quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

“O canalha é sempre cordial, um ameno, um amorável e costuma ter uma fluorescente aura de simpatia.” (Nelson Rodrigues)

     
                                                        Resultado de imagem para Canalha



                        Por que um canalha não pode ser filósofo?


A questão que dá título a esta exposição pressupõe já, formalmente, a incompatibilidade entre os tipos ‘canalha’ e ‘filósofo’. Procuraremos argumentar no sentido da impossibilidade de um canalha ser um filósofo. O percurso argumentativo articulará entre si três momentos: o primeiro dos quais é destinado à definição do tipo que chamamos ‘canalha’; o segundo momento recobre a apresentação de alguns pressupostos gerais atinentes ao modo como a filosofia se define na Antiguidade; no terceiro e último momento, apresentaremos o retrato platônico do filósofo na República. Ao cabo desse percurso, esperamos tornar suficientemente convincente nossa crença de que o canalha não pode ser filósofo.
A questão primeira que se nos impõe em nossa tentativa de negar ser possível a um canalha ser filósofo é a seguinte: quem é o canalha? Consideremo-lo um tipo existencial, à moda nietzscheana, que reúne em si as seguintes principais características: 1) é um fingidor; b) é corruptível; c) é avesso a padrões éticos; d) é escravo de suas paixões; e) é um traidor. A característica a) diz respeito ao fato de o canalha fingir ser quem não é; a característica b) diz respeito ao fato de ele ser propenso à corrupção moral, sempre que o que está em jogo é a fruição de seus próprios prazeres; a característica c), que se prende a b), diz respeito ao fato de o canalha não se comprometer com padrões éticos; a característica d) toca ao fato de o canalha agir sempre movido por suas paixões, buscando satisfazer seus interesses egoístas; finalmente, a característica e) diz respeito ao fato de o canalha faltar ao cumprimento de seus juramentos.
Tendo definido o canalha pela apresentação dessas cinco características, passamos ao segundo momento de nosso percurso. Esse segundo momento, conforme dissemos, recobre a apresentação de pressupostos respeitantes à experiência filosófica na Antiguidade. Começo a apresentação desses pressupostos, citando Hadot (2010, p. 18), que assinala: “A filosofia é, antes de tudo, uma maneira de viver”. Mais adiante, acrescenta: “A filosofia não é senão o exercício preparatório para a sabedoria”. (ib.id.). A concepção de filosofia como ‘modo de viver’ se concilia com outra forma de encarar a filosofia, da qual nos dá testemunho o próprio Hadot. Para ele e para nós, a filosofia é exercício espiritual, que se realiza pelo discurso e pela meditação e que se destina a operar uma modificação e transformação no ‘eu’ de quem a pratica. Cabe, a esta altura, observar que, contrariamente ao que subjaz à posição segundo a qual o comportamento moral de uma pessoa pode ser dissociado de seu discurso filosófico (dissociação esta que está na base da crença na possibilidade de um canalha ser filósofo), a experiência filosófica como “maneira de viver” proíbe-nos de dissociar o discurso filosófico do modo de viver filosófico. Acompanhando Hadot, sustentamos que o discurso filosófico é, ao mesmo tempo, meio e confirmação do modo de viver do qual a filosofia é expressão. Portanto, não cabe opor a filosofia como discurso teórico à sabedoria como modo de vida a que se chega quando o discurso atinge seu acabamento e perfeição.
Uma boa maneira de definir o modo de viver filosófico, que já descortina o terceiro momento de nossa exposição e que se afina com a compreensão socrático-platônica da própria filosofia, encontramo-la em Hadot (p. 102): “Viver de modo filosófico é, principalmente, voltar-se para a vida intelectual e espiritual, realizar uma conversão que põe em jogo “toda a alma”, isto é, toda a vida moral”. Em Platão, a filosofia é experimentar-se, ou ainda, é fazer a experiência de não ser o que se deveria ser. A filosofia, na tradição socrático-platônica, é uma experiência de cuidado de si indissociável do cuidado da cidade e dos outros. Com Sócrates, a filosofia se torna um exercício espiritual que convida o homem a examinar seus valores, sua maneira de agir, “para tomar cuidado consigo mesmo, como também para uma ruptura radical com a vida cotidiana, com os hábitos e as convenções da vida corrente, com o mundo que lhes é familiar” (Hadot, 2010, p. 66).
