domingo, 24 de abril de 2011

"A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa" (BAR)

Herança natural



O Tempo

A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa. Quando se vê, já são seis horas! Quando se vê, já é sexta-feira! Quando se vê, já é natal... Quando se vê, já terminou o ano... Quando se vê perdemos o amor da nossa vida. Quando se vê passaram 50 anos! Agora é tarde demais para ser reprovado... Se me fosse dado um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio. Seguiria sempre em frente e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas... Seguraria o amor que está a minha frente e diria que eu o amo... E tem mais: não deixe de fazer algo de que gosta devido à falta de tempo. Não deixe de ter pessoas ao seu lado por puro medo de ser feliz. A única falta que terá será a desse tempo que, infelizmente, nunca mais voltará. 

Mário Quintana


É uma páscoa para ser esquecida: meu avozinho está hospitalizado, entregue à negligência médica num hospital público.  E, a princípio, estará destinado a uma emergência durante uma semana. É bem conhecida de meus leitores, especialmente dos mais obstinados, a minha hipersensibilidade às flutuações e à fragilidade da vida. É na crise que ela aflora ainda mais; a vida não me passa despercebida, nem eu passarei por ela sem apreendê-la.
Em O capelão do Diabo (livro que constitui uma coletânea de ensaios cujos temas variam da clonagem à educação), Richard Dawkins, um dos mais brilhantes cientistas da atualidade, defensor inveterado do darwinismo, escreveu, à página 29, num ensaio intitulado O capelão do Diabo:

“Por razões absolutamente darwinianas, a evolução nos legou um cérebro que se avolumou até o ponto de se tornar capaz de compreender a sua própria origem, de deplorar suas implicações morais e de lutar contra elas. Toda vez que usamos a contracepção, demonstramos que o cérebro pode contrariar os desígnios darwinianos. Se, como minha esposa me sugeriu, os genes egoístas são “doutores Frankenstein”, e a totalidade da vida, a sua criatura, somente nós podemos completar a fábula voltando-nos contra nossos criadores”.
(p. 29)

Com Dawkins, aprendemos que a seleção natural é um longo processo destruidor e cruel, que se caracteriza por tentativas e erros. Mas, é claro, a natureza não conhece a moral; não há ‘certo’ e ‘errado’ no domínio natural. Portanto, longe de dizer que a natureza é má ou cruel; ela é, apenas, indiferente, porque cega para o sofrimento das espécies. Felizmente, essa mesma seleção legou ao seres humanos a capacidade de discernimento, de compreensão; e sua consciência é capaz de voltar-se para si mesma; afinal, nós somos os únicos seres capazes de ter autoconsciência.
A despeito dessas vantagens de que somos herdeiros, não rompemos, de modo algum, o cordão umbilical que nos une à condição de animal. Somos, com Dawkins, “animais humanos”. Donde se conclui que nossa vida é intrinsecamente natural, ou seja, somos complexos físico-orgânicos integrantes da natureza. Não escapamos e nem escaparemos, malgrado os avanços da ciência em pesquisas genéticas, ao envelhecimento, à doença e à morte.
Você, leitor, que está, agora, lendo este texto, não pode evitar esta verdade: somos todos filhos da natureza, de seu grandioso e espetacular processo de seleção e, portanto, somos seres produzidos, ou nascidos – se assim o preferir – para a morte.
Não podendo escapar a essa herança e uma vez arremessados à existência sem poder escolher as condições em que querem nascer e em que irão viver, os homens devem fazer a si mesmos, tendo em conta as pressões ou condições socioculturais, evidentemente. Eles se lançam como projeto, consoante ensina Sartre. A finitude da existência, a brevidade e fragilidade da vida é o que a torna irresistivelmente atraente e valorosa.
A insensibilidade da natureza, a sua impassibilidade são compensadas pela capacidade dada aos homens de se emocionarem. Os homens são seres de emoção. Emoção é movimento. Existir é movimento. É exteriorização. É expansão para fora. É “ex-istire”, ou seja, sair de si, abrir-se ao ser. Em suma, existir é estar em relação com. O que mais desejam os homens, independentemente de sua origem social e cultural, senão a felicidade? Acontece que a felicidade assume muitas formas e não existe senão no domínio social (que é cultural e econômico).
O gozo da felicidade está, para os artistas, em seu próprio trabalho artístico; para os médicos, no empenho em salvar vidas; para os pais, na felicidade dos próprios filhos. E eu poderia seguir enumerando o que a felicidade é para diversas classes de pessoas. E certamente eu haveria de enumerar muitas formas de felicidade. No entanto, parece-me existir uma felicidade comum a todos os homens e ela se chama AMOR.
Não vou, contudo, me ocupar desse tema novamente. Às vezes, convém deixar que o AMOR vá, como naquela canção de Ana Carolina (“será que é tão difícil aceitar o amor...”). Quando nos detemos no AMOR, ele tende a nos escapar; basta olhar para ele, que se torna indefinível ou imperscrutável. Melhor é experienciá-lo nas suas entranhas; lá onde o seu ser reside e onde morre o sofrimento, e a dor se cala. Diante do AMOR, é melhor, às vezes, silenciar, calar-se, apenas para ouvir o seu silêncio, que nos abrange; para admirar o seu espetáculo que nos contém, nos absorve.
A fragilidade da vida é compensada pela força do AMOR. Que seria desta vida sem ele? Que seria de nós se, em face das tragédias desta existência árdua, não pudéssemos gozar do conforto nos longos e acolhedores braços do AMOR? O AMOR é a-natural, num sentido específico: ele nega a morte para sonhar com a eternidade. E me dirão, é claro: não há eternidade na natureza; com efeito, a vida natural é incompatível com a eternidade, que é delírio, que é herança de nossa imaginação – outra capacidade especificamente humana. A eternidade é filha da linguagem, do desejo. Mas também o AMOR, que se estende para além do tempo, que não se cerceia, que não se comprime; que contém e não pode ser totalmente contido. A existência mesma não contém completamente o AMOR, pois que ele lhe escapa, transbordando-lhe.
Há sinais de AMOR na natureza? Sim, algumas espécies nos dão testemunho dele, quando do cuidado com suas crias. O AMOR resiste à indiferença da natureza, anima-nos em face da inevitabilidade da morte, encoraja-nos diante da astúcia do fado – este arqueiro cego, que nos lançou à vida nus e indefesos, mas dotados da faculdade de conhecimento: aqui está outra fonte de felicidade que dignifica o humano e faz dele um “erro” aspirante, uma contra-força no domínio tirânico de sua herança natural.
A capacidade para a linguagem, em sua forma escrita, foi algo que me aconteceu; minha sensibilidade à linguagem, às diversas formas de expressão lírica de que minha alma é fonte abundante foi algo que me aconteceu. Se tive alguma participação no aperfeiçoamento dessa capacidade, ela só foi possível graças às pessoas que me propiciaram as condições necessárias para tanto. A minha vida, há muito, tem estado imersa na linguagem; vida e linguagem, em mim, são indissociáveis. É no seio da linguagem que me desnudo: aí eu me encontro mergulhado no mistério do AMOR. Ainda que haja discrepância entre as representações de mundo de que sou responsável, ao usar a linguagem para emocionar, fertilizar, e as experiências nas quais todo o meu ser está imerso, essa discrepância não chegará a macular a decência que há em minhas palavras. Se aí também podemos ver as mãos habilidosas da natureza, devemos reconhecer-lhe seu poder grandioso: é dela que nasce o espírito.

terça-feira, 19 de abril de 2011

O amor em debate

          A substância do AMOR
                                             Breves meditações


