quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

"Por simples bom senso, não acredito em Deus. Em nenhum." (Charles Chaplin)

        

     O ateísmo ativista
  Repensando o projeto


A palavra ativismo é definida, na Enciclopédia e Dicionário Koogan- Houaiss, tanto como ‘atitude moral que privilegia as necessidades da vida e da ação, sobre os princípios teóricos’ como ‘propaganda ativa em favor de uma doutrina’. O ateísmo propalado por autores como Richard Dawkins, Sam Harris e Christopher Hitchens tem sido compreendido como um ateísmo ativista justamente porque esses autores, ao publicar obras e participar de debates e conferências, em televisão e em universidades, atuam incisivamente contra a religião e a fé. Eles, realmente, partiram para o ataque. Cada qual do seu modo: Dawkins valendo-se de sua competência enquanto biólogo e expoente do darwinismo. Sua obra Deus: um delírio foi escrita sob a perspectiva baseada em sua formação. Ele considerará a fé um vírus, que contamina a consciência das pessoas, impedindo-as de pensar coerentemente sobre suas crenças religiosas e suas crenças sobre o modo como o mundo funciona.  Sam Harris, a seu turno, atacará de modo mordaz a fé religiosa e, particularmente, a fé islâmica. No Posfácio de seu livro A morte da Fé (2009), em resposta a uma das críticas que recebera de seus leitores (algumas por e-mail), o autor é claro:


“Se existe algum livro que ataca mais duramente a religião, eu o desconheço. Isso não quer dizer que meu livro não tenha muitas falhas; mas com certeza ele não pode ser acusado de tentar apaziguar a fé religiosa”.
(p. 272)

O excelente livro deus não é grande (2007), de Hitchens, conta com relatos de suas experiências como jornalista enviado a regiões de conflitos, com ataques sem peias a personalidades porta-vozes da fé, como Madre Teresa de Calcutá. Conhecimento e experiência conciliados de modo lúcido e ácido no ataque ao fenômeno da religião – é o que encontramos, em suma, na obra deste grande e saudoso intelectual.
Comum aos autores aqui mencionados é a tese segundo a qual a fé deturpa a razão, se alimenta da irracionalidade, embota a consciência. Veja-se, a título de exemplo, o que escreve Sam Harris nesse tocante:

“A fé religiosa, embora seja a única espécie de ignorância humana que não admite sequer a possibilidade de correção, continua a ser protegida contra as críticas em todos os cantos da nossa cultura. Ignorando todas as fontes de informação válidas acerca deste mundo (tanto espirituais como mundanas), nossas religiões assumiram antigos tabus e fantasias pré-científicas como se estes encerrassem o mais profundo significado metafísico. (...) Na melhor das hipóteses, a fé religiosa torna as pessoas, mesmo as bem-intencionadas, incapazes de pensar racionalmente sobre muitas das suas preocupações mais profundas e; na pior das hipóteses, é uma fonte contínua de violência entre os seres humanos”.

(p. 259)


Hitchens, por sua vez, apontará o fato de a larga propagação de religiões estar ligada à inversão ideológica que declara os homens não mais como criadores de deuses, mas como criaturas destes. O ventre das religiões é justamente essa ideologia. Nela se ancoram as doutrinas, os rituais, a fé. A dimensão da cultura (criação humana), onde devemos situar as religiões e os seus deuses, é apagada nessa concepção invertida (ideológica). A ideologia aqui referida mascara a verdadeira realidade que envolve homens e deuses: aqueles como os verdadeiros criadores; estes como suas verdadeiras criaturas.
Comum aos autores referidos aqui é também a ideia de que a religião nasce da ignorância sobre como o mundo é e de que se alimenta dessa ignorância. O alicerce da religião é a ignorância. E a fé religiosa estorva a capacidade de as pessoas desenvolverem o pensamento reflexivo e crítico.
É interessante ver que Dawkins, particularmente, se preocupa muito com a educação das crianças; ou melhor, se preocupa com a incapacidade de as crianças fazerem determinadas escolhas, como escolher se vão seguir ou não a religião de seus pais. Para ele, uma criança não se define como católica ou islâmica; ela não é nem uma nem outra, não tem maturidade para avaliar as implicações de assumir este componente de sua identidade; na verdade, segundo o autor, a ela é imposta a religião dos pais. A preocupação de Dawkins se justifica pelo fato de que a forma como o adulto se relacionará com a sua fé, defenderá suas crenças religiosas e encarará a religião em sua própria vida dependerá do modo como a doutrina religiosa foi inculcada nele, quando criança, pelos pais. É claro que, aliada aos pais, está a Igreja e seus cursos de doutrinação (no caso da Igreja Católica, o catecismo e a crisma). O modo como a religião influenciará o comportamento desse adulto durante a vida dependerá de como se desenvolveu a atividade de adestramento psicológico dele, quando criança, promovida pela família e Igreja.
Convém, agora, sintetizar a preocupação fundamental dessa corrente de ateístas: combater a ignorância religiosa, fonte de erros, irracionalidade e, em casos extremos, de violência. Mas é preciso elucidar esse ponto e a pergunta que devemos fazer é: no que consiste essa ignorância? Vale perguntar ainda: como ela se manifesta?
Os estudos filosóficos ensinaram-me a buscar o rigor na definição de termos e no tratamento de questões sobre a qual me debruço. Preciso, pois, me deter na definição de dois conceitos operacionais: o pensamento e a ignorância. O conceito de pensamento que me interessa aqui é aquele que se estrutura simbolicamente, ou seja, pela linguagem verbal. É o que devemos chamar de pensamento conceitual. Não existe fora dos quadros da linguagem, donde se segue que pensar é, com Kant, “conhecer através de conceitos”. Assim é que a mente constrói conceitos e os organiza na forma de juízos. Para mim, linguista, na forma de proposições, textos, discurso. O pensamento é essencialmente linguístico ou discursivo. Para Kant, pensar é julgar, é calcular. Quando tomamos os conceitos ‘menino’, ‘caiu’ e ‘no chão’ (as palavras criam conceitos) e os organizamos numa oração, formamos uma proposição ou pensamento: “O menino caiu no chão”. Essa frase reconstrói um estado-de-coisas no mundo tornando-o dado de nossa consciência, ou seja, forma de conhecimento. Posso desenvolver esse pensamento, articulando-o a outro pensamento. Por exemplo, posso articular àquela oração uma causa: “O menino caiu no chão, porque estava correndo do cachorro”. Casos há em que a oração introduzida pela conjunção “porque” não veicula a causa, mas a explicação para o que se enuncia anteriormente: “Deve ter chovido, porque o chão está molhado”. Note-se que “porque o chão está molhado” é uma justificativa para o ato de fala “deve ter chovido”, produzido na base de uma inferência feita a partir da constatação do estado do chão. É como se disséssemos: “Eu afirmo [deve ter chovido], porque o chão está molhado”. Diremos que a relação causal opera sobre proposições, de tal modo que B é causa de A; mas a justificativa ou explicação opera sobre atos de fala, de tal sorte que o que se apresenta é uma explicação/ justificativa para o ter dito B, ou seja, para a enunciação de B (Deve ter chovido).
Esses exemplos mostram que as relações entre os pensamentos envolvem também pensamentos não anunciados, ou seja, envolvem pressupostos e operações linguístico-cognitivas como inferências. Aliás, a inferenciação é uma atividade fundamental e indispensável na compreensão de textos, seja orais, seja escritos. Ao usarmos a linguagem, em nosso dia-a-dia, estamos em todo momento fazendo inferências. Um caso de pressuposição é ilustrado em “O carro parou de trepidar”. Desse enunciado depreendemos o pressuposto “O carro trepidava”. A unidade que ativa o pressuposto, ou que o sinaliza, é “parou de”. É por meio desse elemento linguístico que inferimos “o carro trepidava”. O pressuposto está inscrito no enunciado e é recuperado na base desse enunciado.
Em O que é Filosofia (2008), Caio Prado Jr. distinguirá entre o pensamento elaborador, que operando sobre conceitos e os articulando na forma de enunciados, é responsável pela produção de conhecimento, e o pensamento reflexivo, a saber, aquele que se volta sobre o já pensado (o conhecimento produzido).  O pensamento reflexivo é o pensamento sobre o pensamento. Na verdade, a conceituação, ou seja, a representação que a mente faz das ocorrências do real já é uma etapa do pensamento elaborador. Prado nos ensina sobre a relação entre essas duas formas de pensamento:

