
Diálogos sobre o tema do suicídio
Ou sobre se a vida vale ou não a pena ser
vivida
1ª hipótese
Sim, não podemos esquecer que nosso tema é o suicídio e que a
partir dele decidimos desenvolver, conjunta e confrontantemente, nossas
reflexões. E quero, em outros momentos de minhas intervenções, tornar a
considerar o suicídio, principalmente sob duas perspectivas: a da condenação
pela Igreja cristã e da patologização pela psicanálise. Mas a questão do
suicídio – concordamos nesse ponto – nos conduz para a questão que consiste em
determinar se a vida vale ou não a pena ser vivida. Acho que é o momento, então,
de começarmos a refletir sobre o tema do sentido, sem perder de vista sua
articulação com o tema do desespero. Já apresentei uma definição de desespero a
partir de Rosset que pode nos servir de “âncora” para nossas reflexões. Cito-a
aqui novamente: o desespero é “uma disposição absolutamente refratária a tudo
que se assemelhe à esperança ou à expectativa”. Essa definição expressa um dos dois
sentidos com que o vocábulo desespero
deve se apresentar como objeto de nossas reflexões. O outro sentido, típico do
senso comum, é o do desespero como perda dos esteios que davam sustentação à
existência, como experiência de desorientação perturbadora, de ruína dos
alicerces (ilusórios?) de nossa existência. A definição de desespero proposta
por Rosset se inscreve no horizonte de uma filosofia trágica, ao passo que a
definição do desespero como ‘experiência de desorientação perturbadora' pode ser
vista como representante de uma filosofia pessimista.
Gostaria que esta
primeira etapa seja vista como minha primeira hipótese a respeito da natureza
do sentido (que, aliás, conforme procurarei mostrar, nos escapa tão logo
pretendemos dar a conhecê-la). Como primeira hipótese, o que faço é uma
tentativa de esclarecer o que acredito estar em jogo na problemática do
sentido. O que direi do sentido é produto de reflexões já feitas e apresentadas
em outro lugar, e as reconsiderando agora, estou convencido de que há outros
elementos que precisam ser observados no tratamento dessa questão. Por enquanto,
espero que o início de minha abordagem da questão do sentido nos inspire para fazer
novos sobrevoos de reflexão!
Sem mais delongas, eis como decidi iniciar minhas
reflexões sobre a questão do sentido. Aí está você, lançado no mundo, tendo a
morte como seu acontecimento futuro principal. Sem nenhuma razão para
encontrar-se neste meio sociocultural em vez de outro. Você mesmo, um ser
humano trêmulo, habitante de um universo indiferente aos seus anseios,
objetivos... Para evitar que você sucumba ao desespero total, sua cultura lhe
molda um caráter (uma espécie de proteção), lhe constrói uma armadura que o/a
impede de sofrer a invasão de intuições perturbadoras sobre a natureza
verdadeira do mundo, sobre a crua condição humana. E tendo sido doutrinado(a),
ainda de modo informal, numa tradição religiosa e aprendido que a vida tem
sentido, porque existe um Deus que o garante, você receberá, na escola, algumas
lições sobre biologia. Uma lição de que, provavelmente, você jamais se esqueceu
é a que lhe ensina sobre a cadeia alimentar, que distribui num sistema de
produtores, os consumidores e os decompositores. A cadeia alimentar constitui a
base do ecossistema. Ao longo da cadeia alimentar, os organismos produtores
transferem energia e nutrientes aos consumidores. Essa transferência é cíclica,
pois se completa quando do retorno dos nutrientes aos produtores. O retorno é
possível pela ação dos decompositores que transformam a matéria orgânica dos
cadáveres e os excrementos em compostos mais simples, num ciclo ininterrupto de
transferência de nutrientes. A energia é um bem indispensável à sobrevivência
de todo organismo, por isso todos os organismos, independentemente do lugar que
ocupam na cadeia alimentar, a utilizam para a manutenção de sua vida.