O tema se me afigura claro ao espírito: o AMOR. Pensá-lo distintamente demanda certo capricho e entusiasmo, que, uma vez combinados, constituem o que se pode chamar de talento. Pensar sobre o AMOR é entregar-se à expressão de um talento. Trata-se, evidentemente, de um talento espiritual, que se ancora na sensibilidade do humano em mim à fragilidade da vida. Ora, o AMOR inspira fragilidade, a reivindica; tendo força, não se dá à força.
Os dias de ócio não são desperdiçados na vadiagem, a menos que possamos dizer ser possível a vadiagem do espírito. Pois bem, talvez seja meu espírito errante, vadio porque não se detém num tema exclusivo, não vive obsedado em certo elenco de questões; ao contrário, transita pela diversidade temática.
Vale notar as palavras de Marcel Conche, em A análise do Amor (1998), que nos ensina:

“O que sucede quando o homem é feliz? Ele fica totalmente absorvido pelo que faz. Fica num estado de concentração sobre o que o ocupa, acompanhado de um estado de ausência de todo o resto”.
(p. 61)

Tanto ler quanto escrever exige-nos a nossa ausência: para ler e escrever, precisamos ausentar-nos do mundo. Decerto, se eu não dispusesse de tempo ocioso, se todo o meu cotidiano estivesse imerso em encargos sociais, minha alma não gozaria da fertilidade verbal de que goza. Assim pensavam os antigos : o ócio é necessário ao filósofo. Pois o ócio é a oficina para o pensamento. Em tempos pós-modernos, em que a técnica e o desempenho eficiente destinados a fins previamente definidos comandam as ações humanas, manter-se em repouso e pôr em ato o pensamento, como atividade espiritual, é, decerto, uma forma de viver singular e destoante.
A questão sobre a qual me debruçarei é: qual é a substância do AMOR? Para empreender minha investigação, começarei por definir, previamente, certos conceitos, sem os quais toda a discussão patinaria em terrenos lacunares.
É em Aristóteles que buscarei a definição do conceito de substância.  Em Compreender Aristóteles (2008), se acha, à página 29, a definição de substância, segundo o filósofo de Estagira.  Substância é atributo essencial, definidor de um sujeito. Aristóteles, contudo, distinguirá entre substância primeira, que é sujeito sem nunca ser atributo; e substância segunda, que constitui o atributo essencial que torna possível a definição. A definição exprime a essência (definição real). A definição nominal explicita o significado de um nome. Por essência, vale insistir, entende-se o que faz de um ser o que ele é. A essência é o que o define. A essência é a identidade do ser consigo mesmo.
Aristóteles pensava a essência em oposição à existência. Esta é acessível na experiência. Dito de outro modo, é na experiência que se verifica a existência. Em Aristóteles, existir é ter uma existência substancial, é ser realmente como fato.
Em que sentido, então, emprego a palavra substância no sintagma a substância do AMOR. O que se busca discutir sobre a substância do amor? Entendida como sujeito do qual se diz alguma coisa (cf. O menino é estudioso), a substância do AMOR  é o AMOR tomado como algo a que se atribui um predicado.  A substância do AMOR pode, por outro lado, ser pensada como uma abstração para designar uma classe. Aqui, seria necessário assumir a existência de muitos amores ou formas de amor. Como conceito abstrato, o AMOR só pode ser tomado independentemente no espírito, já que, o AMOR em si não existe, exceto como objeto do pensamento; na realidade, o que há são experiências amorosas; homens que amam, que manifestam amor.
Em suma, pensarei o AMOR (com maiúsculas) como uma realidade passível de receber atributos. E meu intento é defini-lo enquanto substância primeira. Que substância é essa o AMOR, que não tendo independência ontológica, é capaz de abranger todo o domínio do ser?
Atentemos para o que se segue. Trata-se de uma citação de Pavese – Cesare Pavese, escritor italiano do século XX, citado por Sponville, em O Pequeno Tratado das Grandes Virtudes (2007: 296):

“Você será amado no dia em que puder mostrar sua fraqueza sem que o outro se sirva dela para afirmar a sua força”.

De imediato, devemos reconhecer, com Sponville, que esse AMOR é mais raro e mais precioso (p. 297).  O mesmo autor escreve:

“Apaixonar-se está ao alcance de qualquer um. Amar não.”

O AMOR, nestas duas passagens, é representado relativamente a duas condições que lhe são, penso, essenciais: a negação da força e do monopólio e a sua singuralidade. Enquanto negação da força, o AMOR depende de que estejamos dispostos a estar vulneráveis. Estar vulnerável é despir a alma, é manter-se espiritualmente nu. Só amamos com a nudez de nossa alma.
Parece-me que a dificuldade de experienciar o AMOR com a fidelidade que ele reivindica decorre da negação da condição de vulnerabilidade. Muitas pessoas temem ficar vulneráveis e, por isso, evitam as profundezas da experiência amorosa. Acontece que não é possível amar na condição de autossuficiência: o AMOR exige um esvaziamento de nosso ego e integração de nosso ser ao ser do outro.
Os antigos pensaram o AMOR como falta, carência. Mas ao AMOR nada falta. O AMOR é experiência de alegria inesgotável, abundante, que nos esvazia de nosso ego, ao passo que nos descentraliza. Coube a Spinoza definir o AMOR como “uma alegria que a ideia de uma causa externa acompanha”. O AMOR é um regozijo de almas corporificadas.
A substância do AMOR consiste na sua disposição a despossuir, desapegar-se, dar mais espaço, ao passo que exige a presença. O EU TE AMO é estou inundado em você sem te possuir completamente. O monopólio é incompatível com o AMOR, muito embora o AMOR não conheça senão a exclusividade. O ser que AMAMOS é um ser eleito, não por decisão, mas por disposição a doar-nos. O AMOR é cuidado, é zelo. O AMOR não cabe num momento; aspira à eternidade; excede a extensão do tempo, abre caminhos longos entre o instante em que o sentimos num beijo e o infinito sempre inalcançável. O AMOR reside entre o instante e o infinito.  Está desperto quando a eternidade adormece; e dorme sonhando com a eternidade.
A experiência amorosa repercute no corpo, evidentemente. Os sintomas fisiológicos do AMOR são bem conhecidos (aumento da energia, falta de apetite e sono, consciência aguçada, aumento dos batimentos cardíacos, da temperatura corporal, etc.). Donde se segue que o AMOR toma uma concretude inegável. Quando o sentimos, o nosso corpo reage.
O AMOR é uma emoção e como tal nos move para uma abertura ao outro. Essa abertura anímica e humana para o outro se exprime na forma de carinhos, mimos e cuidados. Quando AMAMOS, embalamos o outro em nossos pensamentos; fazemos de nossos pensamentos um berço acolhedor que torna presente para nós a ausência do ser amado. O AMOR é presença no pensamento quando a ausência do outro é real. Como diz a canção, “quando a gente ama é claro que a gente cuida”. A substância do AMOR é o cuidado: o cuidado na alegria, o cuidado na tristeza, o cuidado na harmonia, o cuidado na desavença.
Como bem maior das alturas, o AMOR é verticalidade da alma, seu estado mais elevado: no AMOR, os amantes são elevados, porque reciprocamente adorados.

Amar é fazer do ser de um participante do ser de outro (BAR).

O absoluto está aí; olhe para ele.

                                     Aceitação


Agora estou só, nesta manhã nebulosa de abril. Mais uma manhã comum de menos um dia de vida. Estou presente a mim mesmo; posso experienciar-me por inteiro, pois que estou inteiramente presente nas palavras cuja distinção minha alma é capaz de gerar. Há pouco, lia o capítulo em que Sponville trata do que chamou de aceitação, em seu instigante livro O Espírito do Ateísmo. O autor nos propõe a aceitação do real, sem mais nem menos. Também nos recomenda suspender qualquer juízo de valor.


