sábado, 3 de novembro de 2012

"A palavra 'mundo' não é o mundo" (BAR)


                            

                                 A presença das palavras


Quero convidá-lo a pensar no que se segue. 
Já se deu conta de que os espaços sociais em que vivemos estão repletos de palavras? Já se deu conta de que para onde quer que olhemos elas estão a mostrar-se? Estão aqui diante de mim, estampadas num livro, impressas nesta imagem de papel virtual em que escrevo. Mas as palavras, embora existam e estejam presentes aos nossos ouvidos, aos nossos olhos (quando se revestem da roupagem gráfica), à nossa consciência,  não se confundem com coisas. Palavras não são coisas. Primeira lição importante em semiótica. As palavras são uma forma de signo linguístico.
Quando eu profiro ou escrevo ‘mundo’, não é o mundo que se impõe a sua consciência. É a palavra ‘mundo’ com todo seu investimento polissêmico (v. o mundo da arte, o mundo da ciência, o mundo do crime, o mundo da prostituição, o mundo dos antigos gregos, etc.). Cada uso feito da palavra ‘mundo’ produz um forma diferente de representação de parcelas de nossa experiência de ‘mundo’. Palavras não são rótulos  que colocamos nas coisas, à semelhança de etiquetas aplicadas em produtos comercializáveis. Palavras são materiais linguísticos com que criamos conceitos, por meio dos quais organizamos nossas experiências de mundo numa totalidade dotada de sentido.
Mais uma vez. Se digo ‘baleia’, não é o animal, maior mamífero do mundo, que está diante de você. É um signo que está em lugar de. Agora, pense que o texto, que se compõe de palavras, como sendo um supra-signo (ou seja, uma forma de signo mais complexa e hierarquicamente mais alta), não pode espelhar a realidade, não pode dizer o que é a realidade ou como é a realidade. Palavras escondem mais do que revelam. Entre a palavra e o objeto que ela designa, há o significado de que toma parte aquele que dela se serve (o sujeito do discurso). Mas esse mesmo sujeito não é senhor do significado (ele apenas julga sê-lo, porque atravessado pela ideologia). Pois bem. O que ele faz, ao produzir seu texto, é construir uma versão de mundo com base em seu ponto de vista, suas crenças, seus valores, que são constituídos sócio-histórica e ideologicamente. Vozes portadoras de palavras o atravessam, não sendo, portanto, ele um sujeito adâmico, origem do seu discurso. Ora, usamos a linguagem também para falar do mundo. É o mundo falado que nos interessa, ou, para usar o jargão dos linguistas, o mundo textualizado que nos interessa, quando pretendemos interagir e compreender a realidade mediante a linguagem. Você que lê um texto, por exemplo, de um articulista num jornal, não pode esperar que ele lhe dirá o mundo tal como é, mas tão-só lhe exporá a perspectiva que ele tem sobre o mundo.. A verdade é uma construção social; baseia-se num consenso. Usar a língua é produzir significados. E usando a língua significamos a realidade de modos variados, não segundo uma subjetividade livre, desimpedida e que goza do poder de arbitrar sobre o sentido certo ou a verdade, mas segundo uma subjetividade posicionada, situada em um contexto sócio-histórico e ideológico.
O signo não é a coisa, ou a palavra não se confunde com a coisa. O texto ou o discurso não espelha a realidade, não é uma imagem exata da realidade tal como é. O que é a realidade ou as realidades? Construções simbólicas, forjadas num complexo que envolve a relação entre percepção-cognição, cultura e linguagem. Toda realidade é um complexo entretecido de sentido. Dar sentido é dar ordem ou, dito doutro modo, o sentido pressupõe uma ordem, assim o é com os enunciados que produzimos. A ordem produz o sentido, ao mesmo tempo que o sentido a pressupõe. Se digo “A quebrou a bola da janela vidraça”, produzo uma sequência linguística desprovida de sentido. Falta-lhe uma estrutura, uma forma, uma ordem. Portanto, falta-lhe o sentido. Essa disposição aleatória de palavras, num nível cognitivo, não representa nenhuma parcela de nossa experiência. Mas se lhe dou outro torneio, como “A bola quebrou a vidraça da janela”, então o que era caos se torna ordem, e o sentido ganha vida em nossa consciência. Há algo mais interessante aí. É certo que essa frase estrutura adequadamente nossa experiência de mundo. O evento como um todo pode ser representado em nossa consciência, reconstruído mentalmente na forma de um estado-de-coisas verificável no mundo. Mas essa é apenas uma versão da representação desse estado do mundo. Alguém poderia dizer “O garoto quebrou a vidraça da janela com a bola”, ou ainda “Chutando a bola, o garoto quebrou a vidraça da janela”, ou “O garoto arremessou a bola contra a vidraça da janela, quebrando ela”, etc.
Note que na primeira versão, omitiu-se o agente, embora ele esteja cognitivamente pressuposto, já que sabemos que a bola não pode ter quebrado a vidraça da janela, sem que um agente humano a tenha lançado. A omissão faz toda diferença. E mais diferença haveria se a frase produzida fosse “Quebraram a vidraça da janela com a bola”. Nesse “mundo” representado nesta frase, ou nesse estado-de-coisas descrito nesta frase, falta a lexicalização do agente. Não há uma palavra que o designe. A frase revela muito sobre os modos como nos relacionamos com o mundo. Muitas vezes, não podemos ou não queremos denunciar o perpetrador de um ato que lhe acarretará alguma repreensão ou punição. A língua influencia nossas estruturas cognitivas. Sabemos que o verbo ‘quebrar’ inclui em sua estruturação semântica (chamada ‘valência semântica’) um causador (v. A ventania quebrou a vidraça) ou agente (quando o sujeito é ocupado por uma entidade humana). Faz parte de nosso conhecimento de mundo o fato de que em toda experiência representada com o uso do verbo “quebrar” o causador ou agente está implicado. Isso não nos impede de omiti-lo, já que, nossa língua, disponibiliza um recurso adequado para tanto. É a realidade, portanto, que se reconstrói, e não que se espelha quando produzimos nossos textos. São os signos que, organizados segundo as regras previstas pela gramática da língua, a representam em nossa consciência e não que a põem para nós como algo já dado, pré-existente. 

