O que é Deus?
Uma análise crítica da teologia
cristã
Dedicando
muitas horas do cotidiano ao convívio com os livros, procuro trafegar
espiritualmente por vastas avenidas de saberes conflitantes. Procuro tomar
cuidado para não aderir tenazmente a uma única perspectiva; esforço-me por
conhecer suas concorrentes. Em poucas palavras, preocupo-me em não
me posicionar dogmaticamente. Por isso, estou ciente das críticas ventiladas
por personalidades que, não sendo necessariamente religiosos ou crentes em
Deus, martelam na tendência de o movimento do neoateísmo assumir uma postura
tão dogmática quanto as atitudes que visa a atacar. Também não me escapa à
consciência o fato de esse novo ateísmo, restituindo a confiabilidade nas
promessas das Luzes, tomar a ciência como um modelo de explicação do mundo
suficientemente capaz de satisfazer nossas inquietações mais profundas. Não
sejamos ingênuos. A ciência está longe de oferecer uma teoria total. Não
importa, para a grande maioria das pessoas, o que digam os cientistas sobre
como surgiu o Universo, de onde viemos e para onde não vamos. A questão do
significado transcendente de nossa existência ainda permanecerá e,
provavelmente, nunca será extirpada. A autotranscendência, ou seja, a
capacidade de ir além da herança biológica ou de superar-se a si mesmo é uma
qualidade especificamente humana, já largamente reconhecida.
“Uma das constantes do comportamento humano é a de superar e transcender
sistematicamente o comportamento dos animais: o homem sobrepuja os animais no
pensamento, na liberdade, no trabalho, na palavra, na diversão, na técnica e em
tantas outras coisas”.
(Mondim, B. Introdução à filosofia, 2009, p. 74)
Questões como “quem eu sou?”, “como foi que o
universo/ mundo passou a existir?”, “o que acontecerá quando eu morrer?”
tocam-nos no íntimo, onde a ciência não consegue penetrar. Atento a essa
exacerbação dos que apelam para a ciência a fim de recusar as crenças
religiosas, estou à procura do livro “Por
que a ciência não consegue enterrar Deus?”, do matemático britânico e
cristão John C. Lennox, que participou de um debate com Richard Dawkins sobre o
livro Deus, um delírio (v. http://www.youtube.com/watch?v=-LNwek-UmlY).
Neste momento, pensamentos que, para muitos
poderiam parecer angustiantes, visitam-me a mente. Deveria eu acolher o
conselho, que se depreende da seguinte passagem, em A negação da morte (2012):
“Eu acredito
que têm razão, absoluta razão, aqueles que acham que uma plena compreensão da
condição humana levaria à loucura. De vez em quando, nascem crianças com
guelras e caudas, mas isso não é divulgado – ao contrário, é abafado ao máximo.
Quem é que quer enfrentar plenamente com coragem a criatura que nós somos, que tem de usar
suas garras e luta pelo ar que respira num universo além do seu entendimento”.
(p. 49)
Tais pensamentos sugerem-me a possibilidade de,
após a morte, não haver outra vida. Talvez, o universo nunca tenha sido criado,
porque eterno. Talvez, a vida, tal como a conhecemos, seja um evento
extraordinário e singular. Talvez, nunca se repita, quando nosso planeta for
dizimado por qualquer evento cataclísmico. Da morte o que sabemos é que o morto
não revive. A pessoa, o indivíduo não existe mais; na morte, passamos ao estado
inorgânico. Só conhecemos a morte sob o aspecto da aparência. O que vemos num
caixão é um cadáver, um corpo inanimado, um corpo destinado a apodrecer e a ser
consumido por vermes. A morte reduz toda a nossa vida a um esqueleto estirado
num caixão – o complexo de ossos que será, posteriormente, exumado. De um embrião a cinzas, eis os
estados a que a vida consciente pode ser reduzida.
Uma vez decididos a enfrentar essa verdade que
decorre de nossa consciência de seres destinados, desde o nascimento, à morte,
teremos de construir um propósito para a vida nela mesma e não para além dela.