Uma breve digressão se faz necessária. Toda discussão sobre a incompatibilidade entre um modo de ser ‘canalha’ e um modo de ser filosófico deve estear-se na crítica, feita por Hadot, à representação da filosofia como mero conteúdo conceitual. Essa representação da filosofia como mero conteúdo conceitual tem relação direta com sua redução a uma disciplina acadêmica. Essa redução da filosofia a uma disciplina acadêmica é consequência da separação entre o discurso filosófico e o modo de vida filosófico, que se inicia com a modernidade[1].
Retomando-se o curso de nossa discussão, intentando rejeitar a crença na possibilidade de um canalha poder ser filósofo, insistimos na necessidade de retomar a relação, estabelecida pelos gregos, marcante em Platão, entre sabedoria, conhecimento e virtude. A virtude é indissociável da sabedoria, a qual, não sendo acúmulo de conhecimentos, é “um estado de liberação total das paixões, de lucidez perfeita, de conhecimento de si e do mundo” (Hadot, 2014, p. 57). A sabedoria, no entanto, não é propriedade do filósofo. É importante insistir neste fato: o filósofo não é o sábio; o filósofo é amante da sabedoria, ele deseja a sabedoria e se devota a buscá-la a partir do reconhecimento de que “nada sabe”.
Na tradição socrático-platônica – que é a tradição na qual nos movemos nesta exposição -, a ciência ou o saber jamais são conhecimento puro e abstrato. A virtude é um saber que escolhe o bem e quer o bem; é uma disposição interior na qual pensamento, vontade e desejo se fundem numa unidade. Para Platão, a virtude é ciência, e a própria ciência é virtude. A ciência, tal como pensada e praticada na Academia, destinava-se à formação do homem, a uma lenta e difícil formação de seu caráter. A ciência visava ao desenvolvimento harmonioso da personalidade humana. Em suma, a ciência era um modo de vida destinado a assegurar uma vida boa e, consequentemente, a “salvação” da alma.
Cumpre ainda elucidar a figura do filósofo, tal como dela nos dá testemunho Platão na República. A questão que orienta toda a problemática do Livro VI é a seguinte: quem é filósofo e quem não é filósofo? Em diferentes passagens deste livro, Platão nos fala do filósofo como a) aquele que conhece o que é imutável (484a-d), b) ser virtuoso cuja alma é justa, cordata e moderada (486a-e), c) o que luta pelo ser (490a-e), d) o que se torna divino e ordenado, porque convive com o que é divino e ordenado (500a-e). Também nos diz Platão que o filósofo é aquele capaz de contemplar a essência da Justiça e o Belo em si. Acrescenta que os filósofos são pintores que utilizam o modelo divino. Eles são educadores da alma: cabe a eles criar nos homens a temperança, a justiça e toda a virtude. Platão “pinta”, por assim dizer, o mundo do filósofo. Como é este mundo próprio do filósofo? Acompanhando Platão, somos levados a concluir que o mundo dos filósofos é o mundo das Ideias, dos modelos imutáveis das coisas sensíveis. A vida do filósofo é devotada à compreensão dos Princípios. O filósofo é aquele que se volta para a contemplação do Bem, que é o horizonte a partir do qual o mundo inteligível se ilumina, tornando possível a compreensão dos Princípios.
Uma dimensão importante na constituição da figura do filósofo é a paidéia filosófica. A paidéia é uma conversão da alma que se volta do mundo sensível para o mundo inteligível. A paidéia é uma forma de educar o olhar, de ensinar a ver. É pela paidéia que o filósofo se torna quem ele é: amante da sabedoria, incorruptível e fiel à filosofia. Essa forma de pedagogia filosófica torna os filósofos os únicos capazes de guardar as leis e os costumes da cidade, sem se perderem nas aparências das coisas e das opiniões. Eles são avessos à mentira. São também os mais aptos para governar porquanto dispõem da condição para o bem governar, a saber, o conhecimento da Justiça e do Bem em si.
Sendo necessariamente virtuoso, o filósofo é um homem em cuja alma a parte racional domina as partes apetitiva e irascível. A alma do filósofo é, portanto, uma alma virtuosa porque não cede aos apelos irracionais das paixões. A parte racional de sua alma tem como virtude o conhecimento. O filósofo é, portanto, aquele que vive uma vida justa, o que equivale a dizer que cada parte de sua alma realiza sua própria excelência sob a orientação da parte superior, que é a razão.
Deter-nos-emos um pouco na consideração do sentido da razão como parte superior da alma humana. A razão é responsável por dar a medida. A parte racional da alma – repetimos - cumpre a função de dominar as outras duas partes, harmonizando-as com a razão. Dessa qualidade da parte racional da alma, Platão nos dá testemunho, fazendo Sócrates dizer a Adiamanto:

- Diremos além disso que há pessoas que, quando têm sede, recusam beber?
- Sim, há muitas, que o fazem muitas vezes.
- Então, que se dirá acerca delas? Que na alma delas não está presente o elemento que impele mas sim o que impede de beber, o qual é distinto do que impele e superintende nele?
- É o que parece.
- Porventura o elemento que impede tais atos não provém, quando existe, do raciocínio, ao passo que o que impele e arrasta deriva de estados especiais e mórbidos?
- Acho que sim.
- Não é, portanto, sem razão que consideraremos que são dois elementos, distintos um do outro, chamando àquele pelo qual ela raciocina, o elemento racional da alma, e aquele pelo qual ama, tem fome e sede e esvoaça em volta de outros desejos, o elemento irracional e da concupiscência, companheiro de certas satisfações e desejos.[2]

A parte racional é a parte espiritual e imortal da alma. É a função superior da alma, o princípio divino em nós. A psicologia proposta e descrita por Platão se articula com sua teoria ética. Não podemos perder de vista essa articulação, já que, ao dividir a psykhé em três partes, Platão está interessado em determinar as condições necessárias para que um homem pratique o bem e seja virtuoso. Se dominado pelas partes apetitiva e irascível, esse homem não pode tornar-se virtuoso. É preciso, para tanto, que a parte superior e melhor da alma comande as demais partes. A própria possibilidade de haver justiça, discutida no livro IV de A República, supõe o comando do superior e melhor sobre o que é inferior e pior. Em outras palavras, para haver justiça, a parte racional da alma, que é a parte superior e melhor, deve governar as partes inferiores, a apetitiva e irascível. Que não reste dúvida sobre a relação necessária que Platão estabelece entre a vida virtuosa e a parte racional da alma. Esclarecemo-la. Platão sustenta a crença – que deve a seu mestre Sócrates – de que as paixões do desejo e da cólera levam à produção de apetites em nosso corpo, os quais concorrem para toldar a inteligência. O obscurecimento da inteligência por esses apetites que decorrem das paixões do desejo impedem-na de realizar sua atividade própria, que é conhecer. O que resulta daí é a ignorância, que é o próprio vício. Logo, incapaz de exercer a razão, o indivíduo fica impossibilitado de conhecer as virtudes e de tornar-se virtuoso. É assim que a vida virtuosa dependerá unicamente da parte racional da alma.
Se nos perguntarmos sobre qual é a tarefa ética da parte racional da alma, a resposta deve já nos saltar evidente: dominar as outras partes da alma, de modo a harmonizá-las com a razão. O domínio da razão sobre a concupiscência é o que chamamos temperança (sophrosýne). Sophrosýne é moderação. A temperança é a virtude da alma concupiscente que se deixa dominar pela razão. Uma alma que se dispõe para a temperança resiste aos impulsos e prazeres, modera os apetites e impõe-lhes uma medida racional.
A vida se diz virtuosa, quando cada uma das partes da alma realiza sua própria virtude sob o comando da razão. Por outro lado, a vida viciosa é aquela na qual todas as partes da alma falham na tarefa de realizar a sua excelência ou virtude que lhe é própria. Acresça-se que nos falta dizer qual é a virtude própria da parte irascível da alma. A parte irascível da alma serve de intermediário na ação da razão sobre a parte concupiscente da alma. A razão não atua diretamente sobre a parte concupiscente, já que é preciso que, no comando da concupiscência pela razão, intervenha o sentimento de defesa da vida pelo qual é responsável a parte irascível. A virtude da parte irascível da alma é a coragem (thýmos) ou a prudência (phrónesis). Dominando a parte irascível da alma, a razão possibilita a ela discernir entre o que é bom e o que é prejudicial para a vida do corpo.