“Desse primeiro momento ou nível da atividade cognitiva (isto é, a elaboração da conceituação representativa da Realidade), o instrumento dessa atividade,que é o pensamento elaborador do conhecimento, se volta sobre si próprio e toma reflexivamente por objeto aquele mesmo conteúdo conceptual ou Conhecimento por ele elaborado”.
(p. 20)

O pensamento elaborador, responsável pela conceituação, se desenvolve a partir da experiência sensória do indivíduo. Ele se apóia nos dados acessíveis aos sentidos, conta com a experiência de mundo do indivíduo pensante. A transformação dos dados postos aos sentidos em dados de consciência, ou seja, em formas de conceitos, é no que consiste a conceituação.
Compreendida esta etapa, passo a considerar o conceito de ignorância. Não podemos deixar de referir o nome de Sócrates, considerado pelo Oráculo de Delfos, o homem mais sábio que já existiu, porque reconheceu sua ignorância, ao proferir a famigerada frase “só sei que nada sei”. Grosso modo, pensamos em ignorância como carência, insuficiência, falta ou ausência. Ignorar é desconhecer. Todos nós ignoramos em alguma medida. A ignorância reconhecida por Sócrates é o que eu chamaria de ignorância propulsora, a saber, aquela que nos impele ao conhecimento. Ela abre caminho para o conhecimento; uma vez reconhecida, o indivíduo se esforçará por saná-lo com o conhecimento. Ela é, assim, um vazio que deve ser preenchido com conhecimento(s).
A ignorância também pode ser pensada como um engano do indivíduo em relação à qualidade e correção de seus conhecimentos ou crenças. A ignorância faz com que ele tome por verdadeiro o que é falso, incorrendo em ilusão ou em erro. A ignorância mantém-no no nível das opiniões falsas ou da aparência, impedindo-o de alcançar a essência das coisas, a(s) verdade(s). Importa também entender, nessa discussão, o valor das evidências. Uma evidência é tudo aquilo que se impõe ao espírito de modo claro, distinto e para o qual se dispensa demonstração. A evidência racional importa às ciências. Descartes reconhecia a evidência intelectual como o único critério de objetividade. Consoante o filósofo, não podemos aceitar como verdade nada sem que antes se imponha ao espírito como evidente.
Entendemos por que Dawkins (e outros), ao ser indagado sobre o porquê de não acreditar na existência de Deus, responde de modo a fazer entender ao seu interlocutor que “faltam evidências”. Claro está que o conhecimento, para ter validade (incluindo-se, evidentemente, o conhecimento científico) precisa apoiar-se nas evidências. Elas constituem o conjunto de elementos necessários para corroborar ou negar uma dada teoria ou hipótese científica. É claro que as evidências não estão disponíveis de antemão; elas dependem de pesquisas desenvolvidas na base de um conjunto de pressupostos.
As evidências diferem dos indícios em termos de grau de confiabilidade ou certeza. As evidências são tomadas como provas de que uma crença ou ideia é verdadeira. Elas validam conhecimentos. Os indícios são sinais que apontam para a probabilidade de que algo tenha acontecido ou exista. No domínio da criminologia, da jurisprudência, do Direito, fala-se em indícios, sempre que na cena de um crime há pistas que podem ajudar para o conhecimento de quem foi o seu autor, bem como de como foi praticado.
A ignorância atacada pela corrente do ateísmo ativista representado nas figuras de Dawkins, Harris e Hitchens é uma espécie de ignorância que toma como verdades insuspeitas, inquestionáveis, inatacáveis determinadas crenças que carecem de evidências, de base empírica. Elas sequer contam com indícios. Mas também é uma ignorância que infertiliza o pensamento reflexivo. Ela o turva, obscurece-o e, não raro, o impede. A ignorância religiosa torna seu possuidor uma pessoa ingênua, incapaz, às vezes, de perceber as incoerências, contradições, disparates que vazam de seus pensamentos. Lembro que pensar é encadear proposições, frases, juízos; pensar implica um trabalho cuidadoso com a linguagem verbal, baseado em alguns princípios da lógica.
Vamos a um caso que constatei em uma postagem no facebook. Primeiramente, vale elencar algumas proposições vulgarmente produzidas sobre Deus, herança dos ensinamentos teológicos mediante a Igreja:

1. Deus é Pai;
2. Deus é amor;
3. Deus é bom;
4. Deus é todo-poderoso;
5. Deus é onipresente;
6. Deus é onisciente.

Na postagem, estampava-se a foto de um acidente de trânsito fatal. Quase toda uma família morta, exceto um menininho. A criança sobreviveu. A imagem incluía o dizer: “Quando Deus põe a mão”. Quer-se fazer crer que Deus, “pondo” suas mãos invisíveis, salvou a criança, evitando sua morte. Mas, inexplicavelmente, deixou seus familiares morrer. Devemos supor que Deus tenha um plano para aquela criança e outro “plano” para seus familiares? Mas o que dizer da criança que, além do trauma provocado pelo acidente e pela visão aterradora de ver seus familiares mortos, deverá levar uma vida na condição de órfã? Deus não foi bem sucedido. Um pai reconhece que uma criança necessita de seus pais; um pai que ama não deixaria seu filho abandonado; e o mais impressionante: se Deus é todo-poderoso, por que não salvou a todos, se não quis evitar o acidente (embora pudesse fazê-lo, já que seu poder de agir é absoluto)? Ele não parece tão plenamente presente assim, mas chegou a tempo de salvar a criança (devia estar ocupado naquele momento, mas se apressou em socorrê-la).
O que devemos reter, nesta ilustração, é o fato de que o que se diz de Deus entra em choque, em conflito com as ocorrências do real. A sobrevivência do menino surpreende, é claro; mas pode ser explicada pelas circunstâncias do acidente, por exemplo, a posição em que a criança se achava, seu tamanho, o ponto em que a força do impacto incidiu (provavelmente, no lado onde estava o motorista e as outras pessoas que morreram). Importa ver que não precisamos da hipótese de Deus para explicar o que parece ser um “milagre”, um acontecimento extraordinário e impressionante. Se lançamos mão dela, ficamos ainda sem explicação para o fato de Deus só ter salvado a criança e ter deixado morrer as demais pessoas no carro (seus familiares). Para os religiosos, em geral, crendo não ser a morte o fim da vida, não nos surpreendemos que possam dizer que a morte das outras pessoas que estavam no carro era plano de Deus, era a sua vontade. Essa crença absurda é para mim aterradora! Ter um ser todo-poderoso, senhor do universo, a decidir quem deve viver e quem deve morrer excede em horror qualquer história de terror já criada pelo gênio humano.
Lançar mão do dispositivo Deus para explicar os acontecimentos do mundo não só nos dá explicações errôneas sobre o modo como o mundo funciona, não só não nos fornece conhecimento nenhum, como também pode acarretar-nos mais inquietações do que serenidade. Talvez, essas inquietações não encontrem abrigo no coração dos fiéis, simplesmente porque eles não se ocupam em pensar seriamente sobre suas afirmações, sobre suas crenças a respeito da relação entre Deus e o mundo, a respeito do modo como Deus atuaria no mundo. Seria mais justo admitir que, se há um criador do Universo, esse criador se desinteressou de sua criação; ele não intervém em favor de suas criaturas, donde se conclui não evitar que terremotos matem milhares de pessoas, que um tsunami arrase uma cidade no Japão, que vulcões, epidemias causem choro e dor a muitos corações.
A ignorância a que se opõem ferrenhamente aqueles autores é também a ignorância da prepotência, da arrogância, da vaidade. As pessoas de fé não se permitem sequer pôr em xeque suas convicções. Raramente (ou nunca) se perguntam: “e se eu estiver errado?”. Essa pergunta honesta também poderia ser sugerida a nós, ateus, por eles, religiosos. Pode ser que estejamos errados; mas a falta de evidências a favor da existência de Deus tem corroborado até hoje a posição ateísta, a tem sustentado firmemente.
Quando o ateu nega a existência de Deus e se arvora na defesa de sua posição, ele, deve se esforçar por mostrar que muitos erros e crimes foram cometidos em favor da crença numa ideia ilusória. Devemos ter em conta que tudo que os homens fizeram até hoje (guerras, doutrinas, templos, vestimentas pomposas, sistemas hierárquicos, tratados de teologia, rituais, privações, etc.) em torno do nome de Deus fizeram-no em favor da consolidação e manutenção da crença em um ser que não pode ser experienciado sequer por microscópio ou outras técnicas avançadas (como as que são empregadas para estudar a complexidade de um átomo). Na escala existencial, Deus está abaixo de um micróbio, ou mesmo de um átomo (ou mesmo de um nêutron). A despeito de tantas crueldades, guerras, genocídios em seu nome, estranhamente, ele se mantém em profundos silêncio e omissão. Mas esse fato não incomoda as pessoas religiosas .
É verdade que não são todas as pessoas que chegam ao extremo de guerrear e cometer crimes em nome de Deus, mas muitas poderão, ao menos, romper relações ou evitá-las, caso descubram que um amigo ou colega nega-se a acreditar em Deus. Deus (a ideia de Deus) instaura uma cisão, uma discriminação, uma divisão no interior de uma sociedade ou comunidade. Sam Harris nos ensinou sobre o poder de uma crença, de uma ideia. A crença move as pessoas, leva-as a agir. Uma crença equivocada poderá (o faz) levar a ações equivocadas e, não raro, funestas.
Tem razão Gleiser ao nos chamar a atenção para o fato de que os ateístas da vertente ativista ignoram o que se passa nos corações dos fiéis, quando estes se entregam às suas orações, se envolvem em seus rituais e se relacionam com os imprevistos da vida. Por isso, o ataque ou a crítica não deve ser direcionado para o desejo ou o sentimento de que haja algo além da materialidade do mundo, da vida tal como a conhecemos. O problema dessa crença é a sua consequência. As pessoas que seguem tenazmente a doutrina da vida além-túmulo acabam por apregoar o desapego, o desinteresse pelas coisas desse mundo. Os mais extremistas, lançam aviões contra arranha-céus ou se suicidam com bombas presas ao corpo, levando consigo vários inocentes. Tudo porque acreditam que gozarão de felicidade eterna no paraíso reservado a eles por Deus (Alá).  É verdade que, entre nós, os cristãos católicos e evangélicos não alcançam esse grau de paixão envenenada; mas os últimos, especialmente, pregam um discurso apocalíptico e de conversão à causa de Cristo. Os católicos não fogem à regra. Também esperam pelo Juízo Final, com o retorno de Cristo. Há, como observou bem Onfray (2007), na doutrina cristã propagada por Paulo (embora nem todos os textos com seu nome tenham sido escritos por ele), obsessão pela morte, pelo fim absoluto.
O ataque deve ser dirigido, portanto, no sentido de evitar que a onda de ignorância alimentada pela religião em relação a questões éticas, políticas, sociais e culturais penetre as nossas instituições e sirva de parâmetro para estabelecer formas de convivência antidemocráticas e eivadas de preconceitos. Exemplos disso são a implementação por certas autoridades políticas da corrente evangélica do ensino da Bíblia nas escolas, a perseguição aos homossexuais, a disseminação da ideia absurda e repugnante de que a aids é um castigo de Deus aplicado aos homens, etc.
É claro que o debate aberto, a insistência em que a religião pode ser discutida sim devem constar da agenda ateísta. Se os religiosos participam, através de associações, pela mediação da igreja, social, cultural e politicamente, defendendo suas opiniões, seus valores, suas crenças, também nós, ateus, devemos lutar por maior participação nessas esferas. O conflito de percepções, de interpretações, de valores, de éticas é indispensável.
Devemos abandonar atitudes demasiado agressivas, as ofensas, as ridicularizações, sem deixar de sermos irônicos (quando necessário) e sagazes. A orientação de nosso discurso deve, não raro, situar-se no domínio em que as crenças religiosas são apresentadas e articuladas. É preciso atacar de dentro, e não de fora, o que significa apreender as conexões entre os dizeres. Se queremos pôr a nu a ignorância, devemos tateá-la nas entranhas de sua materialização verbal. Isso significa atentar para como os pensamentos são tramados e como reproduzem as gritantes incoerências da doutrina e das Escrituras.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

"Nós matamos o Deus, mas não matamos nossa angústia" (BAR)

                                     

                                 Até onde pode ir o ateísmo

O dogmatismo, em filosofia, consiste numa atitude rígida em face da possibilidade de a razão humana alcançar certezas e verdades absolutas. Ser dogmático é admitir que podemos estar sempre seguros da verdade de nossas crenças. Se eu digo “tenho certeza de que Deus existe”, estou sendo dogmático. O dogmático não se preocupa em fazer a crítica, em avaliar,  em repensar suas posições.
Nós, ateus, temos de ter cuidado para não manifestarmos posições dogmáticas. Como bem pondera Marcelo Gleiser, em Criação Imperfeita (2010), ao mencionar o ateísmo ativista de personalidades como Richard Dawkins, Sam Harris, o filósofo Daniel Denett e o saudoso jornalista Christopher Hitchens:

“O grupo prega um ateísmo radical, usando uma retórica extremamente agressiva, tão inflamada e intolerante quanto a do fundamentalismo religioso que se propõe a combater”.

(p. 40)

Este texto se propõe repensar a postura intelectual ateísta. Sabe-se que o ateísmo, enquanto discurso, é entretecido pelos fios da razão e lógica científicas. Trata-se de um discurso calcado sobre os discursos das ciências (física, biologia, antropologia, sociologia, psicologia...). A sua retórica é a de exaltação à racionalidade científica, aos avanços da biologia, da física, bem como o da incorporação das explicações sociológicas, antropológicas e psicológicas (também neurocientistas) numa tentativa de fazer ver a natureza humana das religiões. O ateísmo não só nos convoca a colocar os pés no chão, mas também a enterrar as nossas almas com nossos corpos. Gleiser é, aliás, incisivo ao nos alertar para a proposta ateísta:

“O que o ateísmo oferece – mesmo com todo o seu apelo à razão e à lógica da ciência – não vai funcionar. Ao menos não como costuma ser apresentado, sem qualquer vestígio de espiritualidade”.
(pp. 41-42)

A espiritualidade que alguns ateístas dizem ser possível experimentar é, evidentemente, de outra ordem. Mas demonstrar essa possibilidade é complicado. Vale dizer que espiritualidade não está necessariamente ligada à religião. Aliás, independe dela. Escusando-se essa questão, vou-me ater ao que me interessa fazer ver aqui.
Gleiser criticará a tendência de os “quatro cavaleiros do apocalipse”, como ficaram conhecidas aquelas personalidades, ridicularizar as pessoas que professam a crença em Deus. E nos mostrará que o ateísmo não satisfará as indagações mais profundas e comuns a todos nós, quer as anunciemos, quer não:

“A verdade é que provas empíricas não têm nada a ver com o poder da fé. Quanto mais misterioso o credo, mais ardente a crença. A grande maioria das pessoas acredita no sobrenatural por não aceitar que a morte possa ser o fim definitivo da vida. Não queremos ser esquecidos, reverter ao nada, perder nossos entes queridos. Quantas pessoas já não passaram por este mundo, ricas e pobres, reis e escravos, famosas e desconhecidas, belas e feias, pessoas que amaram e foram amadas, que sentiram alegria e dor, e que agora são apenas um punhado de pó? “Será que é só isso?” Será que vivemos, amamos e sofremos para sermos esquecidos após algumas gerações? Se temos apenas alguns anos de vida, nem sempre felizes, para que batalhar tanto? Qual o sentido da vida, se no final a morte e o esquecimento são inevitáveis?”

