Eu e minha orientação filosófica
“Não
tem que nos doer a transitoriedade das coisas terrestres ou a inexistência das
celestes. Que tudo esteja destinado a perecer, que tudo seja vão e fugaz, que
tudo careça absolutamente de valor e consistência, isso só pode nos provocar
desgosto”.
(Cioran)
1. Primeiras palavras
“A
filosofia – escreve Sponville – nada mais é do que a vida tentando se pensar”.
Mas que vida é esta – devemos perguntar – que se esforça por pensar a si mesma?
Não se trata, naturalmente, da vida em geral, porque a vida se objetiva em
organismos incapazes da experiência de pensamento. Somente uma forma de vida é
capaz de se voltar reflexivamente sobre a própria vida: a vida humana. A filosofia é, então, o próprio modo de ser da vida
humana que se exterioriza como questionamento sobre o que é isto: a existência. Ao afirmar que a
filosofia não é outra coisa senão a vida se pensando a si mesma, Sponville nos
chama a atenção para a relação intrínseca entre filosofia e vida. Por isso,
mesmo que encontremos, na tradição, filósofos elaborando um pensamento que
parece divorciado da vida, eles não deixaram de se ocupar, de alguma maneira, das
dimensões do problema do viver. O que me interessa aqui não é tanto demonstrar
a indissociabilidade entre filosofia e vida, mas elucidar o que entendo por vida à luz de minha orientação filosófica, cujas bases
teóricas cumpre-me dar a conhecer ao leitor. Esclarecerei, em tempo, o que
entendo por orientação filosófica.
Uma vez
que este texto se destina à exposição das bases teóricas que dão corpo e
sustentação a minha orientação filosófica, não estarei preocupado em justificar
o conjunto de pontos de vista que a estruturam. Não estarei preocupado em examinar o
conteúdo e as implicações de cada ponto de vista aduzido. Pretendo apenas
lançar luzes sobre o caminho para o qual me sinto fisiologicamente arrastado na
constituição de minha experiência filosófica de mundo.
Pensar
filosoficamente a vida é ser tomado por uma experiência de viver que se realiza
para além da ordem do viver comum. Como eu aceite a visão de filosofia de
Pierre Hadot, segundo a qual a filosofia é exercício espiritual destinado a
cunhar modos de ser, de tal modo que a filosofia é ela mesma um modo de vida,
uma maneira de viver (ao menos é assim que, na opinião de Hadot, a filosofia
antiga era experienciada),
não posso recusar-me de assumir que o exercitar-se na filosofia é apropriar-se
de um modo específico de ser e viver, que difere radicalmente do modo de ser e
viver do homem da cotidianidade mediana. A experiência com o pensamento
filosófico funda um modo próprio de ser, metamorfoseia o eu daquele que se
entrega a tal experiência.
Em
consonância com a visão de Michel Henri, segundo a qual “a vida se sente, se
experimenta a si mesma” e “a essência da vida reside na autoafecção”, assumo
que a vida é fazer uma experiência
contínua de si. Ao viver, o indivíduo vive-se numa relação de afecção com o
mundo. Vivendo-se, o indivíduo se experiencia num movimento de autoconstituição
que será expressão de certo modo de ser afetado fisiologicamente pelo caráter deveniente da vida. Portanto, não se
trata aqui de pensar a vida como mero processo biológico que partilhamos com
outras formas orgânicas, mas de assumir a vida como uma experiência singular do
caráter deveniente do mundo sob o modo como somos afetados por esse caráter.
Vida é vida que se sente. Por conseguinte, minha orientação filosófica é
consequência de certo modo como eu sou afetado pelo caráter deveniente do
mundo, como eu experiencio em mim a dinâmica da vida na condição de Dasein.
Minha inclinação a um ou outro filósofo, a uma ou outra questão filosófica,
enfim, a uma ou outra orientação filosófica é determinada, em última instância,
pelo modo como sou afetado pelo caráter deveniente da vida.
Outra
maneira de compreender a vida, que toma parte da constituição de minha
orientação filosófica, encontro na pena de Schopenhauer, para quem a vida pode
ser vista como um grande sonho. Tanto o sonho como a vida, nota ele, começam de
improviso e, muitas vezes, terminam do mesmo modo. A dinâmica do viver se
representa na consciência humana como uma sucessão de presentes, cada um dos
quais não sendo senão signos da impermanência de nossas experiências. Este
ponto que grafo marca o fim de um instante presente que dá lugar a outro
instante presente que, no entanto, findará ao terminar de escrever este
parágrafo.
