terça-feira, 17 de maio de 2011

o esvaziamento do ego

                                                                                
                                                      

                                                                           Somos dois

Cuido que a capacidade de autocrítica, de auto-avaliação é uma virtude. Mas o que é uma virtude? Virtude é poder para agir para o bem. Aristóteles a considerava uma disposição para a prática do bem.  A virtude, em suma, constitui a maneira de ser e de agir humanamente visando ao bem.

            Qual é o bem que se alcança na capacidade de autocrítica ou auto-avaliação? É o autoconhecimento. Uma pessoa capaz de autocrítica reconhece em si as diversas formas de manifestação de seu ser, ou seja, os seus diferentes modos de ser , de se dar ao mundo.
Escrever, para mim, é um meio de me reconhecer. No entanto, há outra maneira de buscar um auto-reconhecimento: a auto-reflexão propiciada pela experiência amorosa. É porque, no AMOR, necessariamente, estamos diante do Outro. E o AMOR que logre sucesso e felicidade deve ser experimentado no intervalo entre o Eu e o Outro. Aqui, se deve reconhecer a necessidade de o Outro ocupar um espaço que lhe é próprio e dele usufruir. O AMOR nos impele à luta do Ego. O ego deve esvaziar-se à medida que se nos vai desanuviando a consciência de que o Outro é um ser independente, autônomo.
O ideal de amor romântico – o amor da desmesura – pode ser assim representado no discurso de Aristófanes, em Banquete, de Platão:

“Ser unido e fundido no amado! Serem apenas um! E a razão disso é que assim era nossa antiga natureza, pelo fato de havermos formado anteriormente um todo único. E o amor é esse o desejo e a ânsia dessa contemplação, dessa unidade”.
(p. 124)

O excerto faz referência ao mito do andrógino. Com a divisão perpetrada pelos deuses, “a humanidade encontraria a perfeita felicidade se se abandonasse às injunções do amor, encontrando cada um o seu próprio amor, e voltando assim ao antigo estado natural” (p. 125).
Evidentemente, entre o AMOR idealizado, sustentado por ideais de sublimidade e perfeição, nutrido pela fantasia, e o AMOR praticado, experienciado, que nos convoca ao convívio com o outro, que nos ensina sobre a sua autonomia e independência em relação à nossa própria capacidade de atuação, há uma distância intransponível. Atuar com o outro e não atuar sobre o outro – é isso o que nos ensina o AMOR.
O AMOR não é saturante; saturação é incompatível com o AMOR. O AMOR é abstinente.
Imagino não ser fácil para muitos de nós esvaziar o ego em face da experiência animicamente impregnante do AMOR. Mas disso depende nosso crescimento individual, nossa maturação amorosa. É certo que o desejo, quando intenso e abrangente, torna-nos incapazes de reconhecer que ao Outro deve ser reconhecido o seu espaço. Nascemos separados em anos, em lugares, em famílias, em formas de educação e de transmissão de valores. O AMOR, todavia, promove um novo nascimento: o da união. Essa união, contudo, não se confunde com dependência unilateral. Reciprocidade não se manifesta por interdependência, mas na quantidade de vezes que somos capazes de emitir sinais de que estamos presentes, nos preocupamos, nos interessamos, nos doamos, nos dedicamos. A reciprocidade é expressa na nossa capacidade de suprir alguma carência mais urgente, aquela que grita do fundo de nossa alma.
Todavia, também me parece equivocada toda a expectativa demasiada projetada sobre o Outro. Esperar demais é caminhar junto ao abismo da frustração. Devemos esperar na medida da possibilidade de espera. Essa medida é determinada pela abrangência do relacionamento amoroso, pela sua maturidade, pela natureza das emoções nele envolvidas, pela solidez de seus projetos.
A experiência amorosa nos põe diante do vazio da existência; de certo modo, ficamos continuamente vulnerável a este vazio. É que sua abrangência existencial é totalizante. O AMOR totaliza o ser, sem sufocá-lo. O laborioso trabalho espiritual e emocional de que nos encarrega o AMOR é, justamente, o esvaziamento do ego.
Acho que depois do AMOR resta o silêncio ou o eterno ressoar silencioso das palavras inaudíveis – aquelas que significam no fundo de nossa alma, que desse fundo lançam seus sons acalentados. Diante do AMOR, convém subtrair o ego e deixá-lo ser como é: incompreensivelmente deleitoso, harmonioso, intrigante e transgressor.