"O homem inautêntico é o homem cuja consciência está anestesiada" (BAR)




                         Kierkegaard e o filistenismo

Soren Kierkegaard (1813-1855), considerado o fundador do existencialismo, foi tão influente no pensamento moderno quanto Nietzsche. Fora filósofo e teólogo; apaixonadamente cristão, mas averso à religião organizada e a qualquer forma de doutrina que embota a consciência. Sua filosofia, banhando-se na caldeira humanista-racional à época, opunha-se ao pensamento de Hegel. Kierkegaard rejeitava as abstrações e os conceitos do filósofo idealista alemão, por ter eles mais valor, no interior de sua filosofia, do que o próprio real.
A condição humana e a angústia estavam no centro de suas preocupações filosóficas, o que parece justificar o fato de Ernest Becker, em seu livro A negação da morte (2012), ter-lhe conferido o título de psicanalista. Nas palavras deste autor,

“A estrutura de compreensão que Kierkegaard tem do homem é quase que exatamente uma recapitulação do moderno retrato clínico do homem que esboçamos nos quatro primeiros capítulos deste livro.”
(p. 94)
(ênfase no original)


As contribuições de Kierkegaard ao estudo da psicologia humana foram tão importantes, que Becker não hesitou em equiparar o trabalho do filósofo dinamarquês ao de Freud.
Kierkegaard propunha a inseparabilidade entre religião e psicanálise no que toca ao tratamento da condição humana. Esses dois domínios discursivos, segundo ele, têm muito a ensinar sobre nossa ambiguidade.
Veremos de que natureza é essa ambiguidade; antes, porém, convém reter que Kierkegaard concebia o homem como resultado da união entre uma autoconsciência e um corpo físico. Tendo evoluído na base de uma ação instintivo-reflexa, à semelhança dos outros animais, o ser humano passou a refletir sobre sua própria condição. O homem se liberta das limitações da natureza e desenvolve uma autoconsciência. Ele não só toma consciência de sua individualidade, mas passa a creditar que participa da dimensão do divino pela criação.
O desenvolvimento da autoconsciência no homem se acompanhou da formação da consciência do terror do mundo e de sua  própria morte. Eis aqui a ambiguidade constitutiva do homem: um ser consciente da realidade do mundo e consciente da inevitabilidade de sua morte. De acordo com Becker,

“A queda na autoconsciência, a saída da confortável ignorância na natureza, acarretou uma grande penalidade para o homem: pavor ou angústia”.

(p. 95)

A angústia, que para Kierkegaard decorria da consciência da morte, é consequência dessa ambiguidade, ou seja, do fato de o homem ser consciente do terror do mundo e de sua própria morte, mas também do fato de não poder exercer domínio sobre essa ambiguidade.
Kierkegaard antecipou a compreensão do caráter como couraça de que se vale o homem contra a visão da verdadeira realidade do mundo. O filósofo dinamarquês, no entanto, usou o termo “confinamento”, com o qual “se referia ao fato de que a maioria dos homens vive um estado (...) no qual bloqueia suas percepções da realidade” (p. 97). Atualmente, utiliza-se, em psicanálise e em psicologia, o termo repressão. A repressão é a causa da fragmentação interior da pessoa. Ela produz uma descontinuidade de sua personalidade.

“(...) a verdadeira percepção da realidade se encontra sob a superfície, bem à mão, pronta para irromper, deixando a personalidade aparentemente intacta e funcionando como um todo, em continuidade – mas essa continuidade é quebrada e assim a personalidade se encontra realmente à mercê da descontinuidade expressa pela repressão”

(p. 99)

Como se forma, pois, a mentira do caráter? Essa mentira forma-se na infância, quando a criança precisa adequar-se ao mundo, aos pais e lidar com seus próprios conflitos existenciais. Consoante nos ensina Becker,

“Ela se forma antes que a criança tenha a oportunidade de aprender sobre si mesma de uma maneira aberta e livre, e, por essa razão, as defesas do caráter são automáticas e inconscientes.”

(ib.id.)

Sucede, contudo, que a criança se torna dependente dessas defesas e também incapaz de reconhecê-las. A ignorância sobre elas leva-a a ficar mais encerrada em sua couraça (caráter), impedindo-a de transcender a condição de prisioneira.
A tentativa de rejeição da mentira do caráter produz o tipo de homem denominado de “homem inautêntico” (para Kierkegaard, o “filisteu” ou homem imediato). O homem inautêntico não consegue desenvolver sua singularidade. Ele apresenta as seguintes características:

a) Segue modelos de vida irrefletidamente;
b) Não questiona tais modelos a que foi condicionado desde a infância;
c) Não desenvolve autonomia e originalidade;
d) Não constrói uma visão de mundo independente de ideologias que se cristalizaram em sua consciência por ocasião dos processos formativos a que foi submetido;
e) É sensivelmente condicionado por sua cultura, chegando a tornar-se uma espécie de escravo dela (embora a ideia de escravidão aqui seja discutível).

Kierkegaard chamava “filistenismo” ao estilo de vida trivial do homem inautêntico, por ele considerado um filisteu (filisteus formavam um povo da Antiguidade que chegaram a dominar Israel; mas, em Kierkegaard, o significado parece ser o de ‘pessoa vulgar de mentalidade estreita’). Filisteu, na visão do filósofo dinamarquês, é o homem que se satisfaz tão somente com as ofertas de entretenimento de sua sociedade. É o homem imerso e idiotamente feliz em suas rotinas diárias. É o homem que ergue uma cerca ao seu redor e contenta-se em atuar e em perceber a realidade nos limites estreitos fixados pela cerca. Becker levanta a questão sobre o porquê de o homem preferir uma vida trivial, à qual responde como se segue:

“Devido ao perigo que um amplo horizonte de experiências representa, é claro. Esta é a mais profunda motivação do filistinismo, o fato de ele celebrar o triunfo sobre a possibilidade e a liberdade. O filistinismo conhece o seu verdadeiro inimigo: a liberdade é perigosa. Se você a segue com excesso de disposição, ela ameaça arrastá-lo para o ar; se abre mão dela em demasia, você se torna um prisioneiro da necessidade”.

(p. 101)


Não é difícil encontrar esse tipo de homem em nossas sociedades. Por quantas vezes não nos deparamos com pessoas incapazes de pensar por si próprias? Além de ocupar empresas e os domínios da burocracia no Ocidente e no Oriente, o filisteu ou homem inautêntico também habita as tribos limitadas a sua tradição. Estando os homens inautênticos quase totalmente condicionados por sua cultura, não é difícil determinar quais as principais instituições responsáveis pela formação deles (a família, a escola, a mídia (especialmente a televisão), a religião, etc.). Becker observa que eles são “unidimensionais totalmente imersos nos jogos imaginários de sua sociedade, incapazes de transcenderem seu condicionamento social” (p. 100).
Mas é Kierkegaard quem nos oferece a melhor descrição da cotidianidade e estilo de vida desse tipo de homem, completamente fechado em seu caráter:

“homem imediato (...) o seu eu ou ele próprio é algo incluído juntamente com “o outro” no âmbito temporal e do mundano. (...) Assim, o eu combina imediatamente com “o outro”, querendo, desejando, desfrutando etc., mas de forma passiva; (...) ele consegue imitar os outros homens, observando como eles conseguem viver, e assim ele também vive, de certa forma. Na cristandade, ele também é cristão, vai à igreja todo domingo, ouve e compreende o vigário; é, eles se entendem; ele morre; o vigário o conduz à eternidade pelo preço de dez dólares – mas um eu ele não foi, e um eu não se tornou. (...) Porque o homem imediato não reconhece o seu eu, só se reconhece pelos seus trajes, (...) reconhece que tem um eu só pelas aparências”.

