
A
polissemia da morte no Fédon
Este
texto constitui o trabalho final, avaliado com a nota máxima, da disciplina
Filosofia Geral – Problemas Metafísicos III
1. Introdução
Na
discussão que, doravante, desenvolveremos sobre a conveniência dessas duas
maneiras de interpretar o significado de morte no Fédon, buscaremos evidenciar não só que as duas leituras são
autorizadas pelo texto, como também não são mutuamente excludentes. Ao
contrário, pretendemos mostrar que elas são conciliáveis entre si. O modo como
elas se conciliam esteia-se na hipótese de que a morte simbólica é uma
experiência necessária e preparatória para a morte corporal; é uma experiência
acessível apenas aos que se dedicam à filosofia (ao filósofo, portanto). A ser
suficientemente provada esta nossa hipótese, a própria compreensão de filosofia
como “um exercitar-se para a morte” significa mais do que um exercício de
preparação para a fruição dos excelentes bens, dos quais se destaca como o mais
elevado a conquista da sabedoria, depois de que a morte liberte a alma do
cárcere corporal; significa também que a morte para a qual tende esse
exercitar-se na filosofia é o estado de ruptura, de separação radical, de
negação incondicional em que o filósofo deve encontrar-se relativamente ao modus vivendi dos homens em sociedade.
2. A doutrina da
imortalidade da alma
Com a apresentação da
doutrina da imortalidade da alma, pretendemos fornecer um enquadramento de
sentido à luz do qual a leitura canônica da morte em Fédon se descerre de tal modo, que não seja confundida com a outra
forma de leitura desse tema já por nós referida.
É a
dimensão místico-religiosa do pensamento de Platão que trataremos de pôr a
descoberto. Os temas da imortalidade da alma, da metempsicose e do destino das
almas têm sua origem no pensamento órfico-pitagórico de que Platão foi um
herdeiro.[3]
Mas dizer que Platão foi um herdeiro não significa afirmar que ele não foi
responsável por imprimir um caráter próprio na recepção do pensamento
órfico-pitagórico. O ponto de partida para o que poderíamos chamar inovação platônica na doutrina órfica da
imortalidade da alma prende-se ao fato de Platão conferir a essa doutrina um
lugar de importância no tratamento da ética e da política. Sócrates disse que o
homem é a psyché (a alma), mas dizer
isso apenas era insuficiente para Platão, pois que seu mestre deixou por
resolver o problema que consiste em saber se a psyché é imortal ou não.
A cosmovisão
órfico-pitagórica assenta numa clara oposição entre a alma e o corpo: o corpo
está destinado a morrer; a alma está destinada a viver eternamente. Quem vive
em função do corpo vive para aquilo que está destinado a perecer; quem vive em
função da alma vive para aquilo que está destinado a viver para sempre, logo
viver tendo em vista a purificação da alma, mediante um contínuo progresso de
desapego do corpo. As injustiças
sofridas pelos justos só afetam o seu corpo e podem, em casos extremos, levar à
morte este corpo; mas, sendo justo, o que ele perde é apenas o corpo; a alma é
salva para gozar da eternidade. Novamente, deve-se enfatizar que essa visão da
vida não foi simplesmente apropriada por Platão, “ela alcança um novo
significado depois da “segunda navegação”, isto é, depois da descoberta do
mundo inteligível” (Reale, 2007, p. 183). Platão se encarregou de demonstrar
racionalmente a imortalidade da alma, crença sem qual a visão órfica da vida
deixa de ter sentido. Consoante ensina Reale a respeito da inovação platônica,
entendida como uma ressignificação da doutrina órfico-pitagórica,
No orfismo tratava-se de uma
simples doutrina misterosófica; nos pré-socráticos que tinham aceitado a visão
órfica, era um pressuposto em contraste com seus princípios físicos; em Platão, ao contrário, está fundamentada e
apoiada perfeitamente sobre a metafísica, isto é, sobre a doutrina do
supra-sensível, da qual se torna como que um corolário (...). (ib.id.,
ênfase no original).