segunda-feira, 16 de maio de 2011

                                       Desafios docentes

Acho que peso muito sobre a vida; minha alma é densa demais, é repleta demais para que a vida a abrigue. Sua fragilidade é tão evidente, mas muitos de nós fingem não notá-la. Ignoram-na. O nascimento de um ser humano é um acontecimento de resistência à morte; é a vitória da vida sobre ela. No entanto, poucos se apercebem disso.
Ainda me agarro a ideais; fico grudado neles e custa-me desapegar-me. Eles, às vezes, dificultam o vagaroso e consistente percurso dos projetos, certamente mais sólidos e tangíveis. De resto, os ideais são frágeis e dissolúveis; podem evaporar-se nas calorosas emoções.
A palavra paixão foi definida diferentemente na tradição filosófica. Aristóteles chamava paixão a toda ação que se sofre; daí se deduz a ideia de passividade; para Descartes, paixão recobre os estados afetivos impressos na alma,  ou melhor,  no cérebro.
Modernamente, paixão tanto pode designar uma tendência que anula a vontade e a razão, como uma tendência que as reforça, que as potencializa. A paixão em meu espírito cumpre esse último papel: é potencializadora.
Minhas palavras ficaram mergulhadas num silêncio repressor por longo tempo, simplesmente porque se me calou no espírito a paixão. Fui acometido de um resfriamento espiritual que me tornou ausente de mim mesmo. Faço-me presente em mim quando escrevo; as palavras promovem o reencontro de mim comigo mesmo, na medida em que me motivam a externar meus pensamentos e os sentimentos que se vão acumulando ao longo do tempo em que me mantive silenciado.
Acredito em que a vida torna-se insossa e pesada, porque nos fadiga, nos atrofia e nos cerceia a vontade de potência, sempre que nos vemos privados de paixão. É movido pela paixão que exerço a docência e é com paixão, afinada com a razão, harmonizada com o bom-senso, com o espírito crítico, que combato toda forma de preconceito, discriminação e superstição.
Se a existência dos homens se expressa senão através de projetos; se os homens são um projeto, que se reinventam no decorrer de suas inúmeras experiências de vida; se nos resta senão a liberdade de escolhas, considerando-se sempre as condições socioculturais, econômicas e ideológicas em que tais escolhas se tornam mais ou menos possíveis, então sou forçado a admitir que meu projeto intelectual é promover sempre uma tensão, um desequilíbrio, uma desestabilização de nossas crenças mais arraigadas, de nossos padrões de pensamento, de nossas ideias engessadas, enferrujadas e enraizadas.
Como professor-pesquisador, estudioso e leitor tenaz, filósofo das horas vagas, inconformado num mundo de conformados, imponho-me dois desafios: o ensino da leitura crítico-emancipatória (e de sua contra-face escrita desafiadora); e o combate ao preconceito linguístico. Desenraizá-lo da consciência social dos brasileiros não constitui tarefa fácil; e, talvez, pretender que uma sociedade dividida em classes como a nossa se livre do preconceito linguístico seja uma utopia. Não obstante, tal reconhecimento não deve frustrar o admirável trabalho, que consiste na formação de professores de português suficientemente instrumentalizados teórica e metodologicamente para que, atuando no ensino escolar, do nível fundamental ao médio, possa: a)  trabalhar a variação linguística como um fato inegável na heterogênea sociedade brasileira; b) discutir (com os alunos) a adequação/ inadequação de uso de uma ou outra variedade linguística; c) sensibilizá-los para o fato de que não existe uma norma culta; ou melhor, que sua existência é meramente ideológica, já que ela é um ideal de correção linguística; d) ensinar-lhes que não há, de um ponto de vista estritamente linguístico, erro ao usar a língua, mas que as noções de certo e errado resultam de julgamentos socioculturais (em geral, preconceituosos) que as camadas mais favorecidas da sociedade (que detém o poder econômico e político-ideológico) fazem dos usos linguísticos das camadas menos favorecidas; e) mostrar-lhes que também entre os membros das classes mais favorecidas há censura mútua relativamente ao seu comportamento verbal, na base de um ideal de correção linguística, etc. As lições podem ser multiplicadas, é claro.
Ontem, assisti a uma reportagem, divulgada no Jornal do Sbt  apresentado por Carlos Nascimento, sobre a apresentação, em um livro didático destinado ao ensino de português no nível escolar, de variantes linguísticas como “nós vai no cinema”. A autora do livro, que na entrevista, exibia uma formação adequada em Linguística, salientou a importância de discutir essas variantes em termos de adequação de uso. No próprio livro, se achavam observações sobre a possibilidade de uso dessas variantes.  Mas o apresentador Carlos Nascimento ironizou dizendo que agora ele deveria usar “nós vai apresentar” e os telespectadores “vai assistir”. A ignorância quanto às contribuições da sociolinguística no tocante à descrição da heterogeneidade linguística do Brasil e ao combate do preconceito linguístico é um fato geral em nossa sociedade, infelizmente reforçado por aqueles que podem ser incluídos na classe dos intelectuais, como os jornalistas.
Recomendo ao leitor interessado a leitura de alguns livros do professor e pesquisador Marcos Bagno – um dos mais renomados especialistas de Sociolinguística no Brasil -, entre os quais estão O Preconceito Linguístico e Nada na Língua é Por Acaso.
A par do combate ao preconceito linguístico, reside em meu espírito a força sempre renovável para o ensino da leitura, ou seja, da atividade de produção de sentidos para um  texto.  O primeiro problema com que o professor se vê à volta é fazer com que o aluno se desapegue da superficialidade linguística do texto. Com efeito, o esforço docente se destina a levar o aluno a transcender o nível da materialidade linguística do texto, para atingir o nível dos implícitos, dos silenciamentos.
Numa aula com alunos do curso de pedagogia, na faculdade onde trabalho, a fim de ensinar que o leitor experiente é agente de sua leitura, pois que capaz de produzir sentidos para o texto e não “captar” ou “pinçar” sentidos previamente existentes, propus uma frase simples como:

(1) Maria chegou.

Como nenhuma atividade linguística se dá fora de contextos sociais, disse-lhes que reconhecessem (1) como um enunciado, de modo que tivessem de recuperar, pelo menos, as duas instâncias: a) o produtor e b) o receptor.
Posteriormente, solicitei que produzissem uma interpretação dos seguintes pares, tendo em conta uma continuação cognitivo-conceitual entre as duas partes:

(a) – Maria chegou.
      - Podemos ir.

(b) – Maria chegou.
       - É melhor se esconder.

(c) – Maria chegou.
       - Estou salva.

(d) – Maria chegou.
       - Agora, estou perdida!

Para (a), alguns alunos sugeriram que Maria era aguardada para que todos pudessem sair juntos; outros disseram que Maria ficaria encarregada de cuidar das crianças, enquanto os pais estavam fora. Para (b), Maria representava alguma ameaça para alguém e, por isso, essa pessoa devia se esconder. Alunos houve que sugeriram que Maria seria surpreendida com uma festa. Para (c), alguns alunos disseram que Maria iria ajudar numa situação complicada. Para (d), o interlocutor espera que Maria o repreenderá por alguma coisa que ele fez de errado.
Suponhamos que sabemos ser Maria a irmã mais velha do interlocutor. Então, munidos dessa informação contextual, poderíamos dizer que em (a) Maria ficaria encarregada de cuidar de seu irmão mais novo. Em (b), poderíamos dizer que a irmã de Maria fez alguma coisa de errado e que, para evitar a bronca, deveria se esconder. Em (c), Maria ajudará a irmã a solucionar um problema (um exercício de matemática complicado). Em (d), ao contrário, ela representa um problema, uma ameaça (a irmã manchou involuntariamente o vestido de Maria).
O que o exercício revela é que, para que possamos atribuir sentido a uma dada sequência linguística, precisamos reconstruir contextos. Tais contextos são de ordem sociocognitiva. Portanto, dizem-se contextos sociocognitivos. Precisamos saber a respeito dos papéis sociais desempenhados pelos interactantes, as imagens recíprocas que fazem de si mesmos e uns dos outros, que conhecimentos partilham entre si, que expectativas também são partilhadas, etc. Cada qual deles possui uma informação pragmática que será negociada e modificada na interação verbal. Essa informação diz respeito ao conjunto de conhecimentos de que dispõem referentes à situação comunicativa (papeis sociais dos interlocutores, grau de intimidade entre eles, saberes compartihados, etc.). Dada a escassez de informações necessárias à interpretação dos pares de enunciados, cabe ao leitor reconstruir um contexto sociocognitivo que lhe permita produzir um sentido. Por isso, interpretar, isto é, produzir sentido é ir além do material linguístico, sem, contudo, dispensá-lo.