Tomemos, agora, a vida viciosa, da qual podemos dizer ser a vida do canalha. Essa vida se caracteriza pela desarmonia entre as partes da alma. Nenhuma das partes da alma consegue realizar a excelência que lhe é própria. Trata-se de uma vida injusta, porque lhe falta o comedimento, a ordem interior. Nela, os apetites dominam a parte racional ou a parte colérica, fazendo-as se enganar e tornando-as conflitantes entre si.
Somente o filósofo é apto para intuir a Ideia de Justiça, sem a qual não é possível a realização de uma cidade justa. Platão estende o governo dos apetites e da cólera pela razão à compreensão do governo da cidade, a qual é concebida como um conjunto hierarquizado de funções cada qual com sua dýnamis e sua areté. Assim, no Livro V, Platão mostra que a justiça é harmonia no Estado e na alma. Como o filósofo é aquele cuja alma é harmoniosa, aquele que é mais apto para atingir o conhecimento verdadeiro, para contemplar a Ideia de Justiça, somente a ele poderia ser conferida a função de governante da cidade justa. Suas propriedades intelectuais e éticas são garantidas pelo exercício da dialética que conduz à intuição da Verdade e do Bem em si.
Concluímos, pois, nosso itinerário descritivo da figura do filósofo, destacando do método dialético, indispensável na formação do filósofo, dois aspectos: o primeiro dos quais consiste no fato de a dialética ser o caminho para descobrir quais Ideias participam de outras e quais não podem participar de outras. A dialética é, assim, um processo ascensional que visa às Essências. Pela dialética, o filósofo é levado a reconhecer que há entre as Ideias um princípio de comunicabilidade e que a maneira como as Essências se comunicam entre si se reflete na maneira como as coisas sensíveis se comunicam. A teoria da participação, coração da doutrina platônica, revela que estamos vinculados às Essências e que o ato de pensar não se separa do ato de nos vincularmos dialeticamente aos deuses. O filósofo, portanto, é aquele que, por ter memória, visa às Essências. O filósofo é, por natureza, virtuoso – repitamos – e, como a virtude, em Platão, é um processo ascensional, o próprio filósofo é aquele ascensionalmente voltado para as realidades divinas. Nada semelhante se dá com o tipo canalha, avesso a qualquer horizonte vinculativo, infiel, movido por interesses egoístas para cuja satisfação ele se lançará irrefletidamente sem o menor escrúpulo.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HADOT, Pierre. O que é filosofia antiga. São Paulo: Edições Loyola, 2010.
_____________ Exercícios Espirituais e filosofia antiga. São Paulo: Realizações Editora, 2014.

PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2009.




[1] Não se segue daí que não haja filósofos modernos que, de algum modo, experienciam a filosofia como modo de viver. Citem-se, por exemplo, Blaise Pascal, Schopenhauer e Nietzsche.
[2] Ib.id.,439d.

domingo, 18 de dezembro de 2016

"Quanto menos inteligente um homem é, menos misteriosa lhe parece a existência" (Schopenhauer)


                                                Resultado de imagem para Schopenhauer
                            


                     Uma lição de Schopenhauer
                   Um comentário sobre o destino humano


