segunda-feira, 3 de setembro de 2012

"Deus é uma venda posta sobre os olhos da alma" (BAR)



                                       

                                                    O Deus do obscuro

Entre os muitos malefícios fartamente apontados pelos opositores das religiões organizadas, um me parece carecer de exposição formalizada – a saber, o da universalização do engano sobre como o mundo funciona. Como visão de mundo, as religiões oferecem um modelo de representação do real sobre o qual os crentes devem calcar suas interpretações. Pelo poder da doutrinação, os crentes aprendem a interpretar e compreender o mundo mediante esse modelo, que supõe, entre outras coisas, a existência de um criador todo-poderoso donde proveio o mundo.
No momento em que se coloca Deus como dispositivo ad hoc para compreender a complexidade do real, produz-se a ignorância generalizada sobre vários aspectos da realidade do mundo e sobre a natureza humana. Basta que confrontemos os discursos institucionalizados sobre Deus, aprendidos em muitos anos de exposição à doutrinação (em missas, cultos, catecismos, etc.) com as ocorrências da realidade, com a História mesma, que é produto das ações humanas, para que percebamos as dificuldades em que nos enredamos ao tentar alcançar uma compreensão do mundo.
Dois casos recentes são ilustrativos disso. O primeiro deles diz respeito a um acidente ocorrido com um operário da construção civil, no dia 15 de agosto. A cabeça do rapaz foi perfurada por um vergalhão. Tendo sido submetido a uma cirurgia, o rapaz sobreviveu e já recebeu alta (http://www.ovale.com.br/ultimas/acidente-rio-operario-tem-cabeca-perfurada-por-vergalh-o-e-sobrevive-1.299248). O neurocirurgião não hesitou em declarar à imprensa ter sido “um milagre” o fato de o homem não ficar com qualquer sequela – embora não se descarte a possibilidade de algum distúrbio de comportamento vir a se manifestar ao longo do tempo. Não me surpreenderia se muitos religiosos, tomando conhecimento do caso, também concordassem com o neurocirurgião.
O segundo caso diz respeito a uma jovem, de 25 anos, que fora atingida por uma roda de caminhão, na Av. Brasil, no Rio de Janeiro, no dia 23 de agosto. A moça estava a caminho do trabalho, andando na calçada, quando se deu a fatalidade. Não obstante ter sido levada ao hospital, a jovem veio a falecer (http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2012/08/mulher-morre-atingida-por-roda-de-caminhao-na-avenida-brasil.html). Dois casos impressionantes; o segundo dos quais foi lamentavelmente trágico. Dois casos cujo desfecho se deu em sentido contrário.
Como explicar por que Deus não operou um milagre no caso da jovem morta por uma roda de caminhão? Por que Deus, nos seus infinitos poder e benevolência, não desviou a roda do caminhão de sua trajetória cujo alvo seria a jovem?  Uma resposta como “foi a vontade de Deus”, além de não satisfazer a busca por compreensão (não constitui ela mesma uma resposta às questões suscitadas quando confrontamos as representações de Deus com tais ocorrências), chega a ser obscena. Quando se coloca Deus em cena, não há espaço para o acaso, ainda que a vida nos dê muitas razões para que o reconheçamos.
Furacão Katrina, furacão Andrew, furacão Camille, Furacão "Labor Day" - são fenômenos naturais que ocorreram nos EUA e que causaram grandes danos no país. O primeiro matou mais de 24 pessoas; o segundo, deixou 250 mortos; o terceiro não poupou 600 pessoas. Hoje, mais um furacão tem causado estragos neste mesmo país. Em 1780, o furacão mais mortal da história, até hoje registrado, matou 27.500 pessoas, nas Pequenas Antilhas e no Caribe, atingindo Barbados, Martinica, Porto Rico e República Dominicana. Em 1755, a cidade de Lisboa ficou quase completamente destruída após um sismo a que se seguiu um tsunami, levando à morte mais de 10 mil pessoas. Certamente, foi um dos sismos mais mortais da história.
           Esses são alguns dos milhares de exemplos que constituem evidências de que este planeta que habitamos, esta natureza a que estamos biologicamente filiados, é, sem dúvida, hostil à nossa vida (a vida dos seres vivos que o habitam). E esta mesma natureza, da qual fazem parte esses fenômenos catastróficos e diversos microrganismos nocivos à vida (vírus, bactérias...) é obra, segundo a crença de mais de 2 bilhões de pessoas (sem incluir nesta estimativa os judeus, muçulmanos e espíritas), de um Deus benevolente e amoroso!
Assumir Deus como mecanismo de explicação das ocorrências do real coloca-nos uma questão insolúvel: como explicar que um Deus bom possa ter criado eventos tão catastróficos como furacões, tornados e terremotos? Vejam-se os terremotos. O que são eles? São tremores que ocorrem na superfície terrestre. O que os desencadeia? Eles podem ser desencadeados por alguma atividade vulcânica, por falhas geológicas ou pelo choque de placas tectônicas. A crosta terrestre constitui uma camada rochosa fragmentada, ou seja, formada por vários blocos chamados placas tectônicas. Essas placas estão em movimento constante. Quando se encontram em zonas de convergência, pode dar-se a colisão entre elas, do que resulta um acúmulo de pressão e descarga de energia, que toma a forma de ondas sísmicas, produzindo, assim, o terremoto. Esta é uma explicação bastante simples do que é um terremoto, mas suficientemente adequada à argumentação que venho desenvolvendo. O leitor poderá se perguntar por que Deus não poderia ter dado uma nova ordem a esse estado-de-coisas, por que não poderia ele ter criado um planeta sem esse fenômeno, muita vez, desastroso e nefasto. Sua onipotência, por definição, torna sua escolha isenta de qualquer coerção; Deus é o único ser que seria dotado de livre-arbítrio ou de liberdade absoluta.
Vejamos as doenças, agora. São elas incontáveis. Pensemos nos vírus, que são os principais agentes causadores de doença nos seres vivos. É verdade que os virologistas estudam os vírus não só para curar doenças, mas também para servir-se deles na produção de vacinas, em pesquisas com células (por serem organismos muito simples, auxiliam na compreensão da própria vida, que surgiu de organismos simples) e no combate a insetos (há vírus que atacam insetos, e os cientistas os estudam para que possam ser úteis na aniquilação de insetos que atacam as plantações). No tocante à importância dos estudos de vírus em pesquisas com células, pesquisas feitas com vírus que atacam bactérias permitiram aos cientistas compreender os genes e o DNA. No entanto, não é porque a “chave” para a solução de alguns de nossos problemas parece estar nos vírus (e bactérias) que os causa, que um mundo sem a presença desses organismos patogênicos não seria preferível. E não podemos nos esquecer de que, além desses agentes exteriores que podem causar sérios danos a nossa saúde, há também um distúrbio interno ao próprio organismo, que consiste no crescimento anômalo de células desproporcionalmente ao crescimento harmonioso dos órgãos vizinhos, ou seja, o câncer. E há que se levar em conta as doenças congênitas (defeitos em certas partes ou na estrutura do corpo herdados pelo bebê). Esses defeitos podem se manifestar na forma de disposições para desenvolver determinadas doenças. Há mais de mil tipos conhecidos de defeitos congênitos e as descobertas de outros defeitos não cessam. A consciência de que podemos nascer com tais problemas leva-nos a concluir pela fragilidade da vida, mas também deveria ser suficiente para rechaçar a hipótese da existência de um Deus benevolente. Não há nada que justifique o sofrimento de um ser humano que nasce, por exemplo, com uma doença conhecida como coréia de Huntington, que se acha latente no bebê quando do nascimento, mas que se desenvolverá na fase adulta, acarretando problemas na fala e nos movimentos, e levando a pessoa à morte.
Não tive a intenção, aqui, de desenvolver uma crítica pormenorizada, que exigiria um rigor maior na consideração de aspectos teológicos, filosóficos, históricos e científicos implicados em qualquer tentativa séria de avaliar o fenômeno religioso. A ignorância promovida pela doutrinação religiosa se estende também à privação do conhecimento pelos fiéis da própria história de formação de sua religião. É o caso do fiel que ignora fatos, há muito reconhecidos e incontestáveis, implicados na fabricação da bíblia, na construção do cânone e que dizem respeito à própria vida do Messias.
Gostaria de referir um trecho de Marcelo Da Luz, em Onde a religião termina (2011), a fim de que estejamos cientes da dificuldade com que toda tentativa de emancipação da consciência religiosa terá de lidar, especialmente numa realidade sócio-histórica como a brasileira:

