sexta-feira, 2 de março de 2012

"Mergulhadas no silêncio as palavras tornam-me cantante" (BAR)

                      
 
                               
                           Auto-exame preliminar

No meu cotidiano, vou acumulando palavras em minha alma; palavras que sufoco, silencio, para não me enfadar demais, dando-lhes o direito de gritar. Calo-as para que eu possa conviver em meios sociais com que não me identifico. Sinto-me quase sempre deslocado. Embora me esforce para entabular as conversas triviais e adequadas à ocasião, prefiro o silêncio quando me dou conta de que as bocas que se animam a falar vomitam lugares-comuns. Prefiro o silêncio quando os temas preferidos dos encontros são o Big Brother ou relacionamentos amorosos, em geral, tratados na base dos padrões ideológicos predominantes.
Prefiro o silêncio, deixando-me absorto, a contrapor-me sempre que me parece necessário. Não sigo as tendências e não permito que meus pensamentos se conformem à maneira de pensar predominante. E, quando ouso problematizar, percebo que os que estão em meu derredor não conseguem acompanhar-me. Alguns se cansam; evitam aprofundamentos. Preferem manter-se à superfície dos temas culturalmente relevantes; limitam-se a reproduzir o senso-comum. Ignoram o que nos ensina a filosofia: a atitude filosófica nos permite não aceitar sem examinar as opiniões provenientes do senso-comum de nossa sociedade.
O que distingue, basicamente, um filósofo do homem comum é que a este último satisfaz o viver imerso na realidade, conforme as condições sócio-culturais; ao contrário, o filósofo não apenas vive a realidade, mas busca examiná-la, questioná-la para compreendê-la. Muitos aceitam tudo que se lhes dizem sem ponderar; o filósofo é aquele que suspeita, não aceita de antemão as ideias preconcebidas, as opiniões correntes e os preconceitos de sua sociedade.
A filosofia foi, para mim, um trampolim para a adoção do ateísmo. E também instrumentalizou-me para a construção de uma consciência crítico-reflexiva, uma consciência que não se acomoda às diretrizes sociais, aos sistemas de ideias que não fazem senão nos moldar, nos adaptar, nos conformar ao status quo.
Meus alunos me perguntavam como poderiam mudar a maneira de trabalhar língua portuguesa na escola em face das condições sócio-culturais que insistem em reforçar a ideologia do “erro” em língua. A questão é complexa e não se pode dar a ela uma resposta simples. Mas o que lhes ensinava, nessas ocasiões, é que precisariam assumir o papel de agentes de educação. Precisariam adotar uma prática pedagógica que lhes permitisse ir na contramão. O domínio da sala de aula é jurisdição do professor e, exibindo este uma sólida formação, estará apto a resistir às condições pouco favoráveis. Ele engendrará novas condições.
Escusa dizer que nos espaços de relacionamentos virtuais da internet grassam postagens eivadas de lugares-comuns, ditos agastados, ideologias, opiniões rasas típicas do senso-comum. Vejamos alguns exemplos:




"Não ame pela beleza, pois um dia ela acaba. Não ame por admiração, pois um dia você se decepciona. Ame apenas, pois o tempo nunca pode acabar com um amor sem explicação." (anônimo)

“A vida não é perfeita, não é como um conto de fadas onde existe um "e viveram felizes para sempre". A vida é tal e qual como ta deram. A perfeição está em vivermos cada momento como se fosse perfeito *
(anônimo)


O leitor poderia contribuir com mais exemplos; decerto, eles são fartos. Não vou me ocupar em examinar essas postagens colhidas do facebook
Veja-se, a título de ilustração, o efeito causado pela doutrinação religiosa. As religiões nos enraízam  crenças e opiniões, moldam nossa consciência de mundo, habituam-nos a pensar e compreender o mundo segundo o seu sistema de dogmas e ideias. Elas adestram nosso pensamento, tornando-nos incapazes de pensar além da sedimentação de crenças com que nossa consciência foi modelada. Ir na contramão desse engessamento de consciências perpetrado pelas religiões pode-nos acarretar alguns desafetos, pode pôr-nos à margem de certas convivências.
Também se ousamos avaliar negativamente a influência de programas reality shows como o Big Brother na formação de uma consciência de cidadania, corremos o risco de atrair para nós alguns resmungos de desagrado. A grande maioria das pessoas que se deixam estar diante da tela de um televisor não se preocupa em lançar um olhar crítico sobre o que a televisão lhes oferece. No contexto pós-moderno, torna-se difícil ao homem comum compreender  que os meios de comunicação, como a televisão, são produtores de representações ou imagens ideológicas, justamente porque, segundo Claude Lefort, a ideologia contemporânea é uma ideologia invisível, aparece como não-localizada, não-determinável, embora, se encontre, no caso, nos meios de comunicação de massa. O discurso que aí se produz aparece como anônimo, como impessoal, totalizando-se em o discurso do social. A ideologia disseminada pela televisão é uma ideologia que homogeneíza, massifica. A televisão torna-se um poderoso veículo de espetacularização da realidade social.
Os livros exercem sobre mim um fascínio. A leitura me engendra férteis inquietações. Deleito-me quando, por ventura, minhas especulações se confirmam na leitura de um trecho, nas considerações de um grande estudioso. Alegro-me quando, ao me deparar com um trecho como o seguinte, colhido de Conferências sobre leitura (2005), apercebo-me de que todo esforço é válido para incentivar a prática de leitura:

“(...) o ato de ler, se criticamente feito por grandes parcelas da população, significa mais poder aos cidadãos: maior capacidade para enxergar as contradições sociais, melhores fundamentos na hora de tomar decisões (até mesmo decisão na hora de votar nas eleições), competências mais apuradas para chegar às raízes da injustiça e desigualdade, etc.”



Há sempre um livro entre mim e o outro. (BAR)


quinta-feira, 1 de março de 2012

"O meu entusiasmo para a vida provém de minha falta de vontade para me conformar" (BAR)



Na contramão


“(...) há três tipos de autores: em primeiro lugar, aqueles que escrevem sem pensar. Escrevem a partir da memória, de reminiscências, ou diretamente a partir de livros alheios. Essa classe é mais numerosa. Em primeiro lugar, há os que pensam enquanto escrevem. Eles pensam justamente para escrever. São bastante numerosos. Em terceiro lugar, há os que pensaram antes de se pôr a escrever. Escrevem apenas porque pensaram. Esses são raros”.

(Schopenhauer, A arte de escrever, p. 57)