Na seção 63 de O mundo como vontade e representação, Schopenhauer dedica-se a discorrer sobre uma forma de justiça a que ele chama JUSTIÇA ETERNA. Essa justiça – assevera Schopenhauer – existe e “está na essência do universo”. Após recapitular brevemente os pontos essenciais de sua doutrina, Schopenhauer delega exclusivamente à Vontade a responsabilidade pela existência do mundo e por sua organização. Assim, o mundo é tal como é porque a Vontade assim o quis. Em seguida, Schopenhauer dirige a seus leitores a seguinte pergunta: “Querem saber o que valem, no sentido moral da palavra, os homens, considerados em geral e no conjunto?” (p. 369). Pede o filósofo que se considere o destino dos homens “em conjunto e em geral”. Eis a seguinte descrição que dá Schopenhauer desse destino:


“Eis esse destino: necessidade, miséria, lamentos, dor, morte. É que a eterna justiça vela: se, considerado na totalidade, eles não valessem tão pouco, o seu destino médio não seria tão horrível. É neste sentido que podemos dizer: o tribunal do universo é o próprio universo. Se fosse possível colocar numa balança, num dos pratos, todos os sofrimentos do mundo, e, no outro todas as faltas do mundo, a agulha da balança ficaria perpendicular,fixamente.” (p. 369-370).


É por temor à incorporação dessa verdade incontestável – “a insignificância humana em face da vontade universal, ou do próprio universo”- que os seres humanos criaram um Deus que é Pai, do qual esperam não só proteção contra as intempéries da vida, mas também – principalmente - elevação ao lugar de máxima importância na (humanamente inventada) hierarquia universal. No seu íntimo, entanto, cada indivíduo sabe que sua vida é, em escala universal, tão insignificante quanto a de um mosquito, que pode, sem muito esforço, adoecê-lo e aniquilá-lo. Pode-se imaginar de quão intenso terror seriam tomados todos os indivíduos que se detivessem a meditar seriamente sobre sua condição existencial. A vida de cada um deles só é possível sob a condição de um autoengano imperturbável. E sempre zelosa de preservá-la, a imensa maioria deles evita a filosofia, já que uma vida filosófica tem um custo o qual eles não estão dispostos a pagar: a redução ao máximo possível das ilusões que tornam suportável viver , acompanhada da consequente hipertrofia da consciência, isto é, do mais alto estágio de seu desenvolvimento, que é a própria Lucidez. É a Lucidez o maior perigo para o homem divorciado da filosofia, porque a Lucidez flerta com a loucura e com a possibilidade de suicídio. E porque a filosofia não é um objeto de estudo, mas uma experiência pessoal, não surpreende que os indivíduos em geral evitem vivê-la intimamente; não oferecendo salvação alguma, a filosofia, “condenando” o homem à Lucidez, não pode fazer – e aqui faço eco a Cioran – senão afiar a faca do conhecimento interior do homem, a fim de que ele possa suportar ou pôr fim à própria vida com alguma dignidade.
            

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

Aforismos

Resultado de imagem para decepção


"Ser naturalmente inapto para odiar. É isso uma forma grosseira de desumanização cometida pela natureza. De tudo que a vida me privou, o ter-me privado da aptidão para o ódio foi seu mais poderoso atentado contra mim". (BAR)


"Impulsividade, quer dizer, incapacidade de contar até três. O um é o extremo onde tudo se decide" (BAR)




"Tenho no corpo sensações oceânicas; na alma, inumeráveis precipícios". (BAR)



“Não conseguir odiá-la é a confissão definitiva de meu amor. O sacrifício derradeiro de um amor não realizado. Exercitar o esquecimento: meu grandiloquente tributo nietzschiano ao nunca mais!”. (BAR)

Poema - O excesso de consciência flerta com o desespero

Resultado de imagem para lucidez



Corrosão

A vantagem de devotar uma vida ao estudo
É ter o espírito sempre afiado para o dilaceramento
O espírito, tão acostumado à decepção
Pode, assim, satisfazer-se na crítica corrosiva
Que desfia todo o mal que lhe foi causado
Assim, reinstitui-se a justiça que, de resto,
Só evita o enlouquecimento concludente

