Reflexões dominicais
Do ser ateu
Sete horas da manhã de domingo, e o sono cedeu lugar à ansiedade, mas a uma ansiedade vital, eu diria, comum a todo ser humano que não esteja padecendo de alguma enfermidade, que o mantenha numa cama. Na verdade, acho que dormir demais é uma perda de tempo – tempo que poderia ser preenchido com alguma forma de atividade proveitosa, como escrever, por exemplo.
Os pensamentos são meu despertador. Eles ficam-me a martelar a cabeça e, embora possa resistir a eles durante algum tempo, acabo por ceder à sua insistência.
Ontem, quando, após as minhas leituras diárias, me recolhi ao meu quarto, para compor meu então último texto com inspiração ateísta já divulgado neste blog, sentia-me como um revolucionário, que exprime suas posições infensas a um dado estado-de-coisas, salvaguardando-as e, assim, impedindo que suscitem qualquer suspeita. Trata-se de uma imagem exagerada, evidentemente, porque não nasci num meio familiar religiosamente conservador. Aliás, conservadorismo não foi uma ideologia que me orientou a formação educacional, felizmente. Portanto, não sofro de nenhuma pressão para que eu volte a frequentar missas ou volte a rezar.
É certo que meus familiares desconhecem minhas opiniões ateístas e minha adesão completa ao espírito (sentido) ateu. Mas essa ignorância não é importante, já que, na vida prática, nada mudou. A única mudança é de ordem psicológica: sinto-me aliviado do peso da culpa, do pecado (que remonta às origens dos tempos e a um grandioso feito de uma personagem fictícia) e conciliado com esta vida, que me abrange por completo.
Mantive-me hesitante, durante alguns meses, sobre a decisão de assumir publicamente meu ateísmo; ora postava os textos pelos quais eu me declarava ateu, ora excluía-os. E essa dúvida que me afligia se devia ao receio de que eu fosse alvo de reações adversas, de sentimentos de desaprovação e mesmo de decepção. No entanto, o receio fazia-me ser infiel a mim mesmo e isso é um contra-senso, porque desdiz as minhas ideias sobre mim mesmo, nega quem eu sou. Ora, ser eu mesmo, ser a medida de mim mesmo é não temer posicionar-me contrariamente ao status quo. Eu, que não me furto a criticar os padrões de conduta, de pensamento, que se recusa a viver espiritualmente obtuso, que propala a ideia de que o saber é um dos grandes valores da existência e que deve ser um direito estendido a todos os homens (embora reconheça que, numa sociedade como a nossa, o acesso ao conhecimento é privilégio de poucos), eu, que abraço o magistério com o coração, com a alma e exerço a docência com paixão, que acredita que ensinar e aprender são duas práticas que se dão num processo em que estão envolvidos co-agentes dele responsáveis (e, portanto, o leitor que me lê não é passivo, mas um agente, que contribui com o seu olhar, com suas experiências, que medita, que produz um sentido); eu, que reconheço tudo isso, não poderia fugir à necessidade de assumir que sou ateu.
Minha amiga Gizelda tem, parcialmente, razão, ao escrever, em uma de suas postagens (a última, aliás), que não podemos viver sempre na contramão. Acontece que meu nascimento já se deu na contramão dos próprios processos bioquímicos que participam fundamentalmente da geração da vida. E eu estou longe de pretender assumir ideologias reformadoras ou abraçar causas utópicas; há muito pouco tempo de vida e desfavoráveis são as condições sociopolíticas da (hiper)modernidade para comprometer-se com tal engajamento, se bem que alguns eminentes estudiosos (cientistas, filósofos e jornalistas) estrangeiros propunham um ateísmo militante.
Se, por um lado, possa eu ser dotado de um espírito que tende à subversão e à rejeição de toda ordem que busca conservar alguma forma de ignorância, de injustiça, de intolerância, opressão e exploração; por outro lado, esse espírito acaba confinado no papel, muito embora eu reconheça que, em minha prática docente, possa, às vezes, atuar de modo a libertar intelectualmente.
Sem mais delongas, o caso é que eu acho que nós temos de nos situar no mundo, temos de deixar nossa marca (ainda que anonimamente). Não temos de seguir modelos de conduta, de pensamento, de crenças. Não temos de seguir determinadas tradições que não nos favoreçam por resignação. Decerto, se eu tivesse nascido em séculos anteriores, minha liberdade para escolher rejeitar certos padrões de minha sociedade seria muito limitada. Mas esse, evidentemente, não é o caso.