Entendo,
pois, por orientação filosófica um
sistema de compreensão do mundo que, sendo, na verdade, expressão de uma cosmovisão, que se forma pela articulação
de ideias, crenças, percepções, sentimentos e valores, orienta o indivíduo que
a ela adere em suas relações com os outros e com a totalidade do mundo. A
orientação filosófica expressa uma percepção profunda e totalizante do real.
Seu aspecto teórico é indissociável de seu aspecto prático, no sentido de que,
por ser uma orientação subsidiada pela contemplação filosófica do mundo, a orientação filosófica dá forma a um
modo de ser, de pensar e de agir no mundo. Ela vai influenciar decisivamente
nas nossas possibilidades de poder-ser. A adesão a uma orientação filosófica
tem o peso de um compromisso com nosso ser mais próprio, de tal modo que
assumi-la é expor-se a possibilidades sempre já dadas de conflito com outros
modos de ser dos outros Daseins com os quais nos relacionamos. Aderir a uma
orientação filosófica é fazer a experiência de ser fiel a si mesmo, tão cara a
Nietzsche e condição indispensável ao autêntico exercício da filosofia. Deve-se
assumi-la como a um destino, mesmo sob o preço da solidão. O filósofo não deve
ter a pretensão de agradar a ninguém, de dizer aquilo que os outros querem ouvir,
para isso existem os padres.
2. As três grandes perspectivas de minha
orientação filosófica
Minha
orientação filosófica combina entre si três grandes pontos de vista, que são,
ao mesmo tempo, consequência do modo como sou afetado pelo mundo e expressão da
maneira como experiencio fisiologicamente o real.
1ª perspectiva: uma
filosofia do desespero, que se assenta na renúncia à crença numa instância
suprassensível, à qual se atribui o estatuto de fundamento do real. Essa
filosofia insta-nos a querer apenas o real, a afirmar a vida com tudo aquilo
que nela há de contradição, dor e sofrimento.
2ª perspectiva: uma filosofia da crueldade do
real, que
mantém ser a dor e o sofrimento inerentes à dinâmica da constituição da vida.
3ª perspectiva: uma filosofia de combate, que ataca, sem concessão, todas as
narrativas, as doutrinas, as ideologias, os sistemas filosóficos que, afinados
com uma pretensão messiânica, criam ídolos e/ou valores transcendentes que
passam a dominar os homens, tornando-os escravos de suas crenças e de seu
fanatismo. Uma filosofia de combate ataca todas as formas de idolatria que
estão na origem dos atos atrozes, os quais constituem o curso da história.
Da
perspectiva 1, segue-se que:
a) Tudo
que existe está destinado a perecer; o ser se reduz às aparências;
b) Tudo é
vão e fugaz, e carece absolutamente de valor;
c) Eu sou
um ser contingente, isto é, não necessário; todos os esforços, a labuta, os
empreendimentos humanos são atravessados por uma radical nulidade e
insignificância;
d) A vida
é desprovida de sentido absoluto ou metafísico, e só se conserva como fenômeno
irracional. “Não sei por que vivo –
escreve Cioran – e por que não cesso de viver (...) a chave provavelmente
reside no fenômeno da irracionalidade da vida, que faz com que ela se mantenha
sem motivo”.
e) O mundo
e o homem existem sob o modo de uma absurdidade radical; tudo é gratuito. Tudo
é desprovido de razão ou necessidade. O mundo se dá como contingência radical,
e eu mesmo me apreendo como um ser igualmente contingente;
f) Nada do
que existe está destinado a durar; tudo flui. O passado e o futuro não passam
de abstrações da consciência; o presente é o próprio real, é a instância das
aparências fugidias.
