domingo, 13 de janeiro de 2013

"Na gramática, tudo está conectado".


                                   A hierarquia gramatical


A gramática de uma língua deve ser entendida como um sistema de regras e unidades. As regras de que a gramática se compõe são responsáveis pelos arranjos linguísticos, isto é, são elas que nos permitem combinar as unidades da língua em construções dotadas de significado. As construções linguísticas são de extensão e níveis variados. Toda construção é dotada de uma forma ou estrutura.
Esse sistema – a gramática – apresenta uma arquitetura interna, a qual se organiza em estratos. Chama-se estrato gramatical cada nível de organização da gramática. As unidades da gramática são, assim, dispostas em níveis ou estratos. Para cada nível, há uma unidade linguística. Podemos, então, representar a hierarquização gramatical das unidades linguísticas do seguinte modo:



               5o nível – frase
               4o nível – oração
               3o nível -  sintagma
               2o nível – vocábulo
               1o nível – morfema

 (leia-se de baixo pra cima)

Consideremos, pois, a seguinte frase:

(1) A moça que eu conheci ontem é amiga de meu pai.

Trata-se de uma frase bem formada, em português, como podemos ver. Podemos operar uma análise dela de tal sorte, que explicitemos as mínimas unidades dotadas de significado que estruturam os vocábulos nela presentes. Desse modo, teremos o seguinte resultado:

(1a) a / moç- / a / que/ eu / conhec- / -i/ ontem / é/ amig- / a/ de/ meu/ pai.

A forma moç- é a base ou o radical da palavra “moça”. O “-a” é a desinência de gênero feminino. Trata-se de unidades mínimas que encerram significado, ou seja, trata-se de morfemas. “Moç-“ inclui o significado-base (lexical), ao passo que ‘-a’ encerra o significado gramatical ‘gênero feminino’. É evidente que a parte “moç-“ não constitui uma unidade linguística autônoma. O seu significado resulta do todo, ou seja, da combinação dela com seus morfemas. Por isso, o que importa é entender que o radical é a unidade indivisível que sobra quando segmentamos as palavras em seus morfemas. Em “reagrupar”, temos os morfemas “re- (prefixo), “a-” (prefixo), “-a” (desinência verbal de 1ª conjugação) e “-r” (desinência de infinitivo). O que sobra é a forma “grup-” que é o radical, a base a que os demais elementos se agregam. A partir dessa unidade “grup-”, podemos ter “grupo”, “grupal”, “agrupar”, “agrupação”. Cada uma das formas compartilha a unidade “grup-”, seu radical.
Quando voltamos nosso olhar para a frase (1), verificamos que certos morfemas se identificaram com os vocábulos. Isso é completamente normal. Muitas vezes, há coincidência entre os níveis, como o  do morfema e o da palavra. Mas devemos ressaltar que estamos diante de uma diferença entre níveis. Assim, “ontem” é um vocábulo, pertencente à classe dos advérbios, num nível; mas um “morfema” (radical), em outro nível. A palavra “ontem” é indecomponível. Mas a palavra “anteontem”, admite a segmentação em “ante-” – prefixo – e “ontem”, radical. Assim, “anteontem” é uma palavra (ou vocábulo). Já “ante-” é um morfema; e “ontem” é um morfema, num nível; e uma palavra, noutro nível.
Vejamos, agora, como a frase (1) pode ser analisada em seus vocábulos:

(1b) A / moça / que / eu / conheci/ ontem/ é/ amiga / de/ meu/ pai.