Essa breve e bastante superficial descrição da cadeia alimentar ajuda-nos
a compreender que o metabolismo, isto é, o processo geral pelo qual os
organismos vivos se apropriam e se utilizam da energia de que precisam para
desempenhar suas funções vitais, constitui um aspecto fundamental da definição
da vida. São muitas as definições propostas para o termo vida nas
ciências da natureza (e eu não tenho a pretensão de adotar alguma delas). Mas
uma lição igualmente importante de nossas aulas de biologia é que um ente só
pode ser considerado um organismo vivo se exibir todos os seguintes fenômenos:
a) desenvolvimento:
passagem por etapas sequenciais que vão da concepção à morte; b) crescimento: acumulação e
reorganização de matéria proveniente do meio natural; excreção dos produtos indesejáveis;
c) movimento, acompanhado
ou não de locomoção no ambiente; d) reprodução: capacidade de gerar indivíduos semelhantes; e) resposta a estímulos: capacidade
sensitiva e de reação às possíveis mudanças no meio natural; f) evolução: capacidade de transformação
de sucessivas gerações e de adaptação delas ao meio ambiente.
O que aprendemos sobre a cadeia alimentar nos foi
transmitido com os termos técnicos consagrados na ciência biológica. E a tecnicidade desses termos nos impede de
ter uma experiência de assombro diante do fato de a cadeia alimentar não passar
de uma cadeia de carnificina incessante durante a qual a necessidade de matar é
condição indispensável à manutenção do processo de viver nas condições
naturais. A vida, nessa perspectiva, não é mais que um sistema autorregulador
cujo desenvolvimento se realiza por meio dos processos de reprodução e de
destruição de organismos que, por sua vez, não são mais do que máquinas de
sobrevivência programadas por seus genes para satisfazer o “interesse” do
conjunto desses genes, qual seja, a perpetuação nas gerações futuras. ( De modo
algum, - preciso lembrar - entendo serem os animais “máquinas de
sobrevivência”; em relação ao sofrimento dos animais, estou afetivamente
próximo de Schopenhauer).
Conforme nos ensina Dawkins, em seu O
Gene Egoísta, toda máquina de sobrevivência tem como objetivo a sua
sobrevivência individual e a reprodução. Por isso, ainda segundo Dawkins: “Os animais (...) não medem esforços para
encontrar e capturar alimento, para evitar serem eles mesmos capturados e
comidos, para evitar doenças e acidentes, para proteger-se das condições
climáticas desfavoráveis, para encontrar membros do sexo oposto e persuadi-los
a acasalar-se, e para conferir aos seus descendentes vantagem semelhantes
àqueles que eles próprios desfrutam”.
Os esforços dos animais descritos por Dawkins no
trecho acima são, penso, evidências que dão sustentação à visão da vida como um
esforço contínuo de resistência dos organismos à tendência intrínseca da
vida ao aniquilamento, isto é, à morte (Freud soube bem ver isso no seu
conceito de pulsão de morte, e antes dele Empédocles). A morte não é uma simples circunstância
consequente do processo de viver; ela é um dos momentos constitutivos da
dinâmica do processo de viver (no sentido de que, enquanto vivo, carrego em mim
a possibilidade sempre aí da minha morte). Essa compreensão do processo da vida
pode ser ampliada com a observação de que a extinção é o destino de todas as
espécies. Ora, a vida na Terra começou há cerca de 4 bilhões de anos e evoluiu
em milhões de milhões de direções diferentes, e está destinada a findar em
entropia máxima muito antes do resto do universo. Também o Sol, sem o qual a
vida na Terra não seria possível, explodirá ou se consumirá em cerca de 5
bilhões de anos, reduzindo a cinzas tudo que gira à sua volta. As estrelas não
terão destino diferente. Olhar o universo a partir dessa perspectiva niilista,
a qual nos mostra que a tendência de tudo que existe é desaparecer no Nada
absoluto, não é adotar uma visão pessimista sobre a vida; é, na verdade,
atingir uma compreensão radical do caráter deveniente de tudo que há. Por
alguns instantes, vamos considerar o que significa ser no tempo. Ou seja, o que
significa a experiência do tempo, para nós, humanos? Não te parece que ela significa
a experiência do fluxo incessante de todas as coisas, do passar, do fugaz, do
aniquilamento, da dissolução, donde resulta a experiência de nulidade de tudo
que fazemos? Marcel Coche soube bem ver qual é a pergunta mais radical que está,
por assim dizer, prevista na clássica pergunta “Por que existe alguma coisa em
vez de nada?”. A pergunta mais radical é outra, diz o filósofo. Trata-se de
perguntar “Por que fazer alguma coisa em vez de nada?” Se a destinação
de tudo que há é o aniquilamento, se a experiência do tempo, que é a do devir,
é a própria experiência de estarmos rodeados pelo nada (já que tudo que é deixa
de ser, num fluxo contínuo), por que fazer alguma coisa em vez de nada fazer?