“Em países de arraigadas raízes religiosas e sistemas educacionais deficitários – caso do Brasil -, a grande maioria das pessoas é desprovida de informação histórica e substrato crítico, enquanto os mitos religiosos são aprendidos desde o berço. Os clamores críticos das recentes publicações ateístas merecem, portanto, elevado crédito pela utilização do espaço público da razão, retirando a discussão racional sobre a credulidade da condição de tabu”.

(p. 323)

Tal trecho se acha numa seção em que o autor aponta três principais problemas na promoção do ateísmo do século XXI, do qual são expoentes Richard Dawkins, Christopher Hitchens, Sam Harris e Daniel Dennett.


segunda-feira, 27 de agosto de 2012

"A experiência da eternidade é a experiência do próprio presente" (BAR)


                                        


                                      O eterno presente


Não resisto à vontade de varrer para fora do domínio conceitual de uma palavra, que tenha valor teórico em algum campo do conhecimento, todos os vestígios do senso-comum de que ela fica impregnada, porque largamente usada na linguagem corrente. Assim, se não evito, cinjo ao máximo o espaço simbólico em que o lugar-comum possa encontrar ensejo.
Começarei, então, dando a conhecer ao leitor o propósito que persigo na produção deste texto. Ontem, importunado por um sentimento1 que me deslocava do agora, tornando-me desejoso do que ainda não existe, tomei a decisão de me ocupar com a leitura de um livro que respondesse àquele sentimento, de modo a fazer com que desistisse de me ocupar a alma. Não hesitei em escolher um livro de André Comte-Sponville. Escolhi A vida humana (2007) e li o último capítulo – o único, aliás, que ainda não tinha visitado. O título, desde logo, me fora bastante atraente – Eternidade. Considerando-se o sentimento como ‘disposição complexa’ e disposição – no sentido que lhe dá Jung – como certa propensão da psique para agir ou reagir numa dada direção (não importando, para tanto, a representação do objeto na consciência), precisei dar a esse sentimento outro sentido (destino), porque ele me afastava demais do instante, do presente – único tempo em que a existência é possível. O capítulo do livro de Sponville, conforme veremos, respondeu satisfatoriamente àquele sentimento, tornando-me conciliado com o presente.

1.
Sentimento: disposição complexa da pessoa, predominantemente inata e afetiva com referência a um dado objeto (outra pessoa, coisa ou idéia abstrata), a qual converte esse objeto naquilo que é para a pessoa. O sentimento é simultaneamente identificado pelo objeto e por certas relações entre a pessoa e esse objeto.

(Dicionário Técnico de Psicologia, p. 310)


O leitor talvez esteja supondo que o tema é sobremodo abstrato, por encerrar uma ideia que representa algo cuja existência será tomada de modo independente do ser (no caso, o homem) com que ela se relaciona. É este o conceito de substantivo abstrato, de que eternidade é um exemplo. Um substantivo se diz abstrato quando designa um estado, uma ação ou uma qualidade que são tomados como independentes do ser ou coisa a que se relacionam, como, por exemplo, bondade, felicidade e aspereza.
Consoante veremos, a eternidade se revestirá de concretude, nas especulações de Sponville. Impregnado de valor místico-religioso, o conceito de eternidade não se confundirá, no espaço discursivo instaurado pelo autor, com ‘duração ilimitada’ ou ‘negação total da temporalidade’, ou ainda ‘estado de vida transcendente’. Em Sponville, tomamos conhecimento da imanência da eternidade – ou seja, não é ela uma experiência desejada e transcendente. Não é ela transcendente, porque não é exterior a nós, não vai além do real. Ela é imanente ao real. Vamos, então, acompanhar a argumentação do autor, doravante. Creio ser possível essa experiência de eternidade sempre que nossa consciência está toda ela imersa no presente; sempre que nos damos conta de que não há futuro e de que o passado não é mais. Há tão-só o presente.
Antes de nos aventurarmos pelos caminhos especulativos abertos por Sponville, convém reter a seguinte lição, que colhi de Ferry e que gostaria de compartilhar aqui:

Para interrogar-se, é necessário quem interroga e o objeto interrogado. Só pode interrogar aquele que é capaz de distanciar-se da realidade que pretende interrogar.