domingo, 24 de abril de 2011

"A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa" (BAR)

Herança natural



O Tempo

A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa. Quando se vê, já são seis horas! Quando se vê, já é sexta-feira! Quando se vê, já é natal... Quando se vê, já terminou o ano... Quando se vê perdemos o amor da nossa vida. Quando se vê passaram 50 anos! Agora é tarde demais para ser reprovado... Se me fosse dado um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio. Seguiria sempre em frente e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas... Seguraria o amor que está a minha frente e diria que eu o amo... E tem mais: não deixe de fazer algo de que gosta devido à falta de tempo. Não deixe de ter pessoas ao seu lado por puro medo de ser feliz. A única falta que terá será a desse tempo que, infelizmente, nunca mais voltará. 

Mário Quintana


É uma páscoa para ser esquecida: meu avozinho está hospitalizado, entregue à negligência médica num hospital público.  E, a princípio, estará destinado a uma emergência durante uma semana. É bem conhecida de meus leitores, especialmente dos mais obstinados, a minha hipersensibilidade às flutuações e à fragilidade da vida. É na crise que ela aflora ainda mais; a vida não me passa despercebida, nem eu passarei por ela sem apreendê-la.
Em O capelão do Diabo (livro que constitui uma coletânea de ensaios cujos temas variam da clonagem à educação), Richard Dawkins, um dos mais brilhantes cientistas da atualidade, defensor inveterado do darwinismo, escreveu, à página 29, num ensaio intitulado O capelão do Diabo:

“Por razões absolutamente darwinianas, a evolução nos legou um cérebro que se avolumou até o ponto de se tornar capaz de compreender a sua própria origem, de deplorar suas implicações morais e de lutar contra elas. Toda vez que usamos a contracepção, demonstramos que o cérebro pode contrariar os desígnios darwinianos. Se, como minha esposa me sugeriu, os genes egoístas são “doutores Frankenstein”, e a totalidade da vida, a sua criatura, somente nós podemos completar a fábula voltando-nos contra nossos criadores”.
(p. 29)

Com Dawkins, aprendemos que a seleção natural é um longo processo destruidor e cruel, que se caracteriza por tentativas e erros. Mas, é claro, a natureza não conhece a moral; não há ‘certo’ e ‘errado’ no domínio natural. Portanto, longe de dizer que a natureza é má ou cruel; ela é, apenas, indiferente, porque cega para o sofrimento das espécies. Felizmente, essa mesma seleção legou ao seres humanos a capacidade de discernimento, de compreensão; e sua consciência é capaz de voltar-se para si mesma; afinal, nós somos os únicos seres capazes de ter autoconsciência.
A despeito dessas vantagens de que somos herdeiros, não rompemos, de modo algum, o cordão umbilical que nos une à condição de animal. Somos, com Dawkins, “animais humanos”. Donde se conclui que nossa vida é intrinsecamente natural, ou seja, somos complexos físico-orgânicos integrantes da natureza. Não escapamos e nem escaparemos, malgrado os avanços da ciência em pesquisas genéticas, ao envelhecimento, à doença e à morte.
Você, leitor, que está, agora, lendo este texto, não pode evitar esta verdade: somos todos filhos da natureza, de seu grandioso e espetacular processo de seleção e, portanto, somos seres produzidos, ou nascidos – se assim o preferir – para a morte.
Não podendo escapar a essa herança e uma vez arremessados à existência sem poder escolher as condições em que querem nascer e em que irão viver, os homens devem fazer a si mesmos, tendo em conta as pressões ou condições socioculturais, evidentemente. Eles se lançam como projeto, consoante ensina Sartre. A finitude da existência, a brevidade e fragilidade da vida é o que a torna irresistivelmente atraente e valorosa.
A insensibilidade da natureza, a sua impassibilidade são compensadas pela capacidade dada aos homens de se emocionarem. Os homens são seres de emoção. Emoção é movimento. Existir é movimento. É exteriorização. É expansão para fora. É “ex-istire”, ou seja, sair de si, abrir-se ao ser. Em suma, existir é estar em relação com. O que mais desejam os homens, independentemente de sua origem social e cultural, senão a felicidade? Acontece que a felicidade assume muitas formas e não existe senão no domínio social (que é cultural e econômico).
O gozo da felicidade está, para os artistas, em seu próprio trabalho artístico; para os médicos, no empenho em salvar vidas; para os pais, na felicidade dos próprios filhos. E eu poderia seguir enumerando o que a felicidade é para diversas classes de pessoas. E certamente eu haveria de enumerar muitas formas de felicidade. No entanto, parece-me existir uma felicidade comum a todos os homens e ela se chama AMOR.
Não vou, contudo, me ocupar desse tema novamente. Às vezes, convém deixar que o AMOR vá, como naquela canção de Ana Carolina (“será que é tão difícil aceitar o amor...”). Quando nos detemos no AMOR, ele tende a nos escapar; basta olhar para ele, que se torna indefinível ou imperscrutável. Melhor é experienciá-lo nas suas entranhas; lá onde o seu ser reside e onde morre o sofrimento, e a dor se cala. Diante do AMOR, é melhor, às vezes, silenciar, calar-se, apenas para ouvir o seu silêncio, que nos abrange; para admirar o seu espetáculo que nos contém, nos absorve.
A fragilidade da vida é compensada pela força do AMOR. Que seria desta vida sem ele? Que seria de nós se, em face das tragédias desta existência árdua, não pudéssemos gozar do conforto nos longos e acolhedores braços do AMOR? O AMOR é a-natural, num sentido específico: ele nega a morte para sonhar com a eternidade. E me dirão, é claro: não há eternidade na natureza; com efeito, a vida natural é incompatível com a eternidade, que é delírio, que é herança de nossa imaginação – outra capacidade especificamente humana. A eternidade é filha da linguagem, do desejo. Mas também o AMOR, que se estende para além do tempo, que não se cerceia, que não se comprime; que contém e não pode ser totalmente contido. A existência mesma não contém completamente o AMOR, pois que ele lhe escapa, transbordando-lhe.
Há sinais de AMOR na natureza? Sim, algumas espécies nos dão testemunho dele, quando do cuidado com suas crias. O AMOR resiste à indiferença da natureza, anima-nos em face da inevitabilidade da morte, encoraja-nos diante da astúcia do fado – este arqueiro cego, que nos lançou à vida nus e indefesos, mas dotados da faculdade de conhecimento: aqui está outra fonte de felicidade que dignifica o humano e faz dele um “erro” aspirante, uma contra-força no domínio tirânico de sua herança natural.
A capacidade para a linguagem, em sua forma escrita, foi algo que me aconteceu; minha sensibilidade à linguagem, às diversas formas de expressão lírica de que minha alma é fonte abundante foi algo que me aconteceu. Se tive alguma participação no aperfeiçoamento dessa capacidade, ela só foi possível graças às pessoas que me propiciaram as condições necessárias para tanto. A minha vida, há muito, tem estado imersa na linguagem; vida e linguagem, em mim, são indissociáveis. É no seio da linguagem que me desnudo: aí eu me encontro mergulhado no mistério do AMOR. Ainda que haja discrepância entre as representações de mundo de que sou responsável, ao usar a linguagem para emocionar, fertilizar, e as experiências nas quais todo o meu ser está imerso, essa discrepância não chegará a macular a decência que há em minhas palavras. Se aí também podemos ver as mãos habilidosas da natureza, devemos reconhecer-lhe seu poder grandioso: é dela que nasce o espírito.