O que Sartre disse a respeito da condição do
homem frente a sua indeterminação radical (“O homem está condenado a ser
livre”) penso ser possível dizer da condição do homem em relação à necessidade
de dar sentido, de produzi-lo: o homem está
condenado a produzir sentido. Essa é uma condição inescapável ao homem dada
a sua natureza de ser de linguagem, ser de discurso (homo loquens). O acontecimento do sentido é um acontecimento de
linguagem, ou seja, não é possível conceber, falar de sentido sem levar em
conta a linguagem como capacidade humana que não
só serve para estruturar as nossas experiências de mundo, mas também para dar sentido
a elas.
Mas a própria
experiência de construção de sentido, por força da consciência que tem o homem
de ser no tempo, está, em última instância, destinada ao fracasso. Vou explicar
por que a entendo como destinada ao fracasso. Sentido é um
termo difícil de definir (quero dizer mais precisamente que, ao tentarmos
responder a questão “qual é o significado de significado?”, já estamos
produzindo um ato de significar; somos como que enclausurados no domínio
daquilo que pretendemos revelar). Não podemos “sair” da linguagem para, de um
ponto de vista externo à prática de significação, dizer o que é o significado.
Dizer é já significar. Além disso, o sentido é marcado por uma
‘ausência de si’. Quando nos perguntamos sobre o sentido da palavra “casa”,
queremos saber qual é o significado da palavra “casa”, ou seja, o seu conteúdo
semântico, o seu significado denotativo, ou ainda a ideia associada a ela. Não
vou aqui entrar em discussões sobre a distinção entre significado e sentido,
como a estabelecida por Frege, nem tecer considerações sobre o que significa
falar em “sentido” nas diversas teorias da Linguística. Não farei distinção
entre “sentido” e “significado”. Sentido e significado serão tomados como
termos sinônimos. Espero que fique claro que os significados que atribuímos às
nossas experiências de mundo são sempre humanos, demasiado humanos e, portanto,
frágeis, efêmeros tal como é frágil e efêmera a vida humana num Universo que carece
de ordem, de sentido em si; num Universo que é indiferente ao nosso trabalho
cotidiano de produção de sentido.
O sentido da palavra “casa” não é nem a
estrutura sonora ou, em termos saussureanos, a imagem acústica /kaza/ nem o
referente concreto que o signo “casa” designa no mundo. O sentido está de
permeio, por assim dizer, entre o significante (a imagem acústica) e a coisa
significada. Notemos que o sentido tem um papel de articulação, de relação.
Todavia, diferentemente do que pensava Saussure, vou assumir que essa
articulação feita pelo sentido (ou significado) não é a da imagem acústica com
a coisa designada pelo signo, mas a da imagem acústica, ela própria “a imagem
psíquica do som” (Saussure), com o conceito, que é também um componente de
ordem mental. Mas o sentido só pode atualizar-se através de
outros signos (Peirce). Se eu forneço o sentido da palavra “casa”, o faço
através de uma definição que resulta da combinação de outros signos. Assim, o
sentido de “casa” é “edifício destinado à habitação”. Evidentemente, este é um
dos sentidos de “casa”, já que as palavras são polissêmicas. Mas o aspecto
polissêmico das palavras não tem relevância aqui.