“O real basta: por que submetê-lo a outra coisa? Tudo é perfeito: não há mais necessidade de consolo, nem de esperança, nem de juízo final (não se trata mais de julgar, mas de compreender, e menos de compreender que de ver). O real é para pegar ou largar, ou antes, nessa experiência que evoco, ele é aquilo mesmo que não temos  como não pegar: porque ele é sua própria pega, que nos despega de todo o resto”.
(pp. 166-67)


Mais adiante, escreverá:


“O real comanda, pois não há nada além dele. O pensamento? É o próprio real (a verdade) ou não passa de uma ilusão (que faz parte do real: ela é verdadeiramente ilusória)”
(p. 172)


Dirá ainda do absoluto,


“Por que o absoluto está em outro lugar? Ao contrário: porque ele está aí, sempre já aí, antes de qualquer obra, antes de qualquer juízo, antes de qualquer compromisso, porque precede e acompanha todos eles, carrega-os e leva-os embora”.
(p. 170)


E o que é o absoluto? É o que é em si e por si e que independe de nada, ilimitado, indeterminado.  A experiência do absoluto é a experiência de sua imanência e não de sua transcendência. O absoluto, nessa perspectiva, é tudo que está aí; é imanente. O absoluto é o Ser (de Parmênides), o devir (de Heráclito), a natureza (de Espinosa), o Tao (de Lao-tsé), etc.  Não importa o nome que lhe demos; ele é a vida pulsante em nossas veias; vida que se desliza para o abismo da morte.
Estar no absoluto é estar completamente imerso no silêncio da vida; é experienciar o silêncio de nossa existência absurda. Confesso que experiencio o absoluto quando estou imerso no AMOR. A experiência do AMOR correspondido é a experiência do absoluto, pois que sentimos não precisarmos de mais nada, pois o AMOR não depende de nada mais; ele basta a si mesmo.
Também o absoluto pode ser sentido na contemplação da natureza: do grandioso mar adiante, do vôo bailarino das gaivotas, do canto matinal dos passarinhos, no suave adejar das borboletas; também pode ser experimentado no pensamento. Não raro, quando escrevo, quando me ocupo com meus pensamentos, quando me doo à prática laboriosa da escrita experimento o absoluto encerrado em cada palavra. A linguagem para mim encerra o absoluto; nasci destinado a ela.
É certo que, nela, em suas malhas de significado, meu espírito se me desnuda; sou eu mesmo inteiramente imerso nas palavras. Apreciem ou não o que escrevo; censurem ou acolham, ainda assim minha exposição à linguagem é irrepreensível; não pode ser de outro modo, uma vez que as palavras não me são dadas; são constitutivas do que sou: meu ser mesmo é tecido de palavras.
Há muitos anos, tenho vivido da mesma forma e pretendo assim viver até o dia de minha morte: uma vida disciplinada e pautada na comunhão com o verbo. Nada em mim escapa à expressão verbal; o indefinível em mim se submete aos caprichos da linguagem, às suas figuras que subvertem o significado. Toda minha alma está espelhada nas palavras que faço derramar sobre o papel. Olhem do ângulo que desejarem e verão a mim mesmo refletido, submerso.
Outrora, estar só fazia-me ausente de mim mesmo; desde que o AMOR, todavia, pousou em minha vida, estar sozinho é estar inteiramente presente em mim e a mim mesmo. Eu estou aqui e comigo estão os meus pensamentos e a linguagem, evidentemente, sem a qual eles não são socializados.
Não há nada além do mundo, dirá Sponville. Tudo está aí e nada falta. Só o presente é real, é o ser; o futuro é o não-ser, a ausência. Lembro-me bem de que escrevi “não vivo amalgamado com o mundo”, mas isso não significa que eu não reconheça meu pertencimento ao mundo. Sou um átomo desse Todo. O mundo é uma totalidade que me abrange. Nada nele me será estranho, muito embora, como nossa experiência do Todo seja, inevitavelmente, relativa, nem tudo do mundo me será aceitável. O homem não experiencia o real em si, o mundo não entra em sua consciência em estado bruto. Ao contrário, nossa experiência do mundo é sempre mediada. Entre o homem (e seu espírito) e o mundo, há a interpretação. O mundo, o real, para o homem, é mundo, é real interpretado.
Os seres humanos não se contentam em ver uma árvore, mas se perguntam por que ela está ali, que relação tem ela com o meio natural, que função desempenha, que significado tem ela para a vida, o que é essa entidade natural, etc. E as questões não cessam. Por isso o mundo é um problema, a vida é um mistério e o absoluto inapreensível. É condição do homem conhecer, suscitar questões, interpretar. Nossas experiências existenciais são, necessariamente, experiências de sentido, com o sentido. É também condição de nosso ser de linguagem. É porque somos homo loquens que, parafraseando Sartre, estamos condenados a produzir sentidos.
É somente quando me encontro com as palavras, quando lhes desvelo a intimidade, quando gozo delas, que ponho a descoberto o fundo da minha alma. No dia-a-dia, não costumo ser tão hermético, compenetrado, distante; ao contrário, sou simples, comum e sempre acessível aos que me querem bem. No entanto, a vida diária não propicia o desvelar da profundidade de minha alma. As conversas triviais que atendem a propósitos comunicacionais imediatos  são sempre ineficientes para alcançar as suas regiões mais densas.
O absoluto não está no cotidiano, cada vez mais comprimido pelas nossas incumbências; ele está aí onde se dá o encontro de si consigo mesmo; quando olhamos  nossa interioridade com um olhar espiritual que vem de dentro. É a solidão existencial de que tratei. Cada experiência com o absoluto é única, porque a relação individual com a vida é singular e distinta. Para mim a força da vida reside na beleza do AMOR e na resistência do Pensamento. A força da vida repousa na força do AMOR e na intensidade, na verdade do pensamento, que deve ser expressão de liberdade amparado na responsabilidade.
O absoluto pode ser pensado? Creio que sim, mas só apenas quando a vida mesma é colocada diante de nós, ou, o que dá no mesmo, nós nos colocamos diante da vida. Acontece que muitos apenas se limitam a vivê-la, mas raramente se preocupam em olhar para ela. Já olhou para a vida? Já se confrontou com ela? Há quem prefira evitar esse confronto; sei que sempre a confrontei, em que pese à experiência de desespero em que me vi, muitas vezes, mergulhado. Hoje, posso confrontá-la e aceitá-la sem esperar por nada mais; quero ser lembrado no coração daqueles que amo e que me amam.
Viver para ser lembrado, para ser recordado, avivado no coração daqueles que amamos. Ao final de tudo, restar-nos-ão as lembranças; elas darão testemunho de nossa existência e reafirmarão a presença inconteste do absoluto: aí diante de nossos olhos e no íntimo abissal de nosso coração.




(BAR)

Leitura e Ensino

                                O desafio de ensinar a ler


Momentos há em que o melhor a fazer é ocupar-se com a leitura de um livro que nos apeteça.  Momentos há em que é melhor deixar o pensamento em suspenso; interromper a enxurrada de projeção de pensamentos; vedar as inquietações e lançar sobre o espírito um cobertor de serenidade. Tenho ainda de corrigir minhas provas, mas estou protelando essa incumbência, pois que preciso estar motivado a fazê-lo. É que receio encontrar respostas que merecerão um cuidado avaliativo maior, em virtude de sua natureza empobrecida. É necessário dosar o rigor, sempre que as respostas não atendem às expectativas. Ensinar a ler é o maior desafio diante do qual me ponho. Cabe, no entanto, esclarecer o conceito de leitura: ler é produzir sentidos. Não me refiro, evidentemente, à decodificação dos signos linguísticos estampados numa folha de papel. Nesse sentido, decodificar seria processar mentalmente a mensagem contida numa sequência de signos. Trata-se de ‘extrair’ a mensagem comunicada. Assim, numa frase como (a),

(a) Maria está dormindo.

o leitor decodifica, basicamente, o seguinte:

(1) existe uma pessoa;
(2) essa pessoa se chama “Maria”;
(3) Maria encontra-se num dado estado;
(4) esse estado se define como ‘estar entregue ao sono’.