Escrever é uma forma de arte? Escrever é como o artesanato: demanda laborioso trabalho espiritual. Se comparada à arte, a escrita é também criação, reconstrução da realidade, também demanda uma técnica e se produz com um estilo. Escrever me é um desafio em que me envolvo habitualmente. E não pensem que eu não submeta meu texto a releituras revisionais. A peneira do intelecto é mais eficiente quando relemos nossos textos. Há sempre um pensamento extraviado da configuração semântica pretendida. Há sempre um enunciado mal arranjado na estrutura da sintaxe. Há sempre uma palavra que não está adequada, que destoa da rede conceitual materializada no texto.
Confesso que eu estaria mais propenso a afirmar-me como pertencente ao terceiro grupo de autores, a que se refere Schopenhauer. Mas o limite entre este grupo e o segundo não me parece ser tão marcado assim. Se há um limite, ele é tênue. Muitos pensamentos dignos de nota trafegam em minha alma, muitas vezes ao dia; mas seus movimentos são difusos e suas manifestações carecem de densidade; não raro, se me afiguram como uma brisa roçando a pele; são leves e fugazes. Quase não os sinto. E para pensar é preciso antes sentir. Pessoa nos ensinara: pensar é sentir. Talvez, não precisemos sentir previamente ao pensar; tem razão Pessoa: pensar é sentir, o que significa dizer que o pensamento talvez seja o sentimento capturado em palavras, corporificado verbalmente. O pensamento é um corpo verbal de sentimento. Isso explica por que os pensamentos que derramo sobre o papel são carregados de emoção, de sentimento. Há neles uma carga afetiva.
Certa vez pareceu a alguns que eu enunciava uma obviedade, ao ter declarado “as palavras são grávidas de sentimento”. Salvo o efeito literário ou poético deste enunciado, houve quem o julgasse lugar-comum. Mas um olhar mais aguçado mostra que tal não é o caso. Claro está que o enunciado aqui reproduzido foi apartado de seu contexto; e sabemos que nada na língua significa sem estar ancorado num contexto. O uso da língua é uso social contextualizado. Na ocasião, a frase figurava num debate cuja questão consistia em querer saber se as palavras valiam mais ou menos que os sentimentos. Embora isso não tenha feito muito sentido para mim, manifestei o que pensava.
Podemos escrever para adestrar os pensamentos. Podemos escrever para conferir-lhes forma, coesão, exatidão, clareza. Na mente, nem sempre eles são límpidos, fortes e coesos. Não raro, estão embaralhados, fragmentados, desencontrados; são magros, pouco encorpados.. Escrever, nesse sentido, é uma atividade que nos permite arranjá-los segundo as coerções de uma modalidade. Quiçá, não devêssemos falar em coerções da escrita, já que isso tornaria o escrever uma atividade castradora da liberdade espiritual. Longe disso: a escrita pode ser livre, subversiva. Pode romper com certos cânones do academicismo. E, de fato, não há limites rigorosos entre fala e escrita, a despeito do que comumente pensamos.
Um assunto puxa o outro, conforme vê o leitor. E este texto é escrito à medida que os pensamentos me fluem. Sinto, e isso me basta!
Nasci para viver na contramão. E haveria outra forma de melhor expressar isso senão pelo exercício do magistério? E não vão na contramão os educadores (professores, pedagogos... alguns pais)? Não cabe a nós resistir, malgrado existirem condições adversas, malgrado a existência de ideologias do desencanto, do pessimismo? Lendo o livro Política para não ser idiota, deparei com uma definição de utopia que me deixou, momentaneamente, com um assombro deleitoso: “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”. O enunciado é auto-explicativo. Escusa comentá-lo. Mesmo sendo o paraíso do imaginário de idealistas, a utopia nunca poderá deixar o horizonte humano. E tal como o horizonte, que não traça rigorosamente uma divisão entre céu e terra, a utopia não demarca nitidamente a separação entre o irrealizável e o realizável. Dentro de um projeto, há possibilidades de realização que excluem outras. Há sempre, contudo, uma parcela realizável e realizada. A teoria de Marx pode ser considerada como utópica; seu comunismo deveria favorecer a realização plena dos potenciais humanos, a começar pelo trabalho, que deveria ser um exercício de liberdade. A história, contudo, mostrou-nos um lado obscuro e tenebroso do comunismo que Marx não podia vislumbrar. Ele não vivera o suficiente para assistir ao sequestro de sua teoria por ditadores ambiciosos e implacáveis. O fracasso do comunismo não implica acreditar que o capitalismo é ainda o melhor sistema econômico. Talvez, consoante me disse uma vez uma amiga professora de História, o desejável fosse uma combinação do capitalismo com o comunismo. É possível que estejamos aqui diante de uma utopia, mas lembremos que é ela que nos permite caminhar...
Doravante, intentando pôr um ponto final neste texto, sem pretender que ele tenha alcançado o acabamento do sentido (os sentidos estão sempre abertos), tomo para ancoragem de minhas observações posteriores parte do último comentário de minha querida amiga Zélia, fiel leitora e enunciadora perspicaz:

Infelizmente há os aproveitadores que administram a miséria mental e espiritual dos fiéis através da sua angustia existencial. É preciso um longo processo para remover o ser humano de sua opinião cega, e sinceramente eu não acredito que isso um dia aconteça! Pois a maioria não gosta de refletir, são pessoas tão arraigadas em suas crenças, e é tão cômodo viver no conforto do senso-comum sem questionar.”

(grifo meu)

Achei a ideia de “administrar a miséria mental” uma imagem muito pertinente, pois, afinal, é disso mesmo que se trata: quando entramos para uma religião ou quando uma religião entra em nós, delegamos aos agentes da doutrinação (pastores, padres, pais, e correligionários) a administração de nossas formas de perceber o mundo, de pensá-lo e discuti-lo. Entendo “perceber” como interpretar. É na percepção que as sensações se organizam e ganham sentido. A administração se dá pela força penetrante da ideologia religiosa, que se instaura na inversão base de todas as outras formas de pensamento ilusório que configuram a doutrina: Deus criou os homens à sua imagem e semelhança. Não é difícil mostrar que esse enunciado inverte a relação entre a realidade e a ideia. Não é difícil mostrar que o real está de ponta a cabeça. É justamente o contrário. Se desfizéssemos essa inversão feita pela ideologia, as coisas ficariam mais claras ao espírito e poderíamos ver o mundo sem a bruma que nos fez recair sobre a consciência a religião. Quando assumimos que são os homens que produziram seus deuses (incluindo aqui o Deus judaico-cristão), então compreendemos, entre outras coisas, por que o número de deuses é proporcional à quantidade de culturas. Deuses são entidades culturais, portanto, produtos simbólicos; portanto, produtos da imaginação humana. Convém referir um trecho elucidativo, em O que é imaginário? (1997):

“Através do imaginário, o homem, como define H. Bérgson, “é uma máquina de produção de deuses”. A isso acrescentamos que o homem em si mesmo é fantástico, à medida que manifesta a faculdade humana de transcender o humano. Ao construir os deuses, o homem toma como referência uma realidade dada que caleidoscopicamente reordena, reestrutura e recria. Nesse processo, o imaginário tem como referência o real, dando-lhe outros sentidos fornecidos pelo material simbólico que utiliza”.

(p. 37)