Estou, contudo, consciente de que vivo num país cujas culturas são marcadas profundamente por religiões e crendices. O Brasil é um país caracterizado por uma pluralidade, uma diversidade de culturas e religiões - herança de todo o nosso processo histórico marcado por uma colonização que nos legou até hoje um sentimento colonial, manifesto, por exemplo, nas opiniões referentes à filiação da língua portuguesa falada aqui com a língua portuguesa falada em Portugal.
Em O que é o Brasil, Roberto DaMatta, ensina-nos, no capítulo Os caminhos para Deus:
“Nós, brasileiros, marcamos certos espaços como referências especiais. A casa, onde moramos, comemos e dormimos, a rua, onde trabalhamos e lutamos pela vida. Mas a esses espaços, onde convivemos com parentes, amigos e colegas de trabalho, devemos somar um outro, não menos referencial e crítico. Quero referir-me ao espaço do “outro mundo”, essa área demarcada por igrejas, capelas, ermidas, terreiros, centros espíritas, sinagogas, santuários, oratórios, templos, cemitérios e tudo aquilo que faz parte e sinaliza as fronteiras entre o mundo em que vivemos e esse “outro mundo” onde, um dia, também iremos habitar”
(p. 57)
Vê-se aí, portanto, descrito o cenário religioso brasileiro, país onde católicos, protestantes, judeus, islâmicos, macumbeiros, budistas, entre outros, podem co-habitar harmonicamente, dadas as condições sociopolíticas favoráveis típicas de um estado laico. Não quero com isso dizer não haja manifestações de intolerância no Brasil, mas que há, institucionalmente, instalada uma consciência da necessidade de combater a intolerância e garantir a liberdade de expressão, também no domínio religioso. Política e religião ocupam esferas distintas, ainda que a Igreja Católica influencie os aspectos social, cultural e político do Brasil. É consabido que, a despeito da grande variedade de religiões existente nesta terra, o catolicismo é a religião predominante. O Brasil é considerado o maior país católico do mundo, com 73, 8% de seus habitantes que se declaram católicos.
Quanto aos ateus, o IBGE registra ser o Rio de Janeiro o primeiro estado brasileiro a abrigar o maior número de pessoas sem religião; à Bahia, reserva-se o lugar de terceiro estado. Só em Salvador são 18% da população, o que lhe confere o primeiro lugar entre as capitais brasileiras com um número grande de pessoas que não professam religião alguma. Em todo território nacional, a ausência de crença e prática religiosas é mais frequente entre homens e entre pessoas com menos de 55 anos. Na verdade, exprime-se aqui a realidade de pessoas que admitem não seguir religião alguma, o que inclui não só ateus, mas também agnósticos e deístas (que embora acreditem que Deus exista, não acreditam que ele está comprometido com a vida do mundo). Parece que o número de ateus no Brasil chega a 3% da população.
Há uma diferença determinante entre ateus e teístas: aqueles não se interessam em doutrinar ninguém, em angariar adeptos; não vão às casas das pessoas para falar-lhes sobre as fortes razões que os levam a sustentar a inexistência de qualquer divindade.
Por isso, eu afirmo que, enquanto a sua religiosidade, caro leitor, estiver satisfazendo o seu bem-estar psíquico e humano, bem como as suas necessidades de amparo e proteção, proceda segundo o seu coração. Não o reprovo por isso. Todavia, não se negue a, ao menos, dar ouvidos à razão.
A prática religiosa me enfadava, me inquietava intelectualmente. Lembro a ocasião em que o padre da igreja que eu frequentava censurava a exibição, numa novela da Rede Globo, de duas personagens que formavam um casal de lésbicas. E, em seu discurso, ao considerar o homossexualismo, ele dizia que Deus não é contrário ao “pecador” (no caso, ao homossexual), mas ao “pecado” (no caso, ao homossexualismo). Podemos criticar essa forma de censura, rejeição, por um apego a um moralismo estreito e conservador, herança de uma cultura profundamente autoritária, de duas maneiras.