Teremos de reconhecer que esse ‘eu’ singular que se representa em nossa
consciência (e que pode ser identificado com ela) como uma alma habitando um
corpo (embora a neurociência e a psicologia evolutiva o neguem), não é eterno;
ele morre no momento em que o cérebro deixa de funcionar. A morte do cérebro é
a morte do ‘eu’, desse ‘eu’ (auto)consciente, detentor de vontade e desejo,
movido por paixões e emoção. Este que diz ‘eu sou’ deixará de existir e não
voltará a existir, porque a vida é um fenômeno irrepetível ou não-renovável.
Eu não poderia afirmar categoricamente não haver
uma realidade além-túmulo. Na verdade, a perspectiva de nossa condição como
seres conscientes e mortais, como a que expus no parágrafo precedente, é uma
verdade enquanto estamos vivos. Evidentemente, a ciência não pode ir além da
constatação de que a morte significa o fim da vida. Um enunciado como “Há vida
após a morte” não pode ser avaliado em termos científicos, porque não é
falsificável. Devemos a Karl Popper esta compreensão epistemológica da natureza
de uma teoria científica. Pelo critério de falsificabilidade,
uma teoria é científica se for falsificável, ou seja, se for passível de ser
desmentida, ou se ainda não tiver sido provada como falsa. Assim, toda teoria
que recebe a qualificação de científica
tem de ser refutável; caso contrário, não poderá ser considerada de natureza
científica. Disso se segue que, da mesma forma que um enunciado como “Há vida
após a morte” não constitui uma hipótese científica, um enunciado como “Deus
existe” também não o é, porque cada qual encerra uma proposição não-falsificável.
E se a morte assemelhar-se ao despertar de um sonho?
E se esta vida não passar de um longo sonho, nem sempre agradável? Para
milhares de pessoas, certamente, um pesadelo. Se a realidade que tocamos,
vemos, escutamos – se o mundo tal como o percebemos e interpretamos - , não
passar de um simulacro, uma projeção distorcida ou ilusória de uma realidade
verdadeira e essencial? Ouço o eco de Platão em minha alma!
Tendo ponderado sobre a inconveniência de tentar
valer-se de um neocientificismo para rejeitar toda interpretação metafísica da
realidade, posso agora me ocupar do tema deste texto. Estou interessado em
avaliar como o Deus judaico-cristão é pensado no discurso teológico. Para
tanto, vou me basear no capítulo Deus
do livro Teologia – os fundamentos,
de McGrath (2004). Como ateu, nego a existência de divindades, incluindo entre
elas o Deus inventado por um povo que vivera num tempo remoto na região do
Mediterrâneo (Oriente Médio). Espero que, ao cabo de minha exposição, o leitor
se aperceba de que, na realidade, o que eu rejeito não é senão uma dada representação de Deus. Deus,
aliás como tudo o mais a que nos referimos pela linguagem, é um objeto de
discurso. Portanto, a representação de Deus é resultado de uma construção
discursiva. Nenhum discurso espelha o mundo tal como é; mas o reconstrói
segundo determinada perspectiva, segundo determinados valores e crenças de um
sujeito sócio-historicamente determinado. Classicamente, por representação entende-se o ato de
re-apresentar ao espírito alguma coisa. Trata-se de um registro simbólico
(ideia, imagem) de um objeto que existe fora de nós. No domínio discursivo
teológico, pode-se falar de representação de Deus, pois que se supõe a sua
existência fora de nós, ou melhor ainda, para além de nós. Entretanto, para um
descrente, talvez, o termo mais adequado fosse abstração. Abstrair é isolar, separar elementos que, na
experiência, se apresentam como indissociáveis. Para Aristóteles, a abstração é
o próprio ato de conhecer, pelo qual isolamos o que há de generalidade nas
coisas. Assim, quando falamos no “ser humano”, referimo-nos ao gênero humano,
ignorando que o gênero (ou espécie) humano é constituído de indivíduos
singulares e muito diferentes entre si. Há um sentido muito comum no qual
usamos a palavra abstração, que
parece adequado na consideração do problema Deus. Abstração pode designar uma
ideia demasiado pura, metafísica, desprovida de um referente no mundo. Para
evitar a visão realista e ingênua da relação entre linguagem e mundo, melhor
será dizer que os referentes só têm valor para a compreensão dos “jogos de
linguagem” como objetos de discurso,
que são construídos, modificados, expandidos, delimitados, etc., no discurso. Eles
constituem entidades resultantes de uma construção mental.