Embora exija um conhecimento um pouco mais especializado, um aluno reconhece, ainda que não o declare, que a frase apresenta a seguinte configuração semântica:

Maria                  está dormindo


Objeto                     estado

Agora, imaginemos que esta frase fosse pronunciada pela mãe de Maria, após ouvir de um amigo de Maria o seguinte:

(b) Maria está em casa?

Se perguntássemos com que intenção a mãe de Maria diz “Maria está dormindo”, em resposta à pergunta do amigo de Maria, não nos seria difícil dizer que a mãe de Maria pretende frustrar a intenção do amigo de falar com Maria. Assim, pelo menos até que Maria acorde, ele estará impossibilitado de falar com ela. Mas o que é necessário saber para que possamos reconhecer a intenção da mãe de Maria? Em primeiro lugar, que, obviamente, por estar dormindo, Maria não pode atender o amigo; em segundo lugar, convém não incomodar alguém que está dormindo, se o motivo for fútil. Além disso, tendo a mãe de Maria se limitado a dizer (a), sem qualquer outra contribuição linguística que sinalizasse a disposição de ela acordar Maria, o interlocutor infere que melhor será voltar numa outra hora.
A interação verbal não se dá apenas através da simples interpretação do material linguístico disponível; mas necessariamente o ultrapassa, na medida em que os interlocutores contam, para a compreensão dos enunciados uns dos outros, com uma gama variada de conhecimentos. Estamos, ao interagirmos, constantemente inferindo. A interação verbal exige uma prática incessante de inferenciação.
Um conhecimento fundamental para que aconteça uma compreensão mais profunda e satisfatória de um texto é o conhecimento intertexual. Tal conhecimento se define pela capacidade de o leitor recuperar num dado texto um intertexto, ou seja, uma relação dialógica do texto-alvo com outros textos. Assim, todo texto é um intertexto, já que todo texto encerra outros textos com os quais ele se relaciona de modo vário.
Vejamos um exemplo disso, nos dois textos colocados em cotejo a seguir:

                                                                 A Importância do ato de ler

 (...) A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto. Ao ensinar a escrever sobre a importância do ato de ler, eu me senti levado – e até gostosamente – a “reler” momentos fundamentais de minha prática, guardados na memória, desde as experiências mais remotas de minha infância, de minha adolescência, de minha mocidade, em que a compreensão crítica da importância do ato de ler se veio em mim constituindo.
Ao ir escrevendo este texto, ia tomando distância dos diferentes momentos em que o ato de ler se veio dando na minha experiência existencial. Primeiro, a “leitura” do mundo, do pequeno mundo em que me movia; depois, a leitura da palavra que nem sempre, ao longo de minha escolarização, foi a leitura da “palavramundo”.
A retomada da infância distante, buscando a compreensão do meu ato de “ler” o mundo particular em que me movia – e até onde não sou traído pela memória -, me é absolutamente significativa. Neste esforço a que me vou entregando, re-crio, e re-vivo, no texto que escrevo, a experiência vivida no momento em que ainda não lia a palavra. Me vejo então na casa mediana em que nasci, no Recife, rodeada de árvores, algumas delas como se fossem gente, tal a intimidade entre nós – à sua sombra brincava e em seus galhos mais dóceis à minha altura eu me experimentava em riscos menores que me preparavam para riscos e aventuras maiores. (...)

(Paulo Freire – A importância do ato de ler: 2006, pp. 11-12)
Texto 2:

(...) o professor de português precisa administrar esses dois prazeres: o prazer de discutir, de aprofundar a leitura, de ler mais num texto, estabelecendo relações entre o texto em discussão e os textos lidos solitariamente. Assim sendo, não faz sentido discutir texto se a discussão não se dá depois da leitura pessoal, durante a qual cada leitor produziu o seu sentido, e se o professor não tomou como ponto de partida para a discussão a socialização desses sentidos, a verbalização pelos alunos do significado que o texto teve para a vida de cada um e a discussão dessas leituras em sala de aula.
Assim, o professor de português propicia, provoca e induz à leitura solitária como necessidade afetiva ou intelectual... seja para projetar nossos fantasmas, seja para nos identificar, seja para responder questões que nos colocamos. Nessa leitura em quantidade para que o aluno aprenda a gostar de ler e melhore a qualidade de sua leitura pelo treino de leitura e pela aquisição de um acervo com que estabelecer relações recíprocas, o aluno exerce seu direito de não gostar, de só ler o que for imediatamente prazeroso, o que for de seu interesse mais próximo. O aluno, enfim, dirige a sua leitura. O professor dirige a leitura escolar, a leitura em profundidade do que é aprofundável (pois não se pensará em aprofundar a leitura de textos superficiais), a leitura formativa que repropõe o processo histórico de criação coletiva de sentidos para a obra reconhecida como formadora de visão de mundo para a individualidade, para nacionalidade, para a humanidade.

( Paulo Coimbra Guedes - A formação do Professor de Português – Que língua vamos ensinar? (2006: 79))

Uma leitura despreocupada nos levará à admissão de que o tema dois dos textos é a leitura. A questão em discussão é a relação entre leitor e leitura. Deve-se notar, no entanto, que, no segundo texto, essa relação é mediada pelo professor. Com efeito, o trabalho do professor é também matéria de reflexão.
O método de leitura que proponho e que mais valerá como um expediente de análise será o de destacar trechos (que podem ser palavras, expressões, frases...) em que a palavra leitura ocorre. Chamarei a esse expediente de atomização textual. O que faremos é, a princípio, reduzir a complexidade do texto. Vejamos:

No texto 1, devemos destacar:

a) leitura do mundo / leitura da palavra;
b) leitura crítica;
c) leitura da palavramundo.

No texto 2, destacamos:
a) aprofundar a leitura;
b) leitura pessoal;
c) leituras em sala de aula;
d) leitura solitária;
e) leitura escolar;
f) leitura formativa.