A primeira delas com um argumento empírico. O homossexualismo é uma das formas de expressão natural da sexualidade. Portanto, o homossexualismo, enquanto comportamento sexual em homens e em mulheres, está em consonância com a ordem das práticas sexuais na natureza. E eu o provo, citando os casos de relações homossexuais na espécie de golfinhos nariz-de-garrafa, gaivotas, besouros, gansos, bonobos (espécie de macaco), macacos japoneses, peixes-mexerica, etc. É interessante notar que as práticas homossexuais cumprem diversas funções na vida comunitária dessas espécies. Entre os macacos japoneses, por exemplo, a atividade homossexual serve para resolver conflitos, amenizar tensões ou mesmo pedir desculpas
A segunda maneira exigir-nos-á participar, por algum momento, do delírio religioso. Abrindo um parênteses, por delírio, num sentido genérico, consoante se lê em Dicionário básico de filosofia, entende-se “ desordem mental da personalidade (temporária ou crônica) caracterizada por uma forte confusão das ideias, falsas interpretações e desvios de percepção, acarretando uma conduta irracional ou irrazoável”. O delirante assume um padrão desviante da realidade, aproximando-o de um louco. O louco cria um universo que lhe é próprio e coerente, muito embora incompatível com o padrão da realidade consensualmente aceita pelos outros indivíduos de sua sociedade. Todavia, devo reconhecer que as religiões se fundam num delírio e não propriamente numa loucura. O psiquiatra e filósofo Karl Jaspers foi o primeiro a estabelecer critérios para definir o delírio, que é uma falsa crença. Para ele, todo delírio se caracteriza por: a) certeza (respaldada numa convicção inabalável); b) incorrigibilidade (não suscetível à mudança por meio de contra-argumentação); c) impossibilidade ou falsidade de conteúdo (implausível, ou pateticamente inverídico).
Há, todavia, controvérsia em se assumir que posturas religiosas, como propalar a crença na existência de Deus seja uma evidência de delírio, já que, para alguns, essa crença não pode ser falsificável. Falsificável, não empiricamente, eu diria, mas sim racionalmente. Mas isso é matéria para outro texto. Creio que, de qualquer modo, os critérios estabelecidos por Jaspers se afinam com as atitudes dos religiosos e autoridades religiosas. Muitos estão seguros da veracidade de sua crença; muitos resistem à contra-argumentação e às evidências que tornam essa crença pouco sustentável; e muitos mantém seus argumentos frágeis ou irracionais.
Supondo, então, que Deus exista e que ele foi o responsável pela existência do mundo e de tudo que existe nele, incluindo os seres humanos, por quem Deus tem certa predileção (embora continue deixando que milhares de pessoas inocentes experimentem um sofrimento aterrador, ou morram em catástrofes naturais), raciocinemos: sendo Deus o responsável pela criação do universo, da vida em suma, e sendo ele onisciente, ele então é o único responsável pelas diferentes formas de os homens experimentarem sua sexualidade. Quero dizer, ele criou seres humanos capazes de ter experiências sexuais variadas. Sabe-se que, diferentemente de outras espécies de animais, os seres humanos são os únicos que possuem mais zonas erógenas em seu corpo. Uma dessas zonas é o ânus. Quero dizer mais: o homossexualismo deveria ser um comportamento inscrito por Deus em nosso organismo, pelo menos em potência. E ele não poderia culpar os seres humanos que se desviassem de um comportamento sexual aceitável para ele mesmo (supostamente o heterossexual), sem que antes reconhecesse a sua culpa também. Ora, bastava que ele criasse homens e mulheres com alguma forma de restrição natural, biológica, que proibisse os organismos de manterem entre si relações homossexuais. Isso não se verifica nem entre os animais, nem entre os humanos. Como lemos, a natureza nos fornece fartos exemplos de conduta homossexual.
