Ducrot e
retomado por analistas do discurso, como Charaudeau, o termo sofreu variações
de sentido e de valor teórico. Como eu não pretenda considerar essas variações
e valor, tampouco me aprofundar nas discussões em torno deles, vou optar por
adotar a noção de imagem de si; mas
não porque ela seja menos problemática, mas por ser de uso corrente. O rigor com
que me habituei a desenvolver minhas reflexões impõe-me que eu a defina.
A noção
de imagem de si se prende à ideia de representação, cuja base é simbólica, ou
melhor, discursiva. Mas é preciso afastar do campo semântico de imagem ideias
ligadas à inautenticidade, à falsidade, à insinceridade, que orbitam o campo
ético. É claro que na construção da imagem de si questões éticas tais como a
necessidade de ser autêntico, de ser sincero (falar a verdade), etc estão
implicadas. Mas quero, inicialmente, evitá-las para definir o conceito. O que é
uma imagem? Remetendo-nos à palavra imaginação, “imagem” tem a acepção de
representação mental de algum objeto. Sartre, por exemplo, entendia que a
imagem é uma certa maneira de a consciência colocar para si um objeto.
Quando
aplicada ao domínio do ‘eu’, ou seja, quando entra a fazer parte da expressão
‘imagem de si’, a palavra significa a representação que esse ‘eu’ faz de si
mesmo. A toda representação subjaz uma interpretação. O ‘eu’ que se representa
ou que constrói uma representação de si (uma imagem de si) o faz na base de atributos, ideias, valores, crenças que associa
a si mesmo. Evidentemente, trata-se de uma imagem que ele quer seja valorizada
pelos outros. Os “Outros” desempenham um papel importante nesse processo de
construção da representação de si,
visto que o ‘eu’ se define, se constrói e só existe como sujeito social na
relação com os outros. É mister entender que esses outros também constroem uma
imagem do ‘eu’ com quem interagem, além, é claro, de construir uma imagem de si
mesmos, já que cada outro é um ‘eu’ também.
Importa
ver que a representação de si ou a construção da imagem de si se dá no
discurso, ou na interação com os outros. Portanto – repito – o ‘eu’ constrói
uma imagem de si no momento em que está na presença dos outros, por meio do uso
da língua. Ao falar, ele se representa (encena). Como os outros, além de
construir uma imagem de si, constroem imagens do ‘eu’ com quem interagem, é
correto falar em imagens recíprocas.
Vamos facilitar um pouco as coisas. Imaginemos uma situação de interação
face-a-face, em que dois e apenas dois interlocutores dialogam. Ambos se
entendem como sujeitos sociais, que se reconhecem como um ‘eu’ (esse ‘eu’ é já uma
imagem). Mas esse ‘eu’ toma forma ou se constrói (na relação com) no momento em
que diz ‘eu’, no momento, portanto, em que se apossa da palavra. Ao falar, ele
encena. Na encenação (na fala), ele (o eu) irá construir uma imagem de si que
pretende seja reconhecida (valorizada) favoravelmente pelo parceiro de comunicação.
O parceiro, que é, até então, o outro, constrói uma imagem (uma representação)
desse ‘eu’, que pode ou não coincidir ou concordar com a imagem que o eu
constrói de si mesmo. Nesse processo de construção interacional de imagens, os
interlocutores estão, a todo momento, operando com base em hipóteses. Ao
construir uma imagem de si, o eu está também formulando hipóteses sobre a
imagem que o outro tem de si mesmo e sobre a imagem que o outro está
construindo sobre ele (eu), sobre a imagem que ele- o outro- faz da imagem que
o eu constrói para ele, e assim por diante. Em outras palavras, quando me
represento, também penso sobre o que está pensando sobre mim o meu interlocutor,
sobre o que ele pensa sobre o que eu estou pensando sobre ele. E a recíproca é verdadeira.
Os
interlocutores – o eu e o outro – não só constroem imagens de si e uns dos
outros, mas também do tema de que tratam. Sem pretender descer a pormenores
teóricos (as teorias aí são muitas e os teóricos divergem), importa reter o
seguinte: há três representações básicas. A primeira é aquela que o eu tem de
si mesmo ou constrói para si mesmo; a segunda é aquela que esse ‘eu’ constrói
para o outro (interlocutor); e a terceira é aquela construída sobre o tema
tratado. Como o “eu” e o “outro” são sujeitos sociais, claro está que carregam
em si uma herança sociocultural e histórica, de sorte que essas três
representações se combinam com as representações culturais, aquelas forjadas
nas experiências culturais de que participam. Trata-se de representações
pré-construídas que são trazidas para interação.
Em suma,
a construção da imagem de si é uma co-construção de base interacional, ou seja,
que se dá pelo uso da língua. As imagens recíprocas são constantemente
negociadas durante as práticas discursivas de que participamos.
Quero
chamar a atenção para a importância das representações pré-construídas, as de
base culturais. Como sejamos seres culturais, nossa representação de si se constituirá de uma herança de valores de
nossa sociedade. É claro que os valores que assumimos podem entrar em conflito
com os valores mais largamente disseminados e aceitos. E é claro também que tais valores podem
perdurar no tempo e provirem de uma dimensão mais universal, considerando-se a
história da humanidade. Num mundo globalizado como o de hoje, é praticamente
impossível não assumirmos valores produzidos por outras culturas com que a
nossa cultura está em contato. Há mútuas influências culturais constantes.