O estudo da palavra ou o vocábulo (há autores que fazem uma distinção; outros, não) é um dos capítulos mais difíceis nos estudos linguísticos. Não é fácil determinar se uma unidade linguística é ou não uma palavra. A primeira dificuldade consiste em saber se “de” e “da” são duas palavras diferentes, ou se “da” é apenas uma variação morfológica da palavra “de”. Há autores que entenderão a palavra como uma unidade virtual, que se acha dicionarizada, e que se apresenta sem as marcas de variação morfológica. Assim “pato” é uma palavra. Ela figura no dicionário na forma singular e no masculino. Já as ocorrências “patos”, “pata”, “patas”, “patinhos”, etc. são vocábulos (formas atualizáveis no uso) da palavra “pato”.  A segunda dificuldade é se devemos considerar ocorrências como “merenda escolar” e “fim de semana” como uma única palavra ou como um conjunto formado de palavras. Uma das características da palavra é ser uma unidade autônoma de sentido. Assim, a palavra “guarda-chuva” forma uma totalidade autônoma de sentido. Embora seus componentes guardem um significado apreensível e possam funcionar em outros ambientes sintáticos, o significado de cada parte difere do significado do todo. Claro é que, no caso dos compostos, há graus de transparência do significado. O composto "navio-escola" tem um significado bastante transparente, no sentido de que pode ser deduzido do significado de suas partes. Se pensarmos, no entanto,  na palavra “criado-mudo”, cujo significado não pode ser deduzido do significado de cada uma das partes, saber o que significa "criado" e "mudo" não nos ajuda a saber o que significa "criado-mudo". Nesse caso, o significado do conjunto é opaco ou não-trasnparente. Não se trata, é claro, de um criado que é mudo, mas de um tipo de móvel que alguns de nós temos em casa.
Todavia, deixemos a problemática da definição e identificação das palavras. Vou me limitar a dizer que as palavras, na língua escrita, são identificadas, com certa facilidade, pelo reconhecimento dos espaços em branco que existem entre as sequências linguísticas grafadas. Isso não resolve o caso de “fim de semana” (deveríamos considerar haver aí três palavras? Ou uma só?). Mas, por ora, basta-nos saber que em (1a) temos onze palavras. A segmentação que propus parece corresponder à nossa intuição linguística enquanto falantes de português.
O próximo nível a ser explicitado é o dos sintagmas. O que são sintagmas? Você já deve ter percebido que as palavras se organizam em grupos, de tal modo que há entre elas uma coesão, cujo grau pode variar do mais aderente ao mais frouxo. O sintagma é o verdadeiro constituinte da oração. Sintagmas são as unidades imediatas em que se estrutura a oração. As palavras se organizam em grupos, marcados por coesão, e que constituem os sintagmas. Assim é que a vocábulo “o” se prende ao substantivo “menino” para constituir o sintagma “o menino”, em “o menino caiu”. O sintagma “o menino” se articula ao sintagma “caiu”. É possível que o sintagma se constitua de apenas um elemento, que é seu núcleo.
A identificação dos sintagmas depende de que apliquemos, pelo menos, um dois testes: o de deslocamento e o de comutação.
O teste de deslocamento consiste em movimentar as unidades linguísticas no interior da oração, segundo as possibilidades previstas pelo sistema. Se o que mudamos for toda a unidade, então toda a unidade será considerada um sintagma. Vejamos.

(2) O menino caiu da escada.
           P1
(2a) Caiu o menino da escada.
                          P2

 (2b) Caiu da escada o menino.
                                           P3  

Claro está que é o conjunto “o menino” que pode ser deslocado de posição, e não apenas “o” ou “menino”. Se tentássemos deslocar uma e outra palavra, o resultado seria agramatical:

(2c) * menino o caiu da escada.
(2d) * o caiu menino da escada.

O segundo teste é o da comutação. Assim, podemos comutar “o menino” com “ele”, de tal modo que o pronome passará a ocupar o mesmo ambiente sintático em que antes se encontrava o referido sintagma.

(2e) O menino caiu da escada.
             Ele        caiu   da escada.

A forma “ele” substitui todo o conjunto “o menino”, passando a funcionar como sintagma.
Voltando à nossa frase inicial, a sua segmentação em sintagmas nos dará o seguinte resultado:

(1c) A moça/ que eu conheci ontem/ é amiga de meu pai.

É preciso fazer algumas observações aqui. Em primeiro lugar, podemos ter sintagmas encaixados em outros sintagmas. Assim é que a unidade “é amiga de meu pai” inclui os sintagmas “amiga de meu pai”, que, por sua vez, inclui o sintagma “de meu pai”, que, por sua vez, inclui o sintagma “meu pai”. O esquema dessa hierarquização sintagmática pode ser representado assim:

                                        [é amiga de meu pai]  nível 1
                                         é  [amiga de meu pai] nível 2
                                          é amiga [de meu pai] nível 3
                                           é amiga de [meu pai] nível 4

Devo, ainda, observar o seguinte. Se aplicássemos o teste de deslocamento à unidade “a moça” que, a princípio, é uma unidade sintagmática, o resultado seria agramatical. Senão, vejamos:

(1d) *que eu conheci ontem a moça é amiga de meu pai.