Comecemos, doravante, o percurso interpretativo, ou seja, comecemos a produzir um sentido (dentre os muitos possíveis) para o texto 1. O eixo “leitura do mundo” e “leitura da palavra” é fundamental para a compreensão do texto. O autor acredita que a leitura do mundo deve vir antes da leitura da palavra (isso está explícito na primeira linha do texto). Mas o que não está explícito (e que, portanto, precisa ser inferido, explicitado pelo leitor) é o que se entende por “leitura do mundo”. O que é ler o mundo? Evidentemente, o leitor não interpretará leitura do mundo da mesma forma que interpreta “leitura de um texto”. Aqui, o leitor precisa saber que a palavra “ler” pode ter seu sentido alargado, como em “ler um acontecimento”, “ler uma obra de arte”, “ler (a tristeza) em seu rosto”, etc. Podemos ler mais do que palavras impressas numa folha de papel. Ler é atribuir um sentido, uma interpretação a alguma coisa. A criança, antes mesmo de ser alfabetizada, interage com o meio e, portanto, é capaz de “ler” esse meio social e físico com que interage e em que vive. Posteriormente, quando aprende a falar (e quando é alfabetizada) a criança fará leituras mais complexas, já que sua capacidade de abstração estará desenvolvida. Lembro que o signo (a palavra) está no lugar de uma coisa. No entanto, a aquisição da capacidade de ler a palavra não implica abandono da leitura do mundo. O “mundo” aqui são as experiências sócio-culturais de que participamos, quer sejam imediatas (“o pequeno mundo em que me movia”), quer sejam mediadas por outros significativos nas diversas etapas de socialização (professores, amigos...).
É justamente porque a relação entre linguagem e realidade é dinâmica que, ao ler a palavra, através dela e nela o mundo é reconstruído. A linguagem não espelha o mundo, mas o representa. O discurso não espelha o mundo, mas o reconstrói. A realidade mesma é construída num complexo relacionamento entre linguagem, cultura, percepção-cognição. Disso se segue que a leitura da palavra não dispensa a continuidade da leitura do mundo. O autor reconhece que a leitura da palavra, na escola, quase nunca permitiu a continuidade da leitura do mundo, porque, na escola tradicional, a leitura era uma atividade feita de modo divorciado das experiências de vida dos estudantes. Sucede que linguagem e realidade se interpenetram.
Ler criticamente é reconhecer as relações entre texto e contexto. No caso do texto escrito, o contexto, por não ser imediato, deve ser reconstruído pelo/ no próprio texto. Todo texto gera contexto. Esse contexto é o entorno sócio-histórico de que o texto é um produto. Pode-se pensar também o contexto no sentido de contexto sociocognitivo, o qual inclui os modelos cognitivos – espécie de complexos de conhecimentos armazenados na memória do leitor – indispensáveis à compreensão do texto.
Também escrever depende de uma capacidade de “ler”: quando escrevemos, representamos uma leitura/interpretação de estados-de-coisas do mundo. Um texto escrito revela sempre uma leitura de mundo pelo autor, já que o “mundo” textualizado, ou seja, “o mundo textual” fabricado pelo texto é resultado dos objetivos, dos pontos de vista, das crenças e ideologias a que adere o autor. Ao escrever, reconstruímos nossas experiências de mundo.

No texto 2, a questão com que o autor se defronta é, basicamente, “como trabalhar a leitura em sala de aula, a fim de desenvolver o prazer da leitura, sem, contudo, empobrecê-la?”. A leitura solitária é indispensável. O professor deve estimular os alunos a lerem os textos em silêncio para si mesmos. É necessária a leitura pessoal como mediadora do debate, do aprofundamento da leitura em sala de aula. O aluno produz seu próprio sentido. E deve ser estimulado a verbalizá-lo.
A leitura pessoal tem como propósito permitir ao aluno confrontar-se com o próprio texto. Deve estimular-lhe uma relação afetivo-intelectual com o que lê. Disso se segue ser capaz o aluno de “dirigir sua leitura”, ou seja, esse leitor-passivo de outrora se tornaria um agente-leitor.
O desenvolvimento da leitura escolar e formativa é incumbência do professor. Mas tal prática não se dá sem que antes aconteça a leitura pessoal e a verbalização do sentido produzido pelos alunos. A leitura formativa pressupõe o reconhecimento de que os sentidos são socializados. Disso se segue que, para que possamos alcançar uma compreensão mais profunda de um texto, é necessário recuperar os outros textos que nos permitam dialogicamente reconstruir o processo histórico de produção dos sentidos.
O prazer da leitura, segundo o autor, depende de que se estimule o envolvimento afetivo-intelectual do aluno com o texto; e isso só é possível quando o leitor isola-se em sua leitura silenciosa, produz o seu sentido, para o que ele recorre ao acervo de leituras prévias; e só posteriormente, discutirá a relevância de seu sentido no confronto com os sentidos socializados e trazidos à tona em sala de aula pelos demais colegas de turma.
Tanto num quanto noutro texto, ler é sempre uma atividade complexa realizada por um sujeito social, por um leitor que é agente de sua leitura.
É claro que os sentidos são múltiplos e que eles tomam direções diversas. Portanto, o quadro interpretativo oferecido aqui está longe de esgotar o que é possível interpretar nesses dois textos. O que me parece claro é que:

a) NÃO HÁ LEITURA ERRADA. O aluno pode fazer uma leitura empobrecida, na medida em que se apóia quase exclusivamente no material linguístico do texto e se limita a repetir o que o autor diz.

b) Uma leitura mais profunda e satisfatória, tendo em conta certos propósitos e objetivos, depende de que ultrapassemos o nível superficial do texto, imergindo cognitivamente nas camadas subjacentes de significação. Além disso, é necessário ir para fora do texto e buscar, no contexto, outros textos que , de algum modo, estão relacionados ou são evocados no texto-alvo.

quarta-feira, 30 de março de 2011

O mistério da consciência é que somente nela existimos

                 Futuro – o não-ser

O nascimento de um ser humano se acompanha do desejo dos pais pelo prolongamento dessa então frágil e ingênua existência, para o futuro. Tão logo nascemos – dizendo mais precisamente – nossos familiares nos projetam para o futuro. O futuro é o que desejamos e perseguimos, uma vez plenamente conscientes de que pertencemos a uma totalidade social, de que compartilhamos experiências, desejos, receios e sofrimento com outros seres humanos.
Serão necessários, contudo, muitos anos e muitas experiências culturais, entre as quais está uma grande dose de instrução formal e livresca – para nos apercebermos de que o futuro não existe. Explico-me. As noções de presente, passado e futuro são formas de abstração universal, com que a cognição humana “recorta” o tempo, este que só existe para/na consciência. Nossa consciência só conhece uma única realidade temporal: o agora. A totalidade de seu domínio, que é seu campo de atuação e reflexão, é o presente. E apenas este. Nossa consciência está ancorada no presente. O futuro é o não-existente, o não-consciente. Eu ainda não existo no ano 2021, muito embora meu coração e minha consciência me projete para esta época; mas, nesse tempo, eu ainda não sou. O futuro é o “lugar virtual” do não-ser. Ele é a negação da consciência. O Eu só é possível no presente; no futuro, só existe em potência, muito embora a morte, como possibilidade irrecusável de sua realização, viva a espreitá-lo.
Que diremos do passado? O passado também não existe, embora um dia tenha existido. Na verdade, só existe na memória. Nesse tocante, a memória desempenha um papel fundamental para a nossa identidade: eu sei que entre o meu “eu” de dez anos atrás e o meu “eu” de agora há uma continuidade identidacional. Embora, a rigor, eu não seja a mesma pessoa de dez ou vinte anos atrás, é graças à memória que tomo consciência de uma continuidade de mim mesmo através do tempo. Claro também que esta consciência deve muito às experiências minhas com os outros, especialmente, com os outros que me são próximos, tais como pais, avós, primos, tios e amigos. Esses outros asseguram-me de quem sou, ao mesmo tempo que me ajudam a lembrar-me de quem eu fui.
E crescemos ouvindo aquele provérbio, incessantemente reproduzido pela voz daqueles que, por terem vivido mais e por, supostamente, saberem mais do que nós: quem espera sempre alcança. Até o dia em que, ouvindo a canção Bom conselho de Chico Buarque, aprendemos a questionar tal saber popular: quem espera nunca alcança – escreve Chico. Mais precisamente, ele escreve “está provado, quem espera nunca alcança”. Verifique-o, leitor, caso duvide disso.
É provável que vivamos por longo tempo a acreditar nesse velho ensinamento, sustentáculo da paciência, princípio da prudência. Eis que nos tornamos adolescentes e o futuro torna-se objeto ainda mais desejável. Nada mais irritante para um adolescente do que chamá-lo de criança,  infantilizá-lo. A infância é passado para ele; deixou, pois, de existir. O adolescente vive intensamente o presente; para ele só existe esse tempo imediato da consciência. O futuro, ao que parece, só ganhará contornos quando ele se submete ao exame de vestibular para auferir uma vaga na universidade.
É na adolescência que o presente ganha hegemonia, abrangendo a totalidade do ser. É também nessa fase da vida que se descobre o AMOR. E com ele surge a aspiração à eternidade. Sim, porque o AMOR aspira à eternidade, a persegue, se projeta para um ir sempiterno. O AMOR reivindica projetos, se alimenta da projeção do desejo recíproco dos amantes. Por sua natureza subversiva e inquisitiva, o AMOR nos indaga incessantemente sobre o sentido da vida. É ele que constrói a longa estrada da felicidade – destino para o qual flui toda existência humana. Como nos ensina Aristóteles, o homem, por sua própria natureza, deseja a felicidade; é este o fim de sua existência.