terça-feira, 19 de abril de 2011

O amor em debate

          A substância do AMOR
                                             Breves meditações


O tema se me afigura claro ao espírito: o AMOR. Pensá-lo distintamente demanda certo capricho e entusiasmo, que, uma vez combinados, constituem o que se pode chamar de talento. Pensar sobre o AMOR é entregar-se à expressão de um talento. Trata-se, evidentemente, de um talento espiritual, que se ancora na sensibilidade do humano em mim à fragilidade da vida. Ora, o AMOR inspira fragilidade, a reivindica; tendo força, não se dá à força.
Os dias de ócio não são desperdiçados na vadiagem, a menos que possamos dizer ser possível a vadiagem do espírito. Pois bem, talvez seja meu espírito errante, vadio porque não se detém num tema exclusivo, não vive obsedado em certo elenco de questões; ao contrário, transita pela diversidade temática.
Vale notar as palavras de Marcel Conche, em A análise do Amor (1998), que nos ensina:

“O que sucede quando o homem é feliz? Ele fica totalmente absorvido pelo que faz. Fica num estado de concentração sobre o que o ocupa, acompanhado de um estado de ausência de todo o resto”.
(p. 61)

Tanto ler quanto escrever exige-nos a nossa ausência: para ler e escrever, precisamos ausentar-nos do mundo. Decerto, se eu não dispusesse de tempo ocioso, se todo o meu cotidiano estivesse imerso em encargos sociais, minha alma não gozaria da fertilidade verbal de que goza. Assim pensavam os antigos : o ócio é necessário ao filósofo. Pois o ócio é a oficina para o pensamento. Em tempos pós-modernos, em que a técnica e o desempenho eficiente destinados a fins previamente definidos comandam as ações humanas, manter-se em repouso e pôr em ato o pensamento, como atividade espiritual, é, decerto, uma forma de viver singular e destoante.
A questão sobre a qual me debruçarei é: qual é a substância do AMOR? Para empreender minha investigação, começarei por definir, previamente, certos conceitos, sem os quais toda a discussão patinaria em terrenos lacunares.
É em Aristóteles que buscarei a definição do conceito de substância.  Em Compreender Aristóteles (2008), se acha, à página 29, a definição de substância, segundo o filósofo de Estagira.  Substância é atributo essencial, definidor de um sujeito. Aristóteles, contudo, distinguirá entre substância primeira, que é sujeito sem nunca ser atributo; e substância segunda, que constitui o atributo essencial que torna possível a definição. A definição exprime a essência (definição real). A definição nominal explicita o significado de um nome. Por essência, vale insistir, entende-se o que faz de um ser o que ele é. A essência é o que o define. A essência é a identidade do ser consigo mesmo.
Aristóteles pensava a essência em oposição à existência. Esta é acessível na experiência. Dito de outro modo, é na experiência que se verifica a existência. Em Aristóteles, existir é ter uma existência substancial, é ser realmente como fato.
Em que sentido, então, emprego a palavra substância no sintagma a substância do AMOR. O que se busca discutir sobre a substância do amor? Entendida como sujeito do qual se diz alguma coisa (cf. O menino é estudioso), a substância do AMOR  é o AMOR tomado como algo a que se atribui um predicado.  A substância do AMOR pode, por outro lado, ser pensada como uma abstração para designar uma classe. Aqui, seria necessário assumir a existência de muitos amores ou formas de amor. Como conceito abstrato, o AMOR só pode ser tomado independentemente no espírito, já que, o AMOR em si não existe, exceto como objeto do pensamento; na realidade, o que há são experiências amorosas; homens que amam, que manifestam amor.
Em suma, pensarei o AMOR (com maiúsculas) como uma realidade passível de receber atributos. E meu intento é defini-lo enquanto substância primeira. Que substância é essa o AMOR, que não tendo independência ontológica, é capaz de abranger todo o domínio do ser?
Atentemos para o que se segue. Trata-se de uma citação de Pavese – Cesare Pavese, escritor italiano do século XX, citado por Sponville, em O Pequeno Tratado das Grandes Virtudes (2007: 296):

“Você será amado no dia em que puder mostrar sua fraqueza sem que o outro se sirva dela para afirmar a sua força”.