O Deus de Jesus venceu os deuses pagãos; mas esse Deus tem de conviver com Shiva (terceiro deus da trindade hindu, a quem se atribui um poder destrutivo e fecundante), mas também com  Brahma, Oxalá, Iemanjá, Oxóssi, Oxumaré e tantas outras divindades. Seriam todas estas produto de uma ilusão ou apenas o Deus judaico-cristão é o deus real e verdadeiro? Ou será mais sensato dizermos que só pensamos sê-lo porque a cultura ocidental formou-se a partir dos valores, ideias e visão de mundo da cultura judaico-cristã (não ignorando o outro afluente que é a cultura greco-latina) e por que formados nessa cultura podemos assim pensar? A máxima segundo a qual somos produtos de nossa cultura é aqui evidente. Pensamos o que pensamos porque somos antes de tudo indivíduos que compartilham um mesmo código cultural, um mesmo sistema de interpretação e compreensão de mundo. Esse sistema deve trabalhar a dialética entre homogeneidade e diversidade, convergência e divergência.
Permita-me alongar-me um pouco mais. Sabe-se que mito e religião são indissociáveis. Mito é um ingrediente indispensável à religião, visto que religião se constrói na base de histórias sobre a criação do mundo, a influência de deuses, sua natureza, sua relação com os homens, etc. É interessante descobrir que o mito da Arca de Noé, que retrata um dilúvio provocado pela ira de Deus fundiu-se com outras tradições indígenas. Na Austrália, a oeste, os aborígenes acreditam que o que sobrou da arca pode ser encontrado ao sul do rio Fitzroy. No Peru, os incas acreditavam que o deus Viracocha, não satisfeito ao tentar pela primeira vez criar os homens, lançou sobre eles um dilúvio, transformando-os em pedra. Na Grécia Antiga, acreditava-se que Zeus mandou um dilúvio sobre os homens, para puni-los em virtude da arrogância deles. O Egito antigo também possuía seus deuses: Rá, deus-sol e criador; Chu, deus do ar úmido; Geb, deus da Terra, entre outros. Também os egípcios tinham seu mito da criação e sua visão de mundo era plasmada numa mitologia demasiado complexa, em que a luta entre caos e ordem, criação e destruição constituía tema comum às suas histórias.
Devo dizer a possíveis desavisados – embora a você, amiga, não seja necessária essa advertência – que religiões são temas interessantíssimos e que merecem ser estudados. Mitos contam muito sobre nós, dizem as nossas verdades. Contam a nós como nos relacionamos com o mundo, como compreendemos a existência, que insiste em resvalar no absurdo, a despeito de insistirmos em criar deuses que nos propiciem explicações simples e fáceis para o mistério que nos abraça. Mas estes mesmos deuses são expressão de quem somos. Em alguma medida, eles representam o humano em nós. São nossos espelhos, imagens de nós que projetamos sobre a Angústia. Insisto, para que não sobre qualquer dúvida, na importância do mito como um guia, já que nos orienta em nossas relações com o mundo. No mundo antigo, ele ajudava as pessoas a encontrar sentido para as suas vidas. Ele é um elemento atuante na estrutura de nossas mentes, de sorte que se tornara ponto de partida para a psicologia. Ele esclareceu mecanismos misteriosos da mente humana e Freud e Jung reconheceram nele um fértil caminho para os estudos da mente.
Quando lemos um pouco sobre religiões, sobre suas entidades, sobre seu sistema de ideias e crenças, sobre sua simbologia, então devemos concluir que o Deus pessoal e único em que milhões de pessoas acreditam é apenas a versão de divindade moldada por um imaginário cultural específico. Ou todos os deuses referidos aqui são verdadeiros ou nenhum deles o é. Por que seria o Deus judaico-cristão o verdadeiro? Não temos critérios para estabelecer isso, a menos que recorramos à autoridade. De fato, é o que sucede. O cristianismo ganhou força, desde seu surgimento como religião organizada, pela proficiência de uma autoridade, chamada Constantino. E ainda hoje entre nós sua força e sua legitimidade são garantidas pela autoridade (do Papa, dos arcebispos, dos bispos, dos padres, dos diáconos, dos pastores...). É notável que, em nossa era, gozemos de condições favoráveis à negação de sistemas autoritários. Uma autoridade que vise a legitimar seu poder contrariamente à vontade de uma maioria tenderá a ser sobrepujado.  Temos assistido ao declínio de governos ditatoriais como na Líbia. Se a autoridade não é conferida por um consenso e se quem a assume não a exerce visando ao bem comum criará as condições para que dela destituído. Claro que isso depende de uma tomada de consciência pelas classes oprimidas. Felizmente, é o que temos assistido em países como a Líbia. A democracia não se faz da noite para o dia, é claro, mas a luta vale a pena.
Mas eu falava de religiões e queria encerrar dizendo, amiga, que é necessário que qualquer grupo de oposição ao status quo venha a compreender de que forma o aparato ideológico molda a consciência de indivíduos que aderem a determinados sistemas de crenças. No caso das religiões, vale procurar entender como a ideologia é capaz de legitimar um conjunto de crenças, universalizá-las, tornando-as inquestionáveis. O seguinte excerto colhido da obra O que é ideologia, de Marilena Chauí, dá-nos um ponto de apoio, serve-nos como uma âncora para que desenvolvamos nossas reflexões. Fica aqui um convite a leitores ateus ou simplesmente impregnados do espírito filosófico que venham a ler este texto. Tendo sempre em conta que a ideologia está a serviço do poder e que através dela o real aparece de ponta a cabeça, refletindo-se na consciência dos homens de modo abstrato e invertido, as palavras da filósofa brasileira é como um frescor em nossa ferida ardente:

“(...) segundo Marx, a inversão religiosa não “reflete” coisa alguma – sendo criação do espírito em um mundo sem espírito, a religião é produção imaginária de algo que não existe. A inversão consiste em atribuir a essa criação do espírito a origem da realidade, em lugar de compreender que é a miséria real que está produzindo a crença no espírito, numa divindade poderosa que pune e recompensa as ações humanas. A religião, como toda ideologia, é uma atividade da consciência social. A religiosidade consiste em substituir o mundo real (o mundo sem espírito) por um mundo imaginário (o mundo com espírito). Essa substituição do real pelo imaginário é a grande tarefa da ideologia, e por isso ela anestesia como o ópio”.
(p. 96)
(grifo meu)

Aqui se expôs um pouco do pensamento de Marx sobre ideologia. O essencial está aqui. Autores posteriores também refletiram sobre o conceito. Importa ver o caráter universalizante da ideologia e sua capacidade de mascarar a realidade, fazendo-a aparecer à consciência de tal modo que as reais causas da formação daquela sejam apagadas. Assim é que podemos dizer que sentimos Deus nas pequenas coisas, que ele se manifesta, embora de modo “escuso” ou incompreensível, num pressentimento, numa experiência de interiorização, ou nos acontecimentos que nos deixam pasmados, ainda que a realidade nos dê, em todo momento, um tapa na cara, como quem se esforça por nos acordar de um sonho. Deus é um sonho que a realidade insiste em exorcizar. Mas muitos continuam a sonhar e a ver o mundo, a senti-lo (pensá-lo) pela lente distorcida (ideologia) que a religião cimentou em suas cabeças.
Sigamos na contramão, minha amiga, não aceitando sem examinar ideias que nos são dadas em embrulhos vistosos, atraentes; suspeitemos de seus conteúdos. A suspeita, nesse caso, anda em companhia do bom-senso. 

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

"Amei pouco, mas o pouco que amei foi meu excesso" (BAR)


Embriagado


Eu não amo como outrora amava
Não mais amo
Como amava a dor de amar
Amo como se tem de amar hoje
Nos limites do efêmero, fluidos
Amo minguados do coração

E relendo sobre o amor que escrevi
Sobre carinhos, verdades que nunca vivi
E relendo os versos que compus
No silêncio de noites sem lua
E tendo n’alma uma atmosfera melancólica
Pesando os meus sonhos
Descubro que o amor de poema é delírio
E eu delirava! E minhas noites desvairadas!

Amo hoje como devem amar os sensatos
Se o amor trouxer alento, fiquemos a ouvir
A sonata dos amantes!
Não obstante
Trouxer à alma infelizes momentos
Uma saideira
E a conta!


