O Deus
do obscuro
Entre os muitos malefícios fartamente
apontados pelos opositores das religiões organizadas, um me parece carecer de
exposição formalizada – a saber, o da universalização
do engano sobre como o mundo funciona. Como visão de mundo, as religiões
oferecem um modelo de representação do real sobre o qual os crentes devem calcar
suas interpretações. Pelo poder da doutrinação, os crentes aprendem a
interpretar e compreender o mundo mediante esse modelo, que supõe, entre outras
coisas, a existência de um criador todo-poderoso donde proveio o mundo.
No
momento em que se coloca Deus como dispositivo ad hoc para compreender a complexidade do real, produz-se a
ignorância generalizada sobre vários aspectos da realidade do mundo e sobre a
natureza humana. Basta que confrontemos os discursos institucionalizados sobre
Deus, aprendidos em muitos anos de exposição à doutrinação (em missas, cultos,
catecismos, etc.) com as ocorrências da realidade, com a História mesma, que é
produto das ações humanas, para que percebamos as dificuldades em que nos
enredamos ao tentar alcançar uma compreensão do mundo.
Dois
casos recentes são ilustrativos disso. O primeiro deles diz respeito a um
acidente ocorrido com um operário da construção civil, no dia 15 de agosto. A
cabeça do rapaz foi perfurada por um vergalhão. Tendo sido submetido a uma
cirurgia, o rapaz sobreviveu e já recebeu alta (http://www.ovale.com.br/ultimas/acidente-rio-operario-tem-cabeca-perfurada-por-vergalh-o-e-sobrevive-1.299248).
O neurocirurgião não hesitou em declarar à imprensa ter sido “um milagre” o
fato de o homem não ficar com qualquer sequela – embora não se descarte a
possibilidade de algum distúrbio de comportamento vir a se manifestar ao longo
do tempo. Não me surpreenderia se muitos religiosos, tomando conhecimento do
caso, também concordassem com o neurocirurgião.
O
segundo caso diz respeito a uma jovem, de 25 anos, que fora atingida por uma
roda de caminhão, na Av. Brasil, no Rio de Janeiro, no dia 23 de agosto. A moça
estava a caminho do trabalho, andando na calçada, quando se deu a fatalidade.
Não obstante ter sido levada ao hospital, a jovem veio a falecer (http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2012/08/mulher-morre-atingida-por-roda-de-caminhao-na-avenida-brasil.html). Dois casos impressionantes; o segundo
dos quais foi lamentavelmente trágico. Dois casos cujo desfecho se deu em
sentido contrário.
Como
explicar por que Deus não operou um milagre no caso da jovem morta por uma roda
de caminhão? Por que Deus, nos seus infinitos poder e benevolência, não desviou
a roda do caminhão de sua trajetória cujo alvo seria a jovem? Uma resposta como “foi a vontade de Deus”,
além de não satisfazer a busca por compreensão (não constitui ela mesma uma
resposta às questões suscitadas quando confrontamos as representações de Deus
com tais ocorrências), chega a ser obscena. Quando se coloca Deus em cena, não
há espaço para o acaso, ainda que a vida nos dê muitas razões para que o
reconheçamos.
Furacão Katrina, furacão Andrew, furacão Camille, Furacão
"Labor Day" - são fenômenos naturais que ocorreram nos EUA e que
causaram grandes danos no país. O primeiro matou mais de 24 pessoas; o segundo,
deixou 250 mortos; o terceiro não poupou 600 pessoas. Hoje, mais um
furacão tem causado estragos neste mesmo país. Em 1780, o furacão mais mortal
da história, até hoje registrado, matou 27.500 pessoas, nas Pequenas Antilhas e
no Caribe, atingindo Barbados, Martinica, Porto Rico e República Dominicana. Em
1755, a
cidade de Lisboa ficou quase completamente destruída após um sismo a que se
seguiu um tsunami, levando à morte mais de 10 mil pessoas. Certamente, foi um
dos sismos mais mortais da história.
Esses são alguns dos milhares de exemplos que constituem evidências de que este planeta que habitamos, esta natureza a que estamos biologicamente filiados, é, sem dúvida, hostil à nossa vida (a vida dos seres vivos que o habitam). E esta mesma natureza, da qual fazem parte esses fenômenos catastróficos e diversos microrganismos nocivos à vida (vírus, bactérias...) é obra, segundo a crença de mais de 2 bilhões de pessoas (sem incluir nesta estimativa os judeus, muçulmanos e espíritas), de um Deus benevolente e amoroso!
Esses são alguns dos milhares de exemplos que constituem evidências de que este planeta que habitamos, esta natureza a que estamos biologicamente filiados, é, sem dúvida, hostil à nossa vida (a vida dos seres vivos que o habitam). E esta mesma natureza, da qual fazem parte esses fenômenos catastróficos e diversos microrganismos nocivos à vida (vírus, bactérias...) é obra, segundo a crença de mais de 2 bilhões de pessoas (sem incluir nesta estimativa os judeus, muçulmanos e espíritas), de um Deus benevolente e amoroso!