No Fédon, é possível distinguir entre três provas da imortalidade da
alma.[4]
A primeira delas, que não irá nos interessar aqui, tem base heraclitiana e, por
isso, envolve a percepção da realidade como atravessada pelos contrários
(justo/injusto; belo/feio/ vida/morte, etc.). Essa prova encontrará seu bom
termo na doutrina da reminiscência. Vamo-nos deter na apresentação das duas outras
provas oferecidas por Platão e que ele mesmo julgava mais importantes.
A primeira das duas provas
que devemos elucidar começa pela asserção segundo a qual a alma humana é capaz
de conhecer as coisas imutáveis e eternas. Todavia, para a alma poder apreender
essas coisas imutáveis e eternas, ela deve possuir como conditio sine quo non uma natureza que lhes seja afim. Em outras
palavras, a alma deve ser também imutável e eterna, para que possa conhecer as
coisas imutáveis e eternas.
Essa prova assenta na premissa
de que há duas instâncias de realidade, a saber, o mundo sensível (visível) e o
mundo inteligível (invisível). O mundo inteligível é imutável, suas condições
não variam; mundo sensível, por outro lado, é mutável. Platão estabelecerá uma
correlação do corpo e da alma com esses dois domínios do real. Ora, notará
Platão que o corpo é visível e passível de sofrer mudança e, por isso,
assemelha-se ao mundo visível ou das coisas sensíveis; a alma, porque é
invisível e imutável, assemelha-se ao mundo inteligível, que é invisível e
imutável.
Uma vez que se oriente pelas
percepções sensíveis, a alma incorre, facilmente, em erro e se confunde,
porquanto as percepções sensíveis são mutáveis tanto quanto os objetos a que
elas se referem. Quando, entanto, a alma se eleva para além do domínio das
coisas sensíveis, recolhendo-se em si mesma, ela não erra mais e pode
contemplar as Ideias puras, bem como o objeto que lhes é correspondente no
mundo inteligível. Uma parte fundamental desse argumento consiste em ver que, conhecendo
no mundo inteligível o objeto adequado das Ideias, a alma reconhece também que
é afim a essas Ideias e, dado que pensa as coisas imutáveis, a alma permanece,
ela mesma, imutável.
A alma, portanto, é imutável
e eterna assim como imutáveis e eternas são as Ideias por ela contempladas e às
quais ela é afim. Resta demonstrar que a alma também é dotada de um caráter
divino. Para tanto, argumentará Platão que, quando unida ao corpo, a alma
comanda o corpo, e o corpo lhe deve obediência. Ora, uma característica
importante do divino é comandar, e do que é mortal é ser comandado. Por
conseguinte, a alma é afim ao divino; e o corpo, ao mortal. Acompanhemos o
testemunho desta primeira prova:
-
Admitamos, portanto, que há duas espécies de seres: uma visível, outra
invisível.
-Admitamos.
-
Admitamos, ainda, que os invisíveis conservam sua identidade, enquanto que com
os visíveis tal não se dá.
-Admitamos
também isso.
-
Bem, prossigamos – tornou Sócrates. – Não é verdade que nós somos constituídos
de suas coisas, uma das quais é o corpo e a outra, a alma?
-
Nada mais verdadeiro!
-
Com qual dessas duas espécies de seres podemos dizer, pois, que o corpo tem
mais semelhança e parentesco?
-
Eis uma coisa que é clara para toda a gente: com a espécie visível.
-
Por outro lado, que é a alma? Coisa visível ou coisa invisível?
-
Não é visível, pelo menos aos homens, Sócrates!
-
Todavia, quando falamos do que é visível e do que não o é, fizemo-lo com
relação à natureza humana? Ou talvez creias que foi a propósito de qualquer
outra coisa?
-
Foi a propósito da natureza humana.
-
Portanto, que diremos da alma? Que ela é coisa visível, ou que não se vê?
-
Que não se vê.
