domingo, 24 de julho de 2011

EU EXISTO PLENAMENTE EM MIM MESMO


 
                 
               
                        Reflexões dominicais
                                Do ser ateu

Sete horas da manhã de domingo, e o sono cedeu lugar à ansiedade, mas a uma ansiedade vital, eu diria, comum a todo ser humano que não esteja padecendo de alguma enfermidade, que o mantenha numa cama. Na verdade, acho que dormir demais é uma perda de tempo – tempo que poderia ser preenchido com alguma forma de atividade proveitosa, como escrever, por exemplo.
Os pensamentos são meu despertador. Eles ficam-me a martelar a cabeça e, embora possa resistir a eles durante algum tempo, acabo por ceder à sua insistência.
Ontem, quando, após as minhas leituras diárias, me recolhi ao meu quarto, para compor meu então último texto com inspiração ateísta já divulgado neste blog, sentia-me como um revolucionário, que exprime suas posições infensas a um dado estado-de-coisas, salvaguardando-as e, assim, impedindo que suscitem qualquer suspeita. Trata-se de uma imagem exagerada, evidentemente, porque não nasci num meio familiar religiosamente conservador. Aliás, conservadorismo não foi uma ideologia que me orientou a formação educacional, felizmente. Portanto, não sofro de nenhuma pressão para que eu volte a frequentar missas ou volte a rezar.
É certo que meus familiares desconhecem minhas opiniões ateístas e minha adesão completa ao espírito (sentido) ateu. Mas essa ignorância não é importante, já que, na vida prática, nada mudou. A única mudança é de ordem psicológica: sinto-me aliviado do peso da culpa, do pecado (que remonta às origens dos tempos e a um grandioso feito de uma personagem fictícia) e conciliado com esta vida, que me abrange por completo.
Mantive-me hesitante, durante alguns meses, sobre a decisão de assumir publicamente meu ateísmo; ora postava os textos pelos quais eu me declarava ateu, ora excluía-os. E essa dúvida que me afligia se devia ao receio de que eu fosse alvo de reações adversas, de sentimentos de desaprovação e mesmo de decepção. No entanto, o receio fazia-me ser infiel a mim mesmo e isso é um contra-senso, porque desdiz as minhas ideias sobre mim mesmo, nega quem eu sou. Ora, ser eu mesmo, ser a medida de mim mesmo é não temer posicionar-me contrariamente ao status quo. Eu, que não me furto a criticar os padrões de conduta, de pensamento, que se recusa a viver espiritualmente obtuso, que propala a ideia de que o saber é um dos grandes valores da existência e que deve ser um direito estendido a todos os homens (embora reconheça que, numa sociedade como a nossa, o acesso ao conhecimento é privilégio de poucos), eu, que abraço o magistério com o coração, com a alma e exerço a docência com paixão, que acredita que ensinar e aprender são duas práticas que se dão num processo em que estão envolvidos co-agentes dele responsáveis (e, portanto, o leitor que me lê não é passivo, mas um agente, que contribui com o seu olhar, com suas experiências, que medita, que produz um sentido); eu, que reconheço tudo isso, não poderia fugir à necessidade de assumir que sou ateu.
Minha amiga Gizelda tem, parcialmente, razão, ao escrever, em uma de suas postagens (a última, aliás), que não podemos viver sempre na contramão. Acontece que meu nascimento já se deu na contramão dos próprios processos bioquímicos que participam fundamentalmente da geração da vida. E eu estou longe de pretender assumir ideologias reformadoras ou abraçar causas utópicas; há muito pouco tempo de vida e desfavoráveis são as condições sociopolíticas da (hiper)modernidade para comprometer-se com tal engajamento, se bem que alguns eminentes estudiosos (cientistas, filósofos e jornalistas) estrangeiros propunham um ateísmo militante.
Se, por um lado, possa eu ser dotado de um espírito que tende à subversão e à rejeição de toda ordem que busca conservar alguma forma de ignorância, de injustiça, de intolerância, opressão e exploração; por outro lado, esse espírito acaba confinado no papel, muito embora eu reconheça que, em minha prática docente, possa, às vezes, atuar de modo a libertar intelectualmente.
Sem mais delongas, o caso é que eu acho que nós temos de nos situar no mundo, temos de deixar nossa marca (ainda que anonimamente). Não temos de seguir modelos de conduta, de pensamento, de crenças. Não temos de seguir determinadas tradições que não nos favoreçam por resignação. Decerto, se eu tivesse nascido em séculos anteriores, minha liberdade para escolher rejeitar certos padrões de minha sociedade seria muito limitada. Mas esse, evidentemente, não é o caso.
Estou, contudo, consciente de que vivo num país cujas culturas são marcadas profundamente por religiões e crendices. O Brasil é um país caracterizado por uma pluralidade, uma diversidade de culturas e religiões - herança de todo o nosso processo histórico marcado por uma colonização que nos legou até hoje um sentimento colonial, manifesto, por exemplo, nas opiniões referentes à filiação da língua portuguesa falada aqui com a língua portuguesa falada em Portugal.
Em O que é o Brasil, Roberto DaMatta, ensina-nos, no capítulo Os caminhos para Deus:

“Nós, brasileiros, marcamos certos espaços como referências especiais. A casa, onde moramos, comemos e dormimos, a rua, onde trabalhamos e lutamos pela vida. Mas a esses espaços, onde convivemos com parentes, amigos e colegas de trabalho, devemos somar um outro, não menos referencial e crítico. Quero referir-me ao espaço do “outro mundo”, essa área demarcada por igrejas, capelas, ermidas, terreiros, centros espíritas, sinagogas, santuários, oratórios, templos, cemitérios e tudo aquilo que faz parte e sinaliza as fronteiras entre o mundo em que vivemos e esse “outro mundo” onde, um dia, também iremos habitar”
(p. 57)

Vê-se aí, portanto, descrito o cenário religioso brasileiro, país onde católicos, protestantes, judeus, islâmicos, macumbeiros, budistas, entre outros, podem co-habitar harmonicamente, dadas as condições sociopolíticas favoráveis típicas de um estado laico. Não quero com isso dizer não haja manifestações de intolerância no Brasil, mas que há, institucionalmente, instalada uma consciência da necessidade de combater a intolerância e garantir a liberdade de expressão, também no domínio religioso. Política e religião ocupam esferas distintas, ainda que a Igreja Católica influencie os aspectos social, cultural e político do Brasil. É consabido que, a despeito da grande variedade de religiões existente nesta terra, o catolicismo é a religião predominante. O Brasil é considerado o maior país católico do mundo, com 73, 8% de seus habitantes que se declaram católicos.