Da
perspectiva 2, segue-se que:
a) viver é
sofrer; nascer é começar a morrer;
b) a vida
se desenvolve como um processo contínuo de geração e destruição implacável de
organismos sem qualquer finalidade;
c) A
felicidade positiva é uma quimera; só a dor é real (Schopenhauer);
d) A morte
é constitutiva da dinâmica do viver e, no caso da vida humana, é constitutiva
do modo próprio de ser do homem (finitude);
Somente a
vontade cega e irracional pode explicar a razão por que a maioria dos homens
preserva a sua existência. Essa vontade os impulsiona a buscar insaciavelmente
o prazer que, no entanto, é débil, raro e efêmero. Por isso, estou de acordo
com Schopenhauer, ao afirmar que “viver feliz somente pode ter o sentido de
viver menos infeliz possível, ou, em poucas palavras, de viver de maneira suportável”.
Da
perspectiva 3, segue-se que a filosofia hoje deve se afirmar como filosofia da
suspeita, dando novo vigor a um ceticismo engajado que se preocupe em
questionar as bases sobre as quais se mantêm os impérios da crença que ameaçam
as liberdades individuais e coletivas. À luz dessa filosofia de combate, a
história é desprovida de qualquer sentido ou finalidade. Ela não é mais do que
o desenrolar de acontecimentos em cujo curso os homens contendem para usufruir
do poder e para perpetuar-se nele. A história não é mais do que a luta
incessante entre os homens pela dominação sobre o próprio destino da
humanidade. O homem é um fantoche daquilo que criou. Ele é um ser delirante: há
nele uma força obscura que o impulsiona a aderir a uma verdade que se impõe
pelo desejo de poder e de dominação.
Uma
filosofia de combate se insurge contra toda pretensão (política, ideológica,
filosófica, teológica) de melhoramento do homem; pretensão esta em cujo cerne
repousa a crença no sentido da história e na possibilidade de progresso de toda
a humanidade. Como advoga Cioran, a história não passa de uma sucessão de
massacres. A história se desdobra na forma de enredos que abrigam promessas de felicidade
e crimes inevitáveis. O homem, assim, ilude-se ao acreditar que ele é autor da
história. Na verdade, é a história que o domina, que o abala, que faz dele um
joguete do insolúvel e do intolerável. À proporção que se vão tramando os
acontecimentos históricos, os homens vão-se neles enredando como uma presa que
em vão tenta escapar da teia onde se encontra e onde seu destino será decidido.
Uma
filosofia do desespero mantém que a morte é o nada absoluto ao qual o homem
está destinado tão logo nasce. Mas, acompanhando de perto a lição de Heidegger,
não precisa ela reduzir a morte ao estado definitivo e irremediável do homem. A
morte deve ser pensada relativamente à finitude do Dasein. A finitude do Dasein
recobre tanto a morte quanto a destinação do ser em sua abertura constitutiva.
No horizonte da morte, a finitude diz respeito ao poder não mais ser do Dasein.
Sendo a possibilidade mais própria do Dasein, a morte é um acontecimento sempre
iminente em sua existência. Na medida em que o Dasein é um ser-para-a-morte,
ele precisa lidar com a transitoriedade própria de suas possibilidades de ser.
Nessa lida com suas possibilidades de ser, o real nunca se dá ao Dasein
definitivamente, mas sempre limitado pelas suas possibilidades de ser e pelo
movimento intrínseco de realização dessas possibilidades de ser. A morte é
constitutiva do poder ser que o Dasein sempre é. A morte já está sempre dada
como possível irrupção na vida fática do Dasein. Ela é seu poder não mais ser
sempre iminente em sua existência.
3. Uma filosofia ateísta
3.1. O
acontecimento da morte de Deus
Uma
filosofia do desespero é, necessariamente, uma filosofia ateísta. Ela deve
assumir as consequências do acontecimento histórico da morte de Deus.
Para que
se compreenda a semanticidade do acontecimento da morte de Deus, sem incorrer
no equívoco de lê-la restritivamente como o anúncio da ruína da crença na
existência do Deus cristão, devemos ter em conta o que nos diz Nietzsche sobre
o conceito de Deus cristão, em Crepúsculo
dos Ídolos (2006, p. 27). Escreve Nietzsche: “Todos os
valores mais altos são de primeira ordem, todos os conceitos mais elevados, o
ser, o incondicionado, o bem, o verdadeiro, o perfeito (...) são subsumidos “pelo estupendo conceito
de Deus”. Portanto, Deus é o conceito que
abarca todos os conceitos que, forjados na tradição ocidental, dizem respeito
ao mundo suprassensível ou meta-empírico. Destarte, a morte de Deus significa,
em suma, que o mundo supra-sensível esvaziou-se de sua força e poder de atuação
sobre a vida e sobre as formas como o homem (pós)moderno dela se apropria
enquanto autoafecção.