-
Vale dizer, por conseguinte, que ela é uma coisa invisível?
-
Sim.
-
Logo, a alma tem com a espécie invisível mais semelhança do que o corpo, mas
este tem, com a espécie visível, mais semelhança do que a alma?
-
Necessariamente, Sócrates.
(...)
-
Penso não haver ninguém, Sócrates, por mais dura que tenha a cabeça, que seja
capaz de não concordar, seguindo este método, em que, em tudo e por tudo, a
alma tem mais semelhança com o que se comporta sempre do mesmo modo, do que com
as coisas que não o fazem.
-
E o corpo, por seu lado?
-
Com a outra espécie.
-
Tomemos agora um outro ponto de vista. Quando estão juntos a alma e o corpo, a
este a natureza consigna servidão e obediência, e à primeira comando e
senhorio. Sob este novo aspecto, qual dos dois, qual dos dois, no teu modo de
pensar, se assemelha ao que é divino, e qual o que se assemelha ao que é mortal?
Ou acaso pensas que o que é divino existe, por sua natureza, para dirigir e
comandar, e o que é mortal, ao contrário, para obedecer e ser escravo?
-
Penso como tu.
-
Com qual dos dois, portanto, a alma se assemelha?
-
Nada mais claro, Sócrates! A alma, com o divino; o corpo, com o mortal.
-
Bem, examina agora, portanto, Cebes, se tudo o que foi dito nos conduz
efetivamente às seguintes conclusões: a alma se assemelha ao que é divino,
imortal, dotado da capacidade de pensar, ao que tem uma forma única, ao que é
indissociável e possui sempre do mesmo modo identidade: o corpo, pelo
contrário, equipara-se ao que é humano, mortal, multiforme, desprovido de
inteligência, ao que está sujeito a decompor-se, ao que jamais permanece
idêntico. Contra isso, meu caro Cebes, estaremos em condições de opor uma outra
concepção e provar que as coisas não se passam assim?
-
Não, Sócrates.
-
Que se segue daí? Uma vez que as coisas são assim, não é acaso uma pronta
dissolução o que convém ao corpo, e à alma, ao contrário, uma absoluta
indissolubilidade, ou pelo menos qualquer estado que disso se aproxime?
-
E por que não, com efeito?[5]
A segunda prova de que
trataremos no Fédon exige que
consideremos um aspecto da teoria da alma que se nos apresenta indispensável,
já que se trata de um saber pressuposto por essa segunda prova. Tomemos, então,
a segunda prova que se acha no Fédon
e que nos interessa dar a saber. Essa prova se estrutura em torno da
proposição: as Ideias contrárias não
podem combinar-se entre si nem permanecer juntas. Daí se segue que elas são
mutuamente excludentes. Da impossibilidade de elas se combinarem resulta também
a impossibilidade de elas se combinarem com as coisas sensíveis que delas
participam essencialmente. Platão observará, então, que entrando a fazer parte
de uma determinada coisa, uma Ideia leva a desaparecer a Ideia que lhe é
contrária e que até então estava nessa coisa. Em outras palavras, se uma Ideia
entra numa coisa, a Ideia contrária que estava na coisa anteriormente à entrada
dessa Ideia é “expulsa” da coisa onde estava. As duas Ideias, por serem
contrárias, não podem coexistir na mesma coisa. Assim, por exemplo, o Grande em
si e o Pequeno em si se excluem mutuamente; a mesma exclusão mútua é necessária
quando tais Ideias entram a fazer parte das coisas. Assim, uma coisa grande não
pode ser pequena e vice-versa. O mesmo princípio de exclusão mútua é extensivo
às coisas que, não sendo contrárias entre si, apresentam atributos que são
contrários uns aos outros. Por exemplo, o fogo e a neve, embora não sejam
contrários entre si, apresentam atributos essenciais que são contrários entre
si; sejam: [quente] e [frio]. Ora, o fogo não é compatível com a Ideia do frio,
nem a neve é compatível com a Ideia do quente. A presença do quente faz a neve
dissolver; a presença do frio faz o fogo apagar-se.