Quanto aos ateus, o IBGE registra ser o Rio de Janeiro o primeiro estado brasileiro a abrigar o maior número de pessoas sem religião; à Bahia, reserva-se o lugar de terceiro estado. Só em Salvador são 18% da população, o que lhe confere o primeiro lugar entre as capitais brasileiras com um número grande de pessoas que não professam religião alguma. Em todo território nacional, a ausência de crença e prática religiosas é mais frequente entre homens e entre pessoas com menos de 55 anos. Na verdade, exprime-se aqui a realidade de pessoas que admitem não seguir religião alguma, o que inclui não só ateus, mas também agnósticos e deístas (que embora acreditem que Deus exista, não acreditam que ele está comprometido com a vida do mundo). Parece que o número de ateus no Brasil chega a 3% da população.

Há uma diferença determinante entre ateus e teístas: aqueles não se interessam em doutrinar ninguém, em angariar adeptos; não vão às casas das pessoas para falar-lhes sobre as fortes razões que os levam a sustentar a inexistência de qualquer divindade.
Por isso, eu afirmo que, enquanto a sua religiosidade, caro leitor, estiver satisfazendo o seu bem-estar psíquico e humano, bem como as suas necessidades de amparo e proteção, proceda segundo o seu coração. Não o reprovo por isso. Todavia, não se negue a, ao menos, dar ouvidos à razão.
A prática religiosa me enfadava, me inquietava intelectualmente. Lembro a ocasião em que o padre da igreja que eu frequentava censurava a exibição, numa novela da Rede Globo, de duas personagens que formavam um casal de lésbicas. E, em seu discurso, ao considerar o homossexualismo, ele dizia que Deus não é contrário ao “pecador” (no caso, ao homossexual), mas ao “pecado” (no caso, ao homossexualismo). Podemos criticar essa forma de censura, rejeição, por um apego a um moralismo estreito e conservador, herança de uma cultura profundamente autoritária, de duas maneiras.
A primeira delas com um argumento empírico. O homossexualismo é uma das formas de expressão natural da sexualidade. Portanto, o homossexualismo, enquanto comportamento sexual em homens e em mulheres, está em consonância com a ordem das práticas sexuais na natureza. E eu o provo, citando os casos de relações homossexuais na espécie de golfinhos nariz-de-garrafa, gaivotas, besouros, gansos, bonobos (espécie de macaco), macacos japoneses, peixes-mexerica, etc. É interessante notar que as práticas homossexuais cumprem diversas funções na vida comunitária dessas espécies. Entre os macacos japoneses, por exemplo, a atividade homossexual serve para resolver conflitos, amenizar tensões ou mesmo pedir desculpas

A segunda maneira exigir-nos-á participar, por algum momento, do delírio religioso. Abrindo um parênteses, por delírio, num sentido genérico, consoante se lê em Dicionário básico de filosofia, entende-se “ desordem mental da personalidade (temporária ou crônica) caracterizada por uma forte confusão das ideias, falsas interpretações e desvios de percepção, acarretando uma conduta irracional ou irrazoável”.  O delirante assume um padrão desviante da realidade, aproximando-o de um louco. O louco cria um universo que lhe é próprio e coerente, muito embora incompatível com o padrão da realidade consensualmente aceita pelos outros indivíduos de sua sociedade. Todavia, devo reconhecer que as religiões se fundam num delírio e não propriamente numa loucura. O psiquiatra e filósofo Karl Jaspers foi o primeiro a estabelecer critérios para definir o delírio, que é uma falsa crença. Para ele, todo delírio se caracteriza por: a) certeza (respaldada numa convicção inabalável); b) incorrigibilidade (não suscetível à mudança por meio de contra-argumentação); c) impossibilidade ou falsidade de conteúdo (implausível, ou pateticamente inverídico).

Há, todavia, controvérsia em se assumir que posturas religiosas, como propalar a crença na existência de Deus seja uma evidência de delírio, já que, para alguns, essa crença não pode ser falsificável. Falsificável, não empiricamente, eu diria, mas sim racionalmente. Mas isso é matéria para outro texto. Creio que, de qualquer modo, os critérios estabelecidos por Jaspers se afinam com as atitudes dos religiosos e autoridades religiosas. Muitos estão seguros da veracidade de sua crença; muitos resistem à contra-argumentação e às evidências que tornam essa crença pouco sustentável; e muitos mantém seus argumentos frágeis ou irracionais.
Supondo, então, que Deus exista e que ele foi o responsável pela existência do mundo e de tudo que existe nele, incluindo os seres humanos, por quem Deus tem certa predileção (embora continue deixando que milhares de pessoas inocentes experimentem um sofrimento aterrador, ou morram em catástrofes naturais), raciocinemos: sendo Deus o responsável pela criação do universo, da vida em suma, e sendo ele onisciente, ele então é o único responsável pelas diferentes formas de os homens experimentarem sua sexualidade. Quero dizer, ele criou seres humanos capazes de ter experiências sexuais variadas. Sabe-se que, diferentemente de outras espécies de animais, os seres humanos são os únicos que possuem mais zonas erógenas em seu corpo. Uma dessas zonas é o ânus. Quero dizer mais: o homossexualismo deveria ser um comportamento inscrito por Deus em nosso organismo, pelo menos em potência. E ele não poderia culpar os seres humanos que se desviassem de um comportamento sexual aceitável para ele mesmo (supostamente o heterossexual), sem que antes reconhecesse a sua culpa também. Ora, bastava que ele criasse homens e mulheres com alguma forma de restrição natural, biológica, que proibisse os organismos de manterem entre si relações homossexuais. Isso não se verifica nem entre os animais, nem entre os humanos. Como lemos, a natureza nos fornece fartos exemplos de conduta homossexual.
Vamos um pouco mais adiante. A ignorância eclesiástica extrapola o bom-senso. Práticas como o homossexualismo e a bissexualidade eram comuns entre os nossos ancestrais. Também comum era o travestismo. Em História da Sexualidade, lemos o seguinte:

“ Em algumas tribos do sul da África, caso atual de Moçambique, certos homens eram sistematicamente vestidos e tratados como mulheres. Às vezes essa prática expressava um excesso de indivíduos do sexo masculino e a consequente necessidade de prover pessoas para o trabalho caracteristicamente “feminino”, embora tivessem nascido homens. Mas atrelada a ela havia também significação sexual e espiritual. Em Moçambique, alguns meninos tratados como mulheres enfeitavam-se com seios de madeira para entreter os homens e eram vistos como detentores de poderes mágicos. Mais raramente, as meninas podiam ser incumbidas de vestir-se e agir como homens. A bissexualidade praticada abertamente também eram comuns. (...) Vale dizer que havia grande variedade de regiões para região, o que complica qualquer tipo de generalização, mas, ao que parece, muitos grupos de caçadores-coletores não impunham limites estritos entre o que chamaríamos de características e comportamentos heterossexuais e homossexuais, e demonstravam fascínio pela sexualidade e pelo poder que acompanhava a capacidade de combinar aspectos sexuais de ambos os gêneros. Embora a arte relevante geralmente retratasse atividade heterossexual, em lugares como a Scicília há também gravuras em rochas com cenas homoeróticas”
(pp. 24-25)

O autor, Peter N. Stearns, reportasse ao tempo dos homens que viviam da prática de coleta e caça, portanto, anterior à descoberta da agricultura, surgida entre 9.000 e 5.000 anos a.C.
As transformações socio-políticas, culturais e econômicas geraram efeitos restritivos sobre a sexualidade. E, evidentemente, dependendo da cultura, os povos criaram mecanismos de repressão maior ou menor à sexualidade. Nesse tocante, historicamente, as religiões, particularmente, as grandes religiões monoteístas (cristianismo, judaísmo e islamismo) exerceram (e exercem) uma grande influência no sentido de impor proibições/ restrições às práticas sexuais humanas. Historicamente, nas comunidades agrícolas, a sexualidade sofrera restrições, por estar intimamente relacionada à procriação, embora não estivesse totalmente apartada do prazer, visto que era útil controlar a natalidade. Evidentemente, ter muitos filhos implicava, naquelas condições de vida, um fardo pesado demais. Mais da metade de recém-nascidos morriam ao completar dois anos.
O que parece claro é que as comunidades buscavam formas para administrar a tensão entre o instinto de prazer e a razão, necessária às atividades de subsistência. As restrições advinham, em geral, das necessidades de sobrevivência, embora também se verificassem crenças e atitudes, aparentemente, sem fundamento, como as que prescreviam que as mulheres, após a menopausa, deveriam abster-se da atividade sexual.
Em suma, o processo civilizatório por que passou a humanidade – um processo ininterrupto ao longo do qual se inscreve a barbárie – gerou diversas transformações na sexualidade, sempre no sentido de reprimi-la, em épocas marcadas por um conservadorismo maior, e de orientá-la segundo padrões moralmente aceitáveis. É a luta constante pelo controle de um instinto natural que deve amoldar-se às formas de vida civilizada. Daí o espanto para alguns de nós ao saber que, na Holanda, o sexo em praça pública é legalmente autorizado, nos horários estabelecidos para cada parque.