De imediato, devemos reconhecer, com Sponville, que esse AMOR é mais raro e mais precioso (p. 297).  O mesmo autor escreve:

“Apaixonar-se está ao alcance de qualquer um. Amar não.”

O AMOR, nestas duas passagens, é representado relativamente a duas condições que lhe são, penso, essenciais: a negação da força e do monopólio e a sua singuralidade. Enquanto negação da força, o AMOR depende de que estejamos dispostos a estar vulneráveis. Estar vulnerável é despir a alma, é manter-se espiritualmente nu. Só amamos com a nudez de nossa alma.
Parece-me que a dificuldade de experienciar o AMOR com a fidelidade que ele reivindica decorre da negação da condição de vulnerabilidade. Muitas pessoas temem ficar vulneráveis e, por isso, evitam as profundezas da experiência amorosa. Acontece que não é possível amar na condição de autossuficiência: o AMOR exige um esvaziamento de nosso ego e integração de nosso ser ao ser do outro.
Os antigos pensaram o AMOR como falta, carência. Mas ao AMOR nada falta. O AMOR é experiência de alegria inesgotável, abundante, que nos esvazia de nosso ego, ao passo que nos descentraliza. Coube a Spinoza definir o AMOR como “uma alegria que a ideia de uma causa externa acompanha”. O AMOR é um regozijo de almas corporificadas.
A substância do AMOR consiste na sua disposição a despossuir, desapegar-se, dar mais espaço, ao passo que exige a presença. O EU TE AMO é estou inundado em você sem te possuir completamente. O monopólio é incompatível com o AMOR, muito embora o AMOR não conheça senão a exclusividade. O ser que AMAMOS é um ser eleito, não por decisão, mas por disposição a doar-nos. O AMOR é cuidado, é zelo. O AMOR não cabe num momento; aspira à eternidade; excede a extensão do tempo, abre caminhos longos entre o instante em que o sentimos num beijo e o infinito sempre inalcançável. O AMOR reside entre o instante e o infinito.  Está desperto quando a eternidade adormece; e dorme sonhando com a eternidade.
A experiência amorosa repercute no corpo, evidentemente. Os sintomas fisiológicos do AMOR são bem conhecidos (aumento da energia, falta de apetite e sono, consciência aguçada, aumento dos batimentos cardíacos, da temperatura corporal, etc.). Donde se segue que o AMOR toma uma concretude inegável. Quando o sentimos, o nosso corpo reage.
O AMOR é uma emoção e como tal nos move para uma abertura ao outro. Essa abertura anímica e humana para o outro se exprime na forma de carinhos, mimos e cuidados. Quando AMAMOS, embalamos o outro em nossos pensamentos; fazemos de nossos pensamentos um berço acolhedor que torna presente para nós a ausência do ser amado. O AMOR é presença no pensamento quando a ausência do outro é real. Como diz a canção, “quando a gente ama é claro que a gente cuida”. A substância do AMOR é o cuidado: o cuidado na alegria, o cuidado na tristeza, o cuidado na harmonia, o cuidado na desavença.
Como bem maior das alturas, o AMOR é verticalidade da alma, seu estado mais elevado: no AMOR, os amantes são elevados, porque reciprocamente adorados.

Amar é fazer do ser de um participante do ser de outro (BAR).

O absoluto está aí; olhe para ele.

                                     Aceitação


Agora estou só, nesta manhã nebulosa de abril. Mais uma manhã comum de menos um dia de vida. Estou presente a mim mesmo; posso experienciar-me por inteiro, pois que estou inteiramente presente nas palavras cuja distinção minha alma é capaz de gerar. Há pouco, lia o capítulo em que Sponville trata do que chamou de aceitação, em seu instigante livro O Espírito do Ateísmo. O autor nos propõe a aceitação do real, sem mais nem menos. Também nos recomenda suspender qualquer juízo de valor.


“O real basta: por que submetê-lo a outra coisa? Tudo é perfeito: não há mais necessidade de consolo, nem de esperança, nem de juízo final (não se trata mais de julgar, mas de compreender, e menos de compreender que de ver). O real é para pegar ou largar, ou antes, nessa experiência que evoco, ele é aquilo mesmo que não temos  como não pegar: porque ele é sua própria pega, que nos despega de todo o resto”.
(pp. 166-67)


Mais adiante, escreverá:


“O real comanda, pois não há nada além dele. O pensamento? É o próprio real (a verdade) ou não passa de uma ilusão (que faz parte do real: ela é verdadeiramente ilusória)”
(p. 172)


Dirá ainda do absoluto,


“Por que o absoluto está em outro lugar? Ao contrário: porque ele está aí, sempre já aí, antes de qualquer obra, antes de qualquer juízo, antes de qualquer compromisso, porque precede e acompanha todos eles, carrega-os e leva-os embora”.
(p. 170)