Procuremos, agora, estender
esse argumento ao caso da alma. A alma, conforme se depreende da teoria da alma,
é vida. Psykhé encerra a Ideia de vida.
Ela é que dá vida ao corpo. Justamente porque, para um grego, a alma tem como
marca essencial a vida, jamais poderá admitir em si a morte ou tornar-se
mortal. A morte, portanto, não pode afetar a alma; a morte só corromperá o
corpo. A alma, por sua vez, por ocasião da morte do corpo, se desprende deste e
se dirige para outro lugar.
Podemos, então, compreender,
a título de conclusão, que a alma, na medida em que essencialmente encerra a
vida, sendo a vida seu atributo estrutural, não pode abrigar a morte, visto que
a Ideia de vida e a Ideia de morte, segundo o princípio da exclusão mútua dos
contrários, são totalmente excludentes. É por essa razão que um grego recusa
como absurda uma combinação como “alma morta”. Trata-se de um sintagma tão
antitético, para um grego, quanto a combinação “neve quente”.
3.
A morte como separação da alma e do corpo
Tendo em mente a teoria da
imortalidade da alma, não podemos nos esquivar a aceitar a conclusão de que o
significado mais transparente de morte em Fédon
é o da morte como separação da alma com relação ao corpo. Trata-se do que
chamamos morte metafísica, uma vez
que, tendo se libertado do corpo, a alma não se extingue. A morte como
separação da alma com relação ao corpo está assentada na crença de que, tendo
ela habitado o corpo de um filósofo, poderá fruir no Hades “excelentes bens”,
conforme nos afirma Sócrates: “(...) considero que o homem que realmente
consagrou sua vida à filosofia é senhor da legítima convicção no momento da
morte, possui esperança de ir encontrar para si, no além, excelentes bens
quando estiver morto”[6]. A compreensão da morte
como separação da alma com relação ao corpo aparece em diversos momentos no
diálogo. Num desses momentos, Sócrates a apresenta após indagar a Símias sobre
ser a morte alguma coisa:
- Segundo nosso
pensar, é a morte alguma coisa?
- Claro –
replicou Símias.
- Nada mais do que a separação da alma e do
corpo, não é? Estar morto consiste nisto: apartado da alma e separado dela, o
corpo isolado em si mesmo; a alma, por sua vez, apartada do corpo e separada
dele, isolada em si mesma. A morte é apenas isso? (ênfase nossa)[7]
Notemos
que Sócrates termina seu turno de fala com a pergunta “A morte é apenas isso?”.
Símias concorda que é apenas isso, mas Sócrates prossegue fazendo considerações
sobre como deve ser a vida própria de um filósofo. À medida que vamos
acompanhando Sócrates na descrição de como deve viver um filósofo, conseguimos,
com uma atenção redobrada em nossa leitura, ‘pinçar’ aqui e ali uma compreensão
de morte não redutível à anteriormente apresentada, sem bem que, de modo algum,
divorciada daquela. Antes, porém, de discorremos sobre o modo como essa outra
compreensão de morte vai-se iluminando ao longo do diálogo, devemos não perder
de vista o fato de que a compreensão da morte como “separação da alma com
relação ao corpo” dá sustentação à doutrina do destino das almas e assegura ao
filósofo sua condição de amante da sabedoria. Sendo amante da sabedoria, o
filósofo, em vida, jamais poderá conquistá-la. Porque é amante da sabedoria,
ele a persegue obstinadamente; ele a deseja, sem jamais possuí-la. A sabedoria
só poderá ser conquistada, segundo crê Platão, após a morte corporal – a da
separação da alma com relação ao corpo. Somente a alma em si, a alma liberta
daquilo que a estorva, poderá conhecer as Ideias em si, a Verdade em si:
Inversamente,