Com a maturidade, o AMOR ganha rédeas, se equilibra na sensatez, muito embora ainda exerça sobre nós sua força centrífuga, que nos aparta do egocentro. Deslocado, nosso eu mora no eu do outro. O AMOR nos descentra. O impacto desse descentramento sobre nós é de tal ordem, que nos sentimos vulneráveis, visto que amar é estar vulnerável. Vulnerabilidade aqui não se confunde com insegurança; define-se, na verdade, como disposição ao desapego, a ser tocado, abrangido pela extensão infinita do AMOR. Como escrevi alhures, o AMOR EXCEDE AS MEDIDAS DA ALMA. Acontece que esse excesso do AMOR nutre-nos, mais vigorosamente, o desejo pelo futuro. Como a eternidade é absurda e, portanto, inalcançável não só à vida humana, mas também a qualquer forma de vida neste planeta, não nos resta senão contentarmo-nos com o indefinido. O AMOR maduro deseja prolonga-se indefinidamente, até que a morte venha pôr um fim a sua ousadia. O AMOR maduro projeta-se para este futuro, que ainda não é e nunca será, porque o que, realmente, há é uma sucessão de presentes. A rigor, com Heráclito, devemos reconhecer que a existência humana e toda a sua grandiosidade miserável é puro devir (um incessante movimento de alternância entre o ser e o não-ser).
Destarte, passado, presente e futuro não são compartimentos do tempo; mas tão-só a maneira pela qual ele existe para o pensamento. Mas, a rigor, o eu-consciente se realiza no presente, pois, no passado, ele não é; e, no futuro, ele nunca é. Daí não se segue que devamos viver inconsequentemente. Cada novo presente só é possível na medida em que sou responsável por minhas escolhas. Mas não posso escolher no futuro, já que não existe futuro, porque o futuro é o vazio do ser. E devemos sempre ter em conta o acaso, que nos lembra quanto somos frágeis e suscetíveis ao infortúnio.
Eu sou na medida em que me faço presente à minha consciência, num agora que se reatualiza indefinidamente. O AMOR é uma inesgotável fonte de liberdade: ele nos liberta de nossa prisão temporal. Torna-nos felizes hoje, pois que, no AMOR, a felicidade jamais é adiada. Tal adiamento significaria o seu fenecimento. O AMOR é o berço de nosso sonho de um presente infinito.

O futuro











Futuro

O futuro é pura ausência
O vazio escuso da consciência
Porque o Eu, ancorado no tempo
Só conhece o instante, o Ser
O AMOR, todavia, demanda projetos
Navega na proa dos sonhos virginais
Veleja sereno, resistindo aos temporais
Do tempo que se arrasta, inconstante...

O AMOR se enamora da decência
Bebe doses fundas de carência
Enquanto vive se equilibrando nos desejos
Dos amantes que se adoram sem receios
O futuro é o não-eu, o não-existente
Aos amantes resta apenas o presente
Que se quer prolongado eternamente
Até que a eternidade a morte beije docemente.

(BAR)

sábado, 12 de março de 2011

O ideológico no cotidiano

                                                               O ideológico no cotidiano
Uma amostra analítica de práticas discursivas


Este texto oferece uma discussão sobre as representações de felicidade num discurso do cotidiano, com vistas a avaliar seu revestimento ideológico.
O evento discursivo, que se realizou na esfera da relação familiar, se erigiu sobre o tema felicidade, que, de imediato, foi associado à perspectiva da sociedade de consumo. Discriminamos os participantes da interação, mediante o emprego das notações E1, E2 (autor) E3 (e E5). Com vistas a preservar a identidade dos enunciadores, escusamos menção a aspectos das condições de produção do discurso, tais como  lugar social, imagens recíprocas, vínculos familiares, excetuando-se o grau de escolaridade, que referiremos no lugar oportuno. Basta notar, por ora, que o E1 fala da perspectiva da classe dominante; o enunciador E2, embora também enuncie a partir de uma perspectiva de classe, procura situar-se numa perspectiva não-ideológica, comportando-se como uma espécie de problematizador das posições ideológicas assumidas pelos outros enunciadores; o E3, parece aderir à perspectiva de E1, embora a relativize, aproximando-se, assim, da perspectiva do E2. Vale notar as tensões discursivas, que revelam, nos índices de valoração de que se impregnou historicamente a palavra felicidade, a luta de classes, o conflito resultante de interesses contraditórios. Fique claro que “felicidade” está sendo considerado num contexto sócio-histórico determinado, a saber, no contexto da sociedade capitalista contemporânea, caracterizada pelo neoliberalismo. Logo, claro é que os sentidos da palavra “felicidade” variam segundo o contexto sócio-histórico em que circula.
Reproduzimos a tese básica defendida por cada qual dos enunciadores:

Contexto: os enunciadores, ligados por vínculo familiar, em conversação circunstancial, se posicionam em face da relação entre felicidade e dinheiro.
Limitamo-nos a mencionar que o E1 detém grau de escolaridade superior; o E2 é pós-graduado; e o E3 é graduando.

E1 – O dinheiro traz felicidade. (tese)
E2 – A vida de um ser humano não pode limitar-se à acumulação de riquezas, à aquisição de dinheiro. A felicidade está intimamente ligada às condições sociais de existência de sujeitos sociais, organizados em classes.

E3 – o dinheiro traz felicidade, mas há pessoas ricas que podem ser infelizes, em face de uma doença incurável, por exemplo.