E o que é o absoluto? É o que é em si e por si e que independe de nada, ilimitado, indeterminado.  A experiência do absoluto é a experiência de sua imanência e não de sua transcendência. O absoluto, nessa perspectiva, é tudo que está aí; é imanente. O absoluto é o Ser (de Parmênides), o devir (de Heráclito), a natureza (de Espinosa), o Tao (de Lao-tsé), etc.  Não importa o nome que lhe demos; ele é a vida pulsante em nossas veias; vida que se desliza para o abismo da morte.
Estar no absoluto é estar completamente imerso no silêncio da vida; é experienciar o silêncio de nossa existência absurda. Confesso que experiencio o absoluto quando estou imerso no AMOR. A experiência do AMOR correspondido é a experiência do absoluto, pois que sentimos não precisarmos de mais nada, pois o AMOR não depende de nada mais; ele basta a si mesmo.
Também o absoluto pode ser sentido na contemplação da natureza: do grandioso mar adiante, do vôo bailarino das gaivotas, do canto matinal dos passarinhos, no suave adejar das borboletas; também pode ser experimentado no pensamento. Não raro, quando escrevo, quando me ocupo com meus pensamentos, quando me doo à prática laboriosa da escrita experimento o absoluto encerrado em cada palavra. A linguagem para mim encerra o absoluto; nasci destinado a ela.
É certo que, nela, em suas malhas de significado, meu espírito se me desnuda; sou eu mesmo inteiramente imerso nas palavras. Apreciem ou não o que escrevo; censurem ou acolham, ainda assim minha exposição à linguagem é irrepreensível; não pode ser de outro modo, uma vez que as palavras não me são dadas; são constitutivas do que sou: meu ser mesmo é tecido de palavras.
Há muitos anos, tenho vivido da mesma forma e pretendo assim viver até o dia de minha morte: uma vida disciplinada e pautada na comunhão com o verbo. Nada em mim escapa à expressão verbal; o indefinível em mim se submete aos caprichos da linguagem, às suas figuras que subvertem o significado. Toda minha alma está espelhada nas palavras que faço derramar sobre o papel. Olhem do ângulo que desejarem e verão a mim mesmo refletido, submerso.
Outrora, estar só fazia-me ausente de mim mesmo; desde que o AMOR, todavia, pousou em minha vida, estar sozinho é estar inteiramente presente em mim e a mim mesmo. Eu estou aqui e comigo estão os meus pensamentos e a linguagem, evidentemente, sem a qual eles não são socializados.
Não há nada além do mundo, dirá Sponville. Tudo está aí e nada falta. Só o presente é real, é o ser; o futuro é o não-ser, a ausência. Lembro-me bem de que escrevi “não vivo amalgamado com o mundo”, mas isso não significa que eu não reconheça meu pertencimento ao mundo. Sou um átomo desse Todo. O mundo é uma totalidade que me abrange. Nada nele me será estranho, muito embora, como nossa experiência do Todo seja, inevitavelmente, relativa, nem tudo do mundo me será aceitável. O homem não experiencia o real em si, o mundo não entra em sua consciência em estado bruto. Ao contrário, nossa experiência do mundo é sempre mediada. Entre o homem (e seu espírito) e o mundo, há a interpretação. O mundo, o real, para o homem, é mundo, é real interpretado.
Os seres humanos não se contentam em ver uma árvore, mas se perguntam por que ela está ali, que relação tem ela com o meio natural, que função desempenha, que significado tem ela para a vida, o que é essa entidade natural, etc. E as questões não cessam. Por isso o mundo é um problema, a vida é um mistério e o absoluto inapreensível. É condição do homem conhecer, suscitar questões, interpretar. Nossas experiências existenciais são, necessariamente, experiências de sentido, com o sentido. É também condição de nosso ser de linguagem. É porque somos homo loquens que, parafraseando Sartre, estamos condenados a produzir sentidos.
É somente quando me encontro com as palavras, quando lhes desvelo a intimidade, quando gozo delas, que ponho a descoberto o fundo da minha alma. No dia-a-dia, não costumo ser tão hermético, compenetrado, distante; ao contrário, sou simples, comum e sempre acessível aos que me querem bem. No entanto, a vida diária não propicia o desvelar da profundidade de minha alma. As conversas triviais que atendem a propósitos comunicacionais imediatos  são sempre ineficientes para alcançar as suas regiões mais densas.
O absoluto não está no cotidiano, cada vez mais comprimido pelas nossas incumbências; ele está aí onde se dá o encontro de si consigo mesmo; quando olhamos  nossa interioridade com um olhar espiritual que vem de dentro. É a solidão existencial de que tratei. Cada experiência com o absoluto é única, porque a relação individual com a vida é singular e distinta. Para mim a força da vida reside na beleza do AMOR e na resistência do Pensamento. A força da vida repousa na força do AMOR e na intensidade, na verdade do pensamento, que deve ser expressão de liberdade amparado na responsabilidade.
O absoluto pode ser pensado? Creio que sim, mas só apenas quando a vida mesma é colocada diante de nós, ou, o que dá no mesmo, nós nos colocamos diante da vida. Acontece que muitos apenas se limitam a vivê-la, mas raramente se preocupam em olhar para ela. Já olhou para a vida? Já se confrontou com ela? Há quem prefira evitar esse confronto; sei que sempre a confrontei, em que pese à experiência de desespero em que me vi, muitas vezes, mergulhado. Hoje, posso confrontá-la e aceitá-la sem esperar por nada mais; quero ser lembrado no coração daqueles que amo e que me amam.
Viver para ser lembrado, para ser recordado, avivado no coração daqueles que amamos. Ao final de tudo, restar-nos-ão as lembranças; elas darão testemunho de nossa existência e reafirmarão a presença inconteste do absoluto: aí diante de nossos olhos e no íntimo abissal de nosso coração.




(BAR)

Leitura e Ensino

                                O desafio de ensinar a ler


Momentos há em que o melhor a fazer é ocupar-se com a leitura de um livro que nos apeteça.  Momentos há em que é melhor deixar o pensamento em suspenso; interromper a enxurrada de projeção de pensamentos; vedar as inquietações e lançar sobre o espírito um cobertor de serenidade. Tenho ainda de corrigir minhas provas, mas estou protelando essa incumbência, pois que preciso estar motivado a fazê-lo. É que receio encontrar respostas que merecerão um cuidado avaliativo maior, em virtude de sua natureza empobrecida. É necessário dosar o rigor, sempre que as respostas não atendem às expectativas. Ensinar a ler é o maior desafio diante do qual me ponho. Cabe, no entanto, esclarecer o conceito de leitura: ler é produzir sentidos. Não me refiro, evidentemente, à decodificação dos signos linguísticos estampados numa folha de papel. Nesse sentido, decodificar seria processar mentalmente a mensagem contida numa sequência de signos. Trata-se de ‘extrair’ a mensagem comunicada. Assim, numa frase como (a),

(a) Maria está dormindo.

o leitor decodifica, basicamente, o seguinte:

(1) existe uma pessoa;
(2) essa pessoa se chama “Maria”;
(3) Maria encontra-se num dado estado;
(4) esse estado se define como ‘estar entregue ao sono’.