obtivemos a prova de que, se alguma vez quisermos conhecer puramente os seres
em si, ser-nos-á necessário separar-nos dele e encarar por intermédio da alma
em si mesma os entes em si mesmos. Só então é que, segundo me parece, nós há de
pertencer aquilo de que nos declaramos amantes: a sabedoria. Sim, quando
estivermos mortos, tal como indica o argumento, e não durante a nossa vida! Se,
com efeito, é impossível, enquanto dura a união com o corpo, obter qualquer
conhecimento puro, então de duas uma: ou jamais nos será possível conseguir de
nenhum modo a sabedoria, ou a conseguiremos apenas quando estivermos mortos,
porque nesse momento a alma, separada do corpo, existirá em si mesma e por si
mesma – mas nunca antes.[8]
É
evidente aí que a morte de que nos fala Sócrates é a morte corporal. Enquanto
está vivo, enquanto sua alma está atada ao corpo, o filósofo jamais poderá
conquistar a sabedoria, pois que o corpo constitui um empecilho para a
conquista do conhecimento verdadeiro, para a contemplação da Verdade: “durante
todo o tempo em que tivermos o corpo, e nossa alma estiver misturada com essa
coisa má, jamais possuiremos completamente o objeto de nossos desejos!”[9]. É que, já o sabemos,
Não somente mil uma
confusões nos são efetivamente suscitadas pelo corpo quando clamam as
necessidades da vida, mas ainda somos acometidos pelas doenças – e ei-nos às
voltas com novos entraves em nossa caça ao verdadeiro real! O corpo de tal modo
nos inunda de amores, paixões, temores, imaginações de toda sorte, enfim, uma
infinidade de bagatelas, que por seu intermédio (sim, verdadeiramente é o que
se diz) não recebemos na verdade nenhum pensamento sensato; não, nem uma vez
sequer! (...).[10]
No
seu desprezo pelo corpo, Sócrates o considera a sede das concupiscências, das
paixões, as quais são suficientemente poderosas para “provocar o aparecimento
de guerras, dissenções, batalhas”; ademais, é o corpo que nos incita à posse de
bens e ao acúmulo deles, tornando-nos seus “míseros escravos”. Teria o filósofo
o mesmo destino dos demais homens, qual seja, o de tornar-se escravos das
necessidades do corpo? Não! Porque o filósofo se distingue dos demais homens
por um modo de ser que lhe é próprio: o da vida filosófica. Ao dedicar sua vida
à filosofia, o filósofo vive tanto quanto possível afastado dos bens e dos
prazeres do corpo, e volta-se para os bens da alma, quais sejam, a virtude e a
verdade. É preciso dizer mais: o filósofo se distingue dos demais homens e,
portanto, não tomará parte no destino destes, porque, dedicando-se à filosofia,
é o único capaz de realizar plenamente a ascese filosófica: “a alma do
filósofo, alçando-se ao mais alto ponto, desdenha o corpo e dele foge, enquanto
por outro lado procura isolar-se em si mesma”[11]. É consabido que a ascese
passou a designar, com os pitagóricos, cínicos e estoicos, a forma da vida
moral que visa à realização da virtude por meio da limitação dos desejos e da
renúncia. A ascese tal como proposta em Platão para o filósofo é – parece-nos-
a noção-chave que nos permite conciliar os dois significados à luz dos quais
podemos compreender a morte em Fédon. Esclarecer
esse ponto de nossa discussão será a tarefa desta última parte.
4. A morte como morte
simbólica
Antes de buscarmos
testemunho no diálogo de Fédon da
compreensão da morte como morte simbólica e antes mesmo mostrar de que modo a
ascese permite que as duas formas de ler a morte em Fédon podem-se articular, gostaríamos de dizer que a vida ascética
que deve ser vivida pelo filósofo é condição necessária para a sua purificação.