(p. 41)

A ciência não pode responder a essas indagações. Ela não pode satisfazer o sentimento, o desejo grandioso que jorra de corações aflitos, o desejo de que seja possível a inesgotabilidade da vida, de que o sofrimento que experimentamos neste mundo seja justificado ou compensado. Muitas experiências de mundo nos estarrecem! Há milhares de pessoas que nascem com alguma anomalia; problemas congênitos, retardamento mental, desenvolvem câncer, ficam paraplégicas, tetraplégicas, nascem cegas. Uns nascem em um meio familiar repleto de cuidados, amor e riqueza; outros, desamparados; outros ainda em regiões marcadas pela miséria, por sofrimentos inimagináveis. São coisas que acontecem, disse-me uma amiga atéia. Verdade, ou uma triste verdade – o vizinho ao lado não teve a mesma sorte! Mas não podemos ser indiferentes! Também não podemos viver os problemas dos outros, é claro; mas devemos ter em conta que somos filhos de uma mesma angústia: o medo (ou, se preferirem alguns, a lamentação, a desilusão...) , ainda que tácito, de que todos os nossos esforços, tudo pelo que lutamos, os amores por que choramos e que nos fizeram felizes, as pessoas que amamos e que nos amaram, as alegrias que experimentamos e as tristezas que tentamos em vão sufocar ou em que nos inundamos; todo o vivido, sentido, experimentado, retorne ao nada, ao pó.
Não defendo um retorno à crença no sobrenatural, tampouco dou à fé um valor merecido em face da consciência de que nem o ateísmo nem a ciência nos acalentarão, nos ampararão. O que me esforço por fazer ver é a necessidade de repensar o projeto ateísta. Diante da Vida, basta-nos a contemplação e a oportunidade que temos de pensá-la, de buscar compreendê-la. Não à resignação e à passividade; e sim à ação pelo intelecto e pelo coração!
No entanto, ecoará surdo o apelo de Richard Dawkins a que aproveitemos a Vida, a grandiosidade e os mistérios da Natureza, quando muitos dentre nós não podemos, por condições por que não fomos responsáveis, aproveitá-los. Que diremos às crianças que chegaram à vida sem poder compreendê-la, por uma deficiência neurológica? Que diremos de tantos que vivem em condições sociais e culturais desfavoráveis e que, portanto, não tiveram oportunidades de, freqüentando curso superior, experimentar o contentamento, a alegria das mais diversas formas de saber? Estes foram privados da beleza do conhecimento científico, do prestígio da cultura letrada... Eles nasceram naquelas condições e, por fatores sócio-culturais e econômicos que os excedem, viveram uma vida de privações.
Nem a ciência, nem a razão, nem Deus no centro. Apenas o Universo e a consciência de seu grandioso mistério. O ateus devem contentar-se com o Mistério. Os religiosos também. Reconhecer o absurdo constitutivo de nossa existência é o primeiro passo para conseguirmos lidar com ele.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

"A vida intelectual pede uma dose de solidão" (João Batista Libânio)

                           


                                     Para uma vida intelectual

Este texto tinha de ser escrito ontem, no instante em que experienciei aquela satisfação que me abarrotou a alma. Não era bem uma satisfação; era um regozijo. Um regozijo desencadeado pela leitura de um capítulo do livro Introdução à vida intelectual (2006), de João Batista Libano, um teólogo que, mesmo citando uma ou outra passagem bíblica em que se ensina sobre o valor do estudo e do conhecimento, preocupou-se em escrever seu livro com o propósito de iniciar seu leitor nas lides intelectuais. É preciso aprender a pensar e o autor se propõe ensinar-nos a trilhar os caminhos da atividade intelectual.
Não intento discorrer sobre o capítulo em cuja leitura me detive, mas quero citar algumas passagens em cujas linhas depreendem-se ideias que me interessarão para efeito de desenvolvimento deste texto. São ideias basilares.
No primeiro capítulo, Libano tratará da vocação intelectual, que será contraposta à profissão. Segue-se, na íntegra, o excerto em que Libano nos diz da vocação intelectual:

A vocação intelectual envolve o homem todo. Pede-lhe atitudes básicas. Muitas são comuns a toda vocação, mas adquirem uma feição própria no mister intelectual. Cultivá-las ao longo da vida torna-se a garantia de sua autenticidade. Preferimos trabalhar um número restrito de atitudes, que julgamos mais importantes. Veio-nos em socorro o provérbio latino: Non multa, sed multum – não a quantidade, mas a qualidade. (...) Passeamos pelo mundo da gratuidade, da realização humana profunda. Pretendemos superar o espaço da produtividade, da pura necessidade. Inserimo-nos na tradição que chama de humanidades um tipo de saber, uma qualidade de pensar que parte da experiência primigênia da admiração. Buscamos responder ao chamado interior que habita todo ser”

(p. 23)
(grifo meu)

O autor contrapõe o universo do trabalho, que se prende às esferas da produtividade e às necessidades básicas do ser humano, ao universo do cultivo intelectual, cuja recompensa consiste na “realização profunda” do homem. O exercício do pensamento reflexivo, ou seja, do pensamento que se volta sobre o já pensado, depende da atitude de admiração, gérmen da filosofia. A atividade intelectual é a forma de que os homens se valem para tornar o real um dado de sua consciência, ou seja, uma forma de conhecimento. Não basta viver numa relação imediata com o real, é preciso se distanciar para apreendê-lo. Pensar o real é descobrir-lhe o significado mais profundo.
Segundo Libano,

“Uma vida intelectual seria pobre se se restringisse unicamente a um saber preocupado com a utilidade imediata, com a análise dos objetos. Ela pergunta pelo significado da realidade. (...) A vocação intelectual pretende superar o mundo do dia de trabalho, marcado pela utilidade, oportunismo, produtividade, exercício de uma função. Este confina-se ao campo das necessidades, do produto, da fome, do modo de saciá-la. É dominado pelo objeto: comida, vestuário, habitação, estudos, trabalho; e finalmente gira em torno da atividade útil, utilidade comum. Tudo isso é parte essencial do bem comum. A atividade intelectual, sem negar nada disso, aponta para um bem comum mas amplo que a utilidade, antes à ligado à inútil vida da contemplação, da arte gratuita”.
(p. 30)

Importa ver que, nas sociedades modernas de hoje, marcadas pela técnica, pelo utilitarismo e pelo consumo de massa, não nos surpreendemos com a crença generalizada de que uma vida dedicada ao exercício da reflexão, ao cultivo do intelecto, ao desenvolvimento do senso crítico, etapas indispensáveis a todo processo de tornar-se intelectual, seja uma vida enfadonha. E não nos surpreendemos com a crença em que toda forma de conhecimento tem de ter uma utilidade prática. Como Libano nos ensina, à atividade intelectual basta a contemplação, a gratuidade.
Uma vez defendendo a ideia de que a vocação intelectual não se alimenta de algum propósito voltado para a aplicação, Libano lembra-nos as exigências dessa vocação. É preciso enfrentar um desafio: fazer ver aos indivíduos (estudantes, principalmente) que há prazer no exercício do pensamento; que há prazer em cultivar o intelecto; que há prazer na concentração, no convívio com os livros e na solidão indispensável a essas práticas.