(BAR)

"E minha existência é governada pela linguagem: é um silêncio que verbalizo!" (BAR)

                                                 
                                                   O meu silêncio


Ouço já os repiques de tamborins. O carnaval está aí, batendo à porta. É já chegada a hora de libertar-se da rotina e liberar a alegria, que vive aprisionada na redoma do cotidiano. Deixarei, por uma semana, os pensamentos mais instigantes numa gaveta ou silenciados na alma. Até escrevi um texto que precisa ser divulgado neste espaço; mas vou protelar sua publicação.
O carnaval, contudo, não mascara a minha crise. E ela consiste na seguinte questão: O que pretendo eu com a divulgação de meus textos neste espaço? A motivação que está na origem parece-me, hoje, nebulosa. Antes escrevia para fazer-me existir. Precisava bradar ao mundo, ou a uma ínfima parte dele, que eu existia e sofria. Os textos foram erigidos das ruínas de meu sofrimento. Um sofrimento psíquico, que é pior. Felizmente, sucedeu que eu consegui suplantá-lo. As trevas se dissiparam e novos jardins verbais ganharam vida. Hoje, cultivo flores de conhecimento e sinto, não sem inquietude, que estou condenado a ser este agricultor solitário. Escrevo a uma minoria que dá testemunho de si, ao ler-me. Não é que eu almeje a visibilidade de um grande público, mas como professor (e quem é professor bem o sabe) gostaria de que muitos tomassem parte do processo de constituição do conhecimento.
Quando escrevo, eu não ensino; eu compartilho aprendizagens. Compartilho conhecimentos, abro espaços para diálogos, reflexões. É este o propósito deste blog. E sinto pulsar forte em minha alma essa emoção que me impulsiona ao saber, mesmo que ele não me sirva de nada. A minha realização está justamente na própria atividade de constituição do conhecimento. Quando leio, me alegro. O prazer está nas palavras que leio, no que elas me revelam. Há livros que me extasiam. A leitura é minha defesa contra o mundo, é a âncora através da qual evito que minha existência fique à deriva, se perca num vasto oceano de empobrecimento da consciência crítica.
A leitura não pode estar apartada da vida. Para muitos, leitura é clausura. Muitos não concebem a relação entre ler e viver. Diante de um livro, eles só vêem o dever, quase nunca uma ponta de prazer. A leitura assemelha-se a um exame médico que não queríamos fazer mas precisamos, para que nos livremos de uma enfermidade.
Essa crise, que me desanima, não haverá, contudo, de me fazer desistir. A inquietude é que me mantém vivo. E minha existência é governada pela linguagem: é um silêncio que verbalizo!

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Tá tudo uma merda mesmo, que tragam logo o ventilador!

                                 

                                 A merda e o ventilador


O carnaval se aproximando, e eu ansioso por tirar férias de mim. O que significa isso? Quer dizer que não me ocuparei mais com as minhas inquietações. Deixarei os livros na estante por uma semana. Não lerei uma página sequer. Alhear-me-ei dos espaços virtuais da internet; ficarei desconectado. Verei minha Portela desfilar na avenida, ainda que certo de que ela não vencerá.
Por ora, faltando ainda uma semana para o carnaval, deixo-me navegar em minhas inquietações. Trago-as à cena, na esperança de que o leitor junto a mim medite sobre elas.
Um filósofo também se define por ser aquele que problematiza o que as pessoas em geral apenas vivem.
Confesso que estava aguardando a exibição do Globo Repórter de ontem, com sua matéria sobre o fim do mundo em 2012. Coisa trivial, eu sei, já que o fim do mundo é anunciado desde tempos remotos. Na virada para o ano 2000, o tema estava em evidência (e também os apocalípticos!). Essa visão apocalíptica, que tanto agrada aos pastores evangélicos – e eu diria, à comunidade evangélica – era comum no século I, tempo em que Jesus vivera. Muitos eram os profetas que viviam a anunciar o fim dos tempos. Jesus, aliás, era um judeu e profeta apocalíptico.  Seu ministério fora impregnado de sentido apocalíptico. E ele acreditava que o fim estava próximo, era iminente. Deus viria retomar seu comando sobre o mundo – comando que fora abandonado às forças malignas.
Os alardes em torno do fim do mundo são avivados em condições de profunda ignorância. Os que viveram na Idade Média pensavam que o eclipse era um sinal do fim dos tempos. Hoje em dia, evangélicos batem à nossa porta com revistas que nos apresentam os 10 sinais do fim do mundo, entre eles epidemias, catástrofes naturais, violência, etc. A ingenuidade salta aos olhos! E por que deveríamos nos surpreender, se eles se baseiam num livro escrito em parte por pessoas que tinham obsessão pela destruição completa de tudo que existe? Catástrofes naturais (terremotos, vulcões, furacões...) fizeram parte da formação do planeta e existem desde que o mundo é mundo. A violência existe desde que os homens pisaram com seus pés neste planeta. Nossa História é marcada por conflitos, guerras, combates sangrentos e breves momentos de “paz”. Houve tréguas entre uma guerra e outra, talvez. Mas sempre vivemos em guerra, donde se segue que o desejo de uma paz universal chega a ser risível.
Mas a reportagem do Globo Repórter me decepcionou. Deu-se muito espaço a superstições. Não podiam faltar a numeróloga e o astrólogo, bem como os místicos e uma rapaziada zen e naturalista, que contando com o cataclismo iminente (com data marcada para o dia 21 de dezembro de 2012), se refugiara para regiões altas onde poderia encontrar sossego, oportunidades para meditação e onde poderia harmonizar-se com a Natureza circundante! Alguém deveria avisá-los de que talvez o que quer que venha a causar a destruição do mundo não estará interessado em discriminar entre os harmoniosos naturalistas e os desarmoniosos desleixados, entre os crentes e os profanos, entre os abastados e miseráveis.
A ciência se pronunciou e a NASA acalmou os gozosos do fim! Não, ainda faltam milhares de anos para isso acontecer! Fico imaginando o contentamento dos obcecados pelas profecias da aniquilação do mundo, ao ouvir um cientista dizer que um dia a Vida chegará ao fim. Pena que eles não estarão mais aqui para assistir a tão grandioso e aterrador espetáculo!
Virando a página, passadas as convulsões espirituais em torno desta matéria tão atraente ( o fim do mundo foi adiado!), que tal agora lançar olhares sobre o patético, o trivial? A televisão nos serve pratos cheios disso, não é? O Big Brother já está batido, repisado, mas não custa fazer ver qual não é o desserviço prestado por este programa. Pessoas deitadas em sofás ou em colchonetes conversando sobre quem comeu o quê!! E essa conversa banal, típica do cotidiano de cada um de nós, é exibida para o Brasil inteiro.  E pessoas podem ficar deitadas numa cama, assistindo a uma imagem de uma piscina vazia, ou a de um quarto com pessoas deitadas, ouvindo música, ou dormindo; ou a de duas pessoas cochichando para não acordar os dorminhocos! Esses recortes banais da vida são transmitidos pela televisão e chegam aos nossos lares.
Mal acordei, e enquanto tomava café, procurava algum programa interessante na TV. Passando os canais, vi um pastor pregando à multidão e ele dizia: “não adianta fazer passeatas, este mundo é governado por forças espirituais, minha gente!; o homem pensa estar no comando, mas não está!”  E as pessoas - a massa de consciência embotada - olhava com expressão de seriedade, como se estivesse paralisada; os olhares se fixavam no pastor, e os ouvidos presos às suas palavras extravagantes e escandalosas! E fico imaginando o que estaria lhes passando pela cabeça: “isso é a pura verdade; afinal o que mais explicaria as guerras, a violência, a incapacidade de os homens se amarem uns aos outros e viverem em harmonia?”.  Tem de haver uma influência negativa que nos transcende! Bem, nessas condições desalentadoras, que nos resta senão orar? Conformemo-nos, não há jeito! Arrependamo-nos e busquemos a Deus; a corrupção continuará a vicejar nestas terras brasileiras, a saúde continuará doente, a educação mercadologizada e afundada na crise, jovens de classe média alta continuarão a agredir moradores de rua, travestis e homossexuais; Malafaia continuará pregando contra o homossexualismo; autoridades políticas continuarão apresentando projetos para o ensino da Bíblia nas escolas; nossos policiais e bombeiros continuarão a fazer greves para reivindicar reajuste salarial de tempo em tempo. E as pessoas continuarão a estampar nas redes sociais os lugares-comuns, dando ao amor e aos seus desamores aquele tom hollywoodiano banal, ou os expressarão com frases da psicologia do cotidiano! E professores formados em nossos cursos de Letras continuarão a ler menos ainda do que liam quando eram alunos  e o Brasil continuará a compor o quadro dos países com menor índice de leitores. E o papa virá aqui para falar à juventude e para garantir que esteja presa pelo cabresto da fé; afinal, ela é o futuro da Igreja ou o alicerce da prolongação de seu poder para mais dois mil anos...
Para que dar-se o trabalho de refletir sobre tudo isso? O fim está próximo e o mundo é governado pelas mãos invisíveis dos espíritos, cuja razão de ser é nos atormentar!
Tá tudo uma merda mesmo, que tragam logo o ventilador!