O que faz o nosso padre então. Ora, ele usa como critério uma ideia ou ser criado pela sua imaginação – Deus – para a rejeição de uma prática sexual (o homossexualismo), ignorando duas coisas: uma é a ideia de que, ao fazê-lo, responsabiliza o próprio Deus, tacitamente, culpando-o; a outra ignora as evidências de que a sexualidade humana é diversificada e complexa e de que atividades homossexuais são comuns entre muitas espécies de animais. E não foi Deus que criou a Natureza? Enfim, tudo que é natural no mundo?
Descontando a ignorância de ordem empírica, o nosso padre se trai com a própria doutrina que ele trata de entulhar na cabeça dos seus paroquianos: segundo a doutrina, Deus criou os homens e, portanto, os preparou para a atividade sexual (donde se segue ser um contra-senso dizer que o sexo é pecado) e esse mesmo Deus é onisciente e onipotente, logo ele sabe que os homens tendem a experiências sexuais variadas e tinha o poder de ‘inscrever’ no organismo humano algum tipo de restrição ou mecanismo restritivo de práticas homossexuais. Mas Deus, ao que parece, sequer se importou com isso. E por que deveria ele se importar com o que nós, homens, fazemos na privacidade de nossos quartos?
Esse exemplo constitui apenas um dos muitos casos que provocaram meu desagrado e descontentamento como homem de religião. Outras razões para o meu abandono é de ordem empírica e doutrinária. O dogma da Santíssima Trindade é ilógico, bem como irracional é a crença em que Jesus morrera na cruz para nos salvar (essa relação entre morte e salvação, nos termos cristãos, é racionalmente nefasta). Jesus, aliás, sequer morreu lutando para libertar seu povo da opressão. Então, sua morte não representou salvação de nada. A ideia de um pai que entrega seu único filho “amado” para morrer, por meio da forma mais hedionda de punição, que era a crucificação, naquele tempo, é, para mim, repugnante. Que salvação tivemos? Cristãos foram perseguidos, mortes, genocídios aconteceram nos anos e nos séculos posteriores, conflitos em nome da fé foram deflagrados; duas Grandes Guerras Mundiais ocorreram no início do século XX e ainda hoje continuamos a guerrear, e muitas de nossas guerras têm motivação religiosa. Na base de tudo isso, está a ignorância, que não foi extinta pelos mártires que professaram suas crenças no sobrenatural, e que continuará sendo um desafio para toda a humanidade. Devo lembrar que a igreja católica, ao longo da história, ou concentrou em suas mãos o poder explorando o povo ou esteve aliada ao poder tirânico?
O Cristianismo é a religião da culpa e da proibição. É o sentimento de culpa que mantém os seus fiéis vinculados à sua religião. Essa relação entre culpa e devoção é perniciosa, porque avilta e provoca a submissão.
Outra ideia absurda é a que somos pecadores porque um personagem fictício atentou contra a vontade de Deus. Toda uma geração de inocentes paga pelo “erro” cometido por um personagem imaginário. O pecado é o alicerce das religiões monoteístas, entre as quais o cristianismo. Daí vem todo o rebaixamento do ser humano, seu aviltamento, sua desvalorização, sua depravação e sua necessidade de ascensão, nunca completa e satisfatória, a Deus.
E podemos diagnosticar outras neuroses, como a obsessão pela aniquilação, comum a certas pessoas de fé que crêem na iminência do fim dos tempos. Há, entre muitos religiosos, um sentimento tácito de satisfação ao crer que um dia o mundo acabará (embora isso seja cientificamente uma possibilidade para daqui a alguns milhões de anos) e que esse fim é iminente. Há também a supervalorização de uma realidade transcendente (o Céu, o paraíso) em detrimento do mundo, lugar de pecado, tentação e sofrimento, e morada do mal.
Outra neurose é o apego ao ideal de perfeição. Isso leva alguns a dizerem copiosa e enfadonhamente que os homens são imperfeitos. Isso os leva a rejeitar o humano em si mesmos, a aceitar sua própria condição de seres humanos. Ora, o que é ser perfeito? É não ter ciúmes? Inveja? Raiva ou ódio? É não ser egoísta? Narcisista? Guloso? Avaro? É nunca poder errar? Então, realmente não somos perfeitos e nunca chegaremos a essa perfeição, simplesmente porque perfeição é a negação da própria condição humana; em suma, perfeição é impensável em padrões intelectuais humanos. Perfeição, portanto, em sendo um valor ideal, é inatingível e simplesmente não existe. É fruto de uma neurose, uma obsessão. A dignidade humana está em lidar com aqueles sentimentos e comportamentos que todos nós, em maior ou menor medida, temos e em aprendermos a conviver uns com os outros, a despeito deles. Podemos ser egoístas, mas somos fiéis e honestos; podemos ser teimosos, mas somos generosos; podemos sentir raiva, mas somos capazes de perdoar; podemos perder a paciência, mas demonstramos zelo.  Aceitar o humano é aceitar tudo isso; aceitar nossa próprias contradições, nossos próprios conflitos.
Você só aceitará o humano em si mesmo quando reconhecer que pode errar, que não tem de agradar sempre e que não mais se culpa por não conseguir ser “perfeito”, como uma obra de arte irretocável produzida por um gênio artístico reconhecido.
Ser ateu foi, para mim, aceitar que eu sou a medida do que eu sou, e ninguém nem uma autoridade sobrenatural imaginária determinará o que fui, o que sou e o que serei. EU EXISTO PLENAMENTE EM MIM MESMO. Quero dizer: meu espírito e coração não estão além de mim, estão aqui, onde devem estar: em mim mesmo.





sexta-feira, 22 de julho de 2011

Somos o que lemos...