Por isso, os animais são incapazes de interrogar, já que eles e a natureza (o real) formam um só. Não é dado a eles distanciar-se da natureza. Os animais e a natureza se confundem. Por outro lado, os homens e a natureza são dois.

Voltemos a Sponville. No limiar de seu texto, o autor explicita o princípio da cosmologia da filosofia de Heráclito de Éfeso, “tudo muda, tudo flui, tudo passa” (p. 99). O que é constante, imutável, no entanto, ensinará Sponville, evocando Marcel Conche, é o próprio princípio do devir (tudo flui, tudo se transforma). O devir identifica-se com a eternidade. Assim, dirá Sponville que não precisamos escolher entre Heráclito e Parmênides (este que pensava o Ser como uno e imutável), porque também tem razão este último no tocante à unicidade da verdade. É verdadeiro que tudo muda, que tudo passa.
Antes que o leitor fique confuso – porque pode ter-se dado conta de que Sponville não pensa a eternidade como negação da mudança (por isso o identificá-la com o devir), é preciso levar em conta que Sponville é ateu e, como tal, não poderá compreender a eternidade como transcendente ao real, ao presente. Para ele, a experiência da eternidade é possível, mas quando pensada na sua constitutividade do real, do presente. A eternidade não está apartada do mundo, do real, do presente. Sem pretender fazer incursão na sua perspectiva ateísta, limitar-me-ei a citar a passagem em que ele define um ateu:

“Não é que não creia em nada. Crê apenas no que existe – crê apenas no todo”.
(p 100)

O filósofo nos convida a repensar o como compreendemos o tempo. O tempo existe para a consciência de modo segmentado. Mas, na realidade, só há um tempo que é uno, totalizado num presente que permanece presente (o ser). Assim, o que chamamos de passado não é nada (porque deixou de ser); e o que chamamos de futuro também não é nada (porque ainda não é). Só há o presente. Só há “apenas o presente do mundo” (p. 99). O tempo para a consciência é tempo abstrato, que segmentamos em um antes, um agora e um depois. Mas só o agora é real. Ou melhor, só o presente é real.
Como pensar o ser de Parmênides na relação com a eternidade? O ser é “o presente que permanece presente” (p. 100). O ser não sofre mudança, se a sofresse não restaria mais nada. O ser é tudo que há, é “a presença de tudo” (id.ibid.). O ser, assim, identifica-se com a eternidade, que, por sua vez, é o silêncio. De que silêncio se trata? Leiamos este passo de Sponville, decerto intrigante:

“...O homem é um animal religioso, pelo menos espiritual: não se concentra em conhecer a verdade ou em buscá-la; de fato, precisa amá-la, contemplá-la, recolher-se nela, mesmo que nela se perca ou se salve; e é bom que assim seja. Rezar? Não é mais que pôr palavras no silêncio. Mas o silêncio, aquele que contém todas as palavras e que elas não contêm, permanece”
(p. 101)
(grifo meu)

Vou deixar, por ora, em suspenso, o que o autor entende por verdade e que relação tem ela com o ser, o devir e a eternidade. Isso ficará claro mais adiante. Quero chamar atenção do leitor para o trecho em negrito. De que silêncio se trata? Qual é o silêncio que contém todas as palavras, mas que elas não o contêm? A resposta salta aos olhos: o silêncio é a eternidade, ou, se preferirmos, o presente, que, embora contenha a linguagem com que o pensamos, não pode ser plenamente compreendido com ela. É importante perceber que a eternidade de Sponville exclui de seu domínio conceitual o tempo abstrato, ou melhor, exclui o passado e o futuro. O silêncio e a eternidade são o mesmo,

“(...) já que o tempo (a soma intotalizável de um passado que já não é e um futuro que ainda não é) só existe para o pensamento, já que só ganha verdadeiramente consistência – e olhe lá! – por meio das palavras que servem para hipostasiá-lo ou medi-lo.”.
(p. 101)

Cotejada ao real, a verdade se caracteriza por ser una e eterna; o real, ao contrário, é mutável. Assim, segundo o filósofo, “(...) esse pássaro que alça vôo: não voará para sempre, não viverá para sempre e nunca retornará ao seu vôo” (id.ibid.). O real, contudo, se impõe à verdade. Por isso, lembra o autor:

“Não é porque era verdade desde sempre que ele alçaria vôo neste instante que esse pássaro o faz; ao contrário, é porque ele o faz, aqui e agora, que era verdade desde todo o sempre”.
(pp. 101-102)

Insisto em que a verdade é eterna – “se alguém uma vez se banhou num rio, isso continuará sendo verdade eternamente” (id.ibid.). Vimos que o presente identifica-se com a eternidade. Se só o presente é real, então o real é a eternidade. A mudança que ocorre no real só ocorre no presente. Não há uma mudança no tempo, de um antes para um depois. Vimos que o passado não é mais; e o futuro ainda não é.