  

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

"A revelação não se dá pela fé; mas pela reflexão filosófica" (BAR)

                               

                                    Por que milhões se enganam?

Decerto, a ninguém agrada ser enganado. E muitos de nós nos revoltamos quando descobrimos que estávamos sendo enganados. Por exemplo, é o caso de quem vai a um médico para buscar tratar-se de alguma enfermidade e depois descobre que esse médico fraudou seu próprio diploma. Confiamos nele como alguém que detinha a competência necessária ao exercício da medicina; dispensamos-lhe nossa (porque acreditamos que seu comportamento era a expressão de conhecimentos sólidos que adquiriu ao longo dos anos em que cursou medicina). E, num instante, cai pesadamente sobre nós o desencanto: a farsa foi descoberta! Sentimo-nos iludidos; o que acreditávamos não era real (desilusão!). Aquele homem de jaleco branco diante de nós não era um médico, era um farsante, um velhaco. Alguns de nós nos culpamos, e nos perguntamos “como pudemos ser tão ingênuos, tão crédulos?”.
Não é custoso ver que viver em sociedade exige que estabeleçamos relações assentadas em confiança. Ela não só é importante para assegurar a validade dos modelos de referência na base dos quais nossas vivências se desenvolvem mas também para que estejamos motivados a estabelecer acordos, compromissos, fazer promessas, traçar planos que poderão ser cumpridos. Por um lado, nós compartilhamos, em nossa cultura, com os outros modelos de realidade - confiamos estar num consultório médico, diante de um médico, por exemplo; confiamos estar numa sala de aula aprendendo sobre História diante de um professor devidamente capacitado para tanto - ; por outro lado, qualquer forma de agregação humana exige certo grau de confiança para que as necessidades de grupo sejam satisfeitas. A confiança é o que nos resta em face da consciência de que não podemos sempre conhecer verdadeiramente as pessoas.
  A condição básica para que tenhamos confiança é a falta de informação plena. Por exemplo, confiamos que tanto o engenheiro que elaborou a estrutura de nosso prédio (a planta) quanto os operários que trabalharam em sua construção detinham a competência necessária ao empreendimento.  Se não fosse assim, como poderíamos viver sossegados sob um teto? Não temos escolha senão confiarmos, já que, como assinala Giddens, em As consequências da Modernidade (1991),

“(...) não haveria necessidade de se confiar em alguém, cujas atividades fossem continuamente visíveis e cujos processos de pensamento fossem transparentes, ou de se confiar em algum sistema cujos procedimentos fossem inteiramente conhecidos e compreendidos”
(p. 40)

Para Giddens, a confiança une fé à crença; mas desta última se distingue, visto ser a crença uma atitude que afirma com certo grau de probabilidade ou certeza a realidade ou verdade de um dado estado-de-coisas. Comparada à crença, a confiança é, concluirá Giddens, cega.
Eu não descerei a pormenores no tocante ao conceito de confiança. Quero apenas mostrar que a confiança surge no momento em que nos vemos destituídos de conhecimentos ou informações importantes que poderiam nos dar alguma segurança nas nossas ações ou nas tomadas de decisão. Temos, em geral, boas razões para confiar em que nossos policiais foram preparados para a garantia da ordem pública. Sabemos, no entanto, que o grau de nossa confiança pode declinar sensivelmente sempre que tomamos conhecimento de casos de corrupção na corporação, quando, por exemplo, policiais se envolvem em negociatas com traficantes de droga, ou quando descobrimos que entre eles há homicidas. Como não podemos, no entanto, supervisionar a formação desses homens, como ignoramos muito sobre como são realizadas as provas e o treinamento destinado a capacitá-los, resta-nos confiar em que o serviço que nos é prestado e pelo qual pagamos satisfará as nossas necessidades de segurança. Quando isso não se verifica, desconfiamos e tendemos a protestar, reivindicar fiscalização ou reforma na instituição.
Tendo em vista o exposto, passarei, doravante, a me ocupar com o desenvolvimento do tema deste texto. Tratarei aqui de um engano; antes, porém, de fazê-lo, preciso ancorar meus pensamentos em alguns trechos colhidos da obra Quem Jesus foi, quem Jesus não foi? (2010), de Bart. D. Ehrman. O primeiro que merece nossa atenção é o trecho em que o autor apresenta-nos o tema de seu livro. Em negrito, destaco os fragmentos a que devemos dispensar atenção acurada:

“Este livro, portanto, não é sobre minha perda de fé. É, porém, sobre como certos tipos de fé – especialmente sobre a fé na Bíblia como se ela fosse algo historicamente inequívoco e a Palavra inspirada por Deus – não se sustentam à luz do que nós, como historiadores, sabemos sobre a Bíblia. Os pontos de vista que apresento neste livro são matéria comum entre os acadêmicos. Não conheço um só estudioso da Bíblia que vá aprender qualquer coisa neste livro, embora eles possam discordar de certas conclusões aqui e ali. Teoricamente, os pastores também não deveriam aprender muito com ele, já que este material é amplamente apresentado em seminários e faculdades de teologia. Mas a maioria das pessoas nas ruas e nos bancos das igrejas nunca ouviu isto antes. Isso é uma vergonha, e chegou o momento de fazer algo para resolver esse problema”.
(p. 31)

Já escrevi um texto, que postei neste blog, em que me ocupei com o que penso ser uma revelação dramática, a saber, dos 27 livros do Novo Testamento, 19 são produtos de falsificações. Exceto as sete epístolas atribuídas a Paulo (Romanos, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, Filipenses, 1 Tessalonicenses e Filemon), bem como o Apocalipse de João (conquanto não se tenha certeza sobre quem foi esse João), os demais textos (total de 19) se distribuem em três grupos: 1. textos cujos autores não são as pessoas que alegam ser (O João do Evangelho não é o João discípulo de Jesus, outra pessoa escreveu usando o nome João; Mateus não escreveu o texto   Mateus); 2. textos cujos autores têm o mesmo nome de uma personalidade conhecida (o livro de Tiago foi escrito por alguém que se chamava Tiago, mas o autor não alega ter sido Tiago, irmão de Jesus); 3. textos cuja autoria é falsa, também chamados “pseudepigráficos”.
Antes de iniciar a produção deste texto, estava eu envolvido na leitura de mais um capítulo do livro de Ehrman, e tendo deparado com o excerto abaixo citado, apressei-me em expor os pensamentos que se desnudarão à consciência do leitor, à medida que avançar na leitura. Ehrman, no referido trecho, aponta-nos a dificuldade que mesmo os estudiosos acadêmicos têm de admitir que os textos fabricados do Novo Testamento são fraudes. Leiamos com atenção:

“Ainda hoje, muitos estudiosos relutam em chamar os documentos forjados do Novo Testamento de fraudes – afinal, é da Bíblia que estamos falando. Mas a realidade é que, por qualquer definição do termo, e é isso que eles são. Um grande número de livros dos primórdios da Igreja foi escrito por autores que alegaram falsamente ser apóstolos para enganar os leitores e fazê-los aceitar seus livros e os pontos de vista que representavam”.
(p. 154)

Chamo atenção para o trecho “afinal, é da Bíblia que estamos falando”. O articulador discursivo “afinal” introduz um enunciado que encaminha para uma conclusão que se pretende consensual. O raciocínio pode ser compreendido, se distinguirmos suas partes da seguinte forma:


Premissa explícita – “Ainda hoje, muitos estudiosos relutam em chamar os documentos forjados do Novo Testamento de fraudes”
Pressuposto – A Bíblia é infalível e não questionável (senso-comum) (afinal)
Conclusão – A Bíblia não pode ser questionada.