Vamos um pouco mais adiante. A ignorância eclesiástica extrapola o bom-senso. Práticas como o homossexualismo e a bissexualidade eram comuns entre os nossos ancestrais. Também comum era o travestismo. Em História da Sexualidade, lemos o seguinte:
“ Em algumas tribos do sul da África, caso atual de Moçambique, certos homens eram sistematicamente vestidos e tratados como mulheres. Às vezes essa prática expressava um excesso de indivíduos do sexo masculino e a consequente necessidade de prover pessoas para o trabalho caracteristicamente “feminino”, embora tivessem nascido homens. Mas atrelada a ela havia também significação sexual e espiritual. Em Moçambique, alguns meninos tratados como mulheres enfeitavam-se com seios de madeira para entreter os homens e eram vistos como detentores de poderes mágicos. Mais raramente, as meninas podiam ser incumbidas de vestir-se e agir como homens. A bissexualidade praticada abertamente também eram comuns. (...) Vale dizer que havia grande variedade de regiões para região, o que complica qualquer tipo de generalização, mas, ao que parece, muitos grupos de caçadores-coletores não impunham limites estritos entre o que chamaríamos de características e comportamentos heterossexuais e homossexuais, e demonstravam fascínio pela sexualidade e pelo poder que acompanhava a capacidade de combinar aspectos sexuais de ambos os gêneros. Embora a arte relevante geralmente retratasse atividade heterossexual, em lugares como a Scicília há também gravuras em rochas com cenas homoeróticas”
(pp. 24-25)
O autor, Peter N. Stearns, reportasse ao tempo dos homens que viviam da prática de coleta e caça, portanto, anterior à descoberta da agricultura, surgida entre 9.000 e 5.000 anos a.C.
As transformações socio-políticas, culturais e econômicas geraram efeitos restritivos sobre a sexualidade. E, evidentemente, dependendo da cultura, os povos criaram mecanismos de repressão maior ou menor à sexualidade. Nesse tocante, historicamente, as religiões, particularmente, as grandes religiões monoteístas (cristianismo, judaísmo e islamismo) exerceram (e exercem) uma grande influência no sentido de impor proibições/ restrições às práticas sexuais humanas. Historicamente, nas comunidades agrícolas, a sexualidade sofrera restrições, por estar intimamente relacionada à procriação, embora não estivesse totalmente apartada do prazer, visto que era útil controlar a natalidade. Evidentemente, ter muitos filhos implicava, naquelas condições de vida, um fardo pesado demais. Mais da metade de recém-nascidos morriam ao completar dois anos.
O que parece claro é que as comunidades buscavam formas para administrar a tensão entre o instinto de prazer e a razão, necessária às atividades de subsistência. As restrições advinham, em geral, das necessidades de sobrevivência, embora também se verificassem crenças e atitudes, aparentemente, sem fundamento, como as que prescreviam que as mulheres, após a menopausa, deveriam abster-se da atividade sexual.
Em suma, o processo civilizatório por que passou a humanidade – um processo ininterrupto ao longo do qual se inscreve a barbárie – gerou diversas transformações na sexualidade, sempre no sentido de reprimi-la, em épocas marcadas por um conservadorismo maior, e de orientá-la segundo padrões moralmente aceitáveis. É a luta constante pelo controle de um instinto natural que deve amoldar-se às formas de vida civilizada. Daí o espanto para alguns de nós ao saber que, na Holanda, o sexo em praça pública é legalmente autorizado, nos horários estabelecidos para cada parque.
O que faz o nosso padre então. Ora, ele usa como critério uma ideia ou ser criado pela sua imaginação – Deus – para a rejeição de uma prática sexual (o homossexualismo), ignorando duas coisas: uma é a ideia de que, ao fazê-lo, responsabiliza o próprio Deus, tacitamente, culpando-o; a outra ignora as evidências de que a sexualidade humana é diversificada e complexa e de que atividades homossexuais são comuns entre muitas espécies de animais. E não foi Deus que criou a Natureza? Enfim, tudo que é natural no mundo?
Descontando a ignorância de ordem empírica, o nosso padre se trai com a própria doutrina que ele trata de entulhar na cabeça dos seus paroquianos: segundo a doutrina, Deus criou os homens e, portanto, os preparou para a atividade sexual (donde se segue ser um contra-senso dizer que o sexo é pecado) e esse mesmo Deus é onisciente e onipotente, logo ele sabe que os homens tendem a experiências sexuais variadas e tinha o poder de ‘inscrever’ no organismo humano algum tipo de restrição ou mecanismo restritivo de práticas homossexuais. Mas Deus, ao que parece, sequer se importou com isso. E por que deveria ele se importar com o que nós, homens, fazemos na privacidade de nossos quartos?