(p. 100. Kierkegaard. In. Becker)


É provável que Sartre visse na situação do homem imediato ou homem inautêntico a expressão da má-fé, conceito com que definia a situação do homem que busca defender-se contra a angústia e o desespero, evitando assumir sua condição de ser livre. Platão talvez também visse a situação do homem inautêntico à luz da sua teoria do conhecimento, ilustrada na sua alegoria da caverna. Para Platão, os homens inautênticos não seriam senão os prisioneiros da caverna, para quem a realidade se identificava às sombras projetadas na parede. A mentira do caráter compreende esse conjunto de sombras que lhes impedem de atingir a compreensão da verdade sobre a realidade e da verdade sobre sua própria condição humana.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

“O mundo não tem sentido sem o nosso olhar que lhe atribui forma, sem nosso pensamento que lhe confere alguma ordem”. (Lia Luft)


                    
                                 
                                 Revisitando-me




Redescobrir-se... Revisitar-se... é privilégio de poucos. E se nos fosse possível reencontrar a nós mesmos no passado? Haveria alguma vantagem nisso? Malgrado a impossibilidade de voltarmos no tempo, podemos revistar o que fomos, em algum período pretérito da vida, por meio da leitura de nossos registros escritos. É a isso que me proponho neste texto. Reler-me.
Busquei em meu armário um conjunto de nove apostilas que reúnem textos diversos que escrevi ao longo dos últimos sete anos. Quase todas estampam na capa um título. Apenas uma, na verdade, não tem título. Uma delas ostenta o título Expressões do Espírito e seus textos foram produzidos no estágio mais acentuado da depressão. Abro parênteses para elucidar o que é depressão. Muitas pessoas confundem depressão com tristeza ou, por pura ignorância e preconceito, acreditam não ter ela qualquer gravidade. Na verdade, devemos falar em depressões (no plural).
Encontramos uma descrição de “depressão” bastante clara, em O que é neurose (2004), da psicóloga Maria Luiza Silveira Teles:

“Em qualquer tipo de depressão, costuma haver perda de vitalidade, perda de memória, dificuldade de concentração, perda de interesse pelas coisas ao redor, invasão de pensamentos negativos, ideias de culpa, baixa estima, autocensura, auto-reprovação, nenhuma perspectiva de futuro, sofrimento por antecipação. Ela pode vir acompanhada de fobia, pânico e hipocondria”.
(p. 43)

Salvo a perda de memória e a dificuldade de concentração, tive todos os demais sintomas. Havia, contudo, um interesse que eu conservei e graças ao qual, não sem a ajuda psicoterápica, pude emergir dos abismos psíquicos nos quais minha vida estava confinada: o interesse pelos livros.
Expressões do Espírito é uma coletânea de textos que versam sobre metafísica, Deus, cosmos, a realidade do eu (ou seja, o eu como instância psicológica), a condição de ser professor e temas filosóficos, como o da existência. Há textos de caráter mais intimista. Leiamos um fragmento do texto Existir é ser responsável. Nesse texto, me ocupei das filosofias de Sartre, Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. Embora o desenvolvimento do tema abrangesse a discussão sobre o pensamento desses três filósofos, eu não deixava de testemunhar minha própria visão sobre o ser eu:

“Há muito já reconheci minhas tolices, minhas incoerências e o absurdo de minha hipersensibilidade. No entanto, ainda não alcancei o poder de me valer das crises para promover meu crescimento humano. Este depende de nossa capacidade de compreender a vida numa dimensão muito maior e mais densa do que os retalhos de existência que revestem nosso cotidiano”.

Àquela altura, eu já estudava informalmente filosofia. E, à medida que fui aprofundando meus estudos, descobri na filosofia o poder de que eu precisava para me desafogar da depressão. Todos os textos revelam a busca incansável por um autoconhecimento.
Como eu pretendo dar a saber ao leitor um pouco do conteúdo de cada apostila, não vou me alongar sobre os pormenores de Expressões do Espírito. Limitar-me-ei a alusões gerais sobre os textos. O primeiro texto dessa coletânea intitula-se Reflexões dispersas. A influência da filosofia de Humberto Rodhem é notável. Rodhem propunha uma espiritualidade cósmica. Deus não poderia deixar de estar entre minhas preocupações. Também o pensamento de Allan Kardec, nome com que ficou conhecido Hippolyte Léon Denizard Rivail (seu verdadeiro nome), também exerceu sobre mim bastante influência. Era eu simpatizante da doutrina do espiritismo, postura esta a que não mais me inclino. Vejo-a com muita suspeita hoje.
A busca pela vida etérea é o segundo texto. Inicialmente, mostro-me saudoso e um pouco narcísico (compreensível, àquela altura, em alguém que estava enfrentando uma depressão). Fito os olhos no texto A centralidade do eu. Estampo aqui um trecho que testemunha meu estado de espírito naquela fase. Era eu um religioso crítico em profunda crise. Já um intelectual que precisava libertar-se dos grilhões da fé.

“O amor à vida. A gratidão infinda. A fé. A consciência da ventura, decorrente da dedicação e empenho ao labor do espírito. A dita. A família – ventre de minha vida. Essência do meu ser. Os livros. As palavras. Mares da lucidez e conforto. O saber. A busca incessante. O desbravamento. A insaciabilidade. A fome. O desejo irreprimível pela doçura dos versos. A personificação das palavras. O verbo santo. As preces à cabeceira da cama. A comunhão com o Divino. A ânsia pelo amor etéreo, pela unidade santa. A transcendência. A necessidade de superar o corpo e suas misérias. A consciência de que somos espírito com corpo. O conhecimento. A suavidade das rosas. A ternura das borboletas. A natureza policroma. O sol deitando seus raios luminosos sobre a janela. A oração – sufrágio dos aflitos. Um livro de Lia Luft:
“O mundo não tem sentido sem o nosso olhar que lhe atribui forma, sem nosso pensamento que lhe confere alguma ordem”. ”

Impressiona-me como meu espírito estava muito impregnado da ideologia cristã. Aspirava ao asceticismo. Buscava um sentido transcendente para a vida, porque, àquela altura, o sentido estava estilhaçado, a vida não fazia sentido.
Há outra apostila, intitulada de Especulações filosóficasO saber pela palavra, que reúne textos sobre temática variada, muito embora atinente à filosofia. Homem de filosofia, leitura e imagem: o fascínio da televisão, racionalidade e pós-modernidade, pensamento e escrita, o que é a verdade, a expansão humana pela linguagem, as ondas da vida, o ser e o real: Parmênides e Platão – são os títulos que constam dessa coletânea.
Outra apostila, intitulada de Expressões da alma – o retorno ao interior, é também uma coletânea de textos com temática intimista. Meus textos quase sempre eram expressão da busca por um autoconhecimento pelos caminhos da filosofia e das religiões (no plural, porque me interessavam também o budismo e o espiritismo).  Os textos que se acham nessa coletânea apresentam os seguintes títulos: Os livros em mim, Eu sou o caminho, a verdade e a vida, Conhecendo o Budismo: Iluminação e Ilusão, Descaminhos ausentes, Con-versando sobre linguagem, Reminiscência: o despertar do conhecimento esquecido.
Tamanha a importância dos livros para mim, que no texto Os livros em mim, iniciei o primeiro parágrafo com as seguintes palavras:

“Ultimamente, meu espírito tem estado em ebulição. As ideias fervem amiúde como água borbulhante numa leiteira. É este o efeito benéfico dos livros: eles fazem a mente fervilhar. Num átimo em que fui tomado de uma emoção abrangente, que se expande para todas as células de meu corpo, injetando-me inquietude lírica, pensei se seria possível absorver todos os conteúdos livrescos, armazenando-os com saliência na memória. Delírio inconsistente!”