Embora exija um conhecimento um pouco mais especializado, um aluno reconhece, ainda que não o declare, que a frase apresenta a seguinte configuração semântica:

Maria                  está dormindo


Objeto                     estado

Agora, imaginemos que esta frase fosse pronunciada pela mãe de Maria, após ouvir de um amigo de Maria o seguinte:

(b) Maria está em casa?

Se perguntássemos com que intenção a mãe de Maria diz “Maria está dormindo”, em resposta à pergunta do amigo de Maria, não nos seria difícil dizer que a mãe de Maria pretende frustrar a intenção do amigo de falar com Maria. Assim, pelo menos até que Maria acorde, ele estará impossibilitado de falar com ela. Mas o que é necessário saber para que possamos reconhecer a intenção da mãe de Maria? Em primeiro lugar, que, obviamente, por estar dormindo, Maria não pode atender o amigo; em segundo lugar, convém não incomodar alguém que está dormindo, se o motivo for fútil. Além disso, tendo a mãe de Maria se limitado a dizer (a), sem qualquer outra contribuição linguística que sinalizasse a disposição de ela acordar Maria, o interlocutor infere que melhor será voltar numa outra hora.
A interação verbal não se dá apenas através da simples interpretação do material linguístico disponível; mas necessariamente o ultrapassa, na medida em que os interlocutores contam, para a compreensão dos enunciados uns dos outros, com uma gama variada de conhecimentos. Estamos, ao interagirmos, constantemente inferindo. A interação verbal exige uma prática incessante de inferenciação.
Um conhecimento fundamental para que aconteça uma compreensão mais profunda e satisfatória de um texto é o conhecimento intertexual. Tal conhecimento se define pela capacidade de o leitor recuperar num dado texto um intertexto, ou seja, uma relação dialógica do texto-alvo com outros textos. Assim, todo texto é um intertexto, já que todo texto encerra outros textos com os quais ele se relaciona de modo vário.
Vejamos um exemplo disso, nos dois textos colocados em cotejo a seguir:

                                                                 A Importância do ato de ler

 (...) A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto. Ao ensinar a escrever sobre a importância do ato de ler, eu me senti levado – e até gostosamente – a “reler” momentos fundamentais de minha prática, guardados na memória, desde as experiências mais remotas de minha infância, de minha adolescência, de minha mocidade, em que a compreensão crítica da importância do ato de ler se veio em mim constituindo.
Ao ir escrevendo este texto, ia tomando distância dos diferentes momentos em que o ato de ler se veio dando na minha experiência existencial. Primeiro, a “leitura” do mundo, do pequeno mundo em que me movia; depois, a leitura da palavra que nem sempre, ao longo de minha escolarização, foi a leitura da “palavramundo”.
A retomada da infância distante, buscando a compreensão do meu ato de “ler” o mundo particular em que me movia – e até onde não sou traído pela memória -, me é absolutamente significativa. Neste esforço a que me vou entregando, re-crio, e re-vivo, no texto que escrevo, a experiência vivida no momento em que ainda não lia a palavra. Me vejo então na casa mediana em que nasci, no Recife, rodeada de árvores, algumas delas como se fossem gente, tal a intimidade entre nós – à sua sombra brincava e em seus galhos mais dóceis à minha altura eu me experimentava em riscos menores que me preparavam para riscos e aventuras maiores. (...)

(Paulo Freire – A importância do ato de ler: 2006, pp. 11-12)
Texto 2:

(...) o professor de português precisa administrar esses dois prazeres: o prazer de discutir, de aprofundar a leitura, de ler mais num texto, estabelecendo relações entre o texto em discussão e os textos lidos solitariamente. Assim sendo, não faz sentido discutir texto se a discussão não se dá depois da leitura pessoal, durante a qual cada leitor produziu o seu sentido, e se o professor não tomou como ponto de partida para a discussão a socialização desses sentidos, a verbalização pelos alunos do significado que o texto teve para a vida de cada um e a discussão dessas leituras em sala de aula.
Assim, o professor de português propicia, provoca e induz à leitura solitária como necessidade afetiva ou intelectual... seja para projetar nossos fantasmas, seja para nos identificar, seja para responder questões que nos colocamos. Nessa leitura em quantidade para que o aluno aprenda a gostar de ler e melhore a qualidade de sua leitura pelo treino de leitura e pela aquisição de um acervo com que estabelecer relações recíprocas, o aluno exerce seu direito de não gostar, de só ler o que for imediatamente prazeroso, o que for de seu interesse mais próximo. O aluno, enfim, dirige a sua leitura. O professor dirige a leitura escolar, a leitura em profundidade do que é aprofundável (pois não se pensará em aprofundar a leitura de textos superficiais), a leitura formativa que repropõe o processo histórico de criação coletiva de sentidos para a obra reconhecida como formadora de visão de mundo para a individualidade, para nacionalidade, para a humanidade.

( Paulo Coimbra Guedes - A formação do Professor de Português – Que língua vamos ensinar? (2006: 79))

Uma leitura despreocupada nos levará à admissão de que o tema dois dos textos é a leitura. A questão em discussão é a relação entre leitor e leitura. Deve-se notar, no entanto, que, no segundo texto, essa relação é mediada pelo professor. Com efeito, o trabalho do professor é também matéria de reflexão.
O método de leitura que proponho e que mais valerá como um expediente de análise será o de destacar trechos (que podem ser palavras, expressões, frases...) em que a palavra leitura ocorre. Chamarei a esse expediente de atomização textual. O que faremos é, a princípio, reduzir a complexidade do texto. Vejamos:

No texto 1, devemos destacar:

a) leitura do mundo / leitura da palavra;
b) leitura crítica;
c) leitura da palavramundo.