Esse exemplo constitui apenas um dos muitos casos que provocaram meu desagrado e descontentamento como homem de religião. Outras razões para o meu abandono é de ordem empírica e doutrinária. O dogma da Santíssima Trindade é ilógico, bem como irracional é a crença em que Jesus morrera na cruz para nos salvar (essa relação entre morte e salvação, nos termos cristãos, é racionalmente nefasta). Jesus, aliás, sequer morreu lutando para libertar seu povo da opressão. Então, sua morte não representou salvação de nada. A ideia de um pai que entrega seu único filho “amado” para morrer, por meio da forma mais hedionda de punição, que era a crucificação, naquele tempo, é, para mim, repugnante. Que salvação tivemos? Cristãos foram perseguidos, mortes, genocídios aconteceram nos anos e nos séculos posteriores, conflitos em nome da fé foram deflagrados; duas Grandes Guerras Mundiais ocorreram no início do século XX e ainda hoje continuamos a guerrear, e muitas de nossas guerras têm motivação religiosa. Na base de tudo isso, está a ignorância, que não foi extinta pelos mártires que professaram suas crenças no sobrenatural, e que continuará sendo um desafio para toda a humanidade. Devo lembrar que a igreja católica, ao longo da história, ou concentrou em suas mãos o poder explorando o povo ou esteve aliada ao poder tirânico?
O Cristianismo é a religião da culpa e da proibição. É o sentimento de culpa que mantém os seus fiéis vinculados à sua religião. Essa relação entre culpa e devoção é perniciosa, porque avilta e provoca a submissão.
Outra ideia absurda é a que somos pecadores porque um personagem fictício atentou contra a vontade de Deus. Toda uma geração de inocentes paga pelo “erro” cometido por um personagem imaginário. O pecado é o alicerce das religiões monoteístas, entre as quais o cristianismo. Daí vem todo o rebaixamento do ser humano, seu aviltamento, sua desvalorização, sua depravação e sua necessidade de ascensão, nunca completa e satisfatória, a Deus.
E podemos diagnosticar outras neuroses, como a obsessão pela aniquilação, comum a certas pessoas de fé que crêem na iminência do fim dos tempos. Há, entre muitos religiosos, um sentimento tácito de satisfação ao crer que um dia o mundo acabará (embora isso seja cientificamente uma possibilidade para daqui a alguns milhões de anos) e que esse fim é iminente. Há também a supervalorização de uma realidade transcendente (o Céu, o paraíso) em detrimento do mundo, lugar de pecado, tentação e sofrimento, e morada do mal.
Outra neurose é o apego ao ideal de perfeição. Isso leva alguns a dizerem copiosa e enfadonhamente que os homens são imperfeitos. Isso os leva a rejeitar o humano em si mesmos, a aceitar sua própria condição de seres humanos. Ora, o que é ser perfeito? É não ter ciúmes? Inveja? Raiva ou ódio? É não ser egoísta? Narcisista? Guloso? Avaro? É nunca poder errar? Então, realmente não somos perfeitos e nunca chegaremos a essa perfeição, simplesmente porque perfeição é a negação da própria condição humana; em suma, perfeição é impensável em padrões intelectuais humanos. Perfeição, portanto, em sendo um valor ideal, é inatingível e simplesmente não existe. É fruto de uma neurose, uma obsessão. A dignidade humana está em lidar com aqueles sentimentos e comportamentos que todos nós, em maior ou menor medida, temos e em aprendermos a conviver uns com os outros, a despeito deles. Podemos ser egoístas, mas somos fiéis e honestos; podemos ser teimosos, mas somos generosos; podemos sentir raiva, mas somos capazes de perdoar; podemos perder a paciência, mas demonstramos zelo. Aceitar o humano é aceitar tudo isso; aceitar nossa próprias contradições, nossos próprios conflitos.
Você só aceitará o humano em si mesmo quando reconhecer que pode errar, que não tem de agradar sempre e que não mais se culpa por não conseguir ser “perfeito”, como uma obra de arte irretocável produzida por um gênio artístico reconhecido.
Ser ateu foi, para mim, aceitar que eu sou a medida do que eu sou, e ninguém nem uma autoridade sobrenatural imaginária determinará o que fui, o que sou e o que serei. EU EXISTO PLENAMENTE EM MIM MESMO. Quero dizer: meu espírito e coração não estão além de mim, estão aqui, onde devem estar: em mim mesmo.