“Há palavras que os ouvidos da pós-modernidade detestam: austeridade, renúncia, sacrifício. Pelo contrário, vive-se embalado pela palavra maior: prazer. O desafio da vida intelectual é saber mostrar que há um prazer que está no fim e não no início. É o prazer intelectual. Implica, porém, um caminho de disciplina, de responsabilidade, de horas e horas de estudo, de tenacidade, de vigílias, de trabalho, de aplicação. (...)
A vida intelectual pede uma dose de solidão, que não significa nem isolamento nem alienação, mas concentração, convívio com o mistério.  (...) A solidão é lugar de descanso, de repouso, de economia de energias, de tal modo que a atividade intelectual se torna mais operosa, intensa, profunda. Solidão casa-se com silêncio, recolhimento. A natureza recolhe suas energias à noite para no dia seguinte despertar radiosa pela manhã. A noite é propícia à solidão. No entanto, hoje torna-se cada vez mais difícil cultivá-la, já que o barulho do som e das imagens, das emoções  e paixões, entra pelos programas e filmes de TV, vídeo e Internet. (...) Só o amor à solidão permite que a inteligência depois se embriague no vinho da verdade e da beleza!

(p. 32)
(grifos no original)

Aprendemos, na Análise do Discurso, que, sendo a construção do sentido resultado de processos sócio-históricos, as palavras mudam de sentido conforme a formação discursiva em que apareçam. É interessante ver que a palavra solidão aparece no discurso de Libano designando uma experiência positiva, apreciável, desejável, muito diferente do modo como ela aparece no discurso, por exemplo, de nossos jovens adolescentes e das pessoas que, como aqueles, vivem voltadas para o exterior. Diga-se de passagem, que é uma tendência de nossa pós-modernidade o existir que busca continuamente se exteriorizar, negligenciado a interiorização, o autoconhecimento, o recolhimento. As pessoas vivem envolvidas pelos ruídos diversos provindos do exterior, buscam êxtases, prazeres fugazes nos lugares de agitações e movimentos incessantes e se sentem, em geral, entediadas sempre que precisam concentrar seus espíritos em atividades que demandam solidão. Para elas, isso é um sacrifício.
Há, pois, dois desafios para a vocação intelectual: reconhecer a relação entre dedicação ao cultivo do intelecto e prazer, de um lado; e, de outro, fazer ver a solidão como uma experiência necessária àquela atividade, mas também apaziguante. A solidão apazigua e a serenidade então alcançada é indispensável ao exercício do pensamento reflexivo.
Enquanto me ocupava com a leitura do referido livro, meus familiares estavam todos assistindo ao programa Big Brother Brasil; e, não para a minha surpresa, despertou-lhes a atenção o caso de um estupro de que teria sido vítima uma das participantes. A curiosidade, comum a todo ser humano, levou um deles ao computador, a fim de rever a cena em que, num quarto escuro e debaixo de lençóis, se podia ver a atividade sexual (que, em sendo um estupro, não fora consentida por um dos parceiros). Evidentemente, mantive-me envolvido em minha leitura, pois minha curiosidade está ligada a descobertas mais elevadas (ver alguém fazendo sexo ou insinuando a atividade sexual na televisão não me interessa nem um pouco). Mas isso interessa a muitas pessoas. E o programa Big Brother Brasil é um prato cheio para o empobrecimento intelectual. A sexualidade, de fato, me interessa, mas como um fenômeno humano. Leio sobre a história da sexualidade, que foi traçada pelo predomínio do masculino e submissão do feminino. Mas a mim não interessa o sexo gratuito banqueteado na televisão, tampouco a exposição de bundas avantajadas das mulheres fruta, como há em programas como Pânico na Tv.
Pessoas que, como eu, se dedicam tenazmente à prática intelectual; pessoas que, como eu, vivem segundo um imperativo mais elevado, a saber, a busca pelo conhecimento edificante, se incomodam com a influência nociva da televisão na vida do homem pós-moderno. Pessoas assim buscarão conhecer como se dá essa influência e quais suas consequências sociais, culturais, históricas.
É provável que a grande maioria de pessoas não vejam como negativo dedicar um espaço de tempo diário para assistir ao Big Brother. Para essas pessoas, trata-se de uma atividade de entretenimento. Elas buscam diversão, distrair-se. Há algum problema nisso? Afinal, o lazer não é indispensável na vida do homem comum? Certamente, não vivemos só para trabalhar (supondo-se, com o senso-comum, que quase toda forma de trabalho é penosa e enfadonha). O divertimento, para ser bem avaliado em termos de seu proveito, deve ser relacionado ao domínio da lógica da produção numa sociedade capitalista. Franco, em A televisão segundo Adorno: o planejamento industrial do “espírito objetivo”, artigo que consta do livro A Indústria Cultural hoje (2008), traz luzes  não só sobre o lugar da televisão hoje, mas também sobre sua relação com o entretenimento. Leiamos com atenção:

“A configuração do alcance e da natureza social da televisão adquire, dessa maneira, contornos nítidos. Ela se insere no universo da diversão e, nessa medida, parece se oferecer ao espectador com a promessa de que irá arrancá-lo do sofrimento imposto diariamente pelas exigências do processo de trabalho, quer sejam físicas ou psicofísicas. Essa oferta ilusória, segundo o autor, além de reforçar a tendência antiintelectualista da sociedade, de fato ludibria as expectativas de quem busca a diversão, já que objetivamente a televisão oferece o repouso físico e psíquico necessário para a recuperação da força de trabalho. A diversão, sustenta Adorno, implica resignação”.
(p. 113)

Aqui está a ideia-chave: a diversão implica resignação. Essa ideia abre uma porta, pois que nos permite pensar a diversão como uma etapa necessária ao melhor aproveitamento do indivíduo no processo de trabalho. A diversão, nesse sentido, é uma aliada do capitalista. A televisão, ao prometer diversão, é o espaço institucional que realimenta a vida psicofísica do trabalhador, permitindo-lhe que esteja no dia seguinte revigorado para o exercício de seu trabalho alienante. A força de trabalho, uma vez consumida num dia, é renovada diante da televisão, para ser novamente empregada no dia seguinte. Eis a lógica da produção, a que me referi.
Ainda segundo Franco, na mesma página

“Talvez fosse possível fazer uma ponderação a respeito desse raciocínio: tanto o processo de trabalho mecânico nas linhas de produção fordista quanto à diversão – extensão do tempo de produção – não requerem a atividade do pensamento. Ambos podem ser considerados modos interligados da moderna destruição da experiência. A televisão, nessa perspectiva, antes de reprimir a atividade do pensamento, simplesmente não o exige. De qualquer forma, Adorno extrai da tese acima consequência bastante esclarecedora: trabalho e diversão se articulam em processo extremamente dinâmico, o qual poderia ser denominado dialético.”