O articulador “afinal” introduz um enunciado que encaminha à conclusão “a Bíblia não pode ser questionada”, ou seja, a Bíblia, como produto da “mente” de Deus não pode ser considerada fraudulenta. Como símbolo de poder, a Bíblia revestiu-se historicamente de uma impermeabilidade à crítica. Desqualificá-la como fraude é atrair para si reações virulentas do poder eclesiástico secular e de seus subordinados. O enunciado introduzido por “afinal” diz implicitamente “a Bíblia não pode ser questionada”. A sua "áurea sagrada" (entenda-se por "áurea sagrada" um valor atribuído pela ideologia dominante, pelo poder da Igreja primitiva) a protege contra qualquer suspeita!
Outro trecho, logo abaixo deste, será ilustrativo do engano que incide sobre milhões de pessoas no mundo que abraçam o cristianismo. Elas se enganam porque não têm consciência de que o livro que tanto adoram e no qual confiam para determinar seus valores, dirigir suas ações e revelar "verdades" eternas sobre o mundo é produto de uma fraude. E, diga-se de passagem, fraudes eram muito comuns no mundo antigo (embora fossem desaprovadas) (v. Bart, p. 132).
Os ateus têm razão ao criticar duramente pastores e padres que, de forma maliciosa, mantêm seus correligionários na ignorância, ludibriando-os, se beneficiando à custa de sua credulidade e ingenuidade. Façamos nossa crítica em forma de denúncia: denunciemos uma exploração não só econômica (sempre que nos damos conta do grande enriquecimento das igrejas), mas também intelectual. O poder é mais forte quando não pode ser questionado; isso significa dizer quando não é dado saber àqueles que se submetem às autoridades. É mais fácil legitimar o poder, que se apresenta como aceitável, pela simples manutenção da ignorância sobre suas bases. 
Leiamos as seguintes palavras de Ehrman:

“Essa visão de que o Novo Testamento contém livros escritos sob nomes falsos é ensinada em praticamente todas as grandes instituições de ensino superior por todo o Ocidente, com exceção de faculdades fortemente conservadoras. É a visão ensinada em todos os grandes livros sobre o Novo Testamento utilizados nessas instituições. É a visão ensinada em seminários e faculdades de teologia. É o que os pastores aprendem quando se preparam para o ministério.
E por que isso não é mais conhecido? Por que as pessoas nos bancos das igrejas – para não falar das pessoas nas ruas – não sabem nada sobre isso? Seu palpite é tão bom quanto o meu.”

(id.ibid.)

O nosso palpite, que é o do autor também, é que simplesmente a visão de que os textos do Novo Testamento são produto de falsificações ou fraudes, embora conhecida dos pastores e  dos padres que outrora frequentaram as aulas dos seminários, não é ensinada aos crentes que sentam nos bancos das igrejas. E o engano  envolve o indivíduo desde a infância. É lamentável que crianças, adolescentes e jovens sejam estimulados a ler a Bíblia de modo devocional e sejam levados a acreditar que estão diante de textos autênticos, textos que, segundo creem, lhes revelarão verdadeiramente a “Voz de Deus”. Não é isso, definitivamente, que eles revelam. Eles revelam as vozes de muitos homens (um leitor familiarizado com os estudos linguísticos, dirá comigo, os textos são polifônicos, embora a polifonia se dê em meio a fraudes). Os textos são produtos das visões que muitos homens tinham sobre a identidade de Jesus, sobre seus ensinamentos, sobre os acontecimentos ou superstições em torno de sua vida (por exemplo, o significado da crucificação, da sua morte, da Ressurreição, etc). E estes homens não foram aqueles que o acompanharam. Eram homens que viviam em outras regiões, que partilhavam de um código cultural diferente e que, quase certamente, detinham um grau maior de instrução e conhecimento de grego (língua em que a Bíblia fora escrita originalmente e cujo conhecimento escapava aos verdadeiros apóstolos, que eram indivíduos ignorantes e falantes de aramaico).
Não é intenção de Ehrman levar o seu leitor a deixar de acreditar em Deus. Ele escreverá, à página 30, “Eu decididamente não acho que a crítica histórica leva necessariamente à perda de fé”. Isso parece ser verdade, quando ele nos dá testemunho de que há entre seus colegas acadêmicos, que se dedicam ao estudo histórico-crítico das Escrituras, aqueles que conservam sua fé e atuam em igrejas. No caso de Ehrman, sua fé deixou de ocupá-lo quando não mais conseguiu conciliar a crença em um Deus que é amoroso e bondoso com a evidência do sofrimento em larga escala no mundo. Disso ele tratará no seu instrutivo livro O Problema com Deus, onde busca discutir as respostas dadas pelos autores bíblicos à questão de por que há tanto sofrimento no mundo. Esses autores se esforçaram por dar explicações para o fato de que sofremos, a despeito de haver, como criam, um Deus bondoso e providente.
Dizer que uma análise histórico-crítica da Bíblia não leva necessariamente ao ateísmo não implica dizer que ela não leve. Ela pode levar ao ateísmo, caso o leitor já esteja habituado a assumir uma atitude filosófica diante do mundo. Dela já tratei em outro texto. A atitude filosófica é uma atitude crítico-reflexiva, assentada no questionamento, na busca pela verdade. Ela quer saber e, para tanto, indaga: o que é?,  como é?,  por que é?, para que é?.
A complexidade do fenômeno religioso excede os limites deste texto. Sob muitos aspectos, a fé religiosa tornou-se insustentável para mim. O caminho para questioná-la foi, entretanto, aberto pela filosofia. Descobri que a atitude filosófica era incompatível com a atitude de fé. A adoção do ateísmo por mim é, portanto, fundamentada em leituras aturadas, no convívio com livros de filosofia e outros. Quando assumimos a atitude filosófica, quando aprendemos com a filosofia a pôr em discussão nossas crenças comuns, nossas opiniões correntes, nossas visões de mundo antes insuspeitáveis, torna-se dificultoso continuar a conformar-se às formas como a realidade se nos apresenta.
É com as palavras de Betrand Russell, em Os problemas da filosofia, citado por Marcondes, em A Filosofia: o que é, para que serve? (2001), que dou a saber ao leitor o valor da filosofia quando o descobri em minha vida:

“O valor da filosofia deve ser procurado em sua própria incerteza. O homem que não tem nenhum conhecimento de filosofia atravessa a vida aprisionado aos seus preconceitos provenientes do senso comum, das crenças habituais de seu tempo e de sua nação, e das convicções que cresceram em sua mente sem a cooperação ou o consentimento deliberado da razão. Para tal homem, o mundo tende a tornar-se definitivo, finito, óbvio; os objetos comuns não lhe trazem questões e as possibilidades desconhecidas são desdenhosamente rejeitadas. Ao contrário, tão logo começamos a filosofar, descobrimos que mesmo as coisas mais cotidianas nos trazem problemas para os quais só podemos dar respostas muito incompletas. A filosofia, embora incapaz de nos dizer com certeza qual é a resposta verdadeira para as dúvidas que ela própria levanta, é capaz de sugerir muitas possibilidades que ampliam nossos pensamentos e os libertam da tirania do hábito
(...)”