Polígrafo é o título de outra coletânea de textos. Polígrafo designa aquele que escreve sobre vários assuntos e esta coletânea encerra textos sobre temas diversos. Eis os títulos: Uma experiência inspiradora – o amor pela docência, O mundo ignoto: a incansável busca (texto que data de 26 de março de 2010), A ascensão espiritual: reconhecendo-se para além da materialidade, A importância de Ferdinand de Saussure e Noam Chomsky na formação acadêmica do graduando em Letras, O mundo através da palavra: a linguagem em meu Espírito.
Pensamentos e outros desvendamentos é outra apostila que reúne textos que versam sobre a formação do leitor crítico, a condição social humana, a sociedade de consumo, a contribuição de Noam Chomsky para a formação do professor de português, a consciência cósmica, a estruturação cósmico-humana, imagens e miragens no capitalismo avançado, a democracia no capitalismo avançado e as ideias de Marx e Engels. Outras duas apostilas estampam os títulos Releituras celestiais - espiritualidade e consciência cósmica e Meditações filosóficas.
Por fim, outra apostila encerra textos densamente líricos, entre muitos poemas. Na folha inicial, que não estampa um título, se topam fragmentos de outros textos que escrevi. O primeiro dos quais é bastante ilustrativo daquele período profundamente marcado pela interiorização e por uma expressão verbal muito intimista. Eu precisava haver-me comigo mesmo. O trecho a seguir fora mal compreendido pela minha psicóloga, que questionou a ideia de que “existir é condição necessária para a solidão”. Leiamo-lo:

Existir é condição necessária para a solidão. E muitos se espantam com a ideia de que uma pessoa pode sentir-se sozinha no meio de muitas pessoas: é que a mente tem esconderijos, espaços impenetráveis, caminhos obscuros, salões imensos, onde ressoam os gritos de um “eu” encarcerado, que, em algum momento de sua vida, deu-se conta do absurdo da existência”.

A doutora da alma queria me mostrar que a existência não leva necessariamente à solidão. Mas o que ela não percebeu foi o sentido que eu pretendia produzir quando usei a palavra existência neste texto. Num primeiro nível de sentido, parece que estou declarando o óbvio: só podem ser solitários os que existem. É necessário existir para ser solitário. No entanto, ela passou ao largo da significação da palavra quando consideramos a condição humana. Uma pedra existe tanto quanto eu, como presença no mundo. Mas, diferentemente desta pedra que se coloca à minha consciência como ser que existe enquanto totalidade em si mesmo, eu não sou aquilo que penso ser; o que sou me escapa. Além disso, eu sei que tenho consciência de que existo. A existência da pedra é bruta. Ela existe para uma consciência. Nós, seres humanos, existimos como seres conscientes da existência e seres autoconscientes vinculados a um mundo que buscamos compreender. O ser da consciência, ensina Sartre, “é um ser para o qual, em seu ser, está em questão o seu ser” (p. 122 – O Ser e o Nada.). Esse ser não coincide consigo mesmo, como no caso da pedra.
A existência a que eu me referia era, então, uma existência humana, portanto, impregnada de consciência. Uma existência que se coloca como um problema para o ser humano. Àquela altura, a minha existência enfrentava o fato mesmo de existir, tornava-se auto-reflexiva. Eu não escrevi “A solidão é condição necessária para existir”. Existimos sem que tenhamos de sentir-nos solitários. Aliás, existir é estar em relação com, é exteriorizar-se, é relação do ser que se projeta para o Outro. É movimento de abertura do ser. Mas há muitas pessoas que existem sem nunca colocar para o pensamento o problema de estar consciente da existência. O que significa existir quando a consciência apreende a existência, quando a consciência se defronta com a existência, quando se ocupa dela? Muitas pessoas não se preocupam com estas questões. Tão-só existem, vivem, ao sabor das vicissitudes. Para mim, a existência constituía (e ainda constitui) um problema que eu tinha de enfrentar. Quando tomei consciência do que é existir, vi-me imerso em solidão. Percebi que a ninguém mais isso parecia ser um problema. O existir aí não é a simples presença no mundo, mas a consciência do absurdo dessa presença. Minha busca era a busca pela potência de existir na solidão (experiência que encontramos no amor). Eu queria existir mais em minha solidão. Lendo Rubem Alves (“A solidão amiga”) aprendi a “ser mais” por causa da solidão, e não mais a despeito dela.
Hoje, reconciliado com a vida, liberto dos grilhões da fé e do dogmatismo religioso, pela descoberta do prazer filosófico, posso revistar-me lendo os textos daquela época para reencontrar-me aqui, amante das palavras e desejoso de viver.


segunda-feira, 29 de outubro de 2012

"Caminho conjuga bem com a vida" (BAR)


                                      

                             Caminhos

Bem sei que estou equivocado ao dizer isto: sempre achei que, para escrever um livro, é preciso que se tenha chegado a um estágio mais adiantado de maturidade.  Reconheço meu desejo de ver um livro meu publicado; no entanto, não mobilizo esforços para realizá-lo. Acho que não é chegado o momento. Por isso, se acaso eu vier a morrer antes de poder publicar um livro, eu gostaria de que alguém de minha família preservasse os textos que escrevi e que se acham arquivados neste computador e publicados neste blog. A escrita é uma prática que encaro com muita seriedade e, quando releio meus textos, percebo que dessa seriedade pude colher reflexões interessantes. Já escrevi sobre minha relação com a escrita, já manifestei como me dedico ao trabalho de confeccionar um texto. Por vezes, - também já o disse – tão-logo lhes ponho um ponto final, releio os textos , e descubro várias inconsistências. Corrijo-os, a fim de lhes dar uma forma publicável. Isso não me impede de revisitá-los e alterá-los num ou noutro ponto.
Não raro, ao relê-los, me admiro das coisas que escrevi. E cada releitura mostra-me uma pluralidade de caminhos verbais ainda por trilhar. Eis a magia do discurso: a inesgotabilidade dos sentidos, das possibilidades de dizer nunca exatamente do mesmo modo.
Neste átimo, fixo o olhar no vocábulo “caminhos” e sua semântica se me abre diante da consciência. O que ela revela? A possibilidade de ir adiante... E foi tomando os caminhos das palavras que pude reconciliar-me comigo mesmo e com mundo e ir adiante, nesta marcha social em direção à morte inevitável. Percebo, com regozijo, que minha dedicação ao trabalho com a linguagem curou-me o espírito. E, todas as noites, posso reencontrar-me com as palavras que me inundam de vida a solidão. Elas revestem meu espírito como músculos revestem os ossos. Dão-lhe força, elasticidade e mobilidade. A elasticidade do espírito se mede pela sua plasticidade linguística, isto é, pelo seu manejo com a maleabilidade e dinamicidade da língua.
Caminho conjuga bem com a vida. Esse vocábulo traz em seu bojo a transitoriedade. Por ele, fazemos a transição. E não é a vida transitoriedade? O caminho que leva à vida e à morte é o mesmo. Entre o nascimento e a morte, o transitório. Felizmente, o homem pôde desenvolver a linguagem verbal, que lhe permite acomodar o infinito na brevidade. Pensar a infinitude na brevidade da vida, na estreiteza de nossas percepções. Aspirar ao infinito nos limites de nossa compreensão da vida. Foi a linguagem que nos permitiu o “grande salto” (a transcendência às condições naturais, de cujas raízes, no entanto, os biólogos evolucionistas insistem em nos lembrar). Talvez, o caminho da vida não nos leve a lugar algum; mais vale estar nele, poder percorrê-lo de ponta a ponta, ainda que a chegada seja um precipício do qual nunca poderemos escapar. Uma boa imagem para a morte: a do precipício. Nascemos grávidos da morte. Nascemos já precipitados para a morte. Precipitar-se é lançar-se, atirar-se. Nascer é inclinar-se à morte. E toda a vida é uma luta contra o fenecimento. Nosso organismo, desde muito cedo, trava uma verdadeira batalha contra os operários da morte (e não faltam operários neste planeta a trabalhar para que a morte faça sua morada em cada ser vivo).
É o mesmo o caminho que me conduziu a alma a estas reflexões e que me levará a por um ponto final neste texto. Que o silêncio das palavras seja o prenúncio de longos e largos caminhos na urgência do viver que míngua a cada aurora desabrochada no céu.