Como usamos, com bastante frequência, a
palavra “valor” para referir-se a “valores culturais”, convém ter em conta o
que significam “valores culturais”. Um valor cultural se define como uma ideia
comum sobre como uma coisa deve ser classificada em termos de mérito,
desejabilidade ou perfeição. Os valores podem ser empregados para classificar
tanto abstrações quanto objetos concretos, bem como experiência, comportamento,
características pessoais, estados de ser (por exemplo, estatura alta acima de
estatura baixa, sadio acima de doente, etc.). Na noção de valor, o que importa
é o fato de ser usado para categorizar as coisas umas em relação às outras em
termos de importância. Os valores culturais diferem das preferências pessoais,
na medida em que nestas o único árbitro é o indivíduo; para aqueles, a
referência é a sociedade. Por isso, se consideramos a honestidade um valor
cultural, é porque se trata de uma qualidade do modo de ser culturalmente
prestigiada, desejada. Mas é sempre bom lembrar que, embora os valores
culturais suponham um consenso, esse consenso nunca será completo ou total.
Isso dá margem ao contraste ou ao conflito entre os valores que um indivíduo
assume como componentes definidores de sua subjetividade e outros valores
culturais geralmente aceitos por outros membros de sua cultura.
Não
pretendendo me alongar sobre este tema, volto a considerar o problema da
construção da imagem de si nas experiências de galanteio ou de conquista
amorosa. Quando, neste momento, penso sobre esta questão, recordo como a imagem
que construo de mim mesmo me levou a conclusões equivocadas, com base nas
experiências de decepção que vivenciei.
Tenho
conservado e negociado uma imagem de mim mesmo cujos atributos, evidentemente,
suponho atraentes às mulheres de um modo geral. É importante a suposição aí,
como vimos. Tendo experimentado decepções, conclui que elas são insensíveis ou
incapazes de reconhecer os valores de que se compõe esta imagem. O erro, que
vale para todos nós, homens e mulheres, está aí.
A imagem
que construo de mim é a de um homem que é amante
da linguagem, amante da leitura e da escrita, poeta e intelectual, idealista, romântico e fiel. Por alguns anos – e esta
crença foi reforçada por familiares -, acreditava que estas qualidades eram as
qualidades mais unanimemente apreciáveis entre as mulheres. Acreditava que essa
imagem pudesse me acarretar a ventura amorosa. O erro está nesta suposição, ou
melhor, na suposição de que devemos sempre agradar os outros. O erro está em
buscar construir uma imagem de amante infalível e em supor que ela nos levará
ao sucesso em todas as nossas tentativas de requestar as atenções de uma
pessoa.
Não é
porque eu me considere um poeta, um escritor competente, um intelectual que,
pelo estudo, alcançou uma formação acadêmica sólida; não é porque eu seja fiel e
delicado no trato, e romântico declarado, que devo estar seguro de que sou o
candidato ‘ideal’ a conquistar o coração de uma mulher. E isso vale para as
mulheres em relação aos homens. Se assim fosse, os poetas não seriam, como
foram muitas vezes na história, infelizes no amor; se assim fosse, os filósofos
e demais intelectuais não deveriam ter fracassados nos relacionamentos
amorosos. Ser delicado pode, inclusive, dar margem a que se suspeite de nossa
orientação sexual (não que isso seja um problema, de modo algum). Quero,
apenas, dizer que a delicadeza num homem pode ser interpretada como um sinal de
homossexualidade. Aliás, certa vez, na faculdade onde estudei, uma menina
perguntou a uma amiga minha se eu era gay, com base em sua interpretação do
modo gentil e carinhoso com que sempre tratei as minhas amigas de classe. Isso
só corrobora essa ideia. Interessante é ver que, por um lado, não é verdade que
todos os homossexuais sejam ‘delicados’ (portanto, ser delicado não seria um
traço que define a orientação sexual num homem); por outro lado, não menos
interessante é ver como se constrói, no imaginário coletivo, a partir da
palavra ‘delicadeza’, a distinção do comportamento de gêneros: em nossa
sociedade, as mulheres devem ser
delicadas, mas os homens não. Não
raro, homens rudes são mais apreciados. Estou pensando em delicadeza como
‘fineza’, ‘gentileza’ e ‘amabilidade’, e não no sentido de comportamento
estereotipado de afetação ou de pieguice (que fique claro!)
Sabemos
que os poetas cantaram suas dores; os filósofos, muitos deles, fracassaram no
amor; os delicados podem ser considerados gays; e os fiéis estão fora de moda.
Muitas vezes, os cafajestes é que prosperam; e, enquanto os mais eloquentes
podem até atrair admiração, os que sequer conseguem formar uma frase, sem recheá-la
de gírias ou empobrecê-la semanticamente, conseguem manter seu celular repleto
de nomes de mulheres. Muitas vezes, são aqueles para quem Drummond é o
sobrenome de seu último advogado que trabalhou para garantir os benefícios do
segundo divórcio que prosperaram; muitas vezes, são aqueles para quem Azevedo e
Varela eram os sobrenomes dos seus últimos patrões que conquistam todas as
meninas da night.
Felizmente,
hoje entendo que a suposição de que a imagem que construo de mim deva,
necessariamente, garantir-me ventura amorosa é um engano. Muitas vezes, a
inteligência afugenta; a poesia mela; o romantismo, além de também melar,
deturpa; e ser fiel coloca-nos sob alguma suspeita; e as delicadezas nos
estereotipam. Mas não há razão para desespero e desalento. Lembro novamente:
não temos de agradar sempre e a todos (aliás, é uma ilusão pretender agradar a
todos e, ainda que isso fosse possível, não vejo como seríamos mais felizes). É
importante ser autêntico, é claro. Ser autêntico é construir uma imagem de si
condizente com as formas como realmente nos comportamos e somos (ou com os
modos de estar em cada situação). É sair da zona das aparências. Mas, cientes
de que, ainda assim, corremos o risco de não agradarmos. Lembremos que os
inautênticos(as) também são amados(as) e estão com seus celulares ( e iphones)
repletos de candidatas/candidatos.
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