(grifo meu)

Vale notar que o processo dialético a que se referia Adorno diz respeito ao fato de a diversão preparar o indivíduo para a adaptação ao trabalho. É claro que essa adaptação nunca é total, tende a flutuar, sempre há espaço para o exercício da liberdade, da criatividade e da resistência; mas também cabe notar que a televisão, atenta a essa flutuação, buscará recursos para reforçar o condicionamento.
Se, no longo processo de nossa evolução enquanto espécie, a seleção natural legou-nos genes que nos dispuseram para adaptação eficiente às condições de existência e se disso pudermos concluir pela nossa suscetibilidade ao conformismo, à resignação, parece possível dizer que devemos a ela também um cérebro que, mesmo sob a influência de dispositivos de adaptação, pode, pelas práticas de aprendizagem, conseguir superá-los, ir além e resistir.
Um caminho sólido que deve ser trilhado na tentativa de escapar ao conformismo ou à resignação provocada e reforçada pelas promessas da televisão é, segundo Adorno, alcançar uma formação cultural mais ampla, pelo estudo da filosofia. Disso não se segue que devemos ser todos filósofos profissionais e saber de cor as filosofias dos mais diversos pensadores; significa dizer que devemos estimular o espírito de contemplação, de admiração latente em nós. A formação cultural a que se refere Adorno depende do desenvolvimento da consciência crítica, da capacidade de nos distanciar das vivências, da realidade mesma para olhá-la de fora. Depende ainda de uma incursão mais profunda na cultura letrada. Essa incursão nos leva ao convívio aturado com livros que nos edifiquem intelectualmente, que nos inquietem, nos estimulem, nos tragam mais do que respostas, tragam-nos inúmeras questões para reflexão continuada.
O tempo que se consome assistindo a programas como Big Brother, que não oferecem senão baixarias, vulgaridade, patuscadas, submissão de pessoas a situações de esgotamento, em troca de um prêmio milionário (num claro reforço da ideologia que entende a felicidade como consequência necessária do acúmulo de dinheiro e riqueza, e da conquista da fama, mesmo que efêmera, como tudo na (hiper)modernidade do eterno presente), poderia ser empregado em práticas que demandem alguma ginástica intelectual;  ler, por exemplo.
Libânio, no livro aqui citado, pergunta-nos sobre quanto tempo dedicamos à televisão ou à internet, e também sobre nossos hábitos de leitura. Ele nos pergunta ainda sobre nosso interesse por conversas sobre temas culturais; pergunta-nos se estamos atentos a lançamentos de livros que despertem nosso interesse. Disso tudo depende o grau de nossa vocação intelectual.
Embora me agrade ficar na internet e aprecie certos programas de humor na televisão (Chaves está entre eles), a leitura é uma atividade que preenche maior parte de tempo em minha vida cotidiana. O exercício intelectual é, para mim, uma necessidade e, ao mesmo tempo, uma forma de eu experienciar um prazer perene e profundo.
Uma vida dedicada ao exercício intelectual não dispensa formas de atividade que visam a entreter; não impede que saiamos com os amigos, que gozemos das festas, das conversas também sobre temas triviais; mas esta vida confere aquele exercício um lugar de maior destaque e importância; a ele está associada a felicidade de homens que não se contentam apenas em viver na realidade, mas precisam entendê-la.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

"Poemas são voos graciosos da alma" (BAR)



Este que escreve

Este que escreve
Nem sempre bem compreendido
(in)compreendido às vezes
Esquece
Pondo-se a escrever sofregamente

Este que escreve
Quase sempre esquece
Os amores quebradiços
Mesmo em face do desalento
Amando mais permanece

Este que escreve
Deseja mais
E mais
Quer amar mesmo tão triste
Não esmorece


Este que escreve
Lê mais
De alma se entrega
Nas páginas em que versos
Sonhados
Jamais acordados
Padecem
De amor.

(BAR)

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

"A educação exige os maiores cuidados, porque influi sobre toda a vida". (Sêneca)


                                            Educação em foco
                           Considerações sobre ser professor

Costumo dizer que sou um apaixonado do exercício do magistério; sou um professor comprometido com uma Educação libertária. E sorri-me a crença em que, talvez, tenha eu nascido para a prática pedagógica. Se é verdade que certas aptidões e talentos possam já estar previstos em nossa constituição genética, é muito provável que a minha aptidão para o magistério estivesse em mim latente. É o que sinto, sinceramente, e o confesso aqui.
O que me estimula a escrever este texto é mais do que a necessidade de dar um testemunho de minha paixão pelo magistério, é também a vontade de trazer à consciência de meus leitores a inegável importância da Educação na construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Sou romântico, sim, também neste domínio. Claro é, porém, que evito deslumbrar-me com idealizações, com utopias. E experimento frustrações, frequentemente. Não escapamos a elas, como professores, sempre que nos comprometemos a ir além; sempre que não nos conformamos às condições educacionais muito pouco favoráveis a um ensino crítico e libertário. Só não se frustram aqueles que nada desejam, que nada pretendem, além de receber, ao final do mês, seu ganha-pão.
A Educação é lugar de conflitos; é o espaço onde as desigualdades sociais, as diferenças de classe, as ideologias, as crenças e visões de mundo diversas repercutem. Mas é também o espaço onde tudo isso deve ser trabalhado; digo, discutido e questionado. A Educação é (ou deve ser), numa sociedade democrática, um espaço de resistência. Formar para a resistência, desenvolver a consciência crítica, promover a reflexão, o questionamento – são todas atividades que competem aos profissionais da Educação.
A que resistência me refiro? Resistência ao status quo, resistência ao senso-comum, aos lugares-comuns, às ideologias prestigiosas e que, supostamente, prescrevem “verdades”, aos preconceitos de toda sorte (inclusive ao preconceito linguístico, completamente ignorado, quer pelos membros das classes dominadas, quer pelos membros das classes dominantes, quer também por grande parte de nossas autoridades políticas).
Enquanto me ocupava da leitura do livro Nada na língua é por Acaso – por uma pedagogia da variação linguística (2007), do renomado (socio)linguista Marcos Bagno – um livro que, por sinal, muito bem escrito e de fácil compreensão – chamou-me a atenção o seguinte trecho, que é a expressão de uma das etapas que, segundo o autor, configuram o trabalho de reeducação sociolinguística que cabe ao professor de português desenvolver na escola (e eu acrescentaria também na universidade):

“Conscientizar o alunado de que a língua é usada como elemento de promoção social e também de repressão e discriminação – comparar o preconceito linguístico com as outras formas de preconceito que vigoram na sociedade; desconstruir o preconceito linguístico com argumentos bem fundados e alertar alunos e alunas contra suas próprias práticas de discriminação por meio da linguagem”
(p. 84)
(grifo no original)