Meus objetivos são:
1o – Mostrar que as construções
imagéticas que a tradição teológica cristã faz de Deus têm raízes em uma dada
tradição religiosa;
2o – Patentear como algumas questões
teológicas não passam de pseudoquestões;
3o – Evidenciar que a necessidade de uma
teorização sobre Deus (teologia) serviu para o estabelecimento de uma Igreja
forte e de uma fé que pudesse beneficiar-se da razão, tornando-a, contudo,
ancilar, e que isso favoreceu a consolidação de um sistema de conceitos e
crenças que serve (e vem servindo) à sustentação de relações de dominação.
Claro me parece que o teólogo não se pretende um
cientista. No entanto, seus estudos são desenvolvidos na base do pressuposto da
existência de Deus. Creio que assim o é para a maioria dos teólogos. Há,
portanto, um objeto teórico delimitável, cuja existência é assumida por
princípio.
O autor inicia o capítulo buscando identificar o
Deus cuja representação tratará de explorar. Esse Deus é o que se revelou aos
profetas do Antigo Testamento. É o Deus de Israel, o Deus que estabeleceu uma
aliança com o seu povo – os hebreus. É o Deus de Abraão, de Moisés, de Isaac e
de Jacó. É também o Deus em que creem os cristãos. É o Deus que se manifestou
na pessoa de Jesus Cristo. A novidade cristã consiste em acreditar que esse
Deus se revelou de maneira definitiva em Cristo, de modo que falar em Cristo é
falar em Deus.
Observa ainda o autor que abunda o uso de
analogias, em teologia. Na Bíblia, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento,
Deus é representado como pastor, rei, rocha, etc. No Antigo Testamento, a
metáfora de pastor de que se reveste a noção de Deus se acha em Isaías 40, 11 e
em Ezequiel 34. 12, por exemplo. No Novo Testamento, encontraremo-la em João
10, 11, onde se acha uma referência a Jesus como “o bom pastor” (“Eu sou o bom
Pastor; o bom Pastor dá sua vida pelas ovelhas”). Também no primeiro versículo
do salmo 23 – “O Senhor é o meu pastor” – vemos a representação de Deus como
pastor.
Para os judeus, considerar a Deus como pastor
significa crer que Deus está totalmente comprometido com Israel e com a Igreja.
Os primeiros cristãos, na medida em que pregavam a crença num Deus que se
universalizava; portanto em um Deus que, se revelando em Cristo, sacrifica-se
para a salvação da humanidade, entenderam a metáfora do pastor como uma forma
de representar aquele que conduz o rebanho, zelando por ele de tal sorte, que
arrisca a própria vida para protegê-lo. O bom pastor foi identificado com a
figura de Cristo.
Interessa-me chamar a atenção para o fato de que,
nessa imagem de Deus ou Cristo como pastor, há um mecanismo discursivo na base
do qual se fundou uma moral do rebanho. Trata-se de uma estratégia discursiva,
que, incansavelmente reiterada nas prédicas religiosas, molda a consciência de
dependência, tão comum à maioria dos religiosos, mormente daqueles provenientes
das classes populares, aos quais, em nosso país, é negado o benefício do
letramento e da escolarização plena e satisfatória. Convém atentar para o
seguinte trecho:
“(...) pensar em Deus como pastor significa afirmar que Deus nos guia. O pastor sabe onde se
encontram o alimento e a agia, e guia o rebanho até onde esses bens se
encontram. Comparar Deus com um pastor é mostrar a constante presença de Deus
em Israel e na Igreja: é afirmar o desvelo de Deus para nos proteger dos
perigos que a vida nos traz e para nos conduzir a um lugar de fartura e
segurança. Deus “guarda seu rebanho como um pastor, toma os cordeirinhos em
seus braços e os conduz no colo bem junto do coração, e conduz com carinho as
ovelhas que têm crias” (Is 40, 11)”.
