terça-feira, 19 de abril de 2011

Leitura e Ensino

                                O desafio de ensinar a ler


Momentos há em que o melhor a fazer é ocupar-se com a leitura de um livro que nos apeteça.  Momentos há em que é melhor deixar o pensamento em suspenso; interromper a enxurrada de projeção de pensamentos; vedar as inquietações e lançar sobre o espírito um cobertor de serenidade. Tenho ainda de corrigir minhas provas, mas estou protelando essa incumbência, pois que preciso estar motivado a fazê-lo. É que receio encontrar respostas que merecerão um cuidado avaliativo maior, em virtude de sua natureza empobrecida. É necessário dosar o rigor, sempre que as respostas não atendem às expectativas. Ensinar a ler é o maior desafio diante do qual me ponho. Cabe, no entanto, esclarecer o conceito de leitura: ler é produzir sentidos. Não me refiro, evidentemente, à decodificação dos signos linguísticos estampados numa folha de papel. Nesse sentido, decodificar seria processar mentalmente a mensagem contida numa sequência de signos. Trata-se de ‘extrair’ a mensagem comunicada. Assim, numa frase como (a),

(a) Maria está dormindo.

o leitor decodifica, basicamente, o seguinte:

(1) existe uma pessoa;
(2) essa pessoa se chama “Maria”;
(3) Maria encontra-se num dado estado;
(4) esse estado se define como ‘estar entregue ao sono’.

Embora exija um conhecimento um pouco mais especializado, um aluno reconhece, ainda que não o declare, que a frase apresenta a seguinte configuração semântica:

Maria                  está dormindo


Objeto                     estado

Agora, imaginemos que esta frase fosse pronunciada pela mãe de Maria, após ouvir de um amigo de Maria o seguinte:

(b) Maria está em casa?

Se perguntássemos com que intenção a mãe de Maria diz “Maria está dormindo”, em resposta à pergunta do amigo de Maria, não nos seria difícil dizer que a mãe de Maria pretende frustrar a intenção do amigo de falar com Maria. Assim, pelo menos até que Maria acorde, ele estará impossibilitado de falar com ela. Mas o que é necessário saber para que possamos reconhecer a intenção da mãe de Maria? Em primeiro lugar, que, obviamente, por estar dormindo, Maria não pode atender o amigo; em segundo lugar, convém não incomodar alguém que está dormindo, se o motivo for fútil. Além disso, tendo a mãe de Maria se limitado a dizer (a), sem qualquer outra contribuição linguística que sinalizasse a disposição de ela acordar Maria, o interlocutor infere que melhor será voltar numa outra hora.
A interação verbal não se dá apenas através da simples interpretação do material linguístico disponível; mas necessariamente o ultrapassa, na medida em que os interlocutores contam, para a compreensão dos enunciados uns dos outros, com uma gama variada de conhecimentos. Estamos, ao interagirmos, constantemente inferindo. A interação verbal exige uma prática incessante de inferenciação.
Um conhecimento fundamental para que aconteça uma compreensão mais profunda e satisfatória de um texto é o conhecimento intertexual. Tal conhecimento se define pela capacidade de o leitor recuperar num dado texto um intertexto, ou seja, uma relação dialógica do texto-alvo com outros textos. Assim, todo texto é um intertexto, já que todo texto encerra outros textos com os quais ele se relaciona de modo vário.
Vejamos um exemplo disso, nos dois textos colocados em cotejo a seguir:

                                                                 A Importância do ato de ler

 (...) A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto. Ao ensinar a escrever sobre a importância do ato de ler, eu me senti levado – e até gostosamente – a “reler” momentos fundamentais de minha prática, guardados na memória, desde as experiências mais remotas de minha infância, de minha adolescência, de minha mocidade, em que a compreensão crítica da importância do ato de ler se veio em mim constituindo.
Ao ir escrevendo este texto, ia tomando distância dos diferentes momentos em que o ato de ler se veio dando na minha experiência existencial. Primeiro, a “leitura” do mundo, do pequeno mundo em que me movia; depois, a leitura da palavra que nem sempre, ao longo de minha escolarização, foi a leitura da “palavramundo”.
A retomada da infância distante, buscando a compreensão do meu ato de “ler” o mundo particular em que me movia – e até onde não sou traído pela memória -, me é absolutamente significativa. Neste esforço a que me vou entregando, re-crio, e re-vivo, no texto que escrevo, a experiência vivida no momento em que ainda não lia a palavra. Me vejo então na casa mediana em que nasci, no Recife, rodeada de árvores, algumas delas como se fossem gente, tal a intimidade entre nós – à sua sombra brincava e em seus galhos mais dóceis à minha altura eu me experimentava em riscos menores que me preparavam para riscos e aventuras maiores. (...)