Há, entanto, um custo muito alto: o excesso de consciência
O excesso de consciência flerta com o desespero
O espírito desesperante se estremece, se agita
Vibra numa cadência fúnebre
Como seja corpo, o espírito precisa resistir ao esgotamento
Privado que foi do poder de sua mais forte expressão!
O gozo interdito precisa encontrar uma solução
Tendo julgado inútil o suicídio,
Resta-lhe o enfrentamento, o embate, de resto
                                                 [uma causa perdida
É que o espírito desesperante – (diga-se filosofante)
Sabe que só a morte é eterna
Que a sexualidade não tem outro sentido senão
vencer o infinito pelo Eros
E tendo se demorado na reflexão das razões,
Conclui (sem certeza)
Que deve adorar a vida pela infinidade de motivos
que não a sustentam

Entanto, adorando a vida, sabe
Assim começou a luta: ou a existência ou eu.
E ambos saímos diminuídos e vencidos

Um pesar que ninguém entendeu: o de ser pessimista
Não é fácil cortar relações com a vida
E ver tudo que mais estima transformado
Em fogos-fátuos do Vazio que o absorve




(BAR)

terça-feira, 22 de novembro de 2016

Poema - Conheço-o bastante para não pactuar com o desejo de sua existência

Resultado de imagem para deus pai





A infidelidade à Vontade

Da próxima vez eu prometo
Que nada prometerei
Eu prometo que desconfiarei
De quem me disser
“Que em seu caminho Deus me pôs”
Prometo não trair-me a mim mesmo
Não conciliar-me com a mentira!
Rirei na certeza de que nada significo
Pois Deus é puramente um nome”
Nada significa para mim
Deus e o Nada são como os avessos
De uma moeda antiga

Então, darei as costas
Não sem antes advertir
“Não pronunciarás o nome de Deus em vão”
O nome de Deus cheira mal
Cheira-me à podridão, à hipocrisia!
Deus foi o erro mais grave da humanidade!
A maldição da História!
Deus foi o pior dos crimes!

E querem chamar Deus de amor
E assim aviltam o amor, já tão maltrapilho
“Deus é amor”
Que significa essa proposição?
Que Deus e o amor são uma ilusão

Não me comprometam com Deus
Pois que me ofendem
Não que Deus seja-me ofensivo,
Já que Nada é, não pode sê-lo
É que o conheço bastante
Para não pactuar com o desejo de sua existência

Admiro apenas os cristãos
Que, ao crerem saber a vontade de Deus
São a ela fiéis
Ser fiel à vontade de Deus
É saber que Deus é infalível
Um Deus equivocado merece repúdio!
Devotos equivocados
Na direção da vontade de Deus
São meros encenadores

A modernidade tornou Deus blasè
Outrora Deus frequentava o indizível
O impensável
“Aquilo em relação ao qual não se pode pensar algo maior”
Deus presidia solenidades
Se bem que já era fiador de indulgências
O porteiro dos Céus!

Hoje, Deus já não afiança como outrora
A própria Vontade de Deus altera-se segundo as conveniências,
Deus já não tem mais vontade alguma
A vontade de Deus não é mais necessidade;
O fiel não medita sobre a Vontade de Deus,
Crer chegar a ela a posteriori
“Não foi dessa vez!”
“Não foi a vontade de Deus!”

Que decadência da Vontade!

(BAR)

                     

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Poema - "O caminho da filosofia não leva a qualquer solução última" (BAR)

Resultado de imagem para solidão






"E olhei eu para todas as obras que fizeram as minhas mãos, como também para o trabalho que eu, trabalhando, tinha feito, e eis que tudo era vaidade e aflição de espírito, e que proveito nenhum havia debaixo do sol."


Tudo é vaidade


Tudo em meu corpo é tumulto
Desconheço os processos orgânicos
Que me atormentam, me desorientam
Sinto o tumulto, eu o sei, e isto basta!