domingo, 28 de outubro de 2012

"Que nossa emancipação como seres humanos se inicie na construção de relações intelectuais mais verdadeiras com o mundo" (BAR)


                  


                         O sonho e o pesadelo da credulidade


Ontem, assisti, no Discovery Channel, um documentário interessante sobre  uma possível erupção solar que ejetará o que os astrônomos chamam “massa coronal”, no dia vinte um de dezembro deste ano. Essa massa se constitui de partículas (especialmente, prótons) que seguindo no curso até a Terra , atingem-na e causam danos em seu campo magnético. O fenômeno conhecido como ejeção de massa coronal, consiste em grandes erupções solares de gás ionizado, em alta temperatura. Os cientistas já observaram que o campo magnético da Terra está se enfraquecendo, de modo que o efeito das erupções solares pode ser cada vez mais danoso. Alguns cientistas acreditam que, em breve, uma erupção solar possa danificar nossos satélites e causar um black-out em todo o mundo. A restituição da energia elétrica, em tal condição, levaria uns dez anos. Há outras consequências mais catastróficas no impacto provocado pela ejeção de partículas radiativas em nosso planeta. O leitor que desejar saber sobre essas consequências poderá assistir ao vídeo do documentário, cujo link é http://www.youtube.com/watch?v=phsnr5KvZF4.
É o mesmo o sol que nos aquece, que nos ativa no organismo a vitamina D, que permite aos vegetais realizar a fotossíntese, que é a fonte de energia primária de nosso planeta, e que pode aniquilar toda a vida existente nele. O mesmo universo que mantém a vida traz em si o germe de sua destruição (alguns asteróides, escapando a sua órbita em torno do sol, podem representar uma ameaça à nossa sobrevivência). O mínimo de compreensão das condições do Universo é suficiente para rechaçar a crença em sua perfeição. Quem se preocupar em compreender a forma como a vida se dá na natureza também chegará, sem dificuldades, à mesma conclusão.  O exemplo a seguir, dado por Dawkins, em seu O Gene egoísta (2007), é muito pouco adequado à concepção de uma natureza perfeita:

“Os louva-deus são insetos carnívoros (...). Na época do acasalamento, o macho se arrasta com cautela na direção da fêmea, monta sobre ela e copula. Se tiver a oportunidade, a fêmea o come, começando por lhe arrancar a cabeça, quando o macho estiver se aproximando, logo que ele tiver montado nela, ou ainda depois que tiverem se separado. Para nós, pareceria mais sensato que ela esperasse a cópula se completar antes de começar a devorá-lo. Porém, a perda da cabeça não parece privar o restante do corpo do seu cadenciado movimento sexual. Na realidade, uma vez que a cabeça do inseto é a sede de alguns centros nervosos inibitórios, é possível que a fêmea melhore o desempenho sexual do macho ao lhe devorar a cabeça. Se assim for, isso seria um ganho secundário. O benefício primário é a boa refeição que ela obtém”.

(p. 44)


Eu não estou preocupado em salientar qualquer questão de moralidade envolvida na prática do louva-deus fêmea , ao devorar a cabeça de seu parceiro sexual, já que a moral não se aplica ao comportamento selvagem. O que quero mostrar é que, embora possamos compreender as razões evolutivas que levam a fêmea do louva-deus a devorar o macho (ao devorá-lo, ela se beneficia com a possibilidade  de continuar  subsistindo – na verdade, Dawkins mostrará que são os genes os beneficiários), é difícil imaginar como tal prática poderia se integrar numa ordem natural “perfeita”. Num mundo perfeito, penso que seria mais plausível que indivíduos da mesma espécie não devorassem uns aos outros, especialmente quando estabelecessem um laço de procriação. Num mundo perfeito, os terremotos, vulcões, tornados, furacões, ciclones, estiagem são dispensáveis; igualmente dispensáveis seriam as doenças.
De que temos várias razões para dizer que o mundo não é perfeito, que a vida poderia ser melhor não há dúvida. Mas as dificuldades que encontramos na vida podem ser engrossadas com as nossas interpretações supersticiosas das ocorrências do real. Veja-se, por exemplo, o caso, muito comum, de pessoas que acreditam que “olho gordo” ou inveja pode ter um efeito nocivo à sua vida. Creem que um sentimento possa, por si mesmo, modificar alguma coisa na realidade objetiva. Você pode imaginar quão terrível seria um mundo em que também a inveja alheia, em si, pudesse acarretar-lhe alguma infelicidade? Mas muitas pessoas acreditam que, além de se proteger contra a ação das pessoas, também devemos nos proteger contra a sua inveja, cuja simples manifestação pode afetar negativamente o curso de nossas vidas.
Você pode imaginar ainda um mundo em que, além de nos preocuparmos em trancar nossas casas, em levantar muros altos e imponentes, com um sistema de arcos energizados, para guarnecer nossas casas, ainda tivéssemos de nos preocupar em nos proteger contra os demônios ou as influências de entidades malignas que atuariam por intermédio de trabalhos de macumba, feitiços e outras formas de evocação sobrenatural?
Em tais circunstâncias, não nos surpreenderíamos se a vida nos tornasse desalentadora e insuportavelmente aterrorizante.
Felizmente, lhe trago uma boa notícia: as forças malignas como realidades ontológicas não existem. Não há qualquer evidência de que um demônio exista e tenha possuído uma pessoa. Não há razões para acreditar que a inveja possa nos prejudicar objetivamente. Não há relação entre o fato de uma pessoa nos invejar e nós perdermos o emprego, a menos que essa pessoa, por inveja, seja motivada a fazer perdê-lo. Mas, nesse caso, não é a inveja que produz o efeito, mas a ação da pessoa invejosa. O desejo em si não produz realidade. Não é por que eu desejo que haja vida após a morte que, necessariamente, há ou haverá vida após a morte. Quão distante ficamos de uma verdadeira compreensão da realidade!
O apelo que eu faço é que procuremos interpretar o mundo com empenho racional. Que não deixemos que nossa capacidade de imaginação nos represente um mundo ‘perfeito’, onde tudo ocorre segundo uma Providência que visa ao bem, ou mais aterrador, onde um substrato maligno opera com o propósito de nos causar prejuízos. Um mundo onde demônios e outros seres malignos duelassem, numa guerra cósmica, contra seres benignos pelo controle do universo, tendo-nos como seus receptáculos ou “soldados cósmicos”, seria um mundo onde viver se tornaria muito mais desagradável (eufemismo).