“Ontem nunca existiu (quando ontem existia, não era um ontem: era um hoje). Amanhã nunca existiu (quando existir, não será mais um amanhã: será um hoje). Eternidade do presente. É sempre agora. É sempre hoje. É o que chamo o sempre-presente do real, que é o próprio real”.
(p. 102)

Se o presente é eterno, bem como o é a verdade, então toda verdade é presente. Portanto, uma proposição como ‘era verdade’ é absurda, segundo o filósofo. “Se foi verdade, continua sendo; se já não é, não era” (id.ibid.). Não há uma verdade futura. O mesmo raciocínio vale para uma proposição como “será verdade”: “se for verdade um dia, já o é; se ainda não é, não será jamais” (id.ibid.).
A verdade e o real se encontram no presente: “o presente é, pois, o ponto de tangência entre o real e o verdadeiro”. É preciso insistir que a eternidade não se define como uma vida transcendente, em que a temporalidade é negada. A eternidade é a verdade desta vida. O autor não admite a distinção entre eternidade e tempo, conforme se lê abaixo:

“Enquanto você diferenciar entre a eternidade e o tempo, você estará no tempo. Paremos de sonhar com a salvação, a sabedoria, a libertação. A eternidade não é uma outra vida, mas a verdade desta. Existe algo mais absurdo que esperar a eternidade? Algo mais triste do que esperar a felicidade? Mas isso indica mais o caminho do que o ponto de chegada, onde já estamos.”.
(p.103)

Como o autor concebe a vida e, em particular, a vida humana? Sponville, nesse tocante, não poderia ser mais direto e claro: “(...) uma vida nada mais é que um processo contínuo de mudança” (p. 104). A vida humana, a seu turno, é frágil, fugaz, integrada ao todo, relacionada às demais formas de vida que com ela co-existem; é uma vida do presente, sempre comovente e impregnada de solidão. Nós somos dotados de uma coragem comovente.
Finalmente, alcançar a sabedoria, tornar-se sábio é aceitar a vida com serenidade, é regozijar-se dela, sem, contudo, esquivar-se de mudá-la, “pois toda mudança faz parte dela” (id.ibid.).

domingo, 26 de agosto de 2012

"Existe um pouco de mim que teimo em não esquecer" (BAR)

Este poema deve fazer-se acompanhar de um pequeno prólogo.  

Trata-se de um poema antigo, que remonta a um tempo em que eu ainda não havia descoberto meu espírito ateu. Mas ele estava lá adormecido. Note nos versos. Note a voz de Nietzsche, um filósofo que sempre me acompanhou, desde que li o "Anticristo".... a minha fé sempre foi muito quebradiça, como uma folha seca. Expeirmente-a pegá-la sem a devida leveza e verá o que lhe acontece... ela se quebra. 





 
De mim um pouco

Existe um pouco de mim que se perde nas entranhas das palavras...
... um pouco de mim que se dilui nas vísceras do tempo
Um pouco de mim que se derrama sobre o Céu ao encalço das estrelas
Aqueles diamantes que reluzem no breu ultrajante de minha ignorância

Existem resíduos de mim no coração de algumas moças...
Imagens translúcidas de um coração acostumado a fugas
Existe uma dose de mim no olhar dessas ilusões encarnadas
Uma dose entorpecente que as faz indiferentes ao meu sacrifício
Existem pedaços de mim espalhados no santuário feminil lascivo e cândido
Onde alguns homens se concentram...

Existem sombras de mim na existência intrigante de Deus...
E uma cruz em meu caminho, ao pé da qual dormem meus sonhos...
Sonhos crucificados, por altivos e imensos...
Existe uma voz em mim que não cala, uma voz enlouquecida...
A que indaga de Deus acerca das qualidades que o tornam soberano
Onipresente, Onisciente e Onipotente – tudo rima com ausente...
E a ausência de Deus é um pedaço de mim que se esvai...
... Que se esvai nos abismos de minha alma endoidecida...
Como disse o eminente filósofo alemão, “Deus está morto”
E a morte de Deus é a morte da eterna esperança humana:
A esperança de compreender e recriar o Amor.

Se Deus está morto – ou sempre esteve morto,
... Existem lembranças de mim enterradas em corações
Que pulsam numa cova funda...
Existe de mim um pouco que se dissipa em cada instante
E minha respiração denuncia minha morte
E estar vivo é simplesmente conseqüência do nascimento
E Deus, a existência, o infinito, o sonho e o Amor...
São fantasmas que nos assombram durante o sono da morte
Existe um eu de mim no outro de cada um...

Mas em mim só existe o vácuo de um cosmo imaginário...
E se lanço olhares sobre a bela jovem que me oferta atenção,
São todos furtivos, retraídos, silentes...
Porque existe de mim um pouco que é indigno, que é sofrível
Existe em mim a morte e a vida, num enlace anímico
E minha alma exala aromas indecifráveis, incompreensíveis, imperceptíveis
... Aromas de um túmulo de vida
E no útero da morte jaz a visceral razão para viver:
O Amor sempre esteve antes do homem: é uma ausência que o preenche,
Existe de mim poeiras de uma plenitude indizível do amor,
E este Amor nunca nascera, foi abortado no ventre dos Céus;
E minha alma é um aborto de um Deus que é morto.

De mim existem palavras amordaçadas, vozes acuadas... sobreviventes
Da lança do destino...
Existe de mim um pouco que não me suporta
Ou que me ama me agredindo...
E me quer vivo.

(BAR)

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

pensamentos erráticos


                               