(p. 54)
(grifo meu)
Esse trecho nos suscita vários questionamentos. O
primeiro deles diz respeito à crença em que Deus está verdadeiramente
interessado na proteção de cada um de nós, que somos suas “ovelhas”. As
ocorrências do mundo confinam essa crença ao imaginário da criança que reside
na consciência dos que delegam às autoridades da fé o poder de interpretar o
mundo por eles. Como bem nos ensina Marcelo Da Luz, a esse respeito:
“(...) O sentimento de radical dependência de outrem se expressa em
variadas formas. Nas tradições monoteístas, por exemplo, todos os crentes se
reportam à ideia do ser onipotente, onisciente e onipresente, origem e
princípio de todas as coisas, cuja vontade é suprema em todo o Universo: “Deus”
(embora essa ideia receba não apenas diferentes nomes, mas diferentes explicações
dentro do judaísmo, cristianismo e islamismo; definitivamente, essas tradições
não podem estar falando do mesmo ser supremo, embora os assessores teológicos
do diálogo inter-religioso insistam no contrário)”.
(p. 77)
(Onde a religião termina: 2011)
Na mesma obra, o autor explicará a obediência aos
“funcionários do sagrado” em termos de “terceirização
das escolhas existenciais” (Da Luz, 2011). Leiamos com atenção este passo:
“Na língua portuguesa, o verbo terceirizar indica, no campo
administrativo, a ação efetuada pelas empresas de transferir algumas atividades
e serviços para outras organizações, a fim de diminuir custos, economizar
recursos, desburocratizar estruturas e atingir mais rápida e eficazmente as
metas estabelecidas. Na presente abordagem, o mesmo verbo vem utilizado
metaforicamente, a fim de indicar uma
das atitudes mais características da vivência religiosa, qual seja, a assunção
da obediência aos funcionários do sagrado – sacerdotes, pastores, sheiks,
rabinos, médiuns e gurus de todos os tipos. O fiel religioso transfere a essas figuras de autoridade a
responsabilidade de interpretar a própria vida, à luz de regras estabelecidas
pela suprema instância de terceirização: a ideia de “Deus” (ou deuses), em
que se encontram, supostamente, todas as respostas e desígnios do Universo”.
(p. 71)
(grifo meu)
A presente passagem merece alguns comentários. A
fim de ilustrar a validade da compreensão do autor acerca de como os religiosos
buscam em terceiros formas de interpretar suas próprias vivências, basta que
pensemos na pessoa que agradece ao pastor ou sacerdote, a quem ela atribui o
papel de ministro ou intermediário de Deus (no caso do sacerdote, também a ele
associa-se a qualidade de santidade), o fato de ter conseguido um emprego, ou,
no caso de um jovem adolescente, de ter conseguido passar no vestibular. Num e
noutro caso, a conquista foi uma graça de Deus, e nada ou pouco tem a ver com o
esforço pessoal, ou com as condições político-econômicas favoráveis num dado
período de crescimento de seu país.
Sempre achei muito suspeita a metáfora do “rebanho
de ovelhas”. Vale notar que a figura do pastor de ovelhas era muito comum na
cultura da palestina. Segundo MacGrath, o pastor, porque tinha de dedicar muito
tempo ao cuidado com suas ovelhas, era um indivíduo muito marginalizado, não
podendo participar das atividades sociais.
À luz da desconstrução da ideologia do rebanho de ovelhas produzida nas
condições sócio-culturais e políticas da palestina do século I d.C., não parece
difícil compreender o verdadeiro significado da ideia de que somos “ovelhas que
teimam em desgarrar-se”. As ovelhas desgarradas são as ovelhas insubmissas,
insubordinadas (hereges). São justamente aquelas que se rebelaram contra as
condições de submissão em que viviam. Ainda no livro de MacGrath, podemos ler,
nesse tocante, o seguinte:
“(...) a imagem de Deus como
pastor fala-nos de nós mesmos, do ponto
de vista cristão. Somos o rebanho
das pastagens de Deus (Sl 79, 13; 95, 7; 100, 3). Somos ovelhas sem capacidade de cuidar de nós mesmas, continuamente nos
desgarrando. Não somos auto-suficientes, precisamos aprender a depender de Deus como as ovelhas dependem inteiramente do pastor para a sua
existência. Podemos ter vontade de pensar que podemos cuidar de nós mesmos, mas
o modo cristão de compreender a natureza
humana exige que reconheçamos nossa total
dependência de Deus. Assim, a condição de pecado inerente ao ser humano é
comparada muitas vezes com o afastamento de Deus, como o desgarramento de uma ovelha: “Como ovelhas, estávamos todos
perdidos, cada qual ia em frente por seu caminho” (Is 53, 6; cf. Sl 119, 176;
1Pd 2, 25).”