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

palavras maltrapilhas


                      

                      
                          Suspiros da alma


Eu que me vire com essas palavras mal vestidas, maltrapilhas.  Eu leio para suportar a vida. Cada palavra esconde um abismo, onde o tédio e o gosto amargo ficam enlaçados ao descontentamento. Cada palavra faz-me reprimir o entulho de frustrações pretéritas, nas quais os amores plenos de imaginação nunca vividos encontram raízes. Despertei de um sono entorpecente quando aprendi a viver a filosofia. E mais elevado tornou-se meu espírito das Letras! Mais vale abandonar as “certezas” e se entregar aos desafios do pensamento.
São poucas, deveras, poucas as pessoas que me parecem interessantes. E não encontro as razões por que tal me pareçam. Bem sei que não me enquadro. Os esquadros de minha alma traçam figuras irregulares. Entre mim e o mundo não há coesão rija. Estou ligado ao mundo o suficiente para não me apegar. O apego mascara carência sob uma catadura de afeição. O apego sempre me pareceu algo degradante.
Malgrado me esforce por evitar estar a sós com os pensamentos, que teimam em conduzir meu espírito para os grandes salões da angústia, ao som de uma nota fúnebre de desespero, eles conseguem capturar minha alma, ao primeiro sinal de distração. Ponho termo a este texto para conservar a sua integridade. Custar-me- ia catar seus pedaços.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

“O homem quer ser um deus com o equipamento de apenas um animal, e por isso vive de fantasias” (Ernest Becker)


  
                                O engano contra o desespero
  textos que nos ensinam e textos que, nos ensinando, nos impressionam. Um exemplo desta espécie de texto é o capítulo O caráter humano como mentira vital, que se topa no livro A negação da morte – uma abordagem psicológica sobre a finitude humana (2012), de Ernest Becker. Ao cabo da leitura deste capítulo, apressei-me em anotar os tópicos que me pareceram mais relevantes à produção deste texto, cujo propósito é despertar reflexões no leitor sobre a condição humana a partir da compreensão do caráter como uma “mentira vital” forjada por cada um de nós para suportar a realidade da vida. O núcleo da discussão empreendida pelo autor é justamente a natureza e a função do caráter. É, portanto, na base da consideração dessa ficção psicológica que começarei a apresentar as teses defendidas pelo autor.
Além de fomentar reflexões, espero também conseguir despertar no leitor o interesse por ler o livro de Becker, cujo tema diz respeito ao absurdo da existência humana que abriga o saber sobre sua própria finitude. Não escapamos ao fato da morte; mas também não deveríamos continuar a nos furtar a meditar seriamente sobre ele.
É necessário, antes de levar a efeito meu empreendimento, explicitar algumas noções de psicologia que são caras ao entendimento satisfatório da abordagem da condição humana feita pelo autor. A primeira noção é a de Mecanismos de defesa. Os mecanismos de defesa são recursos utilizados pela mente neurótica (todos somos neuróticos em alguma medida) com o objetivo de lidar com a realidade, evitando, assim, a dor e a ansiedade. Há uma série de mecanismos de defesa. Escusar-me-ei de citá-los. Importa ter em conta, no entanto, a ideia de que esses mecanismos nos capacitam a nos furtar ao conhecimento consciente da natureza mesma da realidade. Eles nos “protegem” contra a visão aterradora da verdade da realidade.
A segunda noção importante é a do Princípio de realidade, cunhada por Freud. O princípio da realidade diz respeito à difícil tarefa do eu na busca por adaptar-se à realidade, atendendo aos imperativos do superego, sem, contudo, desagradar ao id (instância da energia dos desejos). O princípio de realidade permite ao indivíduo a distinção entre o mundo interior à psique e o mundo exterior. Ele repousa sobre a percepção sensorial e sobre a motricidade.
Outras duas noções importantes são a do eu (ego) e a de caráter. O eu é um gestor, pois que lhe cabe regular as relações entre a pessoa e o meio social em que vive (mas não é o senhor de sua “casa” (mente), pois que muitos pensamentos que se formam no espírito escapam ao seu controle). Ele é o centro de referência para todas as atividades psicológicas. Ele enfeixa uma individualidade. Sua construção se dá nas relações necessárias com o outro – relações, é preciso frisar, significativas -, o que significa dizer que o outro nos inculca significados. O que somos é resultado de uma construção simbólica na interação (pela linguagem) com os outros. Por isso, o “eu” se constrói na relação com o outro. Na verdade, a construção do eu e do eu-outro se dá numa relação simbólica mútua, de tal modo que um eu se constrói constituindo o eu do outro e por esse eu-outro é constituído. Creio ser conveniente aqui referir um trecho em que Becker justifica sua crença em que nós somos naturalmente covardes, por razões que ficarão claras no decorrer desta exposição. O trecho ajuda-nos, como se lerá, a entender como o “eu”, que experienciamos como uma realidade concreta, se constrói:

“Certa vez, escrevi que achava que a razão pela qual o homem era tão naturalmente covarde era que ele sentia não ter autoridade, e a razão de ele não ter autoridade estava na própria maneira pela qual o animal humano é formado: todos os nossos significados nos são inculcados pelo lado de fora, pelas nossas relações com os outros. É isso que nos dá um “eu” e um superego. Todo nosso mundo de certo e errado, bom e mau, nosso nome, exatamente quem somos, tudo isso é enxertado em nós”.
(...)