O enunciador 1 assume uma perspectiva afinada com a sociedade de consumo, que associa a felicidade ao consumo (desenfreado) de bens culturais, propiciado pela acumulação de dinheiro. O enunciador 2 propõe a problematização e aponta para o fato de que, na discussão sobre a relação entre “o ser feliz” e “o ter muito dinheiro”, não se pode esquecer os valores sociais implicados aí. O enunciador 2 procura alertar para o fato de que a felicidade depende de certas condições sociais de existência, mas não depende do acúmulo de riquezas. Deve-se admitir que a felicidade, segundo o enunciador 2, pode ser experimentada pelas pessoas, sempre que algumas condições sociais são satisfeitas, independentemente de elas serem ricas. O enunciador 3, embora acolha a perspectiva do enunciador 1, admite que a felicidade não se resolve no acúmulo de riquezas, lembrando que há pessoas que, mesmo tendo muito dinheiro, uma vez acometidas por uma doença incurável, não poderão restituir a plenitude da saúde, o que lhes acarretam infelicidade. Há aqui, implícita, a consciência da vulnerabilidade e finitude da existência humana. Trata-se de uma posição filosófica que sugere  a necessidade de levar em conta que o sentido da vida humana não pode limitar-se à aquisição de dinheiro e riqueza.
Antes de aprofundarmos nossa reflexão, gostaríamos de observar que estamos em face de, pelo menos, duas perspectivas em conflito: uma dominante, que associa felicidade a acumulo de capital; outra que entende ser possível experimentar a felicidade, sem que seja necessário o acúmulo de riqueza. A terceira perspectiva (E2) procura revelar os enredamentos ideológicos implicados na discussão, já que, em certa altura do discurso, o E1 parecia acreditar que a sua perspectiva era a única possível e que, supostamente, representava “a verdade”, “a posição inquestionável” (isso se notava na entoação, nos gestos fisionômicos do enunciador). Embora não tenha sido explicitada a posição autoritária, é possível sugerir que, ao parecer assumir sua perspectiva como incontestável, o E1 posiciona-se de modo autoritário, o que revela sua inclinação aos setores dominantes, marcados, essencialmente, pelo autoritarismo.
Quando avaliamos a perspectiva de E2 como não-ideológica, não estamos sugerindo que E2 não enuncie de uma perspectiva de classe, mas tão-só pretendemos alertar para o fato de que o discurso de E2 representa um espaço de resistência à perspectiva dominante. Sua perspectiva está mais próxima da realidade dos dominados, por isso não pode ser considerada ideológica. Ademais, a posição de E2 é orientada de modo a desvelar as implicações ideológicas envolvidas na discussão. Por exemplo, ao assumir que a felicidade só pode ser experimentada plenamente quando se detém muito dinheiro e quando se acumula muita riqueza, E1 ignora o fato de que a felicidade é um estado de alma humano, que se manifesta, em geral, no comportamento, e que está intimamente relacionado às condições sociais de existência dos homens, independentemente do acúmulo de bens culturais. As representações do que é ser feliz variam entre os grupos sociais. Dificilmente, para os membros das classes mais prestigiosas (ou melhor, para a sociedade de um modo geral), uma criança de rua possa ser feliz, o que mostra que o estado de felicidade é determinado pelas condições sociais de existência de um indivíduo. É claro que a felicidade de um indivíduo depende da satisfação de certas necessidades básicas. Quiçá, para a grande maioria das pessoas, seja inconcebível que a felicidade possa ser experimentada por um indivíduo a quem foram negadas as condições básicas de subsistência (alimentação, habitação e saúde). Logo, assumimos que, para que alguém possa experimentar felicidade, é necessário o preenchimento de certas condições sociais básicas. Contudo, isso só não basta para que os homens se sintam felizes. Não pretendemos aqui determinar as condições em que os homens podem ser felizes, já que acreditamos em que as formas de experimentar felicidade sejam demasiadamente variadas e, não raro, estejam associadas a tendências patológicas.
Ora, se, por um lado, não basta apenas que sejam preenchidas aquelas condições básicas de subsistência para que um ser humano se considere/ seja feliz (afinal, entre outras coisas, a fruição da felicidade está ligada a relações afetivas sólidas e autênticas, quer no âmbito familiar, quer em esferas públicas de relação social); por outro lado, a felicidade só parece tornar-se possível, quando da satisfação daquelas necessidades básicas. O fato de assumirmos que a felicidade depende da satisfação daquelas necessidades básicas não significa que denegamos o fato de que, sendo a felicidade um estado de espírito, ela esteja suscetível a oscilações, ou seja, os indivíduos podem até se considerarem felizes por determinadas razões, mas isso não quer dizer que se comportem como se experimentassem a felicidade em todo momento. Há momentos de efusão de felicidade; outros em que a felicidade está-nos adormecida na alma, circunstâncias em que o tédio, o marasmo do cotidiano nos inunda o espírito; outros ainda em que somos invadidos pela tristeza, pelo desânimo, a despeito dos sólidos laços familiares, da boa convivência social, etc.
Observamos, de passagem, que tanto a perspectiva do E2 quanto a do E3 encaminham o discurso no sentido da assunção de um princípio filosófico segundo o qual a existência humana é marcada pela finitude; em outras palavras, devemos reconhecer que os seres humanos são os únicos seres vivos que têm consciência da morte. Essa consciência repercutirá evidentemente de modo positivo ou negativo na vida das pessoas; desencadeará angústia em uns, ou aguçará a ansiedade vital de outros - ansiedade graças à qual nos lançamos a empresas árduas, iniciamos projetos, fazemos planos, damos prosseguimento a nossa marcha que se funda na necessidade elementar de evitar, ou melhor, retardar a morte. Se a existência é finita, então os seres humanos não deveriam, segundo as perspectivas de E2 e E3, limitar sua existência ao gozo da riqueza e  à conquista do status social dela decorrente.
O psicanalista Roberto Shinyasihiki, aqui considerado um E4, em entrevista concedida à revista Isto é, em dezenove de outubro de 2005, assim se expressou a respeito da proximidade da morte:

“Ninguém na hora da morte diz se arrepender por não ter aplicado o dinheiro em imóveis.”