                                  Internato lírico

E o céu veste seu manto negro novamente. Ignoro se há estrelas difusas pelo céu. Este quarto em que me encontro mantém o movimento da vida a distância. Hoje foi mais um dia em que fiquei internado em mim, sem, contudo, poder contar com a assistência médica. Sou um interno  na companhia dos livros. Ainda não fui capaz de mensurar a gravidade disso. Há de haver algum malefício em entregar-se demais aos livros. A televisão só me ocupa nos pequenos intervalos entre uma leitura e outra, tempo em que me permito desafogar-me. Porque a leitura, se levada seriamente, convoca-nos à imersão psicológica, emocional e intelectual. Alguns livros me tumultuam a alma; outros mais me assombram. Tantos e tantos me extasiam; outros ainda me seduzem. Por vezes, um trecho me captura o espírito de tal modo que pressinto algo de grandioso e óbvio demais para ser notado. E de fato não o é.
Todos os meus livros são marcados com riscos do grafite de minha lapiseira. Longos trechos sublinhados ocupam páginas inteiras. Também costumo acomodar algumas palavras ou frases junto aos parágrafos. Normalmente, reescrevo uma frase que me chama atenção; outras vezes, assinalo minha anuência ou divergência, como se o autor pudesse sabê-lo.
Com a mesma seriedade e dedicação com que me envolvo na leitura, derramo-me na confecção de meus textos, se bem que, mesmo os tendo lido mais de uma vez, ainda encontro uma série de inconsistências. Por vezes, noto alguns equívocos. Um blog permite que possamos modificar o texto original. Quando percebo um torneio frasal mal formulado, apresso-me em consertá-lo. Se percebo uma palavra mal avizinhada, trato de bani-la, pondo-lhe no lugar outra que assente melhor e não gere conflitos. A semântica é uma senhora idosa que não suporta intrigas. É preciso respeitá-la. Devem-se evitar os abusos, os desvios.
Gosto de pensar a escrita como um artesanato, porque demanda trabalho manual guiado pelo intelecto; mas não só, evidentemente. Também porque demanda cuidado, atenção, paciência, treinamento e é sempre passível de aperfeiçoamento. Todo texto é um tecido (aliás, a palavra “texto” do latim “texere”, significa, originalmente, ‘tecer’). Tanto o texto quanto o tecido constitui-se de uma estrutura: no caso do texto, uma estruturação de unidades linguísticas; no caso do tecido, uma estruturação de fios (de algodão, lã, etc.). Normalmente, pensamos em texto como um todo demasiado complexo, constituído pelo encadeamento de muitos enunciados. Mas um único enunciado é um texto, desde que produzido com uma função comunicacional reconhecível e num dado contexto de interação. Esse enunciado ou texto pode ser apenas uma única palavra, como a palavra “cuidado”, produzida com entonação ascendente por alguém que alerta outra pessoa de um perigo atual ou iminente. A interjeição “ai!” é também um texto, quando produzida por alguém cujo pé foi pisado ou cujo dedo foi involuntariamente martelado, enquanto pregava um prego.
As melhores lembranças que tenho da sala de aula são aquelas em que me via trabalhando com a leitura. E me esforçava por fazer falar meus alunos, depois que eles liam algum texto que havia proposto. Frustrava-me algumas vezes, porque o silêncio inicial era bastante resistente às palavras; não o suficiente para me fazer esmorecer. A paixão me guiava o debate. Quando acabava a aula e já tendo notado no semblante dos alunos a expressão de satisfação de quem ficou seduzido, deixava a sala certo de que a felicidade estará sempre ao meu alcance. Regozijo-me com a docência. Deixava a sala com a certeza de que ensinar é minha vocação. E aprender continuamente é um privilégio que conquistei quando deixei as carteiras universitárias licenciado nas Letras. Letras de que são feitos os livros; palavras puxando palavras formando cadeias de mais e mais palavras que se vão acumulando na alma para provocar a magia... a magia do saber.



quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Aprender a viver








Ontem conversávamos sobre o ser ateu e você me contava de sua impaciência com pessoas que insistem em importuná-la, tentando  dissuadi-la de sua postura intelectual em face da existência. Querem fazê-la dobrar-se diante de uma verdade inabalável, indiscutível, insuspeitável e absoluta. Elas se cuidam porta-vozes da verdade atemporal ou eterna, que provém de um Ser transcendente ao qual a inteligência humana deve se submeter. Eis que lhes apresentamos, em confronto, a filosofia – ou, melhor seria, a atitude filosófica. A filósofa brasileira Marilena Chauí a define como uma recusa a aceitar o senso-comum, as crenças, opiniões e valores correntes da vida cotidiana, que se nos são apresentados como estabelecidos e inquestionáveis. A esse aspecto negativo na definição do termo, Chauí acrescenta um aspecto positivo, a saber, o fato de a atitude filosófica ser uma interrogação sobre o que são as coisas, os fatos, as ideias, os valores, sobre quem somos nós. Também – ensinará a filósofa – a atitude filosófica encerra, além da pergunta “o que é?”, as perguntas “por que é?, “como é?. E eu acrescentaria o “para que é?”. Em suma, o que apresentamos a essas pessoas que vivem confortavelmente no mundo, no colo de sua “verdade” salvífica é a capacidade legitimamente humana de questionar, de duvidar.
Durante nossa conversa, eu lhe contei de minha experiência recente quando me vi envolvido num debate intelectualmente árduo sobre Deus e a descrença nele com pessoas para as quais os livros são permanentemente um estranho. Em tais circunstâncias, argumentar torna-se uma tarefa de Sísifo. E você bem o sabe, amiga. Por isso, antes de dar-se o incômodo de defender suas posições, melhor será interrogar seu interlocutor sobre quantos e quais livros já leu. Do contrário, é como arar terras inférteis. Um debate só prospera quando há mentes que o impulsionem; em face de pessoas cujos espíritos parecem estar atrofiados ou paralisados, o debate, se não se torna impossível, torna-se, certamente, improdutivo.
Vou direto ao assunto deste texto. Antes, porém, preciso lembrá-la de que também lhe disse que me tornei ateu não porque meu nascimento me legara certa dose de sofrimento (do qual não tenho remota lembrança), mas porque descobri a filosofia. E essa descoberta exerceu um efeito psicológico em mim à guisa de uma Iluminação (intelectual). A filosofia me permitiu a revelação, nada semelhante à suposta revelação de Deus. Trata-se de uma revelação tangível, visceral, que me lançou uma lucidez sobre alma, ajudando-me a viver melhor. Não me precipito em afirmar que ela foi responsável por me desenterrar da cova da depressão onde eu jazia  ou - se preferir outra imagem que exprime bem o sofrimento que acomete uma pessoa deprimida – por me resgatar das regiões abissais onde eu estava me afogando.
Hoje, há pouco, encontrei num capítulo de um livro do filósofo e ex-ministro da França Luc Ferry uma exposição clara e didática (porque, segundo o próprio autor, destinada a leitores que pouco sabem de filosofia) sobre o lugar da filosofia na vida do ser humano. Lendo o texto, encontrei nele as razões por que a filosofia abriu-me o caminho de minha salvação. Em tempo, você verá com que sentido emprego esta palavra. Não se trata, evidentemente, de uma salvação no sentido que lhe dá a religião, porque ela não é suspeita ou incrível; ao contrário, ela pode ser bastante crível, porque tangível, porque real.
Espero que eu consiga não só dar a saber a você e aos possíveis leitores que se dispuserem a acompanhar-me na leitura destas linhas as razões pelas quais a filosofia provocou-me um terremoto nas estruturas cognitivas de minha mente, libertando-me dos esquemas rigorosos e herméticos com que eu, antes, ainda psicologicamente dependente da muleta religiosa, interpretava a realidade e vivia a vida, como também lhe estimule (e nos leitores) o irresistível interesse em ler o livro de Luc Ferry. Meu propósito é também compartilhar leitura, hábito que não abandono e que cuido seja humanamente profícuo. É quando se me insufla o espírito docente que me incita a aprender mais quando me envolvo em atividades que promovem o saber. Aprender em conjunto, aprender compartilhando... é disso que se trata.
O livro de Luc Ferry cujo primeiro capítulo há pouco li e que me orientará as reflexões que doravante apresentarei é Aprender a viver – filosofia para os novos tempos (2010). O primeiro capítulo intitula-se de O que é a filosofia?. Nele, o autor procurará ensinar ao leitor incipiente em filosofia ou que quase nada dela sabe, o que é filosofia. Definir filosofia é já um grande e primeiro desafio para qualquer especialista na área e o autor o reconhece desde o início. É preciso, de antemão, suspeitar da validade do modo como modernamente a filosofia vem sendo definida, que, segundo o autor, é um modo reducionista. Nas palavras de Ferry:


“Uma das principais extravagâncias do período contemporâneo é reduzir a filosofia a uma simples “reflexão crítica” ou ainda a uma “teoria da argumentação”. A reflexão e a argumentação são, sem dúvida alguma, atividades altamente apreciáveis. É verdade que são mesmo indispensáveis à formação dos bons cidadãos, capazes de participar com alguma autonomia da vida da cidade. Mas trata-se aí apenas de meios para outros fins diferentes da filosofia – pois esta não é nem instrumento político nem muleta da moral”.
(p. 20)

O filósofo não nega que “reflexão crítica” e “um modo de argumentar” sejam partes indispensáveis a todo empreendimento filosófico. Melhor dizendo, é próprio da filosofia ser uma atividade de pensamento, que visa à reflexão crítica e que se fundamenta numa argumentação rigorosa. No entanto, segundo Ferry, - e isso ficará evidente adiante – não consistem essas etapas o cerne da filosofia, não são elas que a definem como um campo do saber específico. O que distingue a filosofia de outros campos do saber? Alguns dirão que são as questões que levanta. A filosofia ocupa-se com os fundamentos da realidade, visa a atingir o universal, representa ela um esforço para chegar às raízes dos problemas. Na filosofia, busca-se atingir a totalidade do sentido. Luc Ferry é mais claro, nesse tocante, aos nos patentear, afinal, a questão fundamental sobre a qual se constroem os diferentes sistemas filosóficos. Leiamos este passo:

“Ela [a filosofia] parte de uma consideração muito simples, mas na qual se encontra latente a interrogação central de toda filosofia: o ser humano, diferentemente de Deus – se é que ele existe – é mortal ou, para falar como os filósofos, é um “ser finito”, limitado no espaço e no tempo. Mas, diferentemente dos animais é o único que tem consciência de seus limites. Ele sabe que vai morrer e que seus próximos, aqueles a quem ama também. Ele não pode, portanto, evitar interrogar-se sobre essa situação que, a priori, é inquietante, até mesmo absurda e insuportável. Certamente é por isso que ele se volta de imediato para as religiões que lhe prometem a “salvação”.
(p. 21)

O homem está no centro das preocupações filosóficas. É a condição humana que demanda reflexão filosófica. Segundo Ferry, “a equação “mortalidade + consciência de ser mortal” é um coquetel que carrega em germe a fonte de todas as interrogações filosóficas” (p. 33).
Por limitações de tempo e espaço, preciso me ater ao que considero essencial no texto de Ferry e que melhor esclarecerá o benefício intelectual e psicológico que me acarretaram os estudos filosóficos. É na seção A finitude humana e a questão da salvação que seu discurso se reveste de um teor intelectualmente robusto.
Para Ferry, tanto quanto para muitos filósofos antigos, a filosofia ajuda-nos a viver melhor, a despeito de nossas angústias, a despeito da consciência de nossa finitude. Ela nos convoca a buscar uma “salvação” por nós mesmos, para o que sugere que façamos bom uso da razão. Assim, o autor determinará o lugar da filosofia em cotejo com o da religião. Ele definirá a filosofia em relação à religião. Para tanto, reconhecerá, de início, o que se segue:


“A filosofia – todas as filosofias, por mais divergentes que às vezes sejam nas respostas que tentam oferecer – promete também que podemos escapar dos medos primitivos. Ela tem, pois, em comum com as religiões, pelo menos na origem, a convicção de que a angústia impede de viver bem, ela nos impede não apenas de ser felizes, mas também de ser livres. Temos aí, como eu já lhe havia sugerido com alguns exemplos, um tema onipresente entre os primeiros filósofos gregos: não se pode pensar ou agir livremente quando se está paralisado pela surda inquietação que gera, mesmo quando se tornou inconsciente, o temor do irreversível. Trata-se, pois, de chamar os homens à “salvação”.”
(p. 29)

A “salvação”  oferecida pela filosofia é intransferível, ou seja, não é dependente de um Outro que nos transcende, mas depende de nossa própria iniciativa e de nosso esforço racional. Antes de trazer à consciência do leitor passagens extremamente importantes para a fundamentação de meus propósitos, preciso fazer ver que a filosofia, quando situada em oposição à religião, acaba por ser desprestigiada na perspectiva teológica cristã. Assim é que, para muitos teólogos – exceto para os que se esforçaram por tornar a filosofia uma adenda da teologia, como São Tomás e Santo Agostinho – a filosofia se confunde com o diabólico, justamente pela ruptura que faz com o discurso dogmático que pretende subsidiar a fé. Observa Ferry que a palavra diabo significa, em grego, “aquele que separa”. Mas não se trata de qualquer separação; trata-se da separação da relação vertical do homem com Deus.


“Para um teólogo dogmático, a filosofia – salvo, é claro, se ela se submete completamente à religião e se põe inteiramente a seu serviço (mas então ela não é mais verdadeiramente filosofia.) – é por excelência obra do diabo, pois, ao instigar o homem a se voltar contra as crenças para fazer uso da razão, do espírito crítico, ela o arrasta insensivelmente para o terreno da dúvida, que é o primeiro passo para longe da tutela divina”.