Disse que o sentido
“está de permeio”, mas como poderia “estar entre duas coisas”, se o sentido é
‘ausência de si’, é um ‘lugar vazio’? Como poderia ‘uma ausência’ ocupar um lugar?
É que o sentido é a determinação de uma ausência que significa na combinatória
de outros signos. Nunca encontramos, de fato, o sentido em si (veja “eis o
sentido!). O sentido de um signo é outro signo ou combinatória de signos
(Peirce). Evidentemente, esse outro signo significante ou combinatória de
signos só pode atualizar o sentido por convenção, ou seja, são os membros de
uma comunidade linguística que se colocam de acordo quanto ao sentido que vão
atribuir às palavras. Ou seja, são os membros de uma comunidade linguística,
compartilhando experiências de mundo, que acordaram que uma estrutura sonora
como /kaza/ significará ‘edifício destinado à habitação’. Mas a relação entre a
estrutura sonora (significante) /kaza/ e o significado é arbitrária, ou seja,
fixada por convenção, como ensina Saussure (tese aliás que tem seus
predecessores na história do pensamento filosófico).
A tradição semiológica
nos habitou a pensar no sentido como um componente do signo, ou seja, uma das
duas faces do signo. Saussure chama as duas partes do signo de “significante” e
“significado” e toma o “significado” como sinônimo de “conceito”. Mas o que merece
ser aprofundado, até onde eu consigo ver, é a distinção ontológica entre
significante, que tem caráter sensível, material (é uma combinatória de sons
articulados), e o significado (ou sentido) que não é um ente do mundo, que não
é um componente material. Só tenho acesso ao significado ou sentido por meio de
outros signos, que, por sua vez, são entidades dicotomicamente divididas em um
significante (estrutura sonora, embora não puramente segundo Saussure) e um
significado (conceito, conteúdo mental?). Mas só posso acessar o conteúdo
mental (ideia, conceito) que o meu interlocutor associa a um signo por meio de
outros signos. Eis a “mágica” do símbolo! Ele nos faz vir à mente uma ideia
sobre a coisa. A palavra “pássaro” não nos mostra um pássaro (ente sensível)
diante dos olhos, mas supõe que somos capazes de representar no espírito a
coisa designada.
Por que a experiência humana
de construção de sentido está destinada ao fracasso? Se não sabemos o que é o
sentido (na verdade, parece que ele é o próprio vazio, é ausência de si), então
devemos evitar abordá-lo como se ele pudesse nos revelar sua natureza própria. O
sentido envolve, entre outras noções, a de continuidade. Se produzo um texto
como “Joana voltou para casa, mas agora minha mãe está doente”, esse texto,
aparentemente, estranho, só fará sentido se meu interlocutor conseguir
estabelecer uma continuidade (de sentidos) entre os
conhecimentos ativados pelas expressões do texto. No exemplo em questão, o
leitor precisa conseguir estabelecer alguma relação entre o evento ‘Joana
voltou para a casa’ e ‘minha mãe está doente’ com base em conhecimentos de que
já disponha previamente. O enunciado não nos fornece todos os conhecimentos
necessários para a sua compreensão. Boa parte desses conhecimentos deve ser
partilhada entre os interlocutores. Se meu interlocutor sabe que “Joana” é
minha irmã, que ela fugiu de casa, que minha mãe estava aflita e que a família
estava preocupada com a possibilidade de minha mãe adoecer em virtude da
preocupação com a ausência de minha irmã, então lhe será possível reconstruir o
sentido pretendido por mim ao produzir o enunciado. Considerando-se todos os
conhecimentos que se espera sejam partilhados e a estrutura sintática do
enunciado, formado por duas orações articuladas pelo operador “mas”, que
contrapõe um estado-de-coisas a outro, o meu interlocutor pode construir para o
enunciado o sentido: ‘Joana não voltou a tempo para evitar que minha mãe
adoecesse’. Ora, nesse caso, o locutor pretende que seu interlocutor
aceite a interpretação que ele, locutor, faz do ocorrido: Joana agora
nos causou outra preocupação, a saber, a preocupação com o estado de saúde de
nossa mãe. Novamente, estamos diante de um fato bastante interessante:
mesmo que o sentido possa ser compreendido como construção de relações,
apreensão de uma continuidade, como um efeito dependente de princípios de
inteligibilidade e de interpretabilidade, o sentido só se materializa por meio
de um complexo sígnico, ou seja, de uma frase ou texto. Parece que, ao
pretendermos capturar o sentido em sua transparência, como algo que, emergindo
das palavras, se pudesse “visualizar”, ele nos lança novamente para outras
palavras, para outros signos e assim sucessivamente. Acredito ter encontrado
uma saída para a dificuldade em que me envolvi na problematização do sentido,
mas não desenvolverei tudo que ela envolve.