Essa purificação lhe garantirá uma boa sorte depois que chegue ao Hades. A
maneira de atingir a purificação é pelo exercício de uma vida virtuosa
orientada pela temperança, coragem e justiça e, sobretudo, orientada para a
busca da verdade. O filósofo sendo o tipo humano, por excelência, que se ocupa
de viver virtuosamente e de perseguir a verdade terá, depois de morto, o
privilégio de morar junto aos Deuses. A sorte daqueles que viveram
contrariamente à virtude é muito diferente: “Todo aquele que atinja o Hades
como profano e sem ter sido iniciado terá como lugar de destinação o Lodaçal,
enquanto aquele que houver sido purificado e iniciado morará, uma vez lá
chegado, com os Deuses”.[12]
Retomemos
aqui a ideia de que “estão se exercitando para morrer todos aqueles que, no bom
sentido da palavra, se dedicam à filosofia”[13]. Sócrates insiste em que
a única ocupação daqueles que se dedicam à filosofia “consiste em preparar-se
para morrer e estar morto”.[14] Esse trecho é importante
porque nos chama atenção para a ambiguidade desse preparar-se para morrer e
estar morto. Mas a percepção dessa ambiguidade só é suscitada em nós quando topamos
com outros trechos em que fica patente que a morte de que Platão fala não é a
morte metafísica, mas a morte enquanto renúncia ao modus vivendi típico do homem comum. Numa dessas passagens,
Sócrates indaga a Símias se não lhe parece que um homem a quem não interessa os
prazeres do corpo não está próximo da morte:
- Sem dúvida, a
opinião do vulgo, Símias, é que um homem, para o qual não existe nada de
agradável nessa espécie de coisas e que com elas não se preocupa, não merece
viver, mas, pelo contrário, está muito próximo da morte quem assim não faz
nenhum caso dos prazeres de que o corpo é instrumento?[15]
Embora
a “morte” de cuja proximidade Sócrates fala aqui possa ser a morte como
separação da alma com relação ao corpo, o “estar próximo da morte” não é estar
propriamente morto, é viver como se estivéssemos mortos; por conseguinte, é
viver sob o modo da separação, da renúncia a certo modo de viver ocupado com os
prazeres do corpo. Entendemos, portanto, que, nesse excerto, já podemos, ao
menos, entrever a concepção de morte como morte simbólica. Vejamos, contudo, se
há outros trechos que nos autorizem a fazer essa leitura. Noutra passagem do
diálogo, Sócrates fala de como a purificação era experienciada no Orfismo.
- Mas a purificação não é, de
fato, justamente o que diz uma antiga tradição? Não é apartar o mais possível a
alma do corpo, habituá-la a evitá-lo, a concentrar-se sobre si mesma por um
refluxo vindo de todos os pontos do corpo, a viver tanto quanto puder, seja nas
circunstâncias atuais, seja nas que se lhes seguirão, isolada por si mesma,
inteiramente desligada do corpo e como se houvesse desatado os laços que a ele
a prendiam?
- É exatamente isso.
- Ter uma alma desligada e posta
à parte do corpo, não é esse o sentido exato da palavra “morte?”
- É exatamente este o sentido.[16]
Ora, Sócrates fala em
purificação como uma forma de morte, de sorte que aquele que se tornou
purificado atingiu um estado de vida onde a alma já não se deixa perturbar
pelas necessidades e/ou paixões do corpo. O purificado vive como se a alma
estivesse separada do corpo. Esse estado vital assemelha-se à própria morte
propriamente dita; mas não é a morte metafísica. Portanto, parece-nos
indubitável dizer que também nesse excerto “morte” significa “morte simbólica”.
Ora, o filósofo, na medida em que se exercita na filosofia, se prepara para
essa forma de morte, que consiste na renúncia ao modus vivendi do homem comum, sempre ocupado com as necessidades do
corpo, sempre ávido de fruir prazeres fugazes. Mas o exercitar-se para essa
forma de morte constitui uma etapa da preparação para a morte como desligamento
da alma em relação ao corpo – portanto, para a morte propriamente dita.
Finalmente,
vale referir outra passagem da qual é possível inferir a compreensão da morte
como morte simbólica. Nesse trecho, Sócrates fala sobre o manter-se afastado
tanto quanto possível da sociedade (bem como do corpo) se quisermos nos
aproximar do conhecimento verdadeiro.