(p. 54)
(grifo meu)
Esse trecho abriga vários elementos importantes na formação
de uma consciência religiosa caracteristicamente dependente e submissa, por
meio da doutrinação. Há pouco, falava do papel do discurso na construção de
modelos de mundo, ou seja, o homem compreende o mundo e atua sobre ele através
de suas práticas discursivas, que constituem uma etapa entre outras práticas
sociais. Todo discurso é uma prática social dentre outras. O discurso não
espelha a realidade, mas a reconstrói, fabrica um modelo de realidade, segundo
a perspectiva de sujeitos situados historicamente, determinados, em alguma
medida, ideologicamente. Tendo em
conta isso, é extremamente importante que o leitor atente para as construções simbólicas
de mundo nesse excerto. Destaquei algumas palavras e expressões, a fim de que a
análise que farei esteja bem situada ou ancorada no texto.
Em primeiro lugar, veja-se como a natureza humana é
representada. Note-se que salientei a expressão “do ponto de vista cristão”
(que, em Linguística Textual, é um operador discursivo de domínio, ou seja, um recurso linguístico que sinaliza a perspectiva ideológica ou teórica em que um enunciado
deve ser compreendido). No caso em tela, o operador discursivo sinaliza a perspectiva de uma doutrina específica e
de toda uma comunidade que adere a ela. Então, segundo essa doutrina, tendo
assumido Deus como pastor, assume-se toda a humanidade como seu rebanho. O
rebanho deve obediência ao pastor. Chamo atenção, de passagem, para o fato de a
ideia de ‘livre-arbítrio’ tornar-se, nesse modo de entender a relação entre
Deus e o ser humano, dificultosamente sustentável. Um estudo aprofundado dos
discursos teológicos, criteriosamente orientados na perspectiva de uma Análise
do Discurso Crítica, nos permitiria trazer à tona uma série de inconsistências.
Convém, no entanto, retomar a análise.
Uma prova de que a doutrina cristã é orientada para
tornar seus adeptos indivíduos dependentes, desprovidos de autonomia crítico-intelectual
é a passagem “precisamos aprender a depender de Deus”. Trata-se de um processo
de ensino-aprendizagem (adestramento) voltado para a produção de indivíduos submissos;
certamente contrário a qualquer concepção pedagógica moderna que se orienta
pelo objetivo de promover a emancipação do estudante. O que vemos nas práticas
religiosas, o que lemos em suas produções discursivas é um testemunho de ações
orientadas por uma pedagogia da submissão irrestrita. É necessário “depender
inteiramente de Deus”. O trecho a seguir, que recupero, a título de destaque,
abaixo, é bastante claro:
“Podemos ter vontade de
pensar que podemos cuidar de nós mesmos, mas o modo cristão de compreender a natureza humana exige que
reconheçamos nossa total dependência
de Deus”.
Toda religião oferece uma “teoria” da natureza
humana. O cristianismo também tem a sua forma de entender a natureza humana. Na
perspectiva cristã, a natureza humana é inteiramente dependente de Deus e
pecadora, porque tende sempre a se afastar de Deus. A palavra desgarramento tem claramente um valor
negativo no texto. Aqui, aproveito para chamar a atenção para o fato de que
nenhuma palavra (nenhum signo) tem sentido fora do discurso. Sua significação é
construída no interior do discurso, o que significa dizer que depende das
circunstâncias de discurso, as quais compreendem os saberes supostos sobre os
pontos de vistas dos atores sociais, bem como os saberes supostos acerca do
mundo, implicados nas práticas sociais.
Claro está que num discurso em que a natureza
humana é destituída de autonomia, é vinculada submissamente a um Outro
transcendente, a palavra desgarramento só
pode significar “insubordinação”, “rebelião”, “desobediência”; portanto, um ato
depreciável, passível de correção. Raciocínios análogos podemos desenvolver a
respeito da ocorrência das palavras “pastor” e “rebanho” (entre tantas outras),
que significarão diferentemente, caso ocorram em outros domínios discursivos,
por exemplo, na fala de um fazendeiro ou na de um antropólogo. Pensemos no uso
da palavra “política”, num enunciado como “Isso tudo é política”,
proferido por alguém que assiste pela televisão um político prometendo grandes
realizações. Nesse caso, política significa “uma prática cínica”, uma prática que
visa a enganar os segmentos populares. Uma discussão que pretendesse lançar
luzes sobre essa questão demandaria um novo texto. Escuso-me de fazê-la aqui.