No texto 2, destacamos:
a) aprofundar a leitura;
b) leitura pessoal;
c) leituras em sala de aula;
d) leitura solitária;
e) leitura escolar;
f) leitura formativa.

Comecemos, doravante, o percurso interpretativo, ou seja, comecemos a produzir um sentido (dentre os muitos possíveis) para o texto 1. O eixo “leitura do mundo” e “leitura da palavra” é fundamental para a compreensão do texto. O autor acredita que a leitura do mundo deve vir antes da leitura da palavra (isso está explícito na primeira linha do texto). Mas o que não está explícito (e que, portanto, precisa ser inferido, explicitado pelo leitor) é o que se entende por “leitura do mundo”. O que é ler o mundo? Evidentemente, o leitor não interpretará leitura do mundo da mesma forma que interpreta “leitura de um texto”. Aqui, o leitor precisa saber que a palavra “ler” pode ter seu sentido alargado, como em “ler um acontecimento”, “ler uma obra de arte”, “ler (a tristeza) em seu rosto”, etc. Podemos ler mais do que palavras impressas numa folha de papel. Ler é atribuir um sentido, uma interpretação a alguma coisa. A criança, antes mesmo de ser alfabetizada, interage com o meio e, portanto, é capaz de “ler” esse meio social e físico com que interage e em que vive. Posteriormente, quando aprende a falar (e quando é alfabetizada) a criança fará leituras mais complexas, já que sua capacidade de abstração estará desenvolvida. Lembro que o signo (a palavra) está no lugar de uma coisa. No entanto, a aquisição da capacidade de ler a palavra não implica abandono da leitura do mundo. O “mundo” aqui são as experiências sócio-culturais de que participamos, quer sejam imediatas (“o pequeno mundo em que me movia”), quer sejam mediadas por outros significativos nas diversas etapas de socialização (professores, amigos...).
É justamente porque a relação entre linguagem e realidade é dinâmica que, ao ler a palavra, através dela e nela o mundo é reconstruído. A linguagem não espelha o mundo, mas o representa. O discurso não espelha o mundo, mas o reconstrói. A realidade mesma é construída num complexo relacionamento entre linguagem, cultura, percepção-cognição. Disso se segue que a leitura da palavra não dispensa a continuidade da leitura do mundo. O autor reconhece que a leitura da palavra, na escola, quase nunca permitiu a continuidade da leitura do mundo, porque, na escola tradicional, a leitura era uma atividade feita de modo divorciado das experiências de vida dos estudantes. Sucede que linguagem e realidade se interpenetram.
Ler criticamente é reconhecer as relações entre texto e contexto. No caso do texto escrito, o contexto, por não ser imediato, deve ser reconstruído pelo/ no próprio texto. Todo texto gera contexto. Esse contexto é o entorno sócio-histórico de que o texto é um produto. Pode-se pensar também o contexto no sentido de contexto sociocognitivo, o qual inclui os modelos cognitivos – espécie de complexos de conhecimentos armazenados na memória do leitor – indispensáveis à compreensão do texto.
Também escrever depende de uma capacidade de “ler”: quando escrevemos, representamos uma leitura/interpretação de estados-de-coisas do mundo. Um texto escrito revela sempre uma leitura de mundo pelo autor, já que o “mundo” textualizado, ou seja, “o mundo textual” fabricado pelo texto é resultado dos objetivos, dos pontos de vista, das crenças e ideologias a que adere o autor. Ao escrever, reconstruímos nossas experiências de mundo.

No texto 2, a questão com que o autor se defronta é, basicamente, “como trabalhar a leitura em sala de aula, a fim de desenvolver o prazer da leitura, sem, contudo, empobrecê-la?”. A leitura solitária é indispensável. O professor deve estimular os alunos a lerem os textos em silêncio para si mesmos. É necessária a leitura pessoal como mediadora do debate, do aprofundamento da leitura em sala de aula. O aluno produz seu próprio sentido. E deve ser estimulado a verbalizá-lo.
A leitura pessoal tem como propósito permitir ao aluno confrontar-se com o próprio texto. Deve estimular-lhe uma relação afetivo-intelectual com o que lê. Disso se segue ser capaz o aluno de “dirigir sua leitura”, ou seja, esse leitor-passivo de outrora se tornaria um agente-leitor.
O desenvolvimento da leitura escolar e formativa é incumbência do professor. Mas tal prática não se dá sem que antes aconteça a leitura pessoal e a verbalização do sentido produzido pelos alunos. A leitura formativa pressupõe o reconhecimento de que os sentidos são socializados. Disso se segue que, para que possamos alcançar uma compreensão mais profunda de um texto, é necessário recuperar os outros textos que nos permitam dialogicamente reconstruir o processo histórico de produção dos sentidos.
O prazer da leitura, segundo o autor, depende de que se estimule o envolvimento afetivo-intelectual do aluno com o texto; e isso só é possível quando o leitor isola-se em sua leitura silenciosa, produz o seu sentido, para o que ele recorre ao acervo de leituras prévias; e só posteriormente, discutirá a relevância de seu sentido no confronto com os sentidos socializados e trazidos à tona em sala de aula pelos demais colegas de turma.
Tanto num quanto noutro texto, ler é sempre uma atividade complexa realizada por um sujeito social, por um leitor que é agente de sua leitura.
É claro que os sentidos são múltiplos e que eles tomam direções diversas. Portanto, o quadro interpretativo oferecido aqui está longe de esgotar o que é possível interpretar nesses dois textos. O que me parece claro é que:

a) NÃO HÁ LEITURA ERRADA. O aluno pode fazer uma leitura empobrecida, na medida em que se apóia quase exclusivamente no material linguístico do texto e se limita a repetir o que o autor diz.

b) Uma leitura mais profunda e satisfatória, tendo em conta certos propósitos e objetivos, depende de que ultrapassemos o nível superficial do texto, imergindo cognitivamente nas camadas subjacentes de significação. Além disso, é necessário ir para fora do texto e buscar, no contexto, outros textos que , de algum modo, estão relacionados ou são evocados no texto-alvo.