Em seus livros (que prezam sempre pela clareza e pela fundamentação teórica, sem deixarem de ser didáticos e acessíveis à leitura), Bagno insiste incansavelmente na necessidade de combate ao preconceito linguístico, ignorado em nossa sociedade. Ele existe! Mas passa ao largo dos debates sobre temas sociais e políticos na mídia e escapa à consciência da grande maioria dos indivíduos de nossa sociedade. É claro que isso não é um fato específico da sociedade brasileira; o preconceito em relação aos usos da língua é comum  senão a todas, certamente à maioria das sociedades civilizadas.
E como esse preconceito se manifesta? Se manifesta nas ocasiões em que discriminamos a fala dos outros, a censuramos, a ridicularizamos, a rotulamos de “errada”, de “estropiada”, etc.. E mais – e isso sequer é percebido: a discriminação do modo de falar do outro é também discriminação do próprio indivíduo. Ora, quando usamos a língua trazemos à tona também nossa origem sócio-cultural, ou seja, à classe social a que pertencemos, nosso grau de escolarização e de participação na cultura letrada. O que falamos revela muito sobre de onde viemos, onde fomos educados, sobre nossos valores, nossa identidade; em suma, sobre quem somos. Disso se segue que, ao censurar uma forma como probrema (que, aliás, é muito estigmatizada; talvez, o leitor tenha-se rido ao lê-la) produzida por uma empregada doméstica, estamos demarcando-lhe as fronteiras sócio-culturais que dela nos separam. Estamos dizendo, tacitamente: “vejo logo que você vem de uma classe social menos favorecida à qual eu não pertenço (e rejeito)”. Os usos da língua, é preciso dizer, revelam a estratificação social. Numa sociedade como a brasileira, fortemente estratificada, usar a língua é, muitas vezes, uma forma de reforçar essa estratificação social. E fazemos isso frequentemente, sem que, muitas vezes, percebamos.
Não vou, contudo, me alongar neste assunto. Volto ao que me interessa propriamente aqui: a Educação. Evidentemente, falar em Educação é falar de um espaço de múltiplos discursos, portanto, de um espaço onde as práticas institucionais (e não poderia ser diferente) são práticas de linguagem. Discursos são arenas de conflitos; é o lugar privilegiado da ideologia. São práticas sociais ou modos de ação social e formas de representação; nesse tocante, devemos entendê-los tanto como espaços sociointeracionais moldados pelas estruturais sociais, quanto espaços constitutivos dessas estruturas. Assim também o discurso serve para a reprodução e  para a mudança dessas estruturas.
A Educação não é imune aos jogos de poder fundamentados nos discursos e por eles viabilizados ; ela não está salva das ideologias dominantes, das desigualdades de classe, realidades estas que repercutem em seus espaços institucionais (veja-se a escola). E o professor, como agente social, pedagógico e político, precisa atuar no sentido de mediar a relação entre as diferentes formas de representação social e de conhecimento. Ele não escapa ao senso-comum, evidentemente; mas não pode limitar-se a reproduzi-lo, deve ultrapassá-lo, deve estimular seus alunos a questioná-lo. Daí sempre a necessidade do debate, da leitura reflexiva, orientada, mas também das releituras (que não consistem em ler de novo, mais em ler sob outras perspectivas, à luz de novos conhecimentos alcançados). Questionar as leituras institucionalizadas, consagradas por uma tradição intelectual elitizada; afinal, os textos ( incluindo as obras literárias) são abertos a muitas interpretações (não a todas, certamente, mas a muitas) – constitui tarefa de todo professor (não só do de português e Literatura).
Uma Educação para a resistência começa num trabalho orientado pelo princípio de que a linguagem é um instrumento não só de expressão, mas também de reprodução e consolidação do poder. Não obstante, é também um espaço em que os poderes podem e devem ser questionados.
Não só fala quem manda; mas também fala quem ousa resistir e questionar! E você, ousa falar?


quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

"Um debate é uma troca de conhecimentos. Uma discussão é uma troca de ignorâncias". (Robert Quillen)

                     




                                               Incomodações
                              Para a necessidade de um debate equilibrado
                                                      entre religiosos e ateus  
                                                      

Perdoem-me se os primeiros enunciados deste texto destilarão doses ácidas de altivez; se com eles pretendo eu olhar de meu mirante espiritual as rasas pegadas deixadas pelo espírito de pessoas que trafegam virtualmente nas redes de relacionamentos on-line, como Orkut e Twitter, e que são incapazes de sustentar um debate circunscrito às exigências da razão, desferindo mutuamente uma série de acusações, ofensas e despautérios. Perdoem-me, pois que aqueles que me acompanham há muito e me conhecem sabem que não sou presunçoso. E, por mais desinteressantes sejam, para mim, muitas das comunidades nos espaços de relacionamentos virtuais, participo de algumas delas (decerto, das que me atraem pela temática que propõem). No entanto, apesar de parecerem-me, a princípio, interessantes, não deixam de me frustrar pela quantidade de postagens repletas de lugares-comuns, visões rasas e pouco fundamentadas e, principalmente, repletas de ataques pessoais.      
Em outro texto, tratei da falta de reconhecimento de uma ética discursiva, que deve reger debates que se propõem ao tratamento de questões de alguma relevância social, política e cultural. Alguns participantes, simplesmente, ignoram-na. Receio que esteja eu sendo demasiado acurado no modo como desenvolvo aqui meus pensamentos; dou passos lentos como quem deseja atacar de surpresa. Busco certa discrição verbal na consideração dessa empobrecida realidade intelectual dos ciberespaços. Uma amiga querida minha, contudo, abandonou finezas, ao dizer-me, com razão, que a maioria dos que se envolvem naqueles debates são muito ignorantes. Talvez, nem sejam tanto, mas são, em alguma medida, “despreocupados”.
Tenho, pois, participado (na verdade, voltei a participar) de comunidades ateístas no Orkut e no Facebook. Neste, as comunidades me agradam mais. Não percebi, entre os participantes, ataques pessoais, ainda que, vez por outra, se topem mais comentários de indignação ou de defesa da causa ateísta do que comentários que abram caminhos para alguma reflexão válida. Sucede diferente nas comunidades ateístas das quais participo  no orkut (pelo menos a minha foto está entre as dos participantes, já que, a rigor, dou pouca contribuição). Nelas, observa-se um festival de acusações (especialmente, na comunidade Debates de Religião x Ateísmo, cuja denominação já nos permite entrever as condições favoráveis ao teor relativamente agressivo dos discursos). Excogitei de apresentar alguns trechos aqui, mas conclui que me demandaria muito tempo. Fica o convite para quem quiser atestar por si mesmo.
É bom ponderar que nem todos os comentários têm aquele teor; alguns incluem alusões filosóficas, trazem à cena algumas sombras de perspectivas teóricas interessantes. Mas outros tantos passam ao largo do tema proposto; outros, ainda, chegam a tangenciá-lo, mas tão logo dele se afastam. Veja-se um exemplo disso:

 A diz: ou guris de 14 anos, que estão começando a carreira de ateus de modinha.

B diz: ateu de modinha,senhora,saiba que vivo numa comunidade catolica muito conservadora,e que sofro muito preconceito.Seguir uma modinha não seria sensato na minha posição.

O tema do fórum é expresso com a denominação criativa “Religião=ignorância?.  Mas notem que A foge ao tema, ao sugerir que o ateísmo é uma moda crescente na sociedade pós-moderna. E B imediatamente replica, se defendendo. Parece que, agora, estamos diante de um outro tema “ateísmo é modismo?”. Não raro, dentro do macro-debate, estimulado pelo tópico principal, há outros debates que se particularizam em torno de temas com os quais se comprometem dois ou mais enunciadores. Em geral, observa-se não haver uma continuidade de raciocínios, talvez porque os participantes não se dêem ao trabalho de ler as contribuições uns dos outros, a menos que tenham interesse em completá-las ou refutá-las.
Note-se abaixo um claro exemplo de agressão verbal, que não serve senão para infertilizar qualquer debate:


A diz: mesmo teístas terem feito mais pela ciencia,apenas os ateus compreendem a existencia claramente."
Ta explicado. Que merda cara, no meu tempo, nós só falavamos sobre "ateismo", na universidade e mesmo assim, eram discussões tratando de filosofia. Não tinha nenhum poser idiota metido a etendido de ciência, pagando de "sagaz" no círculo... só marxistas... (Hahaha).