Já se desponta aqui os prelúdios de uma “moral de
rebanho”. Viver moralmente é viver buscando a Deus, buscando seguir os
ensinamentos da Igreja, que é depositária da Verdade Revelada, que constitui,
senão, um ato de fé. O imoral, o pecador é aquele que se desvia do rebanho de
Deus. Essa compreensão é confirmada na seguinte passagem de MacGrath:
“Em todas as essas analogias
observamos a mesma ênfase da fé cristã: nós estamos desgarrados e Deus vem ao
mundo em Jesus Cristo para nos reencontrar e trazer de volta para casa”.
(p. 54)
Outra metáfora associada a Deus é a do Pai. É
interessante ver que o Deus judaico-cristão é um deus antropomórfico, porque
representado com características humanas (amoroso, irado, justo, bondoso,
ciumento, tirano, etc.). O autor justifica o largo uso das analogias com tipos
humanos, no tratamento, ou melhor, na tentativa de definir a Deus, com o
argumento segundo o qual “precisamos formar uma ideia de Deus como que em uma
imagem de tamanho reduzido, apropriada à nossa capacidade humana” (p. 56), que
se entende seriamente deficiente ou limitada. Recorre-se a analogias com elementos
do universo humano, porque, segundo o autor, não há como termos acesso direto a
Deus. É interessante pensar na relação entre a crença na inacessabilidade
cognitiva a Deus, ou seja, a crença de que Deus é incognoscível, e a
necessidade de manutenção da obediência dos religiosos, ou melhor, da formação
de uma consciência de submissão. Se fosse dado aos religiosos saber que o ter
acesso a uma compreensão de Deus depende apenas e exclusivamente de que eles
reconheçam que Deus nada mais é do que produto da mente humana, que Deus é uma
representação construída no longo curso de uma tradição milenar, eles, então,
saberiam que o famigerado recurso a ideia de “inacessabilidade pela razão
humana a Deus” é um estratagema de que se valeram as autoridades religiosas para
mantê-los em estado de submissão. Uma vez invertida a relação que se depreende
no enunciado, muito repetidamente martelado na consciência dos crentes - “o
homem foi criado à imagem e semelhança de Deus”-, compreende-se melhor que a
inacessabilidade a Deus é, na verdade, decorrente do fato de os crentes leigos
serem privados de uma compreensão clara das estratégias discursivas na base das
quais essa inacessabilidade acaba por ser representada como impossibilidade
humana de uma compreensão direta de Deus. A razão, contudo, pode compreender a
Deus, no momento em que o desnudamos de sua vestimenta metafísica, desmanchamos
o enredamento conceitual a que ele está preso, para, assim, vê-lo exposto como
uma ideia pronta para ser analisada no seio do discurso, no interior do qual ela
se conecta a outras ideias. Se reescrevêssemos o referido enunciado, de sorte a
inverter a relação – “Deus foi criado à imagem e semelhança do homem” – a
inacessabildade a Deus não é senão a impossibilidade de os crentes “contemplarem”
o que está por detrás da construção imaginária de Deus. Tendo situado Deus,
enquanto ideia ou conceito, no domínio da História, compreendido num dada
conjuntura cultural, ficará claro entender como é possível a construção de
discursos que visam a subordinar uma imensa parcela da humanidade a uma
autoridade transcendente, a um Outro, por intermédio de pessoas que reivindicam
para si o posto de porta-vozes de uma Verdade inquestionável.
MacGrath tratará, em outra seção da metáfora de
Deus como Pai, bem como da ideia de Deus pessoal e de Deus como todo-poderoso.
São temas que merecem uma apreciação cuidadosa, mas que será adiada para outra
ocasião.