É tempo de retornar aos livros,
Ouvir novamente os filósofos:

“Depois da realização final do grande trabalho,
[todo amante] acaba sendo enganado: pois a ilusão desapareceu”
[Schopenauer]
“Seja de que maneira for, case-se. Se conseguir uma boa esposa, vai ser feliz; se conseguir uma péssima, vai ser filósofo”
[Sócrates]
“O amor é apenas o desejo das espécies de sobreviverem,
a necessidade de propagar as espécies”
[Schopenhauer]
“Amor é algo ideal, casamento é algo real; a confusão entre real e ideal nunca sai impune”
[Goethe]
“O que é o amor verdadeiro em si, a não ser uma ilusão? Se víssemos quem amamos realmente como é, não haveria mais amor na Terra”
[Rousseau]
“Ah mulheres. Tornam os pontos altos, mais altos, e os baixos, mais frequentes”
[Nietzsche]
“O jardim do amor é um lugar repleto de pedras, com ervas daninhas”
[John Dewey}
“Conseguir um marido é uma arte; mantê-lo é um trabalho árduo”.
[Simone de Beauvoir]
“Amar alguém é estar disposto a envelhecer com essa pessoa. Não sou capaz de tanto amor”
[Camus]
“O amor é um tipo de doença que não poupa nem o inteligente nem o tolo”
[Camus]
“O problema é que há corpos e, pior ainda, órgãos sexuais”
[Louis Althusser]
“O amor não existe. O que existe é uma necessidade física de relação sexual e a necessidade racional de uma companhia ao longo da vida”
[Liev Tolstoi]
“O casamento é a sepultura do amor”
[Beecher]
“Se o bom-senso tivesse sido consultado, quantos casamentos jamais teriam sido realizados?”
[Thoreau]
“O amor toma a frente quando o conhecimento desaparece”
[São Tomás de Aquino]
“É fácil odiar e é difícil amar”
[Descartes]
“O homem sabe que o amor existe, mas não o que ele é”
[Swedenborg]
“O amor é uma doença mental séria”
[Platão]
“O amor é tudo; dá tudo e tira tudo”
[Kierkegaard]

A lista poderia ser estendida,
Se nos dispuséssemos a consultá-los
A questão, no entanto, permanece a mesma:
O que faço com ela?
Que pode fazer a filosofia contra os tentáculos do desejo?

“Por que o amor é mais rico que qualquer outra experiência humana possível, e um doce fardo a quem é capturado em suas garras?
(Heidegger)

“O amor é irracional. Não há nada que possamos fazer em relação a isso”.
(Arendt)

Nenhuma cura, nenhum antídoto pode-se esperar da filosofia
O caminho da filosofia não leva a qualquer solução última
O exercício filosófico é um combate incessante contra
Nossas ilusões de felicidade plena na Arcádia
Não por acaso é este caminho tão pouco atraente para o vulgo


(BAR)

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Poema - quanto do amor podes suportar?

Resultado de imagem para abismos


Não quero a sorte de um amor tranquilo


O amor é uma corda estirada entre as extremidades de um abismo
Como pretender que caminhemos nos equilibrando nela?
Existir é uma experiência tensionada: há muitos riscos, nenhuma garantia
E o caminho é infindo quanto mais caminho mais distante fico
Das regiões para as quais se inclina meu desejo
Toda minha fisiologia é marcada por tensões, arroubos e vazios
Sou atraído pelas profundezas, pelos recônditos do lirismo oceânico
O amor deve ser uma inundação de corpo, uma escavação do espírito
Que todo corpo amante seja um templo de adoração do desejo!

Não quero a sorte de um amor tranquilo
Quero um amor que morde, que coma, que aplaque
Todo o tensionamento do desejo que pinga
Eu oscilo entre os extremos, resido nos subterrâneos
De sentimentos que poucos podem habitar
Angústia? Seu nome é intimidade
Conheço-a profundamente, sua nudez congênita

O amor deve ser o mais belo risco, o maior de todos
O mais desconcertante, o mais perigoso salto
Para o vazio do desespero, para a escuridão do abandono
A força de um ser humano se mede pela seguinte pergunta:

Quanto amor podes suportar?