(pp. 28-29)

Esse trecho de Ferry merece alguma consideração. Quero destacar o que se segue: 1o) ao contrário do que nos sugere a imagística teológica, construída com base na bíblia, uma leitura secularista nos permitiria dizer que o diabo não é aquele que desvia o homem do caminho que leva a Deus, mas aquele que esclarece o homem, instiga-o a lançar mão do expediente da dúvida, do questionamento (ora, nada mais humano do que duvidar, do que desejar saber; 2o) Ao ensinar a confiança cega (fé) como virtude, a religião não abre concessão à dúvida. É preciso resistir às tentações do diabo, que quer inculcar-nos a dúvida e conservar-nos na obediência inquestionável a Deus.


“Por não acreditar num Deus salvador, o filósofo é antes de tudo aquele que pensa que  se conhecemos o mundo, compreendendo a nós mesmos e compreendendo os outros, tanto quanto nossa inteligência o permite, vamos conseguir, pela lucidez e não por uma fé cega, vencer nossos medos”.

(p. 24)


Não é custoso concluir pela incompatibilidade entre as duas atitudes em face da realidade: a religiosa e a filosófica. Trata-se de duas vias que tomam direções opostas, por vezes, conflitantes: uma propõe-nos a salvação pela fé; a outra, a “salvação” pela razão, que culmina na sabedoria, estado a que chegamos quando conseguimos viver mais felizes e livres, porque reconciliado com a vida, porque não mais perturbado com a inevitabilidade da morte, nem confortáveis na esperança de que se cumpra uma promessa cujo único fiador é um Outro que nos transcende e de cuja existência não podemos ter certeza.
Ferry nos lança a seguinte questão: “Toda filosofia estaria destinada a ser ateia?” (p. 30), ao que ele não apresenta uma resposta, pelo menos não diretamente. Preferirá, contudo, no decorrer do texto, nos mostrar que a filosofia é preferível porque somente ela nos abre o caminho da liberdade de pensamento e o caminho  para a lucidez. Assim, escreverá:


“Filosofar, mais que acreditar, é, no fundo, - pelo menos do ponto de vista dos filósofos – já que o dos crentes é, com certeza, diferente -, preferir a lucidez ao conforto, a liberdade à fé. Trata-se, em certo sentido, é verdade, de “salvar a pele”, mas não a qualquer preço”.

(p. 31)


Por que não se submeter a uma doutrina de salvação cujo único caminho é Deus? Outra questão que nos levanta Ferry. E a resposta dada pelo filósofo merece ser aqui reproduzida na íntegra. Ele nos apresenta duas razões, a primeira das quais lemos a seguir:

“Primeiramente – e antes de tudo – porque a promessa que as religiões nos fazem para acalmar as angústias da morte, a saber, aquela segundo a qual somos imortais e vamos reencontrar depois da morte biológica os que amamos, é, como se diz, boa demais para ser verdadeira. Boa demais e muito pouco crível a imagem de um Deus que seria como um pai para os filhos. Como conciliá-la com a insuportável repetição dos massacres e das desgraças que se abatem sobre a humanidade: que pai deixaria seus filhos no inferno de Auschwitz, de Ruanda, do Camboja? Um crente dirá, sem dúvida, que é o preço da liberdade, que Deus fez os homens livres e que o mal lhes deve ser imputado. O que dizer, porém, dos inocentes? O que dizer dos milhares de criancinhas martirizadas durante esse crimes ignóbeis contra a humanidade? Um filósofo acaba duvidando de que as respostas religiosas bastam. De alguma forma, ele acaba sempre pensando que a crença em Deus, que surge como por reação à guisa de consolo, nos faz talvez perder mais em lucidez do que ganhar em serenidade. Ele respeita os crentes, é claro. Ele não supõe necessariamente que eles estejam errados, que sua fé seja absurda, ainda menos que a existência de Deus seja certa. Como, verdade seja dita, se poderia provar que Deus não existe? (...)”.

(pp.30-31)


Não sou tão condescendente quanto o autor ao nos fazer acreditar que os filósofos não podem supor que os crentes estão errados. Alguns parecem supor. Também não entendo por que seria necessário provar a inexistência de Deus tanto quanto seria a inexistência de duende, fadas e Papai Noel. Na falta de evidências para a existência de tais seres, não vemos razão para acreditar nela. E eu diria que se a questão da existência x inexistência de Deus fosse investigada em termos de probabilidade, não tenho dúvidas de que a argumentação orientada para a maior probabilidade da inexistência sobrepujaria o esforço argumentativo em sentido contrário. Para mim, “provar a inexistência de Deus” é um falso problema. Ninguém se insurge contra quem não se dá o trabalho de tentar provar a inexistência de Papai Noel. O problema, eu o reconheço, é que a ideia de Deus é um estratagema com que uma poderosa instituição ideológica milenar tenta dar por encerrado os dois maiores problemas humanos: o do sentido da vida e o da morte. Enquanto permanecer o mistério, Deus continuará a ser a única resposta para milhões de pessoas incapazes de se livrar dos grilhões psicológicos da religião para experimentar um dos maiores benefícios da filosofia – a autonomia de pensar, porque a resposta que conforta, que consola, a despeito do sofrimento, a despeito da injustiça, a despeito dos argumentos que possamos oferecer em favor da inexistência de um ser de tal magnitude. Não é aqui o lugar para levar adiante meu esforço argumentativo nessa matéria.
Em favor da filosofia, Ferry acrescenta:

“O bem-estar não é o único ideal sobre a Terra. A liberdade também é um ideal. E se a religião acalma as angústias, fazendo da morte uma ilusão, corre o risco de fazê-lo ao preço da liberdade de pensamento. Porque, de certa forma, ela sempre exige em troca da serenidade que pretende oferecer que, num momento ou noutro, a razão seja abandonada para dar lugar a fé, que se ponha termo ao espírito crítico para que se aceite acreditar. Ela quer que sejamos, diante de Deus, como crianças, não adultos em quem ela não vê, afinal, senão arrogantes raciocinadores”.