                                                                                                              Somos o que lemos
     E quanto nos reconhecemos


De chofre, um pensamento deteve-se em minha alma: o que lemos revela muito o que somos. E creio não enfadar o leitor, se eu lhe disser, mais uma vez, que este texto resulta da confluência de alguns pensamentos ao meu coração, no momento em que, como de costume, detinha-me na leitura de alguns livros.
Custa-me, neste momento, domar os pensamentos e o entusiasmo; aqueles, indisciplinados, parecem digladiar-se por um lugar no papel; este comove-me a alma a não protelar mais as palavras que, agora, vão tomando forma. Manterei, contudo, a serenidade para que os pensamentos não me saiam atropelados, atabalhoados ou embaraçados. Uma parada ou outra no dicionário é necessária para me certificar da exatidão de minha expressão.
Retomo a tese, em itálico, anunciada acima. Intento escrever sobre minha relação com os livros, ou, mais propriamente, minha relação com a leitura; e me esforçarei por entender como o que leio toca-me intimamente, ou, se o preferirem, toca a minha personalidade.
Começarei externando uma crença – talvez, possa parecer falsa, ou um disparate, ou um preconceito (no sentido positivo – ou seja, um prejulgamento que pode não corresponder aos fatos). Todavia, escusar-me-ei de excessivo cuidado, já que mentes mais brilhantes já produziram despautérios. A crença se expressa nesses termos: é possível que as pessoas que buscam auxílio psiquiátrico sejam pessoas dotadas de maior profundidade psicológica. Que entendo eu por “profundidade psicológica”? Entendo a qualidade daqueles que são emocionalmente mais densos, intensos e intelectualmente mais inquietos. Inquieto me parece uma palavra adequada, porque nos permite inferir a negação do conformismo, o sentimento de revolta que, como tal, busca estender a justiça a todos. Revoltado não se confunde com ressentido; este quer que o mal que sobre si recaiu recaia também sobre o outro; o revoltado, ao contrário, ao negar o status quo busca converter as condições de injustiça em condições mais justas, portanto, favoráveis a toda uma comunidade.
É possível que me repliquem, argumentando-se que as pessoas psicologicamente mais ‘profundas’ são as mais frágeis e que, portanto, a fragilidade psicológica é que leva essas pessoas às sessões de análise. Decerto, a fragilidade é consequência dessa profundidade, visto que essas pessoas absorvem mais a vida, não vivem à sua superfície. No entanto, minha crença, ainda que não atestada, por isso mesmo, chamo-a de hipótese, é respaldada em observações corriqueiras. Por exemplo, há pessoas que, por serem tolas, sequer cogitam da ideia de que precisam de análise (embora precisem) e passarão a vida toda supondo que ir a um/uma psiquiatra é uma necessidade dos fracos, fragilizados e sensíveis. Mas, convém inverter essa relação: ir a um/uma psiquiatra, uma vez reconhecida a necessidade, é próprio dos fortes e corajosos, pois estes não evitam o confronto consigo mesmos. Esse confronto é o confronto com o seu próprio absurdo, com o seu próprio escuro, obscuro, desconhecido. Na análise, o paciente se revela a si mesmo, se reconhece; faz aparecer à consciência alguém que ficara esquecido, como num quarto escuro pequeno e úmido.
De qualquer modo, a ajuda de uma psicóloga ou psiquiatra é, decerto, muito proveitosa e indispensável no momento em que nossa inquietude intelectual nos põe diante de um abismo: a consciência de que existimos, de que fomos arremessados à existência, ao nascer; enfim, a consciência do seu absurdo. E absurdo aqui, devo insistir – porque é palavra muito repisada nos discursos vulgares – é, no sentido existencialista, a impossibilidade de a existência dos homens e do mundo ser justificada racionalmente, bem como a impossibilidade de que tenha um sentido. O absurdo nos afirma: você existe. E, de repente, reconhecemos este fato. O assombro acompanha-se de uma questão “O que fazer?”. Assumir a completa liberdade, diria Sartre, porque “estamos condenados a ser livres”. O absurdo faz o mundo cair sobre nós. E, a menos que façamos algo a respeito, continuaremos a levá-lo sobre as costas durante toda a nossa breve vida.
É claro que as experiências em que nos envolvemos modificam-nos de algum modo; seus efeitos podem ser negativos ou positivos; entretanto, o que nos importa mesmo é o modo como reagimos a esses efeitos. Todas a experiências confluem para que alcancemos um amadurecimento maior, mesmo aquelas que, durante um breve período de tempo, tenham nos alegrado, mas que, passado esse tempo, já não possamos delas desfrutar. É o movimento da vida incessante; e nesse ir e vir de pessoas, instantes, situações, circunstâncias, emoções, desejos, paixões, amores, o desafio que nos impõe a vida é a de permanecermos intactos. Em outras palavras, o que somos deve permanecer, a despeito do devir, a que Heráclito sustentou com seus pensamentos.
Percorri até aqui um caminho, aparentemente, desviante da questão principal, sobre a qual decidi me debruçar, a saber, a minha relação com a leitura. Nossa relação com a leitura também passa por um amadurecimento, que, na realidade, depende do nosso amadurecimento. Mas é preciso reconhecer a leitura como uma experiência dentre as outras. Essa experiência, ou melhor, a forma dessa experiência, a sua complexidade, variará à medida que crescemos, que aprendemos, que lemos mais, que tornamos nossa socialização mais enriquecedora culturalmente. Por exemplo, a criança que toma gosto pela leitura, desde cedo, cultiva a sua imaginação, experiencia um "mundo" fantástico, desenvolve sua criatividade, reconhece no livro o seu universo infantil. Na (pré-)adolescência, é o mistério, a aventura, a descoberta, as inseguranças típicas dessa fase que podem atrair o jovem à leitura.
A escola e a universidade desempenharão, evidentemente, um papel fundamental na orientação de nossas leituras. É quando tomamos contato com os clássicos da literatura, com textos mais complexos e variados. Entretanto, muito do que lemos nesses espaços são exigências curriculares. Não estou interessado aqui em pensar na leitura feita por alguma espécie de exigência.
Já insisti, em outras ocasiões, que ler deve ser encarado como uma necessidade. A leitura preenche uma carência, a saber, a carência de conhecimento. Se pudermos escolher o que queremos ler, essa carência torna-se a satisfação de um prazer.
Eu tenho prazer enquanto leio. O que leio me acalenta, me atrai irresistivelmente; há paixão quando leio; há desejo inelutável de me apropriar do conhecimento que outras mentes estão a me proporcionar. Não se conclua daí que eu seja um leitor passivo, porque, ao ler, questiono, faço observações junto ao parágrafo ou no rodapé da página; grafo um sinal de interrogação, ou mesmo fico especulando (falando comigo mesmo), como se eu estivesse debatendo o tema diante de um auditório. Portanto, eu interajo com o autor. Trata-se do que se costuma chamar de agente-leitor.
O que os livros revelam sobre nós? Devo reconhecer que, toda vez que entro numa livraria, ou compro livros pela internet, eu já tenho em conta quais os livros que quero comprar. Alguns títulos me aparecem em livros que estou lendo; às vezes, não dispondo dos títulos, recorro aos livros pelo tema com que me deparo. E os temas, em geral, me inquietam.
Junto a mim tenho, agora, os seguintes livros, alguns dos quais comprados recentemente:

Ateísmo e Revolta – Os manuscritos do padre Jean Meslier (autor: Paulo Jonas de L. Paiva)

Evangelhos Perdidos – As Batalhas pela Escritura e os Cristianismos que não chegamos a conhecer (autor: Bart. D. Ehrman)

Histórias Íntimas – Sexualidade e erotismo na história do Brasil (autora: Mary Del Priore)

História da sexualidade –  (autor: Peter N. Stearns)

História da sexualidade (vol.2) -  (autor: Michael Foucault)

Eros e Civilização – uma interpretação filosófica do pensamento de Freud – (autor: Herbert Marcuse)

Não custará ao leitor reconhecer que as obras elencadas aqui versam sobre dois temas que me são caros: religião  ou a sua negação (ateísmo) e a sexualidade. Dois fenômenos que tocam a mim de modo muito peculiar; aliás, temas que são recorrentes nas sessões de análise, que o digam os psiquiatras. E devemos reconhecer-lhes o peso: a busca por uma justificação sobrenatural de nossa vida e o desejo de experienciar uma sexualidade plena, sem o peso da repressão, ou seja, o desejo de proteção transcendente e o desejo sexual devem ser legitimados, muito embora, infelizmente, este último sucumba às tolices doutrinárias na base das quais aquele se sustenta.
Acrescidos a estes livros, estão outros que versam sobre o feminismo. Meu interesse era entender as reivindicações e conquistas da mulher. E um deles, intitulado de A volta da Deusa – Feminismo e religião, merece ser citado pela sua relevância. Trata-se de um livro que inclui temas como misogenia e suas variedades, a homossexualidade e a religião, bem como a polaridade dos sexos; as fronteiras da pornografia; a história do beijo, entre outros.
Sinto-me, às vezes, distante do universo masculino, pelo menos naquilo que ele tem de mais grosseiro e instintivo. Eu já escrevi ter uma alma feminina, se é que isso signifique alguma coisa. Veja-se, a propósito, o que nos ensinam sociobiólogos a respeito da natureza da sexualidade humana. Em A História da sexualidade (2010), lemos na Introdução o seguinte:

“Os sociobiólogos acrescentariam alguns outros elementos básicos à sexualidade humana. Eles apontam que, como outros animais, existem significativas diferenças de gênero. Alguns afirmam que os machos, constantemente produzindo novas quantidades de esperma durante seus anos férteis, são “naturalmente” propensos a ter mais relações sexuais, com o maior número possível de parceiras diferentes, para espalhar sua herança genética; já as mulheres, por outro lado, com um estoque limitado de óvulos e o fardo de ter de carregar o filho antes do nascimento, acham importante limitar seus parceiros e se empenhar para assegurar a estabilidade de sua prole. De acordo com esse argumento, existe uma distinção inata, que também terá implicações sociais: homens mais ávidos, mulheres mais reticentes.”
(p. 12)

Pensemos na questão sem o peso de nossa herança de valores, preceitos morais e preconceitos (embora isso seja quase impossível). É claro que a sexualidade é atravessada pela dimensão biológica e socio-cultural. O longo processo civilizatório do homem, como, aliás, já o havia notado Freud, trouxe complicações para a sexualidade humana. Sabe-se que a cultura se torna possível senão pelo sacrifício do instinto ou impulso de prazer no homem. Para Freud, a cultura coage tanto sua história social como biológica. Assim, a história do homem é entendida, pelo pai da psicanálise, como a história de sua repressão.
Mas essa explicação sociobiológica dá conta de toda a dimensão da sexualidade humana – uma dimensão complexa, já que envolve não só apetite, mas afetividade, desejos mais íntimos, como o de proteção, cuidado, cumplicidade, companheirismo, além, é claro, das formas sociais, antinaturais e irracionais de interdição/ repressão? É certo que muitos homens, talvez, sejam protótipos do comportamento sexual masculino, segundo a explicação que dele dão os sociobiólogos, e não há por que fazer qualquer avaliação negativa nesse tocante. Desde que o sexo seja consentido, não me oponho a relações sexuais determinadas pelo imperativo da libido. Se apenas os corpos estão de acordo e os corações cientes desse acordo, que celebramos o prazer sexual! E aqui calemos as histerias religiosas com a lição do padre ateu Meslier. Quem desejar conhecê-la leia o livro. O que nos lembram os estudiosos é a importância de reconhecer o domínio do sexo: no corpo, na libido; as complicações surgem quando a alma se intromete, quer por estar imersa em ideias exorbitantes, quer por estar coagida, confusa e conflituada pelo peso de preceitos morais conservadores.
O que esses livros revelam sobre mim? Um desejo de liberdade, de libertação, de calar a infelicidade que me legou meu coração, de ser mais de mim mesmo, de ser eu mesmo meu próprio destino, sem subterfúgios nem ilusões da perpetuação de nossa infantilização.





quinta-feira, 21 de julho de 2011

"Quero apenas pensar para poder viver" (BAR)

               
                           Um convite à reflexão


   Aos meus pais sou grato por muitas razões e, principalmente, pelo esforço deles por me manter vivo. Mas não bastava que se empenhassem em minha sobrevivência; eles precisavam me dar amor. E assim o bem mais valioso que recebi de meus pais foi o AMOR abundante e incondicional. Ao AMOR dispensado, somaram-se os valores morais, a educação, a formação, em suma, do caráter. Não menos importante foi a herança do estudo. Lembro-me das conversas que entabulava com meu pai, no tempo em que ainda era garoto. A lição que nelas aprendia é que o estudo era a maior herança que ele poderia deixar a mim e ao meu irmão.
Recentemente, minha mãe disse-me ter orgulho de mim. Qual foi minha satisfação! Principalmente, após as notas máximas alcançadas nas últimas disciplinas que cursei no doutorado. AMOR e CONHECIMENTO são, portanto, os maiores valores que herdei graças aos meus pais e já lhes manifestei muitas vezes minha gratidão e reconhecimento por seus cuidados e esforços.
Também herdei de meus pais o convívio com o catolicismo e a religiosidade, que sobrevivera em mim durante muitos anos. Fui batizado, como qualquer criança de pais cristãos, fiz comunhão e até crisma. Por muitos anos, frequentei missas. Mas, chegada a maioridade, eu comecei a sentir um desconforto. Latejava em meu espírito um sentimento de profunda rejeição àquelas preleções cansativas proferidas pelo padre e ideologicamente orientadas para alienar, entorpecer, regredir a consciência dos que a elas davam ouvidos.  E me inquietava ver aquele bando de gente com sua mente imersa naquelas fantasias e farsas, sucumbindo em lágrimas à culpa do pecado, esse flagelo psíquico com que a Igreja, instituição historicamente influente e poderosa, que outrora fora aliada dos poderosos e tiranos, os açoita.
Do fundo de meu ser, das entranhas de minha alma, bradou uma voz libertadora! Era a voz do CONHECIMENTO. Um homem de Letras, como eu, amante da linguagem, da beleza da poesia, da alma dos grandes poetas, da arte, em suma, não podia silenciar em face do abismo que havia entre o deus representado e venerado pelos religiosos e a dureza, a crueldade, a maldade tão intrínsecas à vida. A evidência da grande medida de sofrimento e a insustentabilidade da crença na existência de um deus infinitamente bondoso e poderoso comprometido com a vida dos homens constituíram, sem dúvida, uma forte razão para que eu, ao menos, inicialmente, suspeitasse de que eu estava vivendo, durante anos, imerso numa grande ilusão, da qual era imperioso que eu acordasse.
Todavia, até que eu aceitasse as evidências e rejeitasse os argumentos pífios com que os homens de religião (e incluo aqui os próprios autores bíblicos) buscavam dar conta do problema do sofrimento, foi preciso que eu me afundasse, por outras razões, durante anos, no abismo da depressão – uma doença grave, a que muitos, por ignorância, atribuem pouca importância. Não obstante, o CONHECIMENTO, de que não abro mão, muito embora por ele eu possa viver apartado do convívio com pessoas mais conservadoras ou mesmo resistentes ao seu valor (houve um momento em que acreditava que havia sempre um livro entre mim e o outro), foi a razão pela qual eu me senti impelido a compreender o funcionamento ideológico e histórico da religião, mas não só, evidentemente. O CONHECIMENTO é a luz da alma e é o motivo por que eu me abandono às leituras diárias e me debruço sobre os livros.
Meus pais me beneficiaram com o acesso ao CONHECIMENTO, sem, evidentemente, deixar de reconhecer o meu mérito, a minha dedicação e as privações que me impus para percorrer os caminhos não menos árduos que me levassem a ele. É esta herança que me permitiu, hoje, libertar-me de outra herança: a religiosa.
Minha amiga Zélia, certamente a mais dedicada à leitura das páginas de minha alma, e a quem muito estimo e agradeço sempre, escreveu-me que eu, ultimamente, tenho escrito com certa sofreguidão. Compreenda, amiga, que tenho vivido, nestas férias, muito entediado e o ócio tem-me fertilizado o espírito. Cuidei que melhor seria escrever mais, porque me lembrei de que não bebo.
Outro livro que faz parte da minha ruma de livros é Ateísmo e Revolta: os manuscritos do padre Jean Meslier (2006), de Paulo Jonas de L. Pina. Meslier foi um padre, materialista e ateu que, revoltado com a opressão sofrida pelo povo pelo governo de reis tirânicos, cujo poder era apoiado pela Igreja (católica apostólica romana) e alicerçado no dogma da divindade do rei, desenvolveu um pensamento crítico mordaz que denunciava a relação perniciosa entre religião e política e o consequente jugo do povo.
Na contracapa, lemos o seguinte:

“Numa pequena aldeia francesa, por volta de 1720, sem dispor de uma biblioteca, uma singular figura foi capaz de elaborar um pensamento notável, fazer críticas contundentes à religião cristã e antecipar uma série de ideias que o Iluminismo e o materialismo marxista viriam, posteriormente, a desenvolver com maior brilho e refinamento. Seu nome era Jean Meslier (1664-1729), padre, materialista e ateu. Ao longo de sua vida, o padre cuidadosamente ocultou seus pensamentos de todos, revelando-os somente nas suas Memórias, que seriam publicadas postumamente por Voltaire. Embora original e importante, Jean Meslier foi pouco estudado e, infelizmente, permaneceu desconhecido entre nós (...)”.

O seu livro Memórias, além de uma seção Apresentação, inclui as oito provas (no sentido de razões) com que o padre e ateu busca lançar por terra todo edifício ideológico e doutrinário do cristianismo, bem como suas pretensões ao controle da consciência dos homens ignorantes.
A situação sócio-política de sua época era, como sabemos, marcada pela aliança perniciosa entre o poder regente e o poder eclesiástico. Assim, à página 140, escreve o autor:

“(...) os eclesiásticos e nobres, papas e reis, tornam-se sócios na exploração da boa-fé e da submissão dos humildes. Utilizando o bem comum e a necessidade pública como pretextos, os reis tornam-se truculentos tiranos. Alegando vontade divina e prometendo a garantia de felicidade eterna numa outra vida, padres, bispos e o papa apropriam-se dos escassos bens temporais dos seus fiéis na forma de dízimos e de outras dissimuladas usurpações, recursos estes que poderiam ser melhor desfrutados em vida pelos seus sofridos possuidores. Nobreza e clero, política e religião, portanto, irmanar-se-iam na espoliação dos povos”.
(pp. 140-141)

Eu gostaria de poder resenhar sobre as teses de Meslier, mas não disponho de tempo para tanto. Além disso, o cansaço cai-me pesadamente no espírito. Todavia, vale notar como Meslier define religião.

“Na terceira e última parte da “Apresentação”, as religiões são definidas por Meslier como erros, ilusões, abusos e imposturas. Tanto os deuses pagãos quanto o deus com “d” minúsculo do cristianismo, juntamente com todos os seus rituais, cultos, explicações, leis e ordenações seriam, no seu entender, “invenções humanas” com finalidade puramente políticas (...) tais divindades são interpretadas pelo padre como falsidades, artifícios oriundos de raciocínios tolos que são apropriados pelos tiranos para dominar e espoliar facilmente os povos”
(p. 148)

Como materialista, a morte, para Meslier, não é senão a extinção da vida consciente e corpórea. Para o padre, ideias como a de inferno, paraíso não passam de fábulas ou “fantasmagorias de fanáticos” (p. 148).
Precisamos entender que o modo como o padre ateu define a religião é decorrente das avaliações que ele fará, especialmente, na primeira de suas provas. Nesta, ele vai se preocupar em refletir como a religião se serve da política para oprimir o povo. Essa opressão se dá por meio da transformação de instituições humanas em leis divinais e em instituições sobrenaturais. E ele observa ainda que, dada a pluralidade de religiões que disputam entre si o valor de verdade para o seu sistema de dogmas e que, ao fazê-lo, fornecem argumentos inconsistentes e contrários à razão, nenhuma delas pode ser verdadeira. Ele nota ainda que os católicos reivindicam o valor de verdade para a sua religião e consideram falsas todas as demais, sem que possam sustentar com argumentos sólidos e convincentes tal reivindicação.
Ele também atacará os supostos milagres e as revelações divinas a homens tolos e iletrados, como Moisés. A esse respeito, lemos:

“Ora, indaga Meslier, se o deus dos judeus e dos cristãos é capaz de conversar pessoalmente com os homens, por que ele não transmite diretamente suas leis e os seus ensinamentos a todos os seres humanos em conjunto e não isoladamente a um só deles? Por que apenas alguns deles teriam esse privilégio e a outros caberia simplesmente acreditar? Por que as aparições seriam às escondidas e nas situações mais inusitadas? Deus não saberia ou não poderia se fazer entender pelas suas criaturas? Assim sendo, que espécie de deus impotente e destituído de saber é este?”
(p. 152)