(BAR)

segunda-feira, 14 de novembro de 2016

Poema - Paisagem



Resultado de imagem para tempestade


Minha paisagem

Tenho n’alma tempestades ruidosas
Rajadas sombrias, rugidos soturnos
Meu céu é negro e nebuloso
Raios ferozes o tingem de sonhos

Tenho n’alma abismos inalcançáveis
Densas florestas mergulhadas em sombras
Tenho n’alma calabouços impenetráveis
Um palco de amores encenados

Tenho n’alma este mau hábito
De amar sofregamente
Como o navegante à deriva em mar revolto
Desejoso de uma terra firme
Onde o desejo, falta irremediável
Possa descansar seu trabalho interminável


(BAR)

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Poema - todo poeta é um suicida


                                     Resultado de imagem para desenho de lápide




Todo poeta é um suicida


Ponham abaixo todos os versos
Sejam amaldiçoadas as horas
Em que os poetas se esmeraram
                               [em erigi-los

Não compreendo como inda existem poetas
A ousar falar de coisas infinitas
Nosso mundo já não os compreende
Não pode sentir a vida como eles sentem
Nossa época sepultou a poesia
Todos têm muita pressa (que a lugar nenhum leva)
Nunca fomos expostos a tanta informação
E nunca quiçá fomos tão desinformados
Ninguém tem mais tempo para a ausculta lírica

Ah! Como detesto esta geração que nada retém!
Com sua obsessão de felicidade
Com sua incapacidade de olhar bem fundo
De ver para além das aparências!
Detesto esta geração de rebeldes mimados!
Consumidores de pornografia (a morte de Eros)
Navegantes da superficialidade
Habitantes da caverna pós-moderna
Imersos em vivências sem espessura

Todo poeta é por isso um suicida
E a poesia seu obituário.


(BAR)

domingo, 9 de outubro de 2016

POEMAS DE DESILUSÃO



                                            Resultado de imagem para desenho Don juanResultado de imagem para desenho do cafajeste
                                                               


Conselho


Se queres o amor de uma mulher
Jamais lhe dês tudo que ela quer
Nunca a ela te entregues totalmente
Conserva a distância; ama-a desinteressadamente

Raramente escrevas-lhe frases de amor
Sê firme e amável, jamais apaixonado
Não lhe desnudes o que há em teu interior
Se queres o interesse. sê desinteressado

Jamais acredites em sua fidelidade
Beija-a com ardor, fingindo sentimento
Alterna doçura com severidade

Faze-a rir mas só raramente
Nunca dela esperes compreensão
Pois o desejo de uma mulher é contradição.


(BAR)

O cafajeste


O cafajeste não se apaixona; pula carnaval
É mestre em encarnar a fantasia feminina
Domina a arte de obter prazer carnal
É tipo de homem que a mulher fascina!

Ele finge ser carinhoso e compreensivo
Sempre dispõe de outras e rejeita compromisso
Jamais bajula, mantém-se distante e misterioso
É o amante perfeito: dá prazer sem ser pegajoso

A mulher entre o desespero e a esperança
É envolvida na arte da representação
Que a torna dependente como a criança

O cafajeste que do amor só conhece a impressão
É entre os homens o mais astuto e esclarecido
Sabe como fisgar a presa sem ser iludido


(BAR)

sábado, 8 de outubro de 2016

Poema - A mulher







O enigma

O enigma


O que a poesia une
O cotidiano separa
Minha sensatez confunde
Mania filosofante
Querer dar razões
Ao que só admite motivos
E motivos desconhecidos
Que se ignoram ou se disfarçam
Com as máscaras do desejo

Que queres, afinal?
Já não sei, nunca soube
Nunca saberei
A mulher é o maior enigma da Natureza
Ela quer tudo e nada ao mesmo tempo
Quer não querendo, e não querendo quer
Assim é a mulher
Sua lógica opera às avessas
As conclusões precedem as premissas
O efeito se dá sem causas aparentes
Tudo nela é indefinição
O que ela diz não corresponde ao que ela quer
Ou ao  modo como se comporta
O que diz num momento
Contradiz no momento seguinte
A mulher a lógica entorta

O seu desejo tem as duas faces de Jano
A porta de entrada é a da saída
A porta da saída é a da entrada
Toma metáforas por ambiguidades
Ambiguidades por metonímias
Perturba a linguagem das emoções
Diz e se contradiz dizendo o que não diz
Simula, dissimula, emula
Se queres compreendê-la,
Prepara-te para a loucura.


(BAR)