Deter-me-ei
no esclarecimento da significatividade do acontecimento da morte de Deus
anunciado por Nietzsche. Primeiramente, devemos ter em conta que, ao anunciar a
morte de Deus, Nietzsche tinha vista o Deus teísta, que é o Deus metafísico
cristão. Mas a morte de Deus não pretende significar que Deus não existe;
trata-se, na verdade, de dessignificá-lo alijando dele sua base metafísica. A
fim de que compreendamos o que significa dizer que Deus está morto, devemos,
primeiramente, entender o modo como Deus foi compreendido pela tradição
metafísico-cristã. Ora, Deus é o fundamento metafísico supremo do real; é fonte
que legitima o comportamento humano; é a instância metafísica doadora de
sentido à existência humana. Deus é o princípio de sustentação de tudo que é e,
ao mesmo tempo, princípio de inteligibilidade última de todo ente. Deus é a
unidade fundante da totalidade. Quais são, pois, os desdobramentos da morte de
Deus? A morte de Deus significa:
1) a
dissolução da metafísica e de seu poder de estruturação do pensamento e dos
comportamentos do homem ocidental;
2) a crise
dos sistemas dicotômicos de explicação do mundo, em cujo horizonte um dos
elementos da dicotomia funcionava como princípio fundador e legitimador do
outro (p. ex., ser x devir; essência x aparência, suprassensível x sensível,
etc.).
3) a
impossibilidade de pensar em instâncias metafísicas transcendentes como razões
últimas do devir. Não há nenhuma realidade transcendente ao devir, a qual seria
uma instância garantidora de sentido ao próprio devir.
Em suma,
“a morte de Deus dissolve as metanarrativas metafísicas em geral”(Cabral, 2015,
p. 68).
O Deus
cristão significa o suprassensível por excelência; é fonte criadora e fim de
tudo e de todos os entes, sem, no entanto, submeter-se ao devir. O Deus
cristão, na condição de criador, transcende toda a criação. Na medida em que
esse Deus é uma forma monossêmica de constituição do divino, o significado
cristão de Deus determinará a constituição de um corpo vital e condicionará um
modo específico de ser do homem e do mundo. O acontecimento histórico da morte
de Deus, exaurindo o monossemantismo do Deus metafísico-cristão, destrancará
outros modos de ser possíveis. O que seria, então, sentir a vida na
contemporaneidade que assiste à consumação do acontecimento da morte de Deus? É
experienciar o sentimento de acosmia, ou seja, de pleno abandono num universo
vasto, escuro e indiferente, onde não é possível mais encontrar qualquer fonte
de sentido último para a existência humana e do próprio mundo; é também, ao
menos para os que não buscam mais subterfúgios para escapar ao desespero total
que se abre com a tomada de consciência de sua condição insignificante na
imensidão cósmica, enfrentar o problema que consiste em explicar por que
preferir uma existência absurda ao suicídio. Trata-se do maior problema que a
filosofia pós-nietzscheana, ou a filosofia que se pretende ainda necessária em
nossa época, deve enfrentar: o problema
do suicídio, a que Camus aludiu como o único problema filosófico, deveras,
sério. Este é o problema para cujo enfrentamento fui despertado à medida que se
me tornava clara minha orientação filosófica. Posso dizer, tendo percorrido
ainda um curto caminho da vida e da filosofia, que meu interesse pela filosofia
resume-se no enfrentamento deste inquietante problema: por que preferir uma existência sem sentido e marcada profundamente por
dores e sofrimentos injustificáveis, cujo início se deu sem razão e cujo fim se
dará necessariamente num momento que ignoramos, ao suicídio?
4. O amor
“Sem o
amor, a existência de uma pessoa se mantém dramaticamente incompleta” (Leandro
Konder)
Um dos
meus temas favoritos para os quais dirijo o vigor de meu espírito é o amor.
Sempre que topo com um livro que aborda seriamente – digo, filosófica,
sociológica, antropológica, cientificamente – o assunto, procuro comprá-lo, com
o interesse de me tornar um pouco menos vulnerável às suas ilusões.