Certamente, o leitor não deixará as páginas de Ateísmo e Revolta sem sinais de profunda suspeita de que, durante anos de sua vida, agarrou-se a um densa e entorpecente ilusão. Aos mais resistentes, não faltarão questionamentos.
Vale a pena o empreendimento intelectual!


quarta-feira, 20 de julho de 2011

coração em retirada


Viajante

Vem
Amor
E não se atrasa
Meu coração
Já fez as malas
Ele está em retirada

(BAR)

" A dor da morte é a saudade, que não se enterra, mas se hospeda" (BAR)





                            Ao meu cachorrinho
                               Do meu coração

Percorri os arquivos de textos em meu computador, a fim de encontrar algum texto em que escrevi sobre o budismo. Gostaria de trazer à cena um pouco do que li sobre a filosofia budista. Impressiona-me o fato de meu espírito trafegar por áreas temáticas diversas. Houve uma época em que me dediquei à leitura de várias doutrinas religiosas.
Como eu não encontrasse o texto, lembrei-me de que Rubem Alves escrevera brilhantemente sobre temas que nos são inquietantes, em O Deus que conheço (2010). No capítulo Sobre a morte e morrer, apresenta-nos a seguinte confissão:

“Confesso que, na minha experiência de ser humano, nunca me encontrei com a vida sob a forma de batidas do coração ou ondas cerebrais. A vida humana não se define biologicamente. Permanecemos humanos enquanto existe em nós a esperança da beleza e da alegria. Morta a possibilidade de sentir alegria ou gozar a beleza, o corpo se transforma numa casca vazia de cigarra”
(p. 40)

Decerto, a vida humana não se reduz a explicações biológicas; a dimensão biológica é tão-só a evidência de que pertencemos a uma totalidade natural, orgânica. Mas somos, antes de tudo, espírito e emoção. É o espírito e a emoção o fundamento da vida humana. Espírito e emoção tornam essa vida mais complexa e, por que não dizer, complicada.
Mais abaixo, na mesma página, o autor acrescenta, ao referir-se à necessidade de morrer:

“Liberta-me. Deixa-me ir”. A vida deseja descansar”

A vida de meu cachorrinho precisava descansar. Acometido de um câncer irreversível, de cegueira e surdez, meu cachorrinho viveu seus últimos dias prostrado, absorvido por um sofrimento que consternava a todos nós. A decisão pela eutanásia não se deu sem o custo de muitas lágrimas lamentosas e um choro plangente.  É quando a morte se desnuda diante de nós e nos lembra que nossa estada aqui é passageira; ela retira o seu véu e nos chama inelutável e inexoravelmente.
No capítulo O direito de morrer sem dor, o autor declara-nos:

“(...) sou a favor da eutanásia por motivos éticos”.
(p. 66)

E, citando, Albert Camus, adere a esse imperativo irreprochável:

“Eu apenas conheço um único dever, que é o de amar”.

É porque acolhemos esse princípio que decidimos que era chegada a hora de meu cachorrinho partir. Uma prova do amor que nutrimos por ele era consentir que a morte pusesse fim ao seu sofrimento, que era também o nosso sofrimento.
Rubem Alves, novamente, nesse texto, se nega a aceitar a vida como apenas resultante de processos biológicos. E se pergunta: o que é a vida? Escreve-nos:

“A vida não será como a música? Uma música sem fim seria insuportável. Toda música quer morrer. A morte é parte da beleza da vida.”
“A vida não pode ser medida por batidas do coração ou ondas elétricas”
(p. 67)

Músicas emocionam a vida. Tocam à vida. Dizem de nossas almas, embalam nossas emoções, fazem dançar nossas lágrimas, reaviva-nos lembranças adormecidas ou mortas. A analogia entre música e vida é bastante pertinente, pois que a música eterniza a vida. Na música, a vida é recontada, a alma da vida permanece na melodia, nas notas, nos versos. Na música, quem nos fala não é a voz, mas a alma. Música, alma e vida conduzem-nos ao infinito, porque nos tornam desejosos de inesgotabilidade.
Decerto, a imortalidade da vida orgânica seria entediante, mas não da vida espiritual, que a transcende e que é atemporal. O tempo cerceia vida, a aprisiona; somente uma vida atemporal pode nos regozijar plenamente, porque não conheceremos a pressa, a urgência, a espera. Nada mais a esperar.
Eu não sou apenas um homem, sou um acontecimento do Mistério da vida; sou um rebento da inquietude, da des-esperança.
A morte biológica é quando as luzes do corpo se apagam. A morte do corpo é mera in-animação. A matéria imóvel, enrijecida, apodrecendo é apenas a sobra de uma casa envelhecida destinada à ruína. E toda a nossa complexidade biológica será destinada a ser pó, alimento dos vermes, adubo para a terra faminta.
Mas o sopro da vida, que inspira o AMOR, que aspira à felicidade, ao prazer, ao gozo; o sopro da vida que deseja a eternidade, mesmo que cindida num instante, breve, fugaz, mas deleitoso; esse sopro que se apossa de nós quando vivemos apaixonados, acolhidos nas asas do AMOR, que nos permite experimentar sensações provindas das Alturas – regiões intangíveis, incognoscíveis, mas tão humanamente reconhecíveis; esse sopro que nos adverte, todos os dias, que somos finitos, que as coisas do mundo são passageiras, que nada podemos reter, senão o AMOR que nos foi permitido experienciar e as alegrias, também efêmeras, que compartilhamos com aqueles que amamos e que nos amaram; esse sopro que, em alguns, é desperto e inquieto; em outros, permanece sempre adormecido; esse sopro não se extingue, porque é emoção (é o que nos move, nos agita, nos impele). E a emoção é o que permanece em nosso coração, é a lembrança que dói por um tempo, mas que há de tornar-se amena, confortante; emoção que é desejo, demasiadamente humano, de que a morte imperiosa não seja o fim, mas apenas um recomeço.