Nesse caso, desloquei a unidade “a moça” para depois da forma “ontem”, no final da oração iniciada por “que” (cf. que conheci ontem a moça...). O teste se demonstrou inválido, porque pressupusemos uma independência entre “a moça” e a oração que se lhe segue. Na verdade, é todo o conjunto “a moça que eu conheci ontem” que é o sintagma. Trata-se de um sintagma complexo de natureza oracional. Tal sintagma é uma oração que sofreu o processo sintático que chamamos de transposição. Ou seja, ela foi transposta à classe de um sintagma, para assim assumir uma função sintática na frase. Veja-se que podemos comutar toda a unidade com “ela”:

(1e) Ela (= a moça que eu conheci ontem) é amiga de meu pai.

O sintagma “A moça que eu conheci ontem” funciona como sujeito (veja-se que a forma “é” concorda com toda a unidade, que está na terceira pessoa do singular). Esse sintagma inclui outro sintagma, que é a oração encetada por “que”. A unidade “que eu conheci ontem” funciona à guisa de um adjetivo, pois ela restringe a extensão de significado de “moça”. Não se trata de qualquer moça, mas de uma moça específica: a que eu conheci ontem. Poderíamos substituir “que eu conheci ontem” por “linda”, ou por “de vestido de bolinhas”:

(1f) A moça linda é amiga de meu pai.
       A moça de vestido de bolinhas é amiga de meu pai.

Como sejam unidades funcionalmente equivalentes, “linda”, “de vestido de bolinhas” e “que eu conheci ontem” podem figurar juntas na frase:

(1f) A moça linda de vestido de bolinhas que eu conheci ontem é amiga de meu pai.
Agora, o sintagma corresponde a toda a unidade “a moça linda de vestido de bolinhas que eu conheci ontem”.

Finalmente, oração e frase podem também coincidir, de um ponto de vista formal. Mas não coincidem funcionalmente. A frase é uma unidade de comunicação. Assim, em (1), a frase corresponde a toda a complexa estrutura de unidades linguísticas que se inicia com letra maiúscula e termina com um ponto, na escrita.

(1g) A moça que eu conheci ontem é amiga de meu pai. (frase)

No entanto, essa frase encerra duas orações. Identificamos a oração pelo número de verbos que ocorrem. Em (1g) ocorrem dois verbos, a saber, “conheci” e “é”. A marca para a segmentação das orações é o pronome relativo “que”. Ele introduz uma oração que “quebra” a sequência sintática que reúne o sujeito “a moça” ao verbo “é”. O relativo é um elemento anafórico, já que ele recupera o elemento anterior, projetando-o na oração que introduz. Vejamos:

(1g) A moça que [ eu conheci a moça ontem] é amiga de meu pai.

1ª oração – eu conheci a moça ontem.
2ª oração – a moça é amiga de meu pai.

Veja que “a moça” cumpre uma função sintática diferente em cada uma das orações que compõem a frase. Na oração introduzida pelo relativo “que”, “a moça” é o complemento do verbo “conhecer” (objeto direto); já na oração, tradicionalmente chamada de principal (2ª oração), é o sujeito.

Do exposto, tiramos a seguinte conclusão: as unidades linguísticas se organizam de modos variados e complexos. Essa organização é hierárquica. Assim, os morfemas entram na configuração das palavras, que, por sua vez, entram a fazer parte dos sintagmas. Estes são os constituintes imediatos nos quais se organiza a oração. E a oração pode identificar-se com a frase, ou articular-se a outra(s) oração(ões) para formar uma frase complexa (também chamado de período composto).



   



4 comentários:

  1. Cara, muito obrigado pela postagem. Estava passando mal aqui tentando compreender a relação entre os estratos, através da gramática do Bechara. Percebi que meu ponto de dificuldade estava na compreensão de cada estrato, e aqui está muito bem explicado!

    Não sei que você ainda responderia, mas sabe me dizer porque o Bechara aponta 6 níveis ao invés de 5?

    ResponderExcluir
  2. Aos cinco estratos comumente apontados na tradição, ele acrescenta o da "cláusula", com base em Coseriu. Esse estrato corresponde ao advérbio da oração, ou seja, o advérbio que modifica toda a oração e que nos estudos linguísticos modernos, chamamos de "modalizador". Numa frase como "Possivelmente, ele virá", possivelmente é pertence ao estrato da cláusula, que é um comentário, significando algo como "é possível a vinda dele", ou "há possibilidade de que ele venha". A cláusula é o estrato que inclui a oposição "comentário" e "comentado". No caso em tela, o comentário é feito por "possivelmente" e o comentado é o conteúdo "ele virá".

    ResponderExcluir