(pp. 14-15)

A filosofia é uma atividade em aberto; é uma forma de discurso que coloca em dúvida seu próprio significado. A filosofia questiona a si mesma. Não há uma filosofia, mas muitas filosofias, já que filosofia não é o que resulta da atividade de pensar, mas a própria forma dessa atividade; filosofia é ação que se realiza com o pensamento, com o logos (discurso, palavra).
 Um filósofo não se define como aquele que é versado em diversas filosofias. Todo homem pode ser filósofo quando assume a atitude filosófica. A competência de um filósofo não se mede pelos conhecimentos que têm da História do pensamento filosófico. Mesmo que eu seja um especialista no pensamento de Descartes, que tenha lido e relido suas obras e produzidos dissertação, tese e artigos sobre seu pensamento, não seria eu ainda um filósofo. Filósofo é aquele que não se limita a viver como se a realidade fosse algo já dado, pronto, acabado; ele se posiciona diante dela como quem a toma como um problema a ser investigado e compreendido. Ele é quem reflete, argumenta, discute. No exercício de sua atividade, importam mais as questões que levanta do que as respostas que possa vir a obter para elas. Afinal, as respostas sempre poderão vir a ser questionadas e revisadas. Importa, na atividade de filosofar, o modo como as questões são formuladas, o modo como argumentamos sobre elas; são pois, os caminhos de reflexões que abrimos que são caros na definição do que é ser filósofo. Ele não é o sábio, não é o erudito; é, como ensinou Sócrates, aquele que reconhece sua ignorância, mas munido do espírito questionador, ávido pelo saber, busca remover o véu dessa ignorância, busca pôr em xeque suas próprias convicções, bem como as crenças provenientes do senso-comum. Filosofia é sinônimo de libertação, portanto incompatível com sistemas dogmáticos, incompatível com crenças infundadas.
Não é a Bíblia que deve ser matéria nas salas de aulas de nossas escolas; mas a filosofia!

Meu canto embriagado














Aceno

 Quando nasci
a vida me escorreu
para um copo

Onde a bebi
Embriagado dela
Hoje
Resisto à morte

Com um aceno ébrio.

       (BAR)                        

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Era uma vez...

                                     

                                           Confessionário


Num átimo de coragem, ousou o diabo romper os portões do Céu e lançar sobre Deus um temporal de questões:

- Você precisa me ouvir e o fará agora, de uma vez por todas! – vociferou o diabo, muito íntimo de Deus.
- Fale-me que te ouço!
- Pois bem. A situação lá embaixo tá feia. Há uma rapaziada lá que tá querendo fazer política a qualquer preço. Lançam mão do seu nome para perpetrar e justificar os atos mais abomináveis! Recentemente, surgiram os homens-bomba dispostos a matar a si mesmos e a quem quer que esteja nas mediações. Eles acreditam cumprir o que ensinam suas Escrituras.
- Ouvi alguma coisa a respeito!
- E o que está disposto a fazer? Não vê que estão usando seu nome para deflagrar violência? Há uma rapaziada lá que nega ferrenhamente sua existência. Também pudera, já que você não dá sinais de que está no comando. Aliás, se não sabe, até escreveram um livro, que chamam de Escrituras Sagradas. Nele, conta-se que o senhor delegou a mim o comando do mundo e isso explica o sofrimento que assola as criaturas que lá vivem. Eu sou sempre o culpado! Estou farto disso!
- Alguém tem de ser o bode expiatório. Afinal, eu sou bom, excessivamente bom, lembra? É assim que me concebem.
- O senhor é bom? Se o senhor delegou a mim, como acreditam, o controle sobre o mundo e se sou eu mau tal como me representam, então o senhor é mau também. Se fosse bom, assumiria o comando. Mas devo dizer que nada tenho a ver com isso. Sou inocente de qualquer acusação. É você que é todo-poderoso e nada faz por merecer tamanho prestígio.
- Assim me chamam?
- Sim, há milhões de criaturas que creem ser você o Senhor do Universo, o Poder absoluto, irrevogável. Para esses milhões, você pode tudo. Só não pode evitar que terremotos, tsunamis arrasem países e matem milhares de pessoas, nem que epidemias ceifem milhões de vidas.
- Não sabia disso. Então, sou muito adorado?
- Sim, erigem até templos em seu nome. Estranhamente, alguns ruem com um terremoto. E muitos fretam ônibus em viagens longas para visitar igrejas e participar de romarias. Às vezes, nessas ocasiões, morrem muitos em acidente. Ah! É claro que o senhor tem muitos nomes e não há um consenso sobre a sua verdadeira identidade. Por vezes, o senhor é um Pai misericordioso, mas punitivo, irado, rabugento. Suas imagens são conflitantes. Há também criaturas que creem em outros deuses!
- Em outros deuses? Como ousam!?
- Ué, o senhor é que as fez assim! Elas são muito criativas!
- Mas eu sou o único Deus, só existe um Deus. Sou Eu! Revelei isso!
- Pois é, mas parece que falsificaram as escrituras!
- Pérfidos!
- Você deveria sabê-lo. Vamos lá. Raciocine comigo. Você criou o universo, pelo menos é isso que ouço lá embaixo. O senhor criou o mundo, o planeta Terra, por quem parece ter certa predileção. Lá o senhor permitiu a vida. Criou a água, elemento primordial, o fogo, o ar, e a terra. Colocou lá uma flora rica e exuberante, uma fauna igualmente rica e diversificada. Há coisas boas lá embaixo, eu reconheço. Mas você também não aliviou a mão, né?. Em contrapartida, criou vírus, bactérias, parasitas, o mosquito da dengue (que aliás tem causado epidemias no Rio de Janeiro (e olha que lá tem muita gente de fé!). Você sabe onde fica essa cidade, né? No Brasil, um país onde vivem muitas pessoas religiosas! Bem, daí você, não satisfeito, criou terremotos, vulcões, furacões, tsunamis, asteróides, meteoros e, claro, o ser humano. Dizem que foi sua melhor obra! Eu discordo. Um ser tão bom quanto o senhor bem que podia ter feito um pouco melhor. Essas criaturas, se abandonadas a si mesmas, tendem a se matar umas as outras. Parece que a Natureza as pré-dispôs a atender ao imperativo da sobrevivência. Você devia sabê-lo. Os genes são egoístas!
- A maldade humana é fruto do pecado!
- Ora, faça-me o favor! Deixa disso! Balela! Pecado é uma criação daquelas criaturas para explicar a contradição insuperável: como poderia haver um deus bondoso e interessado na sorte de suas criaturas, dotado de poder infinito de atuar em favor delas, diante da existência de tanto sofrimento, de tanta maldade... daí criaram o pecado, para explicar por que aquelas criaturas sofrem! O senhor não poderia criar o pecado, isso seria contra-senso. Mas são os contra-sensos que sustentam aquelas criaturas na fé em você.
- Decerto, eu não criei o pecado. Eu criei os homens bons!
- Vejo logo que o senhor não entende nada de genética, de cultura. O que me parece é que o senhor fez uma grande merda e não quer admitir. Diz logo que a criação saiu do controle, só isso pode explicar os terremotos, os vulcões, as imperfeições tão evidentes na Natureza! Confessa... você não fez o melhor, algo saiu errado. A matéria resistiu ao seu poder e tomou forma por si mesma. Sua credibilidade está sendo questionada!
- Como pode questionar-me?
- Ora, depois do Holocausto, duas Guerras Mundiais, do 11 de Setembro, de Hitler e Osama Bin Laden, de epidemias que dizimam milhões de criaturas, não me surpreende que os mais esclarecidos e críticos julguem não existir deus nenhum. Você deu motivos! Se quisesse que realmente levassem-no a sério, teria dado sinais claros, a começar por eliminar a grande quantidade de microorganismos nocivos à vida das demais espécies. Eu sei que algumas bactérias são úteis, mas você poderia ter feito diferente. Sabia que as criaturas morrem de infecção por bactérias?  Você sabia que o câncer atinge não só os seres humanos, mas também plantas e vários animais? Para certa classe de homens você é o pior erro da História, uma invenção que insulta a dignidade de muita gente que luta por uma sociedade mais justa. Seu nome cingiu a humanidade. Eles discriminam, segregam em seu nome.