Quando pensamos no
conceito de “continuidade”, vem à nossa mente a ideia de ‘caráter ou qualidade
do que é contínuo’. “Contínuo, por sua vez, diz-se do que não é dividido na
extensão ou não é interrompido na duração. Continuidade também se imbrica com a
ideia de estabilidade, já que “estabilidade” supõe também a ideia de
“permanência”. Transpondo o conceito de continuidade, subjacente à compreensão
do sentido, para o domínio ontológico-fenomenológico, pense sobre o que
significa dizer que “minhas atividades fazem sentido”. Se eu digo que minhas
atividades fazem sentido, quero dizer que consigo estabelecer entre elas uma
ligação, uma continuidade (e continuidade implica, nesse caso, estabilidade).
Mas preciso acrescentar a essa compreensão do sentido um componente fundamental
do homem: o desejo. As atividades que realizo fazem sentido se elas
estiverem em harmonia com o meu desejo, se eu puder representá-las como meios
para a satisfação de meu desejo. E nós não desejamos senão bens, e o sumo bem
que desejamos é, como nos ensinara Aristóteles, a felicidade. Logo, as
atividades que eu realizo só fazem sentido, em última instância, se a
continuidade que posso estabelecer entre elas, as ligações que elas mantêm entre
si me encaminham para a realização de minha felicidade. Ela é – concordando com
Aristóteles - o sumo bem a que tende todo homem. Independentemente da forma
como cada pessoa entende o que é uma “vida feliz”, o que estou tentando mostrar
é que o sentido é o efeito de minha capacidade de estabelecer ligações entre
minhas experiências, entre meus atos, minhas atividades, de modo tal que essas
ligações assegurem a ou me encaminhem para a realização de meu desejo de
felicidade. Uma vida humana da qual se pode dizer que é dotada de sentido é uma
vida em cuja destinação (isto é, cujo modo como a dinâmica de seus eventos me
afeta) se pode estabelecer ligações entre seus momentos e/ou eventos
constitutivos, as quais, por sua vez, devem encaminhar-me para a realização de
minha felicidade.
Por que a experiência
de construção de sentido está destinada a fracassar? Lembro que essa questão se
nos apresenta em função do reconhecimento de que o tempo é o passar incessante
de todas as coisas, é a impossibilidade de que as coisas durem. O tempo nos
revela esta grande verdade: tudo que é torna-se o seu contrário, ou seja, deixa
de ser. Ora, o tempo não nos pode dar a continuidade, a estabilidade, no
sentido de ‘permanência’, exigida pela necessidade que temos de construir sentido.