Percebi, na leitura do capítulo, certa seriedade no
tratamento dos temas pelo autor. É claro que a teologia moderna também
compreende o estudo das religiões em geral (não só do cristianismo) e de suas
relações com os homens. Nesse sentido, trata-se de um domínio de conhecimento
interessante. Mas as discussões calorosas, que engendraram disputas acirradas
por poder nos primórdios da era cristã, a respeito da natureza de Jesus Cristo
- se era ele divino e humano, ou se era ele apenas divino, ou se apenas o
Cristo era divino, sendo Jesus um homem em que Cristo viveu por um tempo
(crença da maioria dos gnósticos à época), não parecem ter maior interesse para
nós modernos, já acostumados a ver o mundo a partir de uma ótica cientificista,
exceto pelo fato de revelar um aspecto da história das ideias, ou de revelar
como uma determinada classe dirigente (a dos Pais da Igreja nascente)
desenvolvia e se apropriava de uma ideologia poderosa, cuja propagação
resultaria, entre outras coisas, no arrebanhamento de grande parte da
humanidade para uniformizar-se em seu sistema de crenças e valores . A visão
vitoriosa (ortodoxa), nesse tocante, foi a dos autores proto-ortodoxos dos
séculos II e III, entre eles Justino, Irineu, Tertuliano e Hipólito. Todos
estavam de acordo em que Jesus era homem e divino ao mesmo tempo. Por isso,
hoje, teólogos assumirem que se deve falar em Jesus como Deus. Daí também a
adoração de Jesus como Deus pelos crentes. Deus se rebaixa à condição humana, “revela-se”
em Jesus e sacrifica-se, tal como o cordeiro oferecido em sacrifício nos
rituais judaicos, para a expiação dos pecados dos homens. Deus se sacrifica,
sacrificando Jesus. Este era o cordeiro sacrificado, a ovelha obediente e
conduzida à morte porque era essa a vontade de Deus. Jesus hesita, suplica a
Deus que o livre do tormento iminente. Mas era a vontade de Deus, de um Deus
homicida, que dispôs as condições necessárias para a crucificação do próprio
filho amado; e com um único propósito nobre: a salvação da humanidade pecadora.
Mata-se para salvar... uma lógica absurda! Deus deveria estar horrorizado com
seu crime e dolorosamente frustrado com a ineficácia de sua premeditação
repugnante. Há quem defenda que Jesus construiu o caminho de seu suicídio, não
sem a aprovação de Deus.
Antes de pôr termo a este texto, gostaria de me
estender um pouco mais sobre o papel fundamental que desempenha o discurso não
só na vida humana, mas, particularmente, na atividade de doutrinação religiosa.
Para tanto, é preciso considerar os seguintes pressupostos, na base dos quais
uma teoria do discurso crítica estabelece seu projeto:
1opp. O discurso é uma prática social,
um modo de ação social, entre outros. É um momento das práticas sociais;
2opp. O discurso, como realidade social,
é, ao mesmo tempo, moldado pelas estruturas sociais e constitutivo dessas
estruturas. Não convém pensar linguagem e sociedade em esferas separadas, uma
externa à outra; mas inter-relacionadas dialeticamente
3opp. Todo discurso é atravessado por
formações ideológicas, as quais compreendem um
complexo de práticas e representações, que não sendo nem individuais, nem
universais, estão ligadas às posições de classe em disputa. Assim, não
obstante a polissemia do termo ideologia, interessa entender que todo discurso
se constrói na base de uma ideologia, entendida como visão de mundo de um dado
grupo social situado historicamente. Nesse sentido, não só as classes
dirigentes produzem suas ideologias, mas também as classes populares, embora
apenas as ideologias das classes que detêm o poder socio-político e econômico
passem a ser as ideologias dominantes em uma determinada época.
Em Ideologia
(1997), de Terry Eagleton, o leitor encontrará uma discussão exaustiva sobre o
conceito de ideologia. Trata-se de um termo, cujo emprego deve ser
significativamente determinado, já que, dependendo do teórico que dele tenha se
ocupado, poderá ter um valor tanto positivo quanto negativo. No capítulo 1 de
seu trabalho, Eagleton nos oferece nada mais nada menos do que dezesseis
definições de ideologia. Entendida num sentido mais “neutro”, a reflexão sobre ideologia
demandará de quem a desenvolve a avaliação de quais discursos servem à
transformação de relações de dominação, à emancipação social e quais, sendo
ideológicos, servirão para a produção e reprodução dessas relações de
dominação. É o que encontramos nesta definição de Fairclough, em Discurso e Mudança social (2001):
“As ideologias são significações/ construções da realidade (o mundo
físico, as relações sociais, as identidades sociais) que são construídas em
várias dimensões das formas/ sentidos das práticas discursivas e que contribuem
para a produção, a reprodução ou a transformação das relações de dominação”.