(Paulo Freire – A importância do ato de ler: 2006, pp. 11-12)
Texto 2:

(...) o professor de português precisa administrar esses dois prazeres: o prazer de discutir, de aprofundar a leitura, de ler mais num texto, estabelecendo relações entre o texto em discussão e os textos lidos solitariamente. Assim sendo, não faz sentido discutir texto se a discussão não se dá depois da leitura pessoal, durante a qual cada leitor produziu o seu sentido, e se o professor não tomou como ponto de partida para a discussão a socialização desses sentidos, a verbalização pelos alunos do significado que o texto teve para a vida de cada um e a discussão dessas leituras em sala de aula.
Assim, o professor de português propicia, provoca e induz à leitura solitária como necessidade afetiva ou intelectual... seja para projetar nossos fantasmas, seja para nos identificar, seja para responder questões que nos colocamos. Nessa leitura em quantidade para que o aluno aprenda a gostar de ler e melhore a qualidade de sua leitura pelo treino de leitura e pela aquisição de um acervo com que estabelecer relações recíprocas, o aluno exerce seu direito de não gostar, de só ler o que for imediatamente prazeroso, o que for de seu interesse mais próximo. O aluno, enfim, dirige a sua leitura. O professor dirige a leitura escolar, a leitura em profundidade do que é aprofundável (pois não se pensará em aprofundar a leitura de textos superficiais), a leitura formativa que repropõe o processo histórico de criação coletiva de sentidos para a obra reconhecida como formadora de visão de mundo para a individualidade, para nacionalidade, para a humanidade.

( Paulo Coimbra Guedes - A formação do Professor de Português – Que língua vamos ensinar? (2006: 79))

Uma leitura despreocupada nos levará à admissão de que o tema dois dos textos é a leitura. A questão em discussão é a relação entre leitor e leitura. Deve-se notar, no entanto, que, no segundo texto, essa relação é mediada pelo professor. Com efeito, o trabalho do professor é também matéria de reflexão.
O método de leitura que proponho e que mais valerá como um expediente de análise será o de destacar trechos (que podem ser palavras, expressões, frases...) em que a palavra leitura ocorre. Chamarei a esse expediente de atomização textual. O que faremos é, a princípio, reduzir a complexidade do texto. Vejamos:

No texto 1, devemos destacar:

a) leitura do mundo / leitura da palavra;
b) leitura crítica;
c) leitura da palavramundo.

No texto 2, destacamos:
a) aprofundar a leitura;
b) leitura pessoal;
c) leituras em sala de aula;
d) leitura solitária;
e) leitura escolar;
f) leitura formativa.