Assim, por exemplo, quem extrai sentido para a sua vida da experiência do
trabalho, porque esse alguém é um ‘ser no tempo’, está sempre sujeito a perder
aquilo que faz sentido. Essa pessoa pode deixar o cargo que ocupa e que lhe dá
certo status e poder para ocupar um cargo de menor representatividade. Isso
pode significar a redução de seu salário e dos poderes de que antes gozava. Ou,
em caso de uma grave crise econômica, pode vir a perder o emprego. Como diz a
canção, “tudo muda o tempo todo no mundo”. Como não há vida possível senão no
tempo e como o homem é um ser que tem consciência de que vive no tempo, como “o
tempo “segue na mesma marcha” - em nós, mas independente de
nós” (Coche, 2000, p. 182, ênfase minha), somos presas da lei do tempo que tudo
encaminha para o nada, e a própria vida torna precária nossa tarefa de atribuir
sentido às nossas experiências, às nossas atividades. Como a vida não pode
garantir a continuidade, a estabilidade exigida pelo sentido por força do fato
de ser uma vida temporal, o homem sente a necessidade de produzir, na
imaginação, uma ligação que transcenda o tempo, uma ligação que o contente na
esperança de existir no mundo do ser, que é o oposto do mundo do devir, onde a
lei é a impermanência de tudo que existe. A experiência do tempo revela ao
homem que ele é também um ente impermanente, destinado a não durar como tudo o
mais. A fugacidade ou a impermanência constitui o modo como a vida se destina
para o homem e essa destinação da vida torna frágil a experiência do sentido.
Enquanto o homem “habita” o tempo, o sentido continua sendo uma experiência
precária, destinada a não resistir à inexorabilidade da lei do tempo. A
religião produz no homem a esperança de que o sentido último de sua vida
consista numa ligação que transcenda o tempo. Por isso, o sentido da vida só
pode ser entendido como sentido transcendente. Esse sentido quer dizer: minha
vida extrai sua coerência, sua coesão, de uma outra vida, de uma vida fora do
tempo - a vida eterna, ou a eternidade -, garantidora da estabilidade, da
continuidade exigidas pela minha necessidade de sentido.
O que a língua nos
ensina acerca do sentido é que ele exige ordem, ordenação, organização (as
palavras precisam se organizar numa ordem fixada pelos padrões da gramática de
uma língua para que a frase tenha sentido). Uma sequência como “O na janela viu
pousar o menino o passarinho” é desprovida de uma ordem gramaticalmente
aceitável e, portanto, carece de sentido; sequer é uma frase em português. Não
há sentido no caos, assim como não há sentido na sequência que não
obedece a nenhum padrão regular previsto
pela gramática de uma língua. Assim também a atribuição de sentido ao viver
depende de que nossas experiências, nosso mundo fático seja dotado de ordem, de
organização. A expressão “minha vida está uma bagunça” confirma que a vida é
uma experiência que supõe ordem, ordenação, organização, e o sentido é produto
dessa ordem. O sentido do viver cotidiano é garantido por esquemas cognitivos
pelos quais ordenamos cada ação que realizamos. Esses esquemas se chamam rotinas.
A forma do destinar-se da vida cotidiana é a da rotina. E rotina implica
ordenação e é ela que nos dá a ilusão de sustentabilidade do sentido. Se a
rotina sofre uma quebra profunda, por exemplo, com a descoberta de um câncer
que nos forçará a frequentar hospitais, a submeter-se a sessões de
quimioterapia e a suportar estados intensos de debilidade, que envolvem dor,
anemia, diarreia, náusea, vômito, etc., somos lançados numa perturbadora crise
de sentido. O sentido da vida, em circunstâncias como esta, é colocado em
questão, o sofrimento nos expõe à fragilidade da vida, à fragilidade do sentido
e à compreensão do ser, que, em circunstâncias como esta, nos desvela o
caráter dramático da finitude do ser-aí que cada um de nós
é. Finitude não significa o caráter mortal do homem, mas seu
modo próprio de existir marcado pela antecipação da “totalidade de sua
existência que se estende como um arco do nascimento à morte”. (Stein, 1976, p.
71). Essa consciência e antecipação do modo finito de existir são
estruturadoras do modo de ser do ente que somos.
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