Deus, em silêncio...

- Por que você criou tudo que há?
- Porque eu não existiria sem que houvesse quem pudesse dar testemunho de mim!
- Então, você está me dizendo que sua existência depende da existência daquelas criaturas que chamamos “homens”. Sem elas, você não teria razão de ser. Continuaria vivendo em sua solidão cósmica e infinita. Você não deu aos demais animais a capacidade de professar fé em seu nome. Só os homens o fazem. Deles depende sua memória. Você só tem força na consciência dessas criaturas. Se o mundo fosse habitado apenas pelos animais de consciência pouco desenvolvida, você não existiria. A menos, é claro, que lhes desse a capacidade de pensar e lhes tivesse dotado da capacidade para professar crença em você. Você teria de lhes dotar de um cérebro com dimensão e propriedades específicas, como o cérebro humano. Qual é o propósito da criação? O que pretendeu ao criar os homens, o mundo?
- Para que vivam junto a mim, quando morrerem!
- Só?
- É. O propósito da vida é obter a vida eterna obedecendo a minha Vontade.
- Tá bom. Mas para isso seria necessário criar um mundo repleto de tanto sofrimento, seria necessário fazer que suas criaturas suportassem males, vivessem vidas de privação, ou morressem em tenra idade, para poder gozar da eternidade ao seu lado? Por que não as criou prontas para viver ao seu lado? Por que não criou um mundo em que você se faria visível, verdadeiramente pessoal e atuante? Essa lógica do “sacrifício leva à salvação” soa pedagogicamente repugnante. Isso parece coisa de certa classe de homens antigos, que educavam através da punição. Suspeito que você é uma invenção dos homens!

E não obtendo resposta de Deus, o diabo anuncia, em desfecho.

- Não me sendo apresentado argumento contrário, declaro que sou ATEU. E não sou responsável por mal nenhum. Você poderia ter dado cabo de mim, evitando assim que homens atribuíssem a mim supostas possessões, perdição e males através de muitas gerações. Somos cúmplices de um delírio. Agora, estou indo...
- Para onde?
- Para os confins do Universo, onde ficarei em paz!
- Espere! Eu vou com você. – bradou Deus.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

"A meta de uma discussão ou debate não deveria ser a vitória, mas o progresso." (Joseph Joubert)

Aos colegas ateus:





"Estou de acordo. Sou ateu, mas isso não me obriga a concordar com todos os colegas em todas as questões. Um partido, uma congregação não se forma com indivíduos que estão sempre de acordo; há os dissidentes. Já critiquei o modo como muitos ateus adotam um discurso neocientificista auto-suficiente, um discurso com que supõem poder responder a todas as questões colocadas pela religião ou outras doutrinas metafísicas. Eu posso aceitar a teoria do Big Bang (é a teoria paradigmática que, embora atraia divergentes no tocante a um ou outro aspecto, continua aceitável até que possa vir a ser refutada). Concordo que a hipótese de Deus para explicar o surgimento do universo traz sérias complicações. Ainda que assumíssemos haver um projetista, um exame cuidadoso nos mostraria que ele não pode ser o deus cristão. Tratar-se-ia de um deus completamente desinteressado da sorte dos homens neste mundo, de um deus impotente, de um deus coagido pelas leis da física, pela constituição mesma do universo. Seria um deus fraco (nada comparável ao deus grandioso do cristianismo). Seria um deus que ao criar, perdeu o controle sobre os elementos primários da criação e que, embora tenha projetado uma natureza exuberante, NÃO O FEZ PERFEITA! (ao contrário do que supõe a maioria dos religiosos, aliás perfeição é impensável nos padrões humanos, é ideal). Claro não precisamos da hipótese de Deus para explicar a origem da vida. Mas a ciência silencia em face da morte. Cientistas lidam com a vida. Médicos estão comprometidos em salvar vidas, em restituir a saúde, em preservá-la. A morte é o fim, é onde cala a voz científica e onde se abre o vazio a ser preenchido pela voz do coração, da superstição (se quiserem assim chamar), do sentimento. Diante de um defunto, o médico diz: eis uma matéria inanimada, sem vida. Eis um corpo cujo cérebro deixou de funcionar; portanto eis um morto. Este corpo, que outrora sentia, pensava, estudava, falava, escrevia, trabalhava, amava, chorava, sofria, pulava de alegria, viajava, casava, divorciava-se, se apaixonava, planejava, compunha poesia, emocionava, criava ... este corpo que um dia existiu (se relacionava), é aproveitado para estudos de anatomia. Faço um apelo não à razão, mas à emoção. Nós, seres humanos, não somos só animais racionais, somos pessoas emocionalmente complexas. Somos seres de desejo, de emoção. Viver é emocionar-se, não é só pensar, não é só racionalizar. Não vamos conseguir êxito tentando convencer os religiosos ou os espíritas de que a morte é o fim de tudo, de que viemos do pó e retornaremos ao pó... essa visão niilista não logrará êxito. Enquanto os cientistas nos chamam atenção para a singularidade de nosso estágio na longa cadeia evolutiva, que nos torna uma espécie notável, sob vários aspectos, os religiosos ou espiritas vêem nisso um sinal de que há em nós um substrato que resiste à aniquilação orgânica quando da morte. A crença na possibilidade da inesgotabilidade da vida não me incomoda. Se a maioria apenas a desejasse, sem pretender universalizá-la, sem pretender transformá-la em doutrina, sem fazer dela uma religião, talvez não houvesse muito por que nos opormos. Ficaríamos com o desejo, mas continuaríamos sempre dispostos a dar voz a nossa única certeza: a de que morreremos. O que isso realmente significa é algo que nos está velado. Antes de bradar "todos vamos morrer aceitem isso", olhemos ao nosso redor, vejamos quantos desgraçados chegam ao mundo e que, por circunstâncias adversas pelas quais não foram responsáveis (ou vocês responsabilizariam uma criança que nasceu com um problema congênito, que nasceu em regiões pouco favoráveis à sua sobrevivência?). Uns nascem em berço de ouro, uns são acolhidos pelos pais; outros nascem em condições de pobreza e são, às vezes, abandonados. Uns morrem muito cedo, ainda crianças; outros vivem uma vida longa de privações, de sofrimento. O que é certo é que o sofrimento tece as malhas da existência humana. O budismo tem a nos ensinar muito a esse respeito (em parte, pode-se aproveitá-lo). É notável que cientistas como Richard Dawkins convoquem a todos nós a usufruir a vida, que é única e valiosa, mas tenham forçosamente de sufocar o sentimento, de ignorar que milhões de pessoas são privadas de gozar desse privilégio. Para muitos, a vida é dura, para muitos a vida é uma desgraça, para muitos a vida não passou de alguns dias. Serão estes infortunados recompensados de algum modo? Terá a passagem deles neste planeta se limitado ao infortúnio, à desgraça, à infelicidade? Não sabemos. Aqui a ciência sai de cena. E o mistério nos abraça, nos envolve a todos. Somos filhos desse mistério. Contentemo-nos com ele, sem nunca desistir da Vida!"