Comecemos, doravante, o percurso interpretativo, ou seja, comecemos a produzir um sentido (dentre os muitos possíveis) para o texto 1. O eixo “leitura do mundo” e “leitura da palavra” é fundamental para a compreensão do texto. O autor acredita que a leitura do mundo deve vir antes da leitura da palavra (isso está explícito na primeira linha do texto). Mas o que não está explícito (e que, portanto, precisa ser inferido, explicitado pelo leitor) é o que se entende por “leitura do mundo”. O que é ler o mundo? Evidentemente, o leitor não interpretará leitura do mundo da mesma forma que interpreta “leitura de um texto”. Aqui, o leitor precisa saber que a palavra “ler” pode ter seu sentido alargado, como em “ler um acontecimento”, “ler uma obra de arte”, “ler (a tristeza) em seu rosto”, etc. Podemos ler mais do que palavras impressas numa folha de papel. Ler é atribuir um sentido, uma interpretação a alguma coisa. A criança, antes mesmo de ser alfabetizada, interage com o meio e, portanto, é capaz de “ler” esse meio social e físico com que interage e em que vive. Posteriormente, quando aprende a falar (e quando é alfabetizada) a criança fará leituras mais complexas, já que sua capacidade de abstração estará desenvolvida. Lembro que o signo (a palavra) está no lugar de uma coisa. No entanto, a aquisição da capacidade de ler a palavra não implica abandono da leitura do mundo. O “mundo” aqui são as experiências sócio-culturais de que participamos, quer sejam imediatas (“o pequeno mundo em que me movia”), quer sejam mediadas por outros significativos nas diversas etapas de socialização (professores, amigos...).
É justamente porque a relação entre linguagem e realidade é dinâmica que, ao ler a palavra, através dela e nela o mundo é reconstruído. A linguagem não espelha o mundo, mas o representa. O discurso não espelha o mundo, mas o reconstrói. A realidade mesma é construída num complexo relacionamento entre linguagem, cultura, percepção-cognição. Disso se segue que a leitura da palavra não dispensa a continuidade da leitura do mundo. O autor reconhece que a leitura da palavra, na escola, quase nunca permitiu a continuidade da leitura do mundo, porque, na escola tradicional, a leitura era uma atividade feita de modo divorciado das experiências de vida dos estudantes. Sucede que linguagem e realidade se interpenetram.
Ler criticamente é reconhecer as relações entre texto e contexto. No caso do texto escrito, o contexto, por não ser imediato, deve ser reconstruído pelo/ no próprio texto. Todo texto gera contexto. Esse contexto é o entorno sócio-histórico de que o texto é um produto. Pode-se pensar também o contexto no sentido de contexto sociocognitivo, o qual inclui os modelos cognitivos – espécie de complexos de conhecimentos armazenados na memória do leitor – indispensáveis à compreensão do texto.
Também escrever depende de uma capacidade de “ler”: quando escrevemos, representamos uma leitura/interpretação de estados-de-coisas do mundo. Um texto escrito revela sempre uma leitura de mundo pelo autor, já que o “mundo” textualizado, ou seja, “o mundo textual” fabricado pelo texto é resultado dos objetivos, dos pontos de vista, das crenças e ideologias a que adere o autor. Ao escrever, reconstruímos nossas experiências de mundo.

No texto 2, a questão com que o autor se defronta é, basicamente, “como trabalhar a leitura em sala de aula, a fim de desenvolver o prazer da leitura, sem, contudo, empobrecê-la?”. A leitura solitária é indispensável. O professor deve estimular os alunos a lerem os textos em silêncio para si mesmos. É necessária a leitura pessoal como mediadora do debate, do aprofundamento da leitura em sala de aula. O aluno produz seu próprio sentido. E deve ser estimulado a verbalizá-lo.
A leitura pessoal tem como propósito permitir ao aluno confrontar-se com o próprio texto. Deve estimular-lhe uma relação afetivo-intelectual com o que lê. Disso se segue ser capaz o aluno de “dirigir sua leitura”, ou seja, esse leitor-passivo de outrora se tornaria um agente-leitor.
O desenvolvimento da leitura escolar e formativa é incumbência do professor. Mas tal prática não se dá sem que antes aconteça a leitura pessoal e a verbalização do sentido produzido pelos alunos. A leitura formativa pressupõe o reconhecimento de que os sentidos são socializados. Disso se segue que, para que possamos alcançar uma compreensão mais profunda de um texto, é necessário recuperar os outros textos que nos permitam dialogicamente reconstruir o processo histórico de produção dos sentidos.
O prazer da leitura, segundo o autor, depende de que se estimule o envolvimento afetivo-intelectual do aluno com o texto; e isso só é possível quando o leitor isola-se em sua leitura silenciosa, produz o seu sentido, para o que ele recorre ao acervo de leituras prévias; e só posteriormente, discutirá a relevância de seu sentido no confronto com os sentidos socializados e trazidos à tona em sala de aula pelos demais colegas de turma.
Tanto num quanto noutro texto, ler é sempre uma atividade complexa realizada por um sujeito social, por um leitor que é agente de sua leitura.
É claro que os sentidos são múltiplos e que eles tomam direções diversas. Portanto, o quadro interpretativo oferecido aqui está longe de esgotar o que é possível interpretar nesses dois textos. O que me parece claro é que:

a) NÃO HÁ LEITURA ERRADA. O aluno pode fazer uma leitura empobrecida, na medida em que se apóia quase exclusivamente no material linguístico do texto e se limita a repetir o que o autor diz.

b) Uma leitura mais profunda e satisfatória, tendo em conta certos propósitos e objetivos, depende de que ultrapassemos o nível superficial do texto, imergindo cognitivamente nas camadas subjacentes de significação. Além disso, é necessário ir para fora do texto e buscar, no contexto, outros textos que , de algum modo, estão relacionados ou são evocados no texto-alvo.

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