(p. 72)

O social constitui-nos no âmago do ser. A questão do ego envolve a problemática em torno da distinção, válida para alguns autores, entre o ego ideal, que totaliza as qualidades boas e positivas que introjetamos de nossos pais e da sociedade, e o superego que introjetaria os elementos punitivos e severos, e se limitaria a controlar os impulsos. Tal distinção não nos interessará aqui. Importa-nos, no entanto, reconhecer que cada um de nós é um estranho em relação a si mesmo. A realidade mesma de próprio eu é inacessível e seu conhecimento depende de uma profunda interiorização e autoconhecimento, para o qual o indivíduo não se demonstra normalmente inclinado.
Finalmente, a noção de caráter é, em psicologia, entendida como um sinal que permite identificar a natureza de uma coisa. É empregado como sinônimo de personalidade, mas de um modo mais restrito. Ao contrário da personalidade, que abriga uma totalidade que se constitui de impulsos, ideias, afetos, defesas, aptidões, talentos, comportamento social e reações, o caráter diz respeito apenas àqueles aspectos da personalidade que individualizam as pessoas umas em relação às outras. (v. Dicionário Técnico de Psicologia, 2006).
Creio estamos em condição para começar a acompanhar o desenvolvimento do texto de Becker, segundo a proposta de leitura de que este texto que ora escrevo é expressão.
“O caráter é uma mentira vital” (p. 76). É uma mentira que forjamos para conseguir suportar a nossa própria condição humana e a realidade do mundo. Segundo o autor, vivemos mentindo para nós mesmos e mentindo sobre o mundo. Ignoramos quem somos, porque nos esquivamos ao autoconhecimento, e ignoramos a verdade do mundo. Leia-se a concepção de caráter do autor, explicitada abaixo:

“(...) o caráter de uma pessoa é uma defesa contra o desespero, uma tentativa de evitar a loucura, devida à verdadeira natureza do mundo”.

(p. 89)
(ênfase no original).

De que verdade sobre o mundo se trata? O autor nos é claro em vários momentos e trarei à cena as palavras dele. Podemos, contudo, hipotetizar a respeito dessa verdade. A mais evidente é a verdade de sua própria contingência (um mundo criado do nada, que poderia nunca ter existido). A segunda verdade é a sua clara hostilidade. Deixemos, por ora, a questão da verdadeira natureza do mundo, a fim de acompanharmos com atenção o modo como as questões são apresentadas e tratadas pelo autor.
Nós, seres humanos, ao contrário do que sucede com os animais, não dispomos de instintos que nos preparam para todos os atos de sobrevivência. O mundo do animal não lhe coloca desafios aos quais não pode reagir. A relação entre o animal e o meio é imediata, de tal sorte que seu corpo é uma extensão do próprio ambiente em que vive. Becker nos chama atenção para o seguinte fato:


“(...) olhem para o homem, a criatura impossível! Aqui, a natureza parece ter deixado de lado a cautela e os instintos programados. Criou um animal que não tem defesa alguma contra a percepção do mundo exterior, um animal inteiramente aberto à experiência. Não apenas diante de seu nariz (...). Pode relacionar-se não apenas como os animais de sua espécie, mas, de certa maneira, com todas as outras espécies. Ele pode contemplar não apenas o que é comestível para ele, mas tudo que floresce. Vive não apenas o momento presente, mas estende seu eu interior ao amanhã, a sua curiosidade a séculos passados, seus temores a daqui a cinco bilhões de anos. Pergunta-se quando o sol irá esfriar e quais são suas esperanças em relação a uma eternidade no futuro. Viver não apenas num minúsculo território, tampouco em um planeta inteiro, mas numa galáxia, num universo, e em dimensões além de universos visíveis. É estarrecedor o fardo que o homem suporta, o fardo experiencial. (...) o homem não pode nem mesmo ter seu corpo como ponto pacífico, como podem fazer os outros animais.”
(p. 75)
(ênfase no original)

Não só o corpo humano demanda explicações, mas o próprio eu, com suas recordações e seus sonhos. O homem é um animal que se indaga sobre o sentido da vida, mas “não sabe quem é, por que nasceu, o que está fazendo no planeta, o que deveria fazer, o que pode esperar” (id.ibid.). O autor chamará de “dádiva da repressão” a capacidade que nos permite viver “decisivamente em um mundo esmagadoramente miraculoso e incompreensível, mundo tão cheio de beleza, majestade e terror que, se os animais o percebessem, ficariam paralisados e sem ação” (p. 74).
O que, afinal, nós reprimimos? Becker esclarece que a repressão é global, pois que é necessário reprimir toda a diversidade de nossas experiências, para, desse modo, alcançar um sentimento de valor interior e de segurança. O homem supre, pela repressão, a carência de proteção legada pela natureza. Sartre ensinava que o homem é seu próprio projeto. O homem terá de operar uma série de repressões. Leiamos o que nos revela o autor sobre ela:

“[o homem] terá que reprimir sua pequenez no mundo adulto, seus fracassos na tentativa de viver de acordo com as ordens e os códigos adultos. Terá que reprimir seus sentimentos de inadequação física e moral, não apenas a inadequação de suas boas intenções, mas também sua culpa e suas más intenções: os desejos de morte e o ódio, que sente ao ser frustrado e bloqueado pelos adultos. Terá que reprimir a inadequação dos pais, as ansiedades e terrores destes, porque percebê-los termina por minar o sentimento de segurança e poder. Terá que reprimir sua própria analidade, suas comprometedoras funções corporais que significam sua mortalidade, sua indiscutível transitoriedade dentro do mundo natural. Com tudo isso e com muito mais que não mencionamos, terá que reprimir o assombro e o terror básicos diante do mundo externo”.

(p. 77)

Quão árdua é a tarefa psicológica dos seres humanos na busca por suportar a verdade da realidade! O autor reconhece dois grandes temores do homem: o medo da vida e o medo da morte. Evocando o pensamento de Heidegger, observa:

“(...) a ansiedade básica do homem é a ansiedade por estar no mundo, bem como a ansiedade de estar no mundo. Isto é, temor da morte e temor da vida, da experiência e da individuação. O homem reluta em enfrentar o peso esmagador de seu mundo, os verdadeiros perigos desse mundo. Ele retrai-se para não se perder nos devastadores apetites dos outros, para não rodopiar sem controle nas garras e presas de homens, animais e máquinas”.
(p. 78)
(ênfase no original)


O caráter funciona como uma couraça contra o desespero e o abandono. É uma “defesa neurótica” contra a percepção da verdadeira condição humana, que é tecida pelo sofrimento. Realidade tão bem expressa no ensinamento budista e que constitui a primeira verdade proclamada pela doutrina:

“A primeira nobre verdade determina que tudo no mundo é sofrimento. “Nascer é sofrer; envelhecer é sofrer, morrer é sofrer, estar unido com aquilo de que não gostamos é sofrer, separarmo-nos daquilo que amamos é sofrer, não conseguir o que queremos é sofrer”. Em termos budistas o sofrimento implica algo mais do que mero desconforto físico e psicológico. Pode-se dizer que a existência como um todo é manchada pelo sofrimento, pois tudo é passageiro. A pessoa que não consegue perceber que o mundo, do ponto de vista do ser humano, é inadequado, é uma pessoa cega”.