(...) por todo
tempo que durar nossa vida, estaremos mais próximos do saber, parece-me, quando
nos afastarmos o mais possível da sociedade e união com o corpo, salvo em
situações de necessidade premente, quando, sobretudo, não estivemos mais
contaminados por sua natureza, mas, pelo contrário, nos acharmos puros de seu
contato, e assim até o dia em que o próprio Deus houver desfeito esses laços. E
quando dessa maneira atingirmos a pureza, pois que então teremos sido separados
da demência do corpo, deveremos mui verossimilmente ficar unidos a seres
parecidos conosco; e por nós mesmos conheceremos sem mistura alguma tudo o que
é. E nisso, provavelmente, é há de consistir a verdade. Com efeito, é lícito
admitir que não seja permitido apossar-se do que é puro, quando não se é!”.
Tais devem ser necessariamente, segundo creio, meu caro Símias, as palavras e
os juízos que proferirá todo aquele que, no correto sentido da palavra, for um
amigo do saber. (...).[17]
Esse
afastamento tanto quanto possível da sociedade e da união com o corpo significa
perfazer aquilo para o qual se destina a vida do filósofo: a morte simbólica, sem a qual a busca da
verdade se lhe torna inviável. Todavia, a condição para atingir esse estado de
renúncia, de separação é o exercício da ascese, é viver de tal modo
desinteressado, apartado, desocupado das solicitações do corpo, dos seus
anseios desmedidos, moderando suas paixões. A ascese funciona, pois, como um
registro semântico ou conector de isotopia[18], que possibilita
conciliar os dois significados de morte em Fédon.
Essa conciliação é possível porque a vida ascética preconizada para o filósofo
tanto atende à necessidade de ele permanecer vivendo enquanto tal, ou seja,
enquanto amante da sabedoria, em cuja busca persiste sem ser desviado dela
pelas intransigências excessivas do corpo, pela desmesura de suas paixões,
quanto atende à esperança que nutre em tomar posse da sabedoria quando do
definitivo desligamento da alma em relação ao corpo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHAUÍ,
Marilena. Introdução à filosofia – Dos
pré-socráticos a Aristóteles. São
Paulo: Companhia das Letras, 2002.
FIORIN,
José Luiz. Elementos de Análise de
Discurso. São Paulo: Contexto, 2005.
PLATÃO. Coleção Os pensadores. Diálogos: O Banquete, Fédon, Sofista,
Político. São Paulo: Abril Cultural, 1972.
REALE,
Giovanni. Platão. São Paulo: Loyola,
2007.
[1] A expressão “morte simbólica”
foi sugerida pela professora Izabela Bocayuva como parte da leitura que ela
mesma faz do significado da morte em Fédon.
[2]
Usamos a expressão “homem
comum” para designar o gênero de homem que vive imerso na cotidianidade,
assumindo as crenças, os preconceitos, os comportamentos, os significados partilhados por todos os demais com quem convive num espaço sócio-político-cultural.
[3] Excederia os limites deste
trabalho o pretender discorrer sobre o que foi a tradição órfica. Bastar-nos-á
enfatizar que as doutrinas das quais Platão dará uma demonstração racional se
situam na esteira da tradição órfico-pitagórica.
[4] Considerando-se Fédon, Fedro, República e Leis, o número das provas podem aumentar
para cinco (Chauí, 2002).
[5] Fédon,79a-80b.
[8] Ibid., 67d-e.
[9] Ibid., 66b.
[11] Ibid., 65d.
[12] Ibid., 69c.
[13] Ibid., 68a
[15] Ibid., 65a.
[16] Ibid., 67d.
[17] 67a.
[18]
“Um conector de isotopias é
um termo que possui dois ou mais significados, isto é, um termo polissêmico,
presente no texto, que possibilita sua leitura em dois planos distintos, que
permite a passagem de uma isotopia a outra”. (Fiorin, 2005, p. 115).