Assumir
Deus como mecanismo de explicação das ocorrências do real coloca-nos uma questão
insolúvel: como explicar que um Deus bom possa ter criado eventos tão catastróficos
como furacões, tornados e terremotos? Vejam-se os terremotos. O que são eles?
São tremores que ocorrem na superfície terrestre. O que os desencadeia? Eles
podem ser desencadeados por alguma atividade vulcânica, por falhas geológicas
ou pelo choque de placas tectônicas. A crosta terrestre constitui uma camada
rochosa fragmentada, ou seja, formada por vários blocos chamados placas
tectônicas. Essas placas estão em movimento constante. Quando se encontram em
zonas de convergência, pode dar-se a colisão entre elas, do que resulta um
acúmulo de pressão e descarga de energia, que toma a forma de ondas sísmicas, produzindo,
assim, o terremoto. Esta é uma explicação bastante simples do que é um
terremoto, mas suficientemente adequada à argumentação que venho desenvolvendo.
O leitor poderá se perguntar por que Deus não poderia ter dado uma nova ordem a
esse estado-de-coisas, por que não poderia ele ter criado um planeta sem esse
fenômeno, muita vez, desastroso e nefasto. Sua onipotência, por definição,
torna sua escolha isenta de qualquer coerção; Deus é o único ser que seria
dotado de livre-arbítrio ou de liberdade absoluta.
Vejamos
as doenças, agora. São elas incontáveis. Pensemos nos vírus, que são os
principais agentes causadores de doença nos seres vivos. É verdade que os
virologistas estudam os vírus não só para curar doenças, mas também para
servir-se deles na produção de vacinas, em pesquisas com células (por serem
organismos muito simples, auxiliam na compreensão da própria vida, que surgiu
de organismos simples) e no combate a insetos (há vírus que atacam insetos, e
os cientistas os estudam para que possam ser úteis na aniquilação de insetos
que atacam as plantações). No tocante à importância dos estudos de vírus em
pesquisas com células, pesquisas feitas com vírus que atacam bactérias
permitiram aos cientistas compreender os genes e o DNA. No entanto, não é porque
a “chave” para a solução de alguns de nossos problemas parece estar nos vírus
(e bactérias) que os causa, que um mundo sem a presença desses organismos
patogênicos não seria preferível. E não podemos nos esquecer de que, além
desses agentes exteriores que podem causar sérios danos a nossa saúde, há
também um distúrbio interno ao próprio organismo, que consiste no crescimento
anômalo de células desproporcionalmente ao crescimento harmonioso dos órgãos
vizinhos, ou seja, o câncer. E há que se levar em conta as doenças congênitas
(defeitos em certas partes ou na estrutura do corpo herdados pelo bebê). Esses
defeitos podem se manifestar na forma de disposições para desenvolver
determinadas doenças. Há mais de mil tipos conhecidos de defeitos congênitos e
as descobertas de outros defeitos não cessam. A consciência de que podemos
nascer com tais problemas leva-nos a concluir pela fragilidade da vida, mas
também deveria ser suficiente para rechaçar a hipótese da existência de um Deus
benevolente. Não há nada que justifique o sofrimento de um ser humano que
nasce, por exemplo, com uma doença conhecida como coréia de Huntington, que se acha latente no bebê quando do
nascimento, mas que se desenvolverá na fase adulta, acarretando problemas na
fala e nos movimentos, e levando a pessoa à morte.
Não
tive a intenção, aqui, de desenvolver uma crítica pormenorizada, que exigiria
um rigor maior na consideração de aspectos teológicos, filosóficos, históricos
e científicos implicados em qualquer tentativa séria de avaliar o fenômeno
religioso. A ignorância promovida pela doutrinação religiosa se estende também
à privação do conhecimento pelos fiéis da própria história de formação de sua
religião. É o caso do fiel que ignora fatos, há muito reconhecidos e
incontestáveis, implicados na fabricação da bíblia, na construção do cânone e
que dizem respeito à própria vida do Messias.
Gostaria
de referir um trecho de Marcelo Da Luz, em Onde
a religião termina (2011), a fim de que estejamos cientes da dificuldade com
que toda tentativa de emancipação da consciência religiosa terá de lidar,
especialmente numa realidade sócio-histórica como a brasileira:
“Em países de arraigadas raízes religiosas e sistemas educacionais
deficitários – caso do Brasil -, a grande maioria das pessoas é desprovida de
informação histórica e substrato crítico, enquanto os mitos religiosos são
aprendidos desde o berço. Os clamores críticos das recentes publicações
ateístas merecem, portanto, elevado crédito pela utilização do espaço público
da razão, retirando a discussão racional sobre a credulidade da condição de
tabu”.
(p. 323)
Tal
trecho se acha numa seção em que o autor aponta três principais problemas na
promoção do ateísmo do século XXI, do qual são expoentes Richard Dawkins,
Christopher Hitchens, Sam Harris e Daniel Dennett.