(p. 31)

Por fim, é forçoso  concluir que escolher pela filosofia é um ato que requer coragem, justamente porque a filosofia, ao contrário da religião, não promete aquilo de cujo cumprimento não pode ter certeza. Religiosos ou não, filósofos ou não, sabemos que vamos morrer. Sabemos que nossa vida está desde o nascimento limitada a certa duração. Nenhum de nós, religioso ou não, filósofo ou não, sabe o que há depois da morte. Todos sabemos, contudo, que a morte é o retorno ao inorgânico. Sabemos disso ao ver um cadáver. A morte põe fim à vida consciente. Sabemos que os que morreram não retornam mais à vida. Sabemos que as pessoas falecidas que amamos não poderão mais estar conosco. Assim, o filósofo lhe propõe: em face da inevitabilidade da morte e conscientes de nossa finitude, vamos enfrentá-la pelo exercício da reflexão que leva a uma compreensão mais clara e verdadeira dessa condição, a fim de que possamos alcançar um estado de sabedoria, indispensável para viver feliz e livremente. Ao contrário, o religioso propõe: não se preocupe, a morte é uma ilusão, toda pessoa que viver segundo a vontade de Deus terá o benefício da salvação, ou seja, da imortalidade.
A morte nunca me atormentou. Não tenho medo de morrer. Quiçá, esse destemor encontre raízes na aurora de minha existência, já que meu nascimento manteve um longo namoro com a morte. Encontrei na filosofia uma forma poderosa de enfrentar o sofrimento, mais do que nunca dantes encontrara na religião, que aliás nos ensina a suportá-lo com resignação. Sofrer, por vezes, é inevitável. Muitos sofrem (pessoas e animais). A vida nos dá testemunho do sofrimento todos os dias. Mas não posso aceitar a crença de que sofrer é necessário. Sofrer não o é. E é claro que buscamos o prazer e desejamos não sofrer. Ao contrário do que nos sugere a teologia cristã, que personifica em Jesus a virtude do sofrimento, um modelo a ser seguido  para todo crente que sofre, aquele que se beneficia da filosofia começa a recusar a ideia de que sacrificar-se, como ocorrera com o “cordeiro de Deus”, em favor de uma ilusão, possa ser considerado uma virtude. No tocante ao martírio sobre o qual se estabeleceu a Igreja, Marcelo Da Luz nos ensina:


"A Igreja nasceu sob o estigma do martírio de Jesus. Do alto da cruz, o Cristo personifica a reivindicação da religião sobre os corpos dos fiéis. Desde o princípio, os máximos valores cristãos - o perdão dos pecados e a vida eterna - foram associados à autoimulação. A aceitação do sofrimento enquanto exigência ao cumprimento dos insondáveis planos divinos conduz o crente a desvalorização de si e consequente resignação à dor.
(...)"

(Onde a Religião Termina: 2011, p. 145)


Fiquemos, então, com este trecho de Ferry, com o qual ponho termo a este texto, convencido de que a filosofia não só pavimentou o caminho que me levou a aderir ao ateísmo, mas também, sobretudo, me permitiu a reconciliação com a vida e com o humano em mim.


“Se a filosofia, assim como as religiões, encontra sua fonte mais profunda numa reflexão sobre a “finitude” humana, no fato de que para nós, mortais, o tempo é realmente contado e de que somos os únicos seres neste mundo a ter disso plena consciência, então, é evidente que a questão de saber o que vamos fazer da duração limitada não pode ser escamoteada”.

(p. 33)

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

"Minha alma é um embrulho difícil de abrir" (BAR)


 

 
                                                               (Des)embrulhando-se




Em mim, aprisionado um sentir-se deslocado. A serenidade enjaulada na presença do desespero. Trago na alma algo desesperante que asfixio para sobreviver. Há dias se me aconchegou a vacilação e o temor. ‘É preciso escolher!’ Brada-me a sensatez. E o sentir-se só aperta-me mais o seio do ser. A ansiedade me inunda. Em vão, varro a angústia para debaixo do entulho recalcado. Apenas as pessoas psicologicamente densas precisam de psiquiatra. Os imbecis não necessitam, nem aqueles que raramente se ocupam de si mesmos. Estes vivem segundo as flutuações rasas do humor e costumam ver sol na iminência de uma tempestade. Tenho-me esforçado por sustentar a conciliação entre mim e o desejo. Em mim, reside um profundo desentendimento entre o existir e o desejo. Há tempo matei a esperança em favor da autonomia. Deleguei à ação o poder de autoridade sobre minha inclinação à apatia. Os clichês do amor já se me tornaram intoleráveis. Alieno de mim todos eles. Precisei vestir esta couraça da indiferença por força das circunstâncias adversas ou das escolhas precipitadas – o que dá no mesmo, quando consideradas as consequências. Viver é equilibrar-se na alternância entre os aclives e declives do espírito. Toda constância de alma é, para mim, suspeita. É a forma mais robusta de neurose. Os psicanalistas o confirmam.


“Dizem os psicanalistas que aqueles que estão “bem-demais-em-sua-pele” podem estar em estado de perigo, pois a normalidade elevada ao plano de um ideal não é senão a loucura bem-compensada, que poderá explodir a qualquer momento que houver descompensação”.

(p. 14)

(O que é neurose, São Paulo: Ed. Brasiliense, 2004)


Esse enfrentamento íntimo que travo entre mim e o comigo é que produz em minha alma o gosto acre de desconforto. Eu mesmo me incomodo.

 “Muitas vezes são os homens retos e puros, espontâneos e autênticos, corajosos, criativos e rebeldes que são considerados “anormais” por uma sociedade que, no fundo, teme as mudanças que eles possam provocar”.

(p. 15)

(O que é neurose, São Paulo: Ed. Brasiliense, 2004)

Lamento ser o leitor inapto para a compreensão da profundidade semântica deste texto que põe a descoberto o abismo de minha emoção. E não o culpo porque o íntimo, sempre inescrutável, é inapreensível pela linguagem ordinária. Ficar-lhe-á apenas a sensação de meia compreensão – o que me é bastante.

sábado, 18 de agosto de 2012

ser feliz apesar da vida...








A essência do amor


A vida pesa-me na alma
Como um pedregulho
Arranha-me o corpo
Como uma lixa
E mesmo assim a desejo
Mais e mais
Como os apaixonados
Um ao outro

(BAR)