Intelectualmente, estou ciente das ilusões a que o estado de apaixonamento
amoroso nos expõe, o que não significa que, na prática, eu não me deixe seduzir
por elas. Tanto mais que, depois de uma decepção amorosa costumeira, dou-me
conta de que me encontrava novamente como uma presa de seus tentáculos.
No que
toca aos perigos a que somos expostos na experiência do amor-paixão, refiro
apenas dois trechos, colhidos da obra Amor
– um sentimento desordenado (2012), de Richard D. Precht. O primeiro trecho
é o seguinte: “tudo que imaginamos saber sobre o amor é uma ideia sem um lugar
real fora de nossa fantasia.” (p. 253). Nesse trecho, o autor nos adverte sobre
o fato de que muitas de nossas representações da experiência amorosa são
produtos da fantasia. Por exemplo, a ideia de que o amor é uma experiência de
fusão com o outro, de unidade é simplesmente sintoma do desejo, sem que ela
mesma tenha algum apoio empírico. O segundo trecho é o seguinte: “o amor não
pode ser refutado, apenas decepcionado”. Nesse trecho, somos instados à
compreensão de que, apesar de estarmos, na maioria das vezes, enredados em
ilusões que produzimos sobre o amor e o amado, quando estamos tomados de amor,
a própria experiência de amor não é, necessariamente, algo irreal, passível de
ser falseada. O amor nos amarra às suas ilusões, mas nem por isso deixa de ser
uma experiência fisiologicamente real e que, por ser real, tende a nos
decepcionar.
A
experiência amorosa de nossa era líquido-moderna, objeto de reflexão do
sociólogo Zygmunt Bauman, pode ser descrita resumidamente na seguinte passagem
de Precht: “o amor promove hoje relacionamentos que continuamente são desfeitos
de modo unilateral. Se o céu se torna o inferno, podemos romper o vínculo”. (p.
254).
Considerando
o que até então já li a respeito do amor, estou convencido de 1) que a pior
ameaça ao amor é o ideal e 2) que o amor é um bem tão elevado que não devemos
exigir muito dele o tempo todo.
Antes de
encerrar, quero, no entanto, externar minha compreensão do amor à luz da visão
trágica da vida.
O
pensamento trágico, porque afirmador do acaso e do não-ser, segundo Rosset
(1989), pensa o real, a vida, como uma experiência dotada de todas as
características da festa: “irrupções inesperadas, excepcionais, não sobrevindo
senão uma vez e que não se pode apreender senão uma vez”. (p. 127).
As ocasiões tanto da vida quanto da festa se dão em um tempo, em um lugar, para
uma pessoa. O sabor dessas ocasiões é único, jamais repetível, o que torna cada
instante da vida, consoante Rosset, repleto das características da festa, do
jogo e do júbilo. Fruir a vida, destarte, depende de que nos apropriemos do kairós, ou seja, que reconheçamos o
momento oportuno, o único possível que devemos saber fruir, aproveitar e gozar.
Ora, se a
vida se experiencia também sob a dinâmica dos encontros fortuitos, de ocasiões
que se nos abrem à fruição por acaso (já que não há Providência e o curso das
coisas, portanto, não está predeterminado), a experiência do amor é ela mesma
marcada pela gratuidade dos encontros imprevistos, indeterminados, que se dão no
próprio movimento da autoexperimentação do viver, o qual carece de uma razão de
ser. O acontecimento do amor se torna, portanto, mais importante quanto mais
cientes estamos de sua gratuidade, tanto mais dispostos estamos a aceitar o
fato de que o amor não nos é um direito que possamos reclamar, que o amor, como
todo acontecimento da dinâmica do viver, é uma experiência da ordem do acaso;
que não temos, por isso, garantia nenhuma de que o fruiremos. Jogados no mundo
com a única garantia de nossa morte inevitável, o encontro amoroso, quando
realizado, é suficiente para dividir a humanidade em dois grupos: o dos
desgraçadamente felizes e o dos desgraçadamente infelizes. Mas o amor tanto
quanto o grau de desgraça que acomete os homens é questão de sorte. Ao nascerem,
todos os homens se tornam merecedores de uma única coisa apenas: o túmulo.
ROSSET, Clément.
Lógica do pior. Rio de Janeiro: Espaço
e Tempo, 1989.