                                             (O livro das religiões, 2008: p. 62)


É preciso esclarecer que a neurose é, para autores como Frederick Perls (lembrado por Becker), uma espécie de “couraça” para evitar lidar com uma realidade insuportável. Para Teles (2004), por exemplo, a neurose instaura uma discrepância entre o “eu real” e o “eu ideal”. Lutamos para ser o que não somos e isso nos acarreta problemas.
É deveras esclarecedora a estrutura neurótica concebida por Perls, apresentada por Becker, nos seguintes termos:

“Gosto da maneira pela qual Perls concebeu a estrutura neurótica, como um edifício compacto formado por quatro camadas. As duas primeiras são as do cotidiano. Nelas estão táticas que a criança aprende para viver bem na sociedade através do uso fácil de palavras que buscam pronta aprovação e calma, para que os outros possam segui-la. São as camadas da conversa loquaz e vazia, dos chavões e do comportamento estereotipado. Muita gente passa a vida sem nunca chegar abaixo dessas camadas. A terceira é dura, difícil de ser penetrada: é o “impasse que cobre a nossa sensação de sermos vazios e estarmos perdidos, a mesma sensação que tentamos banir ao construir defesas do nosso caráter. Por baixo dessa camada está a quarta e mais desconcertante: a camada da “morte”, ou do medo da morte. (...) essa é a camada de nossas verdadeiras e básicas angústias animais, e terror que carregamos conosco no segredo de nosso coração. Só quando explodimos essa quarta camada, diz Perls, chegamos àquela camada que poderíamos chamar de nosso “eu autêntico”; aquilo que realmente somos sem hipocrisia, sem disfarce, sem defesas contra o medo”.

(p. 83)


Convém reter que o “eu” que julgamos ser e que se exterioriza é tão-só uma imagem ou uma máscara sob a qual se disfarça nosso “eu autêntico”. Esse “eu verdadeiro” está soterrado em cada um de nós. Essa visão de um eu desprovido de realidade imediata e aparente, afina-se com a concepção de “eu” do psiquiatra J. D. Nasio, em seu livro Meu corpo e suas imagens (2009):

“Considero, pois, o eu uma entidade essencialmente imaginária cunhada por todas as nossas ignorâncias, erros, miragens que confundem a percepção que fazemos de nós mesmos”.

(p. 55)
(ênfase no original)

Em que período da vida inicia-se nosso desacerto em relação ao mundo? Para Becker, a plena humanidade “é um desajuste primário em relação ao mundo” (p. 84). Convém retroceder à nossa infância, para encontrar as raízes de nossas angústias, do descompasso em relação ao mundo. Chegamos a um mundo sem desejar estar nele, sem saber as razões por que passamos a ocupá-lo. Fomos arremessados a uma existência que se nos apresenta desafiadora e ameaçadora. Precisamos do amparo, dos cuidados de outros. O autor considera a criança um “covarde natural” e isso é compreensível, quando nos descreve a angustiante situação infantil:

“O mundo tal como é, criado do nada, as coisas como são, as coisas como não são, tudo isso é demais para que possamos suportar. Ou, melhor: seria demais para suportarmos sem desmaiar, tremendo como vara verde, imobilizados em transe em resposta ao movimento, às cores e aos odores do mundo. Eu digo – “seria” – porque a maioria de nós – ao deixarmos a infância – já reprimiu a nossa visão do milagre do mundo tal como ele aparece na experiência desarmada”.

(p. 74)

Quando não somos bem-sucedidos, em algum momento da vida, nesse trabalho de repressão da percepção da verdadeira natureza da realidade, rompe-nos o fracasso que se caracteriza como esquizofrenia. O esquizofrênico é aquele indivíduo, comumente, considerado, devido à ignorância geral, demente ou louco, por parecer viver “fora da realidade consensual”. De fato, o esquizofrênico se desliga da realidade assumida por um consenso socio-cultural. Mas convém dirimir alguns equívocos, atentando para a definição rigorosa desse tipo de psicose. No Dicionário técnico de psicologia (2006), lemos:

“A esquizofrenia caracteriza-se por acentuada perda de contato com a realidade (dissociação), grave divisão ou fragmentação da personalidade, formação de um mundo conceptual excessivamente determinado pelo sentimento (autismo) e ocorrência de sintomas que assimilam uma deterioração progressiva”.

(p. 112)
(grifo meu)


A esquizofrenia ensina-nos muito sobre nossa relação com a realidade. Ensina-nos que a realidade não é algo dado, que se põe diante de nós a priori, mas que é construída numa relação complexa entre percepção-cognição, linguagem e cultura, dimensões estas que perpassam e definem o humano. O esquizofrênico é aquele que não domina mais os códigos comuns com os quais constituímos a realidade e a estruturamos.
A questão da esquizofrenia figura no texto de Becker, para que o autor nos mostre que não consiste ela num fracasso dos pais na formação de uma criança bem adaptada à sociedade ou à realidade. A visão segundo a qual os pais seriam culpados pelas repressões da criança, pela produção de defesas de seu caráter e pelo gênero de pessoa que se tornaria foi duramente criticada. A criança, vinda a um mundo absurdo, em condições não escolhidas, precisa criar defesas contra ele. Ela passa a ser vista como um ser que tem de lidar com o mundo, produzindo suas próprias defesas.
A esquizofrenia passa a ser vista como uma condição extra-humana. Quem dela sofre é incapaz de se valer de mecanismos de defesas contra a realidade. O esquizofrênico está desarmado contra a tragédia da vida, segundo Perls. A tragédia a que se refere encerra ‘a finitude humana’, ‘o medo da morte’ e ‘a natureza ameaçadora da vida’. Destarte, para alcançarmos uma compreensão satisfatória da condição do esquizofrênico e entender a condição de todos nós que nos consideramos “normais”, convém atentar para o que se segue:


“O esquizofrênico sente essas coisas [a finitude humana, o medo da morte e a dureza da vida] mais do que ninguém, porque não conseguiu armar as defesas confiáveis que uma pessoa normalmente usa para negá-las. A desdita do esquizofrênico está em que ele ficou sobrecarregado com quantidades extras de angústias, culpa e desamparo, em um meio ambiente ainda mais imprevisível e que não lhe dá apoio. Ele não está instalado em segurança em seu corpo, não tem uma base segura que lhe dê condições para vencer um desafio e obter uma negação da verdadeira natureza do mundo. (...) O esquizofrênico é sumamente criativo num sentido quase extra-humano porque está mais longe do animal: falta-lhe a segura programação instintiva dos seres inferiores. E lhe falta a segura programação cultural dos homens. Não admira que ao homem comum ele pareça “louco”: ele não faz parte do mundo habitual.”

(pp. 88-89)


A conclusão a que chegamos, após a leitura integral do texto, é que aos seres humanos a compreensão e a aceitação da totalidade de sua condição são intoleráveis. Para suportar sua condição, eles precisam forjar traços psicóticos disfarçados, ocultos que virão a constituir o caráter – sua couraça, afinal, contra o absurdo da vida e da morte. Preferem se enganar a respeito de quem realmente são, a respeito de sua própria condição e da natureza da realidade. Por isso, Sartre tão bem notou que o homem é “uma paixão inútil”. Ao que Becker acrescenta, ratificando a posição do eminente filósofo: “O homem quer ser um deus com o equipamento de apenas um animal, e por isso vive de fantasias” (p. 85).