B: vi que voce é o que chamamos de "porca capitalista" (quem critica o marxismo por influencia do capitalismo selvagem)
poser idiota é voce que vem aqui só pra me xingar


As partes em negrito foram por mim grifadas com o objetivo, evidentemente, de salientar a incapacidade de os participantes levarem adiante um debate equilibrado e apenas alimentado por argumentos válidos, ou seja, orientado para a manifestação de posicionamentos claros e coerentes e não impregnados de sentimento agressivo. Salvo este caso particular, em que um dos enunciadores é uma jovem adolescente, não me surpreenderia se, em casos análogos, os enunciadores, equiparando-se em gênero e idade, pudessem, estando face-a-face, desferir, um no outro, pontapés e socos. Vale lembrar a lição de Freud sobre a grande dose de agressividade que carrega a natureza humana. E, quando a causa está impregnada de um sentido visceral, como, por exemplo, a de religiosos que se esforçam por defender suas crenças e a de ateus não menos dedicados a defender seus argumentos contrários, dá para se ter uma noção da suscetibilidade humana à agressão.
Tenho insistindo em dizer que religião se discute sim e que o desejável, numa sociedade que se acredita democrática, é favorecer oportunidades de discussão séria neste terreno. Não obstante, não posso aceitar o fato de encontrarmos aqui e ali uma forte disposição para ataques pessoais de ambas as partes – teístas e ateus. Os partidários dos dois grupos tendem a se comportar linguisticamente de modo agressivo, desferindo mutuamente ofensas e acusações.
Sou tentado a sugerir que só a ignorância de ambas as partes pode explicar isso. É possível que haja muitos que buscam em livros conhecimentos suficientes para validar seus argumentos; mas outros tantos ou não são leitores assíduos ou verdadeiramente interessados em aperfeiçoar sua argumentação, ou, se lêem, o fazem ignorando as vantagens dessa atividade, ou seja, lêem, mas se limitam a vomitar conhecimentos fragmentados ou cristalizados e a encarar o debate como uma arena em que pessoas devem duelar e afirmar-se continuamente como portadoras de verdades incontestes. 

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

"O debate acelera a inteligência" (Patrick Schneider)


                              Debatendo sem se debater

Um novo ano começou e eu ignorei as promessas e os planos. Basta-me a vida e a possibilidade de levá-la adiante. Já, há algum tempo, só me comprometo comigo mesmo, com o meu modo de me dar à vida. Esperança é palavra caduca em meu vocabulário. Esperar demais de algumas pessoas leva-nos, muitas vezes, à frustração. O conselho de Epíteto parece-me válido: a ordem das coisas, frequentemente, não pode ser mudada; mas podemos mudar nossas opiniões ou interpretações. Diante de uma circunstância adversa ou perturbadora, devemos ponderar, perguntando-nos se temos ou não influência sobre ela. São nossas visões sobre as coisas que nos inquietam ou nos perturbam. A serenidade, a mansidão e a busca por nos fazer incólumes a sofrimentos evitáveis são a meta do estoicismo. A felicidade depende do modo como nos posicionamos diante das adversidades. Segundo Epíteto, devemos buscar, nessas ocasiões, manifestar calma, serenidade e ser determinados.
A este espírito de prudência estóico quero acrescentar o espírito de ousadia nietzschiano. Á página 46, em Ecce Homo, escreve o filósofo alemão:

“A minha prática de guerra pode ser resumida em quatro proposições. Primeira: eu ataco somente as coisas vitoriosas; ou espero até tal se tornarem. Segunda: ataco somente as coisas para as quais não poderia encontrar companheiros onde estou só, onde sou o único a comprometer-me. Nunca articulei um passo que não me comprometesse; isto é (segundo o meu modo de ver), em que não me fosse dado agir corretamente. Terceira: não ataco nunca as pessoas; sirvo-me delas como duma possante lente de aumento com que se pudesse tornar visível algum mal comum mas oculto, difícil de ser pesquisado.(...) Quarta: eu ataco somente as coisas das quais se exclui qualquer antipatia pessoal, para as quais me falta todo e qualquer sedimento de esperanças tristes. Pelo contrário, atacar é, para mim, um sinal de benevolência, sendo às vezes até de reconhecimento. Para mim é uma honra proporcionar algo; uma distinção, quando uno o meu nome ao de uma coisa ou de uma pessoa: pró ou contra a mesma, tem o mesmo valor para mim. Se guerreio o Cristianismo, tenho pleno direito a isso, porque desse lado nunca me infligiram desgraças ou obstáculos; os cristãos mais convictos sempre me foram sobremodo benévolos. Eu mesmo, inimigo do Cristianismo de rigueur, estou bem longe de ter ódio aos seus prosélitos, sendo, como é, uma fatalidade de milhares de anos”.

O compromisso com a crítica à tradição e a ruptura com ela fazia parte da agenda nietzschiana. E, quase sempre, sinto-me impregnado desse espírito revolucionário, ainda que consciente de minha pequenez e impotência para modificar um dado estado-de-coisas estabelecido por um poder imediato ou secular. Não dou asas ao deslumbramento nem animo ideias utópicas; e, por vezes, fico de permeio com a renúncia e a persistência. Tendo a esta última como o filho tende ao colho da mãe e a ave tende ao ninho. Os meus pensamentos me acolhem, ainda que eles se enfraqueçam diante dos valores mais rígidos e das ideologias mais vigorosas e penetrantes, que ainda vicejam.
Se todas as produções de meu espírito, todos os escritos que trouxe a lume pudessem ser significativamente sumariados numa só palavra, eu escolheria a palavra engajamento. Engajar-se é comprometer-se; é participar ativamente de uma causa, é fazer ecoar nossa voz num dado domínio da dialética social (que inclui, evidentemente, esferas de saber e poder).
A internet, com suas redes de relacionamentos virtuais, decerto, favoreceu para que indivíduos interessados em engajar-se possam externar suas posições sobre temas de relevância social. Mas não estou admitindo que os espaços on-line destinados a debates sejam todos vantajosos e interessantes. Neles, se acha toda sorte de gente; os que mais me desagradam são os pseudointelectuais arrogantes, que ignoram a ética argumentativa, que deve prevalecer nas esferas de debates que se pretendam sérios. Dessa ignorância se segue uma sorte de sarcasmos, ofensas e baixezas linguísticas. A postura de Nietzsche, que não atacava, como nos confessa, as pessoas, mas tão só suas obras, não se faz sentir entre aqueles intelectualóides.
Não alardearei o mérito da humildade, mas desfraldarei a bandeira da decência intelectual. O desenvolvimento da intelectualidade não é possível sem a solidariedade ou mutualidade de intelectos. O intelectual é, para além do acúmulo de titulações, antes de tudo um agricultor do intelecto, alguém que aprecia demorar-se no cultivo de seus pensamentos e se deter a longas pesquisas. Ler é para ele atividade indispensável. Sucede, contudo, que, naquelas ocasiões, alguns dos participantes são incapazes de sustentar um debate sério e equilibrado; são carecidos de rigor racional e tornam-se, com frequência, suscetíveis às emoções mais pífias, ainda que ostentem em seus atos linguísticos certo ar de onipotência.
Por vezes, animo-me a dar-lhes a devida resposta, sem que ela se embarace em despeito ou jactância. E nunca perco de conta a quase certeza de que eu estou lindando com pessoas que se supõem capazes de participar de debates intelectualmente relevantes, mas que são estúpidas ou ignorantes sobre a necessidade de manter uma conduta em consonância com o simples bom senso: o saber se produz em conjunto. Filósofos e cientistas, por exemplo, não se julgam donos da verdade ou do saber; ao contrário, reconhecem continuamente sua ignorância, mas não desistem de buscar a verdade e de produzir conhecimento.
Não espero que o leitor depreenda destas palavras sentimento de indignação pessoal. Sou indiferente àqueles que se comportam presunçosamente, quando se julgam capazes de emitir opiniões peremptórias. Mas não sou indiferente à insistência em que qualquer debate que demande rigor racional, orientação argumentativa sólida deve ser realizado na base do pressuposto da ignorância; deve ser desenvolvido por indivíduos dispostos a aprender uns com os outros. Apenas os estúpidos tendem a rejeitar esse princípio inatacável.