O especialista advoga que a felicidade pode ser experimentada nas circunstâncias imediatas e comuns do cotidiano, tais como nos passeios de um pai com o filho, no almoço em família, no beijo de um neto nos avós, etc. Mas, vale dizer, essa felicidade só é possível, se não forem negadas ao indivíduo as condições necessárias para experimentá-la.  Para um menino que vive num contexto familiar marcado pela agressividade e desafeto, certamente será difícil experimentar essa singela felicidade que parece jorrar da fonte do cotidiano. Estando os homens envolvidos pela cotidianidade e, sendo este nível – o cotidiano – o nível imediato das relações humanas, a felicidade do indivíduo está estreitamente relacionada às suas experiências cotidianas. Para o indivíduo, a felicidade não pode ser um projeto a ser alcançado, sempre distante de seu ser, relegado a espaços longínquos da imaginação, a universos escusos e inatingíveis de sua idealização; deve ser experienciada no dia-a-dia e reconhecida como fonte de força e vitalidade, gerada pelas relações com as pessoas queridas, com os amigos, com os colegas de trabalho (e também nas gratificações do trabalho). Deve, em suma, manifestar-se, ainda que em pequenas doses, no tempo fugaz do cotidiano.
O especialista também enuncia de uma perspectiva de classe, a saber, a das classes favorecidas. Ele ignora as reais condições de existência das classes sociais: indivíduos a quem faltam as condições necessárias ao seu bem-estar, dificilmente poderão experimentar a felicidade simples a que fez apelo. Lembremos que, a despeito de o trabalho, no sistema capitalista, ser, em geral, alienador, não se negue que ter emprego é sempre um motivo de felicidade para um indivíduo, ainda que ele receba um salário baixo, que não corresponde à quantidade real de seu tempo de trabalho – período em que aplicou sua força de trabalho (capacidade para trabalhar) para a produção seriada de mercadorias, por exemplo.
Nosso objetivo, fique claro, não é propor um modelo de felicidade, se assim fosse, assumiríamos uma posição ideológica. Na verdade, o que pretendemos é desmascarar o processo ideológico em que se fundamenta a perspectiva do E1, ao defendermos que o conceito de felicidade está intimamente ligado às reais condições de existência dos indivíduos, organizados em classes sociais. Não nos preocupamos em determinar o que é, afinal, ser feliz, que, de qualquer forma, seria um esforço inútil, mas patentear que a palavra felicidade ganhará significados, contornos ideológicos diferentes, conforme apareça numa ou noutra formação discursiva. A palavra felicidade acumula, historicamente, pontos de vistas sociais e, necessariamente, contraditórios, portanto, conflitantes.
Vamo-nos deter na herança ideológica da palavra felicidade, representada na perspectiva do E1. O enunciador 1 associa, ainda que inconscientemente (no sentido de que, sob o efeito ideológico, ele não se dá conta disso), felicidade a consumismo, a acúmulo de riqueza, à fruição de prazeres proporcionados pela obtenção de uma quantia alta de dinheiro. Essa perspectiva sobrepõe-se às demais perspectivas: é como se elas não pudessem ser enunciadas, como se só a perspectiva dominante valesse, representasse a “verdade” para todos os grupos sociais. Sabemos que a realidade não é bem assim. Não raro, ouvimos pessoas, que não dispondo de muitos recursos econômicos, se dizem felizes, quer porque tenham saúde, quer porque tenham uma família unida e afetuosa, quer porque tenham um teto sobre a cabeça, etc.
A perspectiva do E2 procura chamar a atenção para os valores sociais inscritos na palavra felicidade, de modo que se faça ver os modos como os homens experienciam a felicidade variam de acordo com as classes sociais a que pertencem e com as condições sociais de existência. Em suma, a concepção segundo a qual, para ser feliz, é preciso enriquecer corresponde apenas a uma perspectiva – a perspectiva da classe dominante.
Agora, devemos considerar que, na atividade discursiva referida, os enunciadores falavam também sobre o que fariam se acertassem na loteria. Sem pretender dar a saber pormenores nesse tocante, gostaríamos de apontar para a tendência entre o enunciador E1 e o enunciador E3 (bem como um enunciador 5, que participava do evento comunicativo, a essa altura) de acreditar (trata-se de uma crença implícita, não-anunciada) em que a felicidade plena e satisfatória só poderia ser alcançada quando do ganho de uma bolada em dinheiro. Vê-se logo que a felicidade, nos discursos de E1, E3 e E5, está vinculada ao enriquecimento, ao acúmulo de capital.
Nas conversações cotidianas, especialmente no âmbito familiar, em que se manifesta o senso-comum (a saber, as concepções parciais e superficiais da realidade), é comum que, dado o obscurecimento da realidade pela ideologia, de tal sorte que os indivíduos conservam certo grau de ignorância, estando impedidos de assomar a um estado de consciência crítica, manifestem posicionamentos autoritários, opiniões/ interpretações que dizem univocamente o real, que produzem autoritariamente um único sentido para os aspectos da realidade. Em suma, são comuns, nesse contexto marcado pelo senso-comum, atitudes que inibem a pluralidade de perspectivas, de interpretações e mesmo a possibilidade de que sejam revistas certas concepções, certas “visões de mundo”, tornando, assim, o equívoco, o “erro” quase um grave “pecado”. Ao contrário do que parece suceder em contextos caracterizados por debates intelectualizados, como nas conferências científicas, nas discussões em sala de aula, orientadas pelo professor, etc, nos contextos cotidianos de interação, não há lugar para reformulações de perspectivas, revisão de interpretações, pluralidade de pontos de vista; há, em geral, dependendo dos papéis sócio-comunicativos assumidos pelos interactantes e do grau de hierarquia existente entre eles, bem como das imagens que fazem de si e uns dos outros1, mas também do assunto, da situação de comunicação, etc., um sentimento de intolerância em relação à perspectiva do outro. Haverá, em geral, uma perspectiva dominante, que está associada a quem detém o poder (sócio-econômico, político, cultural e discursivo); e perspectivas que devem ser ofuscadas, combatidas e invalidadas – a dos dominados.
 Cabe enfatizar que nenhum dos enunciadores considerados, aqui, insere-se em estratos sociais dominantes, do que se conclui que a ideologia dominante, produzida pelas classes e instituições dominantes na sociedade, impõe-se a todas as camadas da sociedade, torna-se o modo como os membros das classes menos favorecidas, incluindo-se aqui a classe média, aliada das classes dominantes, pensarão e perceberão a realidade social.
Nas esferas sociais mais intelectualizadas, não existe uma só verdade, e as concepções são sempre passíveis de serem revisadas, podem ser superadas, substituídas por outras, reajustadas de algum modo. Claro é que, às vezes, se nota certa intolerância intelectual, nesses meios, mas, de um modo geral, os debates de orientação filosófico-científica (lingüística, psicologia, ciências naturais, sociologia, etc.) se estabelecem sobre o pressuposto de que as teorias (os pontos de vista), dependendo da metodologia adotada e dos pressupostos assumidos pelo teorista, construirão uma verdade. A verdade não se encontra em algum lugar na realidade empírica, mas resulta de uma construção teórica, qual seja, uma interpretação humana.
A palavra felicidade no discurso de E2 parece despir-se de sentido ideológico, já que o enunciador alerta para o fato de que, quer se abone a perspectiva utilitarista-consumista, quer se rejeite, acolhendo-se, assim, a perspectiva contrária, a saber, a que nega que o dinheiro traz felicidade, estar-se-á comprometendo-se ideologicamente por, pelo menos duas razões: em primeiro lugar, porque se oculta o fato de que há muitos modos de experimentar a felicidade que, embora dependentes da satisfação de necessidades básicas do homem (alimentação, saúde, moradia, afeto, etc.), não se limitam à mera aquisição de riqueza, ao acúmulo alienante de capital; em segundo lugar, porque se oculta o fato de que a riqueza, o acúmulo de capital, quando bem administrado, quando usufruído de modo que promova a imersão do indivíduo em práticas culturais cada vez mais diversificadas e marcadas pela intelectualidade, pelo cultivo do espírito reflexivo, práticas que lhe possibilitem novas formas de perceber e conhecer o real; enfim, que lhe proporcionem um “enriquecimento intelectual” (por exemplo, mediante viagens ao exterior, circunstância em que entrará em contato com uma outra realidade cultural e em que poderá ter acesso a uma outra história social, etc.), contribui para experenciar a felicidade. Melhor seria admitir que, independentemente do modo como o dinheiro será administrado, se o utilizarão para a compra de carros-zero e importados, ou para a compra de roupas de grife, ou ainda se o utilizarão para estroinices, é verdade que, para muitas pessoas, a felicidade plena reside no acúmulo de capital. No entanto, lembramos que a felicidade é um estado de alma tramado nas malhas finas da existência humana; é um sentimento instável, que pode insuflar a alma de uma pessoa, em circunstâncias corriqueiras, como no momento em que um casal experencia uma noite prazerosa de afeto e companheirismo, e diluir-se diante das exigências do superior no trabalho, da doença que acomete um ente querido, da incompreensão da esposa ou marido, em que pese ao fato de o indivíduo ter em sua conta bancária uma quantia exorbitante de dinheiro ou de possuir outras formas de capital, como apartamentos em bairros nobres na cidade, empresas, etc.
Nas práticas de leitura na escola e na universidade, o professor deve propiciar situações em que os alunos sejam estimulados a refletir sobre as representações ideológicas que atravessam todo discurso. O professor deve, junto aos alunos, discutir aspectos ideológicos, chamar-lhes a atenção para as lacunas, os silenciamentos, para os “não-ditos” que permeiam todo discurso. Durante a atividade de leitura, o professor deve desvelar aos alunos as posições ideológicas, que sustentam e reproduzem relações de dominação de um grupo social sobre outro. Como não seja nosso objetivo aqui construir um quadro metodológico para a prática escolar, cingimo-nos a essas considerações.
É na escola, espaço em que se refletem as contradições sociais, que a ideologia do cotidiano e a ideologia oficial devem ser problematizadas, devem ser postas em pauta. Conforme foi patenteado aqui, a prática pedagógica, que tome a atividade de leitura como uma ocasião essencial para levar os aprendizes à consciência do mascaramento do real produzido pela ideologia, no entanto, só poderá desenvolver-se satisfatoriamente se o professor tiver em conta que a escola é também uma instituição ideológica e, como tal, está longe de posicionar-se  de modo “neutro” em relação à realidade social; mas deve ser um espaço para o questionamento do status quo, para a problematização do instituído; afinal, consoante ensina Althusser (1983, apud. Konder, 2002:122), ao considerar a natureza sócio-histórica do sujeito:

“suas idéias são seus atos materiais inseridos em práticas materiais, reguladas por rituais materiais, eles mesmos definidos pelo aparelho ideológico material donde provêm as idéias do dito sujeito”

___________
1. Um enunciador pode atribuir ao parceiro de comunicação a imagem de uma pessoa intolerante, tacanha, em dadas condições, de sorte que encaminhará suas contribuições lingüísticas, por exemplo, de modo a atenuar tensões, evitando adotar certas perspectivas, ou adotar uma posição que exibe um grau maior de conhecimentos sobre o assunto do que possui o interlocutor, etc.