(p.117)
Autores há que só entendem a ideologia no seu
aspecto negativo, ou seja, como fenômeno ilusório e enganador, que servem à
reprodução das relações de poder. As relações de poder se sustentam mediante
significados em torno dos quais se estabelece um acordo tácito, pois é assim
que se consolida a universalização de pontos de vistas particulares (o que se
chama hegemonia). É o que sucede com os discursos da tradição cristã, nas suas
variadas ramificações (especialmente católica e neopentecostal). Não obstante o
sincretismo religioso tão característico de nossa cultura, o discurso religioso
hegemônico é o discurso produzido na esteira da tradição cristã.
Finalmente, apresento o quarto e último pressuposto:
4opp. A linguagem é uma atividade social
por meio da qual nossas experiências de mundo são organizadas numa estrutura
significativa. Assim, a realidade é produto da inter-relação entre linguagem,
cultura, percepção-cognição.
Assim, aprendemos muito com a lição do linguista
Luiz Antônio Marcuschi (2005):
“(...) Não nego que exista certa relação entre linguagem e algo externo
a ela, mas nego que ela seja estável, pronta, universal e a mesma para todo
sempre. Afirmo que conhecer não é um ato de identificação de algo discreto
existente no mundo e mediado pela linguagem: conhecer é uma atividade
intersubjetiva (...)”.
(p. 69)
E um pouco adiante, acrescenta:
“Conhecer um objeto como cadeira, mesa, bicicleta, avião,
livro, banana, sapoti não é apenas identificar algo que
está ali, nem usar um termo que lhes caiba, mas é fazer uma experiência de
reconhecimento com base num conjunto de condições que foram estabilizadas numa
dada cultura. O mundo de nossos
discursos (não sabemos como é o outro) é sócio-cognitivamente produzido. O
discurso é o lugar privilegiado da designação do mundo. A própria ordem de
reflexão sob o ponto de vista de sua organização e dependências lógicas é uma
construção predominantemente discursiva”.
(id.ibid.)
Se o desenvolvimento da reflexão, que supõe uma
organização de conceitos, segundo esquemas de dependências lógicas é “uma
construção predominantemente discursa”, não custa lembrar a lição do também
professor e linguista Carlos Franchi, para quem a linguagem serve à construção
do pensamento. É consenso entre os especialistas que não há possibilidade de
produção de pensamento conceitual
fora dos domínios da linguagem. Portanto, não é correto reduzir a linguagem a
mero instrumento de comunicação, a mero instrumento para a expressão do
pensamento. Os antigos filósofos já haviam notado que a própria razão não
poderia desenvolver-se nos seres humanos, se esses não fossem dotados de uma
faculdade de linguagem, se não fossem capazes de fazer uso de uma linguagem
articulada, mediante a qual combinam um extenso repertório de sequências de
sons com uma gama grande de significados diferentes. Isso é um fato
extraordinário, principalmente se pensarmos, por exemplo, que, em português, temos
31 fonemas (12 vocálicos, sendo 7 orais e 5 nasais; e 19 consonantais) e eles
podem ser combinados em sequências diversas, segundo regras previstas no
sistema fonológico da língua, para a produção de um número gigantesco de
palavras (cada qual encerrando uma pluralidade de sentidos), que entrarão a
fazer parte de um número teoricamente ilimitado de enunciados, para a expressão de uma vasta quantidade de
significações. Dispondo dos fonemas /a/, /e/. /i/, /d/, /p/, /l/, /c/ , /o/,
podemos ter as sequências sonoras significativas dedo, pé, pó, copo, lado, pedal,
oco, oca, etc. É um exercício interessante o articular essas
mínimas unidades sonoras desprovidas de significado. Somente quando dispostas
numa determinada sequência segundo padrões fonológicos previstos pelo sistema
da língua é que temos uma unidade significativa